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ROGER CHARTIER
á, ——ema
A HISTÓRIA CULTURAL
ENTRE PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES
Tradução
de
Maria Manuela Galhardo
2.º edição
Memória e Sociedade
mB) DIFEL
Dilusão Ecimpeil, tda.
upa
NOTA DE APRESENTAÇÃO
Apresentar ao público português um livro de Roger Chartier
O Roger Chartier, 1988 e Comell Universtcy Press, 1982; Édicions du Cenrre Georges implica uma reflexão preliminar sobre as condições da sua recepção.
Pompidou, 1987; Éditions Flammarion,1985; Instiçuta de Cultura Portuguesa, Para isto, devemos começar por precisas o sentido das trocas erstre as
1987; Éditions Garnier er Frétes, 1986; Promodis, 1984; Pergamoa Press, 1986;
bistoriografias francesa e portuguesa nos últimas décadas, No dmbito
École Française de Rome, 1985.
Todos os direitos para publicação desta abra em lingua pormuguesa reservados pot: dos estudos relativos à época moderna, tais trocas poderão ser persadas
a partir de três domínios essenciais, Ema primeiro lugar, um comjunto
mm) DIFEL de trabalhos de história económica é socêal — dimensionados ema dife-
Dibusão Ectirial S.A,
rentes escalas: urbana, regional, oceânica, intercontinental — revela
Denominação Social — IIFEL 82 — Difusão Edirorial, S.A,
— Avenida das Tulipas, n.º 4O-C
0 gras de intervenção e a capacidade de influência do circulo coms-
Sede Social
— Miraflores tituido pela antiga Ecole Pratique des Hluntes Etudes, Em segundo
— 1495-159 Algés — Porrugal lugar, um número considerável de estudos de história cultural, mentos
— Telef.:21 412 35 10
— Fax: 21 412 35 19
sobretudo «os registos literários, exprime não só o interesse francês por
— E-mail dlifeledifel-sa.pr obras e autores portugueses, mas também a preocupação em proceder à
Capital Social — 60 000 000$00 (sessenta milhões de escudos) sua legitimação — através de revistas próprics, de provas académicas
Contribuinte n.º — 501 378 537 e de formas de reconhecimento institucional (Sorbonne, Collêge de
Matricula n.º R680 — Conservatória do Registo Comercial de Oeiras
Erance, Bcole Pratique, Centre Calturel Portugais). Por último, as
Memória e Sociedade traduções de obras francesas — promovidas por algumas editoras
Colecção coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto lisboetas, entre as quais a Cosmos desesapenhou zm papel pioneiso —
Capa: Emilio Vilar são a prova de uma procura crescente da produção proveniente da
Revisão: Fernando Portugal
Composição: Maria Esther — Gab. Fotocormposição «escola» dos Annales. Será uma evidência afirmar que nestes três
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra— Viseu domínios existem atrasos macionais, num quadro de trocas desiguais
Depósito Legal n.º 174 602/02 (alvaguardando o cavácier excepcional de obras como a de Vitorino
ISBN 972-29-0584-8 ! Janeiro 2002 Magalhães Godinho).
Mais dificil será diagnosticar a sitseação actual, A este propávito,
Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização do Edivor algumas questões poderão ser deixadas em aberto. Antes de mais,
importa considerar a banalização de conceitos e de modelos explica-
tivos da história económica e social — em boa parte proporcionada por
Programas e currículos escolares — uma vez dissociados do sex quadro
original, verdadeiramente inovador. Depois, bá que reconhecer o «decti-
nto do interesse francês pelos estudos de literatsra poriuguesa, facto
HISTÓRIA CULTURAL NOTA DE APRESENTAÇÃO 9
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a que não será estranha a interrupção do diálogo entre as históricas de -se por divulgar algemas das suas obras mais importantes. Editores
itermura e da cultura — consequência da difusão de abordagens brasileiros têm-se preocupado em dar a conhecer a obra de Michel
posco interessadas no-contexto temporal dos discursos e resultado de Foucault, mas do lacdo de cá do Atlântico só muito dificilmente essas
desconfianças frente à fonte literária, -doteada de um estatuto maenos traduções podem ser comparadas ao fragmento que nos ofereceu, tai
real que o documento de arquivo. Por fim, interessa analisar 0 para dez anos, uma antologia organizada por E. Prado Coelho. A
mercado das traduções, quando pretende passar por actress produtos sondagem deverá ser extensiva a outros autores — (radamer, Geertz,
es
com dez ou vinte anos, chegando a não identificar os Seus tradutor Habermas. Jauss e, ainda, Ricveur — quase ignorados entre nós, mas
e dos
e só muito raramente arriscando uma apresentação das obras gue interessaria controlar mais directamente, ultrapassando
autores. Ora, é a possibilidade de levar mais fundo a interrogação a leitura de segunda mão ou a estupefacção frente aos momes comtidera-
os
sobre estas três questões que o presente livro nos faculta. Propõe-n dos na moda. Neste quadro, talvez desolador, a excepção será Norbert
uma reflexão sobre o paradigma historiogwáfico dos anos 50 e 60, Elias — que outras editoras têm proczsrado divulgar —, mes também
construído em relação à economia e sociedade, mas que se fornos aqui bã o perigo de se estarem a favorecer leituras redutoras da sua
extensivo à história das mentalidades. Ásseme como um duplo proble- obra, .
