Você está na página 1de 8

O ATELIÊ BIOGRÁFICO: UM ESPAÇO DE FORMAÇÃO ISSN 1982-8632

CONTINUADA DE PROFESSORAS DE ARTE


Revista
THE BIOGRAPHIC ATELIER: A ROOM FOR CONTINUOUS @mbienteeducação.
6(1): 65-72, jan/jun,
FORMATION OF ART TEACHERS 2013

Rosvita Kolb-Bernardes1
rosvitakolb@gmail.com

RESUMO
A disciplina de Prática de Ensino de Arte toma a atividade artística do licenciando como fonte
de reflexão para a docência. Essa ação leva às seguintes questões: O processo de criação artís-
tica alimenta a prática docente? A prática docente influencia o processo de criação do artista-
-professor? A proposta deste artigo é apresentar uma análise da prática artística e da prática
docente de um grupo de professoras da educação básica, mostrando os indícios que revelaram
os caminhos que essas docentes construíram ao longo de suas práticas como educadoras, artis-
tas e pesquisadoras.
PALAVRAS-CHAVE: F
 ormação de Professores • Memória • Ensino de Arte

ABSTRACT
The discipline Prática de Ensino de Arte (Practices of Art Teaching) takes the licensee’s artistic
activity as a source of reflection to the docents. This action leads to the following questions:
Does the creation process feed the docent practices? Do the docent practices influence the cre-
65
ation process of the artist-teacher? This article proposal is to show a practical analysis of both
artist and docent practices of a group of basic education teachers, indicating the signals that
reveal the pathways built by these teachers during their practices as educators, artists and re-
searchers.
KEY WORDS: T
 eacher’s Education • Memories • Art Teaching

1 Licenciatura em Desenho e Plástica pelo Centro Universitário Feevale (1979), Especialização em Arte-Educa-
ção pela USP e Mestrado em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1991).
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (2011). Professora em cursos de O ateliê biográfico:
graduação e pós-graduação e Coordenadora do curso de Licenciatura de Educação Artística, da Escola Guig- um espaço de forma-
nard da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Assessora das proposições curriculares da edu- ção continuada de
cação infantil da Prefeitura de Belo Horizonte. Pesquisadora na área de ensino de Arte e educação, atuando professoras de arte
principalmente nos seguintes temas: formação de professores, educação infantil, educação estética, narrativas
de formação, abordagem autobiográfica, história de vida. Kolb-Bernardes R
ISSN 1982-8632 HISTÓRIAS DE VIDA E MEMÓRIA reflexões e busco os indícios para este
artigo.
A alma é invisível, um anjo é invisí-
vel, o vento é invisível, o pensamento O Grupo de Estudos, que funcio-
Revista
@mbienteeducação.
é invisível, e […], com delicadeza, se nou durante dois anos, assumiu a for-
6(1): 65-72, jan/jun, pode enxergar a alma, se pode adivi- ma de um Ateliê Biográfico inspirado
2013 nhar um anjo, se pode sentir o vento, nos fundamentos e procedimentos
se pode mudar o mundo com alguns
utilizados pela pesquisadora france-
pensamentos. (MURRAY, 2001)
sa Christine Delory-Momberger (DE-
Embevecida pela delicadeza das LORY-MOMBERGER, 2008) e pela
palavras da poetisa Roseana Mur- pesquisadora suíça Marie Christine
ray, eu, sendo uma professora, gosto Josso (JOSSO, 2004), que trabalham
de pensar que ainda temos tempo de com as histórias de vida.
mudar o mundo, tornando os nossos
A proposta de formação por meio
pensamentos, as nossas práticas, os
de histórias de vida vai além da uti-
nossos desejos e sonhos mais visíveis,
lização dos saberes formais, reconhe-
deixando que o professor/aluno perce-
cendo, como importantes, os saberes
ba a si, o outro e as coisas que estão ao
da experiência. Nessa perspectiva, a
seu redor.
proposta do “alteliê-biográfico”, cria-
Sou professora de Arte do Ensino do por Christine Delory-Momberger,
Fundamental e leciono também, já há define-se como:
alguns anos, a disciplina de Prática de
[…] um procedimento que inscreve
Ensino de Arte no curso de Licencia- a história de vida em uma dinâmica
tura de Educação Artística da Escola prospectiva que liga o passado, o pre-
Guignard da Universidade do Estado sente e o futuro do sujeito e visa fazer
de Minas Gerais (UEMG). Essa disci- emergir o seu projeto pessoal, consi-
66 plina tem como princípio tomar a ati- derando a dimensão do relato como
vidade artística do licenciando como construção da experiