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curadoria conjunta de Carles Guerra e Joana Masó, no Reina Sofia de Madri, traz à tona
o trabalho fundamental do psiquiatra catalão, Francesc Tosquelles, entre as décadas de
1940 e 1960. Refugiado na França, depois da derrota na guerra civil espanhola,
revolucionou a psiquiatria e as instituições psiquiátricas com seu trabalho no hospital de
Saint-Alban a partir de 1940. Em meados do ano passado fizemos um podcast do PIPA
com Carles em que discutimos o projeto desta exposição e o tema complexo das
relações entre arte, loucura, cuidado e instituições. Agora, depois de visitar a exposição,
o fascínio por Tosquelles só aumentou.
Muitos desafios rondam um projeto como este. Como deslocar o trabalho realizado no
interior da instituição psiquiátrica para dentro de uma instituição museológica
contemporânea? Como atualizar as adversidades daquele contexto da guerra para a
atualidade? Como lidar com a criação no ambiente psiquiátrico sem idealizar a loucura?
Todas estas questões tangenciaram o trabalho dos curadores no desenvolvimento desta
pesquisa e projeto curatorial. O título que remete a uma apropriação de Tosquelles da
frase de Lautreamont, adotada pelos surrealistas, coloca a máquina de costura não junto
a um guarda-chuva e uma mesa de dissecação, mas junto ao campo de trigo, ao desafio
do trabalho e da produção. Este deslocamento diz muito das suas referências artísticas e
políticas e sua atuação na reconfiguração da instituição psiquiátrica.
Outro aspecto que fica patente vendo filmes e entrevistas de Tosquelles é o fato dele ter
sempre vivido entre as línguas - o castelhano, o catalão, o francês – expressando-se
frente à urgência das adversidades, apropriando-se dos gestos, das interjeições e
cacoetes sonoros para ganhar eloquência e persuasão. Uma liberdade de expressão
usada para fazer uma grande colagem, um experimento vivo de tradução, entre teoria e
prática, entre psicanálise, psiquiatria, militância política, gestão institucional,
experimentação artística, sempre movido pelo embate concreto com a realidade, sem
idealizações e com muita atenção empírica às diferenças.
No imediato pós-guerra, Dubuffet vai a Saint Alban mapear o que se produzira ali, já
imbuído de sua tarefa de colecionar um amplo material de Arte Bruta. Como sugere
Kayra Cabanas em seu texto no catálogo, Dubuffet, ao menos de início, foi
mal-recebido por Tosquelles, que não se interessava de todo pela oposição arte bruta e
arte cultural. Seu foco era o de analisar o modo como o trabalho das instituições
psiquiátricas - de cuidado, troca e ativação produtiva - poderia fomentar as criações dos
internos. Isso, evidentemente, não tira o mérito de Dubuffet, mas são experiências
distintas. Para Tosquelles, ser ou não arte, ser ou não criação autêntica, não eram
questões. Na verdade, o fato de a arte poder ser outras coisas, poder fomentar um espaço
solidário de experiências inventivas e afetivas era o mais importante diante do
compromisso de enfrentar a dor da alienação psíquica.
Neste aspecto, a passagem por Saint Alban naqueles anos 1940 e 1950 de figuras como
Georges Canguilhem e Franz Fanon, mostra que o debate transdisciplinar era o cerne
do projeto. Jamais as especificidades de cada campo do conhecimento. O importante,
como faria Canguilhem, era usar esta convivência no hospital, as trocas intelectuais, as
observações empíricas e o contexto em que tudo isso se passava, para redefinir os
parâmetros do que seria o Normal e o Patológico, atravessando a história da loucura
com a loucura da história. No caso de Fanon, que fez ali estágio durante a formação em
psiquiatria nos anos de 1952 e 1953, o convívio em Saint Alban contribuiu
enormemente para deslocar teoricamente sua reflexão sobre a questão colonial e os
termos para se pensar a luta decolonial. No texto de Jean Kalfa para o catálogo,
Descolonizar a Loucura, há uma análise detida desta convivência, com suas
intersecções e diferenças posteriores, ficando sublinhado o fato de que a “experiência
socio-terapêutica de Saint-Alban permitiu a Fanon pensar na opressão colonial enquanto
um patógeno e a luta nacional como desalienação”. Todas estas interações intelectuais,
assim como a passagem posterior de Félix Guattari pelo hospital, mereceriam uma
análise mais detida, que infelizmente não cabe neste espaço.