ao
ma «s formas narrativas, por um lado, porque são inerentes Se, ao esquecer reais autores, corremos o risco de ler Chartier fora
discurso histórico e literário, por ouiro, porque fazem parte dos do seu contexto, o mesmo acontece quando isolamos uma pequena parte
documentos que o historiador toma por objecto. Enfim, apresenta-se da sua obra e a apresentamos em forma de livro, Neste caso, controlar
organiza
como actual, pois inclui oito entaios publicados após 1982, » acto de lestura imaplica, no minicmo, atender a um conjunto de
em que se
dos exclusivamente para a edição portuguesa, numa alinça práticas de exclusão e de classificação, Para as entender, será úxil
on
preparam ou começam a sair traduções do autor em inglês (Princet definir o conjunto de árias e de interesses presentes na totalidade das
University Press, Polity Press) e italiano. o Publicações do autor. Cinco rubricas podem servir de ponto de partida,
é repre- a) Uma primeira área de trabalhos de Roger Chartier visa a análise
Neste contexto, ler a História cultural: entre práticas
a pôr
sentações implica uma segunda ordem de reflexões, de modo das instituições de ensino e das sociabilidades intelectnais. b) Numa
.
em causa as possibilidades de migração das ideias de Roger Chartier segunda área, será possível agrupar um conjunto de investipações
sia
O que equivale a perguntar: qual a distância entre 0 antor na barcelares — sobre a merginalidade, os intelectuais frustrados, a festa
origem e neste seu ponto de chegada? Sema preocupações e ou a morte — e de tentativas de símese — da França svbanea à vida
repare-se que uma primeira distância se encontra na configuração
Privada; tanto num coso como mo ouiro, poderemos dizer que se pretende
queos
autores, reivindicada ou aceite pelo próprio, * 0 conhecimento
reinventar a história social, atendendo sobreindo a um conjunto de
a
Tanto Pierre Emeenic práticas e de objectos culsurais. c) Segue-se sm campo de. publicações
leitores portugueses poderão ter dos mesmos.
Miíchei de Certeam Jão ponco combecidas em língua Portuguesa constituído principalmsente pela história da leitura, permanentemente
como
encontrara confrontada com a &istória do livro, da edição ou dos objectos
e, apesar das tradsções do primeiro, publicadas no Brasil,
19 HISTÓRIA CULTURAL NOTA DE APRESENTAÇÃO II
VE
que eme tirem

tipográficos, e que «o mesmo tempo se esforça Por interrogar a teoria da de civilização ou as transformações sociais, recorrendo «os tempos
recepção e a sociologia cultural (por exemplo, os capítulos IV, Ve VI longos, mesmo que descontínuos. Aceitar como uma tensão, mem sempre
do presente livro). d) Um quarto domínio dêz respeito às análises da fácil de equilibrar, a passagem do caso ao processo obriga a pôr
cultura política, nas suas várias configurações — dos círculos cortesãos o problema do mercado dos produtos historiográficos e mais concreta-
aos meios populares — e concedendo uma atenção particular aos mente a querer saber qual o peso das solicitações dos editores,
discursos escritos (caso dos capítulos VII e VIEI). e) Uma sltima área interessados mea novidade do pequeno objecto parcelar (é o caso dos
de publicações revela um permanente esforço em reflectir sobre o oficio capítulos V e VI), mas preocupados sobrezudo com o tipo de ofeta
de historiador, por um lado, a partir do exame das condições de proporcionado pela obra de síntese, Finalmente, importa enunciar a
produção dos agentes da prática historiográfica, por outro, através de tensão fundamental que percorre a obra de Chartier, Por um lado,
uma avaliação dos conceitos e das formas discursivas que fundam esta existe uma permanente interrogação sobre a possibilidade de ir do
mesma prática (como acontece na introdução e mos capítulos E, IF e discurso ao facto, o que obriga a pôr em causa a ideia da fonte
HI). Assim, com base nesta tipologia — asszemida também como acto enquanto testemunho de. uma realidade de que eta seria mero
de leitura —, será possível situar melhor o presente livro no quadro da instrimento de mediação. Donde, a dupla tendência para analitar
produção historiográfica do antor, a realidade através das suar representações e bara considerar as
Avaliar as condições de recepção deste Eivro de Roger Chartier representações como reclidade de melziplos sentidos. Por outro lado,

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obriga, ainda, à explicitar uma leisura, que gostaríamos de propor constata-se a existência de práticas sociais que não poderão ser

Ajato
AS
contra as apropriações hagiográficas ou de mero reconhecimento dos sezs reduzidas a represemiações, pois revestems uma lógica autónoma, Resol-
precursores. Três aspectos, dotados de um-estazuto desigual, constituem ver esta rensão implica tornar operatórias a noção de leitura e o
a mosta proposta. Em primeiro ingar, importa pensar em conjunto zm conjunto de formas de apropriação, as quais permitem pensar simuita-
percurso académico (École Normale Supérienre de Saint-Clond, Paris E nesmente a relação de conhecimento, em particular 0s procedimentos com
— Sorbonne, E.H.E.S.S. e numerosas universidades europeias e ame- as fontes, e O confunto dos actos de relação, comprometedores de práticas

as lb
ricanas), sm irinerário edisorial (de dirigido a director de projetos) e de representações, Neste sentido, o conceito-chave de leitura será para
e uma trajectória historiográfica (a que se poderia juntar uma Chartier o que as relações de interdependência são para Norbert Elias
actividade de crítico nas revistas ciemíficas e nos jornais de maior e a moção de campo é para Bourdiem.
circulação, como Le Monde). O sentido dos conflitos, que este livro
nos dá a ler, só será compreensível neste quadro de afirmação da
autonomia e de aquisição crescente dos títulos de prestígio, no interior
do campo intelectual. Depois, será preciso não isolar o carácter
fragmentário, próprio dos estudos de caso — opção de uma prática
NecesSariamente experimental—, & «a necessid ede
de persar os processos
INTRODUÇÃO
Por uma sociologea histórica
das práticas caltnrais
O presente livro, composto por oito ensaios publicados
encre 1982 e 1986, constirui-se como resposta à insatisfação
sentida frente à hiscória cultural Francesa dos anos 60 e 70,
entendida na sua dupla vertente de hisrória das mentalidades
e de história serial, quantirativa. CJs traços que a caracterizam
só podem ser compreendidos quando relacionados com a situa-
ção da própria história, como disciplina, naquelas décadas.
Numa palavra, poderá dizer-se que a história era então institu-
cionalmente dominante e que se encontrava inrelecrualmente
ameaçada !. A posição que derinha no campo universitário era
assegurada pelo seu peso numérico (em 1967, ascende ao
segundo plano das letras e das ciências humanas, atrás da
literatura francesa, mas muito antes da linguística, da psicolo-
gia ou da sociologia) e pela importância do capital escolar, em
termos de currículo e de graus académicos, dos seus mestres:
nove em cada dez eram agregados, dois em cada dez eram
antigos alunos das Escolas Normais Superiores. Na escala da
legitimidade institucional, a história pertencia ao grupo das
disciplinas dominantes, ainda que ultrapassada pelo francês,
pelas línguas mortas ou pela filosofia, e apresentava caracterís-
ticas muito diferentes das atribuídas às disciplinas novas, que
exibiam números mais discretos € cujos docentes (sobretudo os
mais jovens, que não eram professores mas tão só assistentes)
careciam dos graus académicos de maior prestígio.
“ Os dados relazivos às eransformações morfológicas das disciplinas que
estão na base desta evolução foram reunidos por Pietre Bourdieu, Luc
Boltanski e Pascale Maldidier, in «La déferse do corps», Information sur des
Srzences Sociales, X, à, 1971, pp. 45-86, Esses dados constiruem a base
estatística de Pierce Bourdieu em Hemo quademicas, Paris, Minuit, 1984,
14 PRÁTICAS CULTURAES INTRODUÇÃO 15
Ora é precisamente essa posição, baseada na primazia do mais para O social tinha em certa medida relegado para segundo
estudo das conjunturas económicas e demográficas ou das estru- plano. Sob a designação de história das mentalidades ou de
turas sociais, que as ciências sociais mais recentemente institu- psicologia histórica delimitava-se um novo campo, distinto tanto
cionalizadas centam abalar nos anos 60. Para tal, puderam con- da antiga história intelectual literária como da hegemónica
tar com uma fortíssima taxa de crescimento dos seus efectivos história económica e social. Com estes objectos novos ou
(que variou entre 200% e 300%, de 1965 a 1967, para a lin- reencontrados podiam ser experimentados tratamentos inéditos,
guística, a sociologia e a psicologia) e com a contratação de tomados de empréstimo às disciplinas vizinhas: foi o caso das
novos professores, com diplomas mais modestos do que nas técnicas de análise linguística e semântica, dos meios estatísti-
discíplinas canónicas, mas que dispunham, na maioria, de um cos utilizados pela sociologia ou de alguns modelos da antropo-
force capital social. O desafio lançado à história pelas novas logia.
disciplinas assumiu diversas formas, umas estruturalistas, Ou- Mas esta estratégia de captação (dos territórios, das técni-
tras não, ras que no conjunto puseram em causa OS seus cas, dos índices de cientificidade) só podia resultar na condição
objectos — desviando a atenção das hierarquias para as tela- de não pôr de lado nada do que tinha estado na hase do sucesso
ções, das posições para as representações — e as suas certezas da disciplina, decerminado pelas renovações audaciosas do
metodológicas — consideradas mal fundadas quando confronra- tratamento serial dessas fontes massivas, nomeadamente regis-
das com as. novas exigências teóricas. Ao aplicar em áreas aré tos de preços, registos paroquiais, arquivos portuários e actos
então estranhas aos interesses da história económica e social norariais. Nas suas grandes grandes linhas a história das men-
normas de cientificidade e modelos de trabalho frequentemente talidades construiv-se aplicando a novos objectos os princípios
decalcados das ciências exactas (como a formalização e a mode- de inteligibilidade. utilizados na história das economias e das
lização, a explicitação das hipóteses, a investigação em gmpo), sociedades, como sejam a preferência dada ao maior número,
as ciências sociais conquistadoras iam minando o domínio da logo à investigação da cultura ticka como popular; a <onfiança
história nos campos universitário e intelectual. É ao importar nos números e na quantificação; o gosto pela longa dutação; a
da área das disciplinas literárias novos princípios de legitimida- primazia atribuída a um-tipo-de divisão social que organizava
de, que desqualificavam a história enquanto disciplina empíri- imperativamenre a classificação dos factos de mentalidade. As
ca, tentavam converter a sua fragilidade instirucional em caracrerísticas próprias da história cultural assim definida, que
hegemonia: intelectual. concilia novos domínios de investigação com a fidelidade aos
A-resposta dos historiadores foi dupla. Puseram em prática postulados da história social, eram como que a traclução da
uma esrratégia de captação, colocando-se mas primeiras linhas estratégia da própria disciplina, que visava a apropriação de
desbravadas por outros. Daí a emergência de novos objectos no uma nova legitimidade científica, apoiada em aquisições inte-
seio das questões históricas: as atitudes perante a vida e a lecruais que tinham forralecido o seu domínio institucional.
morte, as crenças e os comportamentos religiosos, os sistemas Ao inscrever, deste modo, as características da história das
de parentesco e as relações familiares, os rituais, as formas de mentalidades na configuração do campo científico em que
sociabilidade, . as modalidades de funcionamento escolar, etc. foram moldadas, pretendemos assinalar que qualquer reflexão
— O que representava a constituição de novos territórios do sobre os desvios ou afrontamentos próprios de uma disciplina
historiador arravés da anexação dos territórios dos outros. Daí, supõe necessariamente a identificação da sua posição no campo
corolariamente, o retorno a uma das inspirações fundadoras dos universitário e a verificação dos legados interiorizados e das
primeiros Asmades dos anos 30, a saber, o estudo das utensila- posturas partilhadas que constituem o cerne da sua especificida-
gens mentais que o domínio de uma história dirigida antes de de. Durante um período demasiado longo, os historiadores
16 PRÁTICAS CULTURAIS INTRODUÇÃO 17
escreveram a história da sua discipitna socorrendo-se de carego- momentos uma dererminada realidade social é construída,
rias de pensamento cujo-emprego teriam recusado na análise de pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários
qualquer outro objecto. Durante esse período demasiado longo, caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e
a história da história foi habitada por «essas sequências de detimirações que organizama apreensão do mundo social como
conceitos saídos de inteligências desencarnadas», denunciadas categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real.
por Lucien Febvre como o pior defeiro da antiga história das Variáveis consoante as classes sociais ou os meios intelectuais,
ideias ?. Ora, o presente livco pretende ilustrar (discretamente, são produzidas pelas disposições escáveis e partilhadas, próprias
atendendo a que não é esse o seu objecto) uma outra maneira de do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que
pensar as evoluções e oposições intelectuais. E deseja fazê-lo criam as figuras graças às quais o presente pode adquitir
eraçando as determinações objectivas, expressas nos habitus sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado.
disciplinares, que regularam a relação da: história cultural As representações do mundo social assim construídas, em-
francesa com outros campos do saber, próximos mas muitas ve- bora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na
zes ignorados: a história literária, a epistemologia das ciências, razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que
a. filosofia. m as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos
Uma tal abordagem, tornada de empréstimo à sociologia do discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.
saber, deveria levar à compreensão de cerras clivagens apresen- As percepções do social não são de forma alguma discursos
tadas neste volume: por exemplo, entre a sociologia, tal como a neurros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares,
pratica Norbert Elias, e as tradições históricas contra as quais políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de
ela se constrói. Essas oposições, formuladas em termos de outros, por elas menosprezados, a legitimar ura projecto refor-
diferenças conceptuais e metodológicas (é o que são na realida- mador ou à justificar, para os próprios indivíduos, as suas
de), e determinadas por lutas pelo domínio disciplinar ou inte- escolhas e condutas. Pot isso esta investigação sobre as repre-
leccual, não são as mesmas na Alermanha universitária dos anos sentações supõe-nas como estando sempre colocadas num
30 ou no mundo intelectual dos anos BO. Só as suas configura- campo de concorrências e de competições cujos. desafios. se
ções específicas e as estratégias particulares que produzem envnciam em termos de poder e de dominação. As lutas de
podem dar inteiramenté conta das posições sustentadas e dos representações têm tanta importância como as lutas económicas
caminhos seguidos. Dizer isto não é seduzir os debates intelec- para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe,
tuais à mera condição de aparentes confrontos de poder (entre ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores
escolas, entre disciplinas ou entre tradições nacionais), nem que são os seus, E o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de
pensar que tal análise permite,a quem a faz, escapar às derer- classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do
minações do campo em que se encontra. Trata-se de outra social — como julgou durante muito tempo uma história de
coisa, que é o dever de pensar as divergências surgidas no nosso vistas demasiado curtas —, muito pelo contrário, consiste em
mundo académico ou as evoluções das disciplinas que são-as localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto
nossas, situando-as no espaço social que é o seu. - menos imediatamente materiais ?.
A história cultural, tal como a entendemos, tem por prin- Deste modo, espera-se acabar com os falsos debates desenvol
cipal objecto identificar o modo como em diferentes hugares e vidos em torno da partilha, tida como icredutível, entre a objec-
2 Lucien Febvre, «Leur histoire er la nôxie», Aunaies d'Histojre Ecomomi- à Ao formular estas escolhas mesodológicas, apoiamo-nos em grande
ida no trabalho de Pierre Bourdicu, em parvicular Le dininccion. Critique
que e: Sociaie, 8 (1938), texto retomado em Combais pour Fhistoire, Paris,
A. Colin, 1953, pp. 276-283. sociale du jugement, Paris, Mimuit, 1979. e
18 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 19
tividade das eseruturas (que seria O terreno da história mais riza, paradoxalmente, a pensar naquilo de que a utensilagem
segura, aquela que, manuseando documentos seriados, quantifi- conceptual da história das mentalidades careceu. A noção de
cáveis, reconstrói as sociedades tais como eram na verdade) e a «representação colectiva», entendida no sentido que lhe arri-
subjectividade das representações (a que estaria ligada uma ourra buíam, permite, conciliar as imagens mentais claras — aquilo
história, dirigida às ilusões de discursos distanciados do seal). que Lucien Febyre designava por «os materiais de ídeias» —
Fal clivagem atravessou profundamente a história, mas tamibém com os esquemas interiorizados, as caregorias incorporadas, que
outras ciências sociais, como & sociologia ou a etnologia, opondo as gerem e estruturam, Aquela noção obriga igualmente a re-
abordagens estrururalistas e perspectivas fenomenológicas, traba- meter a modelação destes esquemas e categorias, não pata
Ihando as primeiras em grande escala sobre as posições e relações processos psicológicos, sejam eles singulares ou partilhados, mas
dos diferentes grupos, muitas vezes icientificados com classes, e para as próptias divisões do mundo social. Desta forma, pode
privilegiando as segundas o estudo dos valores e dos comporta- pensar-se uma história cultural do social que tome por objecto à
mentos de comunidades mais restritas, frequentemente conside- | compreensão das formas e dos motivos — ou, por outras pala-
radas homogéneas. Os debates recentes entre os defensores da vtas, das representações do mundo social — que, à revelia dos
eicrostoria ou dos case stuilies e os da história sociocultural serial, actores sociais, traduzem as suas posições e interesses objecti-
herdeira directa da história social, ilustram bem esta polarização vamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a socie-
constitutiva do campo das ciências sociais. Tentar ultrapassá-la dade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.
exige, antes de mais, considerar os esquemas geradores das clas- Nomear estes motivos abre um primeiro debate: será neçes-
sificações e das percepções, próptios de cada grupo ou meio, sário identificar como símbolos e considerar como «simbólicos»
como verdadeiras instituições sóciais, - incorporando sob a forma todos os signos, actos ou objectos, todas as figuras intelectuais
de categorias mentais e de représentações colectivas as demarca- ou representações colectivas graças aos quais os grupos forne-
ções da: própria organização social: «As primeiras categorias cem uma organização conceptual ao mundo social ou natural,
lógicas foram caregorias sociais, as primeiras classes de coisas construindo assim a sua realidade apreendidae comunicada?
foram classes de homens em que essas coisas foram integradas.» A- referência fundadora a -Ernst..Cassirer, teivindicada pela.
O que leva seguidamente a considerar estas répresentações como antropologia simbólica americana, depois de o ter sido por
as matrizes de discursos e de práticas diferenciadas — «mesmo Erwin Panoísky, poderia constituir um incitamento nesse
as representações colectivas mais elevacias só têm uma existência, sentido, pois define a função simbólica (dita de simbolização ou
isto é, só o são verdadeiramente a partir do momento em que de representação) como uma função mediadora que informa as
comandam actos»º — que têm por objectivo a construção do diferentes modalidades de apreensão do real, quer opere por
mundo social, e como tal a definição contraditória das identida- meio dos signos linguísticos, das figuras mitológicas e-da reli-
des — tanto a dos outros como a sua. - so gião, ou dos conceitos do conhecimento científico*. A tra-
Efectuar um retorno a Marcel Mauss e a Emile Durkheim auto- dição do idealismo crítico designa assim por «forma simbólica»
todas as categorias e todos Os processos que constroem «o mun-
* Emile Durkheim e Marcel Mauss, «De quelques formes primitives
de classification. Contribution à Vétude des représentations collecrives», do como representação» ". Daí o destinar uma Função
Axmêe sociologigre, 6 (1903), texto retomado em Marcel Mauss, Oeuvres, IL,
Reprisentarions collectives er diversité des cxvilisatõons, Paris, Mimuit, 1969, pp. - SErmse Cossirer, La philoropbie des forme symboliques, 3 romos, Paris
É tro cf. em especial a «Introduction et exposition du problême-»,
nan Nise «Sfiisdooa e: proporcicas de la sociologies, Asaée s eg, pp. 13-58.
sociplogigue, nova série, 2 (1927), rexco retomado in Marcel Mauss, Oexeres, *td., La philoophie des formes symboligues, op. cit., UL, La phimomênologie
HI, Cobésion social e divistoms de da socrslogie, Paris, Minuit, 1969, pp. de la comnaissance, p. 310, cizando Schopenhauer.
178-245, citação p. 210.
20 PRÁTICAS CULTURAIS INTRODUÇÃO 21
universal ao espírito de conjunto das produções, quaisquer que entre o signo visível e o referente por ele significado — o que
sejam, provenientes da ordem da representação ou da figuração; não quer dizer que seja necessariamente estável e unívoca.
daí, consequentemente, a extensão máxima fornecida ao con- A relação de representação — entendida, deste modo, como
ceiro de símbolo para o qual remetem todas as formas ou todos relacionamento de uma imagem presente e de um objecto
os signos graças aos quais a consciência constitui a «realí ausente, valendo aquela por este, por lhe estar conforme
dade». . —- modela coda a reocia do signo que comanda 0 pensamento
Propomos que se tome o conceito de representação num clássico e encontta a sua elaboração mais complexa com os
sentido mais particular e historicamente mais dererminado. lógicos de Porr-Royal. Por um lado, são as suas modalidades
A sua pertinência operatória para tratar os objectos aqui analisa- variáveis que permitem distinguir diferentes categorias de signos
dos resulta de duas ordens de razões. Em primeiro lugar, é claro (certos ou prováveis, naturais ou instituídos, ligados ou sepaca-
que a noção não. é estranha às sociedades de Antigo Regime,

cpmiitaiao
dos do que é representado, etc.) e que nos permitem caracterizar
pelo contrário, ocupa aí um. lugar central. À este respeito o símbolo (em sentido restrito) na sua diferença relativamente à
oferecem-se várias observações. As definições antigas do termo outros signos "º. Por outro lado, ao identificar as duas condições

astct
(por exemplo, a do dicionário de Furetiêre) manifestam a necessárias para que uma relação desse tipo seja inteligível — a
tensão entre duas famílias de sentidos:- por um lado, a represen- € saber, o conhecimento do signo enquanto signo, no seu distan-
tação como dando a ver uma coisa ausente, O que supõe uma ciamento da coisa significada, e a existência de convenções
distinção radical entre aquilo-que representa e aquilo que é partilhadas que regulam a relação do signo com a coisa —!!, a
representado; por outro, à representação como exibição de uma Logique de Port-Royal coloca os termos de uma questão histórica
presença, como apresentação pública de-algo ou de alguém. No fundamental: a da variabilidade e -da pluralidade de compreen-
primeiro sentido, a representação é instrumento de um conhe- sões (ou incompreensões) das representações do mundo social e
cimento mediato que faz ver um objecto ausente através da sua natural propostas. nas imagens é nos textos antigos. -
substituição por uma «imagem» capaz de O reconsrituir em “Por último, note-se que a distinção fundamental entre
memória e de o figurat tal como ele é. Algumas dessas imagens representação e representado, entre signo e significado, é perver-
são bem materiais e semelhantes, como os bonecos de cera, de tida pelas formas de teatralização da vida social de Antigo

isa
madeira ou de couro, apelidados justamente de «representa- Regime. Todas elas têm em vista fazer com que a identidade do
ções», que eram colocados por cima do féretro real durante os ser não seja outra coisa senão a aparência da representação, isto

die e
funerais dos. soberanos franceses e ingleses e que mostravam O É, que'a coisa não exista a não ser no signo que a exibe: «Este
que já não era visível, isto é, a dignidade imortal perpetuada Senhor tem mesmo ar e a representação daquilo que é» é um-dos
na pessoa mortal do rei”. Outras, porém, são pensadas num exemplos de emprego dado por Furetitre. Ao tratar da imagina-
registo diferente: o da relação simbólica que, para Furetire, | ção, Pascal põe a nu esse funcionamento da «montra» que leva a
consiste na «representação de um pouco de moral através das crer que a aparência vale pelo real: «Os nossos magistrados têm
imagens ou das propriedades das coisas naturais (...) O leão é o conhecido bem esse mistério. As suas vestes vermelhas, os seus
símbolo do valor; a esfera, o da inconstância; o pelicano, o do
amor paternal» º. Uma relação compreensível é, então, postulada 'º Antoine Arnauld e Pierre Nicole, Le dopique om dart de penser, edição
crítica por Pierre Clair e François Girbal, Paris, Presses Universitaizes de
8 Ernst Kantorowicz, The King't Two Bodies. Study in Medieual Political France, 1965, Livro E, Capítulo IV, pp. 52-54, [Desta obra existe uma
Tóseiogy, Princeron, Princeron Univessiry Press, 1957, pp. 419437. . edição de bolso, com introdução de Louis Marin, Paris, Flammarion,
* Fureriêre, Dicrionmairo universe! 1690 [dota da 1.º edição], artigos «Champs», 1970].
«Représentation» e «Symbole». 2 Jhid.. Livro W, Capitulo XIV, pp. 1356-160.
22 PRÁTICAS CULTURAIS INTRODUÇÃO 23
asminhos, que os envolvem em mantos felinos, os palácios onde —., como corolário da ausência ow do apagamento da violência
exercem a justiça, as flores de lis, todo esse augusto aparelho beura, É no processo de longa dluração, de erradicação e de
é muito necessário; e se os médicos não tivessem sotainas e monogpolização da violência, que é necessário inscrever a Empor-
mulas e os doutores não tivessem barretes quadrados e becas tância crescente adquirida pelas lutas de representações, onde o
demasiado largas e de quatro panos, nunca teriam enganado o que está em jogo é a ordenação, logo a hierarquização da
” mundo, que não consegue resistir a essa montra tão autêntica. Se própria estrutura social. Trabalhando assim sobre as representa-
aqueles últimos derivessem a verdadeira justiça e se os médicos ções que os grupos modelam deles próprios ou dos outros,
possuissem a verdadeira arte de curar, não teriam necessidade de afastando-se, portanto, de uma dependência demasiado estrita
barretes quadrados; a majestade dessas ciências seria por si pró- relativamente à história social entendida no senrído clássico, a
pria suficientemente venerável. Mas lidando apenas com ciências história cultural pode regressar utilmente ao social, já que faz
imaginárias, é-lhes necessário lançar mão desses vãos instrumen- incidir a sua atenção sobre as estratégias que determinam
tos que impressionam a imaginação daqueles com que têm de posições e relações e que atribuem a cada classe, grupo ou meio
tratar; e é deste modo, que se dão ao respeito» 2, A relação de um «ser-apreendido» constiturivo da sua identidade.
representação é assim confundida pela. acção EA imaginação, Deste modo, a noção de representação ser pode construída a
«essa parte dominante do homem, essa mestra do erro e da partir das acepções antigas. Ela é um dos conceitos mais im-
falsidade» !?, que faz tomar o logro pela verdade, que ostenta os portantes utilizados pelos homens do Antigo Regime, quando
signos visíveis como provas de uma realidade que não o é. Ássim pretendem compreender o funcionamento da sua sociedade ou
deturpada, a representação transfórma-se em máquina de fabrico definir as operações intelectuais que lhes permitem apreender o
de respeito e de. submissão, num instrumento que produz mundo. Há aí uma primeira e boa razão para fazer dessa noção
set

a pedra angular de uma abordagem a nível da história cultural.


Career res

constrangimento interiorizado,: que é necessário onde quer que


falte o possível recurso a uma violência imediata: «Só os homens Mas a razão é outra. Mais do que o conceito de mentalidade,
Do

de guerra não se mascaram dessa maneira, porque efectivamente ela permite articular três modalidades da relação com o mundo
o -seu papel é mais essencial, eles afirmam-se pela e enquan- social: em: primeiro. lugar, o- trabalho de classifi icação e-de
to os outros: o fazem por meio: de dissimulações !* delimitação que produz as configurações inteleceuais múltiplas,
A reflexão sobre a sociedade de corte, introduzida aa vol através das quais a realidade é conrraditoriamente construida
me a partir de-uma leitura do livro clássico de Norbert Elias, - pelos diferentes grupos; seguidamente, as práricas que visam
retoma esta perspectiva de Pascal de duas maneiras: quando define, fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma mantita
na sociedade antiga, a posição «objectiva» de cada indivíduo cômo própria de estar no mundo, sigmificar simbolicamente um esta-
estando dependente do crédito atribuído à representação que ele faz tuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e
de si próprio por aqueles de quem espera reconhecimento; quando objectivadas graças às quais uns «representantes» (instâncias
compreende as formas de dominação simbólica, por meio do colectivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e per-
«aparelho» ou do «aparato» — tal como escreverá La Bruyêre !º petuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade",
À problemática do «mundo como representação», moldado
!Z Pascal, Pexsées, 104, in Onvres compibtes, texco estabelecido por
através das séries de discursos que & apreendem e o estruturam,
Jacques Chevalier, Paris, Bibliothêque de la Pléiade, 1954, p. 1118. conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como
Grid, p. VHS.
Trigo po 118. da noção de representação in Luc Boltansky, Les
18 Cf. a uvilização
“Sta Bruyêre, Le caractêres, Paris, Garnier/Flammarion, 1965, «Du
mérise personnel», 27, pp. 107-108. cadre. La formation dum gronpe social, Paris, Minuit, 1982, pp. 57-58.
PRÁTICAS CULTURAIS INTRODUÇÃO 25
uma figuração desse <ipo pode ser apropriada pelos leitores dos das configurações rexruais exige o rompimento com o conceito
textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. Daí, de sujeito universal e abstracto tal como o utilizam « fenome-
neste livro e noutros, mais especificamente consagrados às nologia e, apesar das aparências, a estética da recepção. Ambas
práticas da leicura , o interesse manifestado pelo processo por o constroem quer a partir de uma invariância trans-histórica da
intermédio do qualé historicamente produzido um sentido e individualidade, considerada idênrica arravés dos tempos, quer
diferenciadamente construída uma significação. Tal tarefa cru- pela projecção no universal de uma singularidade que é a de
za-se, de maneita bastante evidente, com a da hermenêutica, um eu ou de um nós contemporâneo. Aí se situa, de forma
quando se esforça por compreender como é que um cexto pode bem evidente, o ponto de discordância relarivamentce a uma
e à situação do' leitor, por ourras palavras, como outra maneira de pensar que, com INorberr Elias, coloca a
É que uma configuração narrativa pode Corresponder à uma descontinuidade fundamental das formações sociais e culturais,
refiguração da própria experiência. No pônto de articulação logo a das categorias filosóficas, das economias psíquicas, das
entre o mundo do texto e o muido do sujeito coloca-se neces- formas de experiência. As modalidades do agir e do pensar,
sariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apro- como escreve Paul Ricoeur, devem ser sempre remetidas para
priação dos discursos, isto é, à maneira como estes afectam O os laços de interdependência que reguéam as relações entre os
leitor e o cónduizem a uma nova norma de compreensão de si indivíduos e que são moldados, de diferentes maneiras em
próprio e do mundo. É sabido come Paul Ricoeur quis cons- diferentes situações, pelas estruturas do poder. Pensar assim a
truir essa teoria da leiturã apoiando-se, pór um lado, -na individualidade nas suas variações históricas equivale não só a
fenomenologia dô aceó de Fer; por outro," na estérica'da recep- romper com o conceito de sujeito universal, mas também a ins-
ção 1º. O objectivo visado éra duplo: pensar a efectivação “do crever num processo a longo prazo — caracterizado pela trans-
texto" nã sua leitura 'como 'a condição pára "que se revelem as formação do Estado e das telações entre os homens — as muca-
suas possibilidades semânticas €'se opere 0 trabalho-de refigura- ções das estruturas da personalidade. Desta maneira, pode ser
ção da experiência; compreender a: apropriação “do texto como fundada na história de longa dutação das sociedades europeias a
uma mediação necessária à constituição e à compreensão de si intuição de Lucien Febvre e.da história das mentalidades,
mesmo !º,“Todo O trabalho que se propõe identificar 'o'modo quantoà disparidade das utensilagens mentais. |
como: as confi igurações inscritãs DOS Lexcos, que dão lugar a Aplicada à teoria da leitura, esta perspectiva leva a observar
séries, construiram representações--acêires óu -impostás do quão insatisfatórias são as abordagens que consideram o acto de
mundo social, não pode deixar de subscrêver o projecto e colo- ler como uma relação transparente entre O «texto» — apresen-
car a questão; “essencial, das modalidades “da - sua” recepção. tado como uma abstracção, reduzido ao seu conteúdo semânti-
É na têsposta a ral questão que deve ser marcado um dis- co, como se existisse fora dos objectos que o oferecem à deci-
tanciamento em relação à perspectiva “hermenêntica. Com- fração — e o «leitor» — também ele abstracto, como se as
preender na sua historicidade as apropriações que se apoderam práticas através das quais ele se «propria do texto não fossem
histórica e socialmente variáveis. Os texros não são depositados
nos objectos, manuscritos ou impressos, que o supôrtam, como
E Roger Chartier, ea e Po a la France dAncim Rágime, em receptáculos, e não se inscrevem no leiror como o fariam
Paris, Seuil, 1987; Idem, The Cafiural Uses of Prins in Early; Modera Francs,
Princeton, Princeton University Press; 1987. em cera mole. Considerar a leitura como um acto concreto
1º Paul Ricoeur, Temps es récit, HI, Le temps racontê, Paris, Seuil, 1985, requer que qualquer processo de construção de sentido, logo de
pp. 243-259. interpretação, seja encarado como estando situado no cruza-
19 Td., «La foncrion a de la distanciacion», Dx pede à
fasior Essais dbermineutigue, 11, Paris, Sewil, 1986, pp. 101-137. mento entre, por um lado, leitores dotados de competências
e
º q
26 PRÁTICAS CULTURAIS INTRODUÇÃO 27
específicas, identificados pelas suas posições e disposições, determinam as operações de construção do sentido (na relação
caracterizados pela sua prática do ler, e, por outro lado, textos de leitura, mas em muitas outras também) é reconhecer, contra
cujo significado se encontra sempre dependente dos dispositi- a antiga história intelectual, que as inteligências não são
vos discursivos e formais — chamemos-lhes «tipográficos» no desencarnadas, e, contra as correntes de pensamento que postu-
caso dos textos impressos — que são os seus, Esta constatação lam o universal, que as categorias aparentemente mais invariá-
petmite craçar um espaço de trabalho, esboçado nos escudos veis devem ser construídas na descontinuidade das trajectórias
aqui reunidos, aprofundado noutro local, e que situa a produ- históricas.
ção do sentido, a «aplicação» do texto ao leitor como uma Representação, prática, apropriação: é a partir destas três
relação móvel, diferenciada, dependente das variações, simultã- noções que este livro é construído. Mas que não haja enganos: a
neas ou separadas, do próprio texto, da passagem à impressão reflexão efectuada sobre estes conceitos não foi de modo
que o dá a ler e da modalidade da sua leitura (silenciosa ou nenhum anterior à escrita dos estudos de casos colígidos.
oral, sacralizada ou laicizada, comunitária ou solitária, pública Caminharam as duas lado a lado, num diálogo constante entre
ou privada, elementar óu virtuosa, popular ou letrada, erc.)?º. a conftontação com o documento e a exigência de elucidação
'A noção de apropriação pode ser, desde logo, reformulada e metodológica. No termo (provisório) do percurso, espera-se
colocada no centro de uma abordagem de história cultural que que as questões postas pelo primeiro texto do volume possam
se prende com práticas diferenciadas, com utilizações contrasta- ficar, se não resolvidas, pelo menos formuladas com mais rigor.
das. Tal reformulação, que põe em relevo a Pluralidade dos A definição de. história cultural pode, nesse contexto, encon-
modos de emprego e a diversidade das leituras; que não forçam trar-se alterada. Por um lado, é preciso pensá-la como a análise
o texto, distancia-se do sentido que Michel Foucault dava ao do trabalho de representação, isto é, das classificações e das
conceito quando considerava «a apropriação social dos discur- exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configu-
sos» como um dos procedimentos rmiais importantes através dos rações sociais e conceptuais próprias de um tempo ou de um
quais esses discursos eram confiscados e submetidos, colocados espaço. As estruturas do mundo social não são um dado
fora do alcance de todos aqueles cuja competência ou posição objectivo, tal como o não-são as caregorias intelecruais.e
impedia o acesso aos mesmos?! Esra reformulação afasta-se psicológicas: todas elas são historicamente produzidas pelas
igualmente do sentido que a hermenêutica dá à apropriação práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que cons-
entendida como o momento do rrabalho”de refiguração da troem as suas figuras. São estas dermarcações, e os esquemas que
experiência fenomenológica, postulada como universal, a partir as modelam, que constituem o objecro de uma história cultural
de configurações textuais parriculares ??. À apropriação, “tal levada a repensar completamente a relação tradicionalmente
como a entendemos, tem” por “objectivo wma história social das postulada entre o social, identificado com um real bem real,
interpretações ; remetidas:para às suas determinações fundamen- existindo por si próprio, e as representações, supostas como
tais: (que são sociais, institucionais, culturais) é inscritas nas reflecrindo-o ou dele se desviando.
práticas “específicas que as produzem. Conceder deste modo Por outro lado, esta história deve ser entendida como .o
atenção às condições e aos processos que, muito concretamente, estudo dos processos com os quais se constrói um sentido.
Rompendo com a antiga ideia que dotava os textos e as cbras
2º Roger Chartier (sob a direcção de), Les mages de Pimprimê (XVCXIKe de um senrido intrínseco, absoluro, único — o qual a crítica
siêcie), Paris, Fayard, 1986. tinha a obrigação de identificar —, dirige-se às práxicas que,
as.47 Michel Foucault, L'ordre dy discours, Paris, Gallimard, 1971, pp. pluralmente, contradiroriamente, dão significado 20 mundo.
* Paul Ricoeur, Temps o véci, IM, op. cê. p. 229. Daí a caracterização das práricas discursivas como produroras de
28 PRÁTICAS CULTURAIS
ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões; daí
o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como
formas diferenciadas de interpretação. Umas e outras têm as suas CAPÍTULO I
determinações sociais, mas as últimas não se reduzem
à sociografia demasiado simples que, durante muito tempo, a . História intelectual e história des mentalidades:
história das sociedades ditou à das culruras. Compreender estes
enraizamentos exige, na verdade, que se tenham em conta as uma dupla reavaliação
especificidades do espaço próprio das práticas culturais, que não
é de forma nenhuma passível de ser sobreposto ao espaço das
hierarquias e divisões sociais.' Fo Equacionar os problemas da história intelectual constitui
Na fidelidade crítica à história cultural dos Annales, muitas tarefa embaraçosa por múltiplas razões. A primeira prende-se
vezes designada «das mentalidades», a reflexão aqui apresentada com o próprio vocabulário. Com efeito, em nenhum outro
pretendeu ilusttar um percurso intelectual definido por dois campo da história existe tal especificidade nacional das designa-
objectivos interligados: por um lado, submeter a exame Os ções utilizadas e tamanha dificuldade em adaptá-las, ou mais
legados interiorizados e os postulados não questionados de uma simplesmente em traduzi-las para uma outra língua e para
forte tradição historiográfica, inspiradora e reivindicada; por outro contexto intelectual *. À historiografia americana conhece
outro, propor, graças ao apoio de algumas obras importantes — duas categorias, cujas relações se encontram pouco especificadas
sociológicas e filosóficas —, um espaço de trabalho entre textos e têm sido sempre problemáticas: a intelectual history, surgida
e leituras, no intuito de compreender as práricas, complexas, com a «new history» -dos inícios do século é constituída como
rmúltiplas,- diferenciadas, que constroem o mundo como tepre- designação de uma aérea particular de investigação, com Perry
sentação. ' ss Miller, e a history of ideas, criada por A. Lovejoy para definir
uma disciplina que possui o seu objecto próprio, o seu progra-
ma e os seus mérodos de investigação, o seu lugar institucional
(em especial devido ao Jourmal of the History of Ideas, fundado
em 1940 por Lovejoy). Mas nos diferentes países europeus,
nenhuma destas duas designações se impôs inteiramente: na
Alemanha, a Geistesgeschichte* continua a ser dominante, em
Kália não aparece uma Storia intellettzale, nem com Cantimori.
Em França, a história das ideias praricamente não existe, nem
como noção, nem como disciplina (e são na verdade historiado-
res da literatura, como Jean Ebrard, que reivindicaram —
com
dúvidas e de maneira prudente, aliás — o termo), e
a história
intelectual parece ter chegado demasiado tarde para substituir
as
esignações tradicionais (história da filosofia, história
literária,
| "Vd. as primeiras páginas do artigo de F.
History: its Aims and Merhods», Dacdalss, Historical Gilbert , «Intelectual
Studies Today, Inverno
de 1971, pp. 80-97.
* Literalmente, «História do espírico» N. da T.>.

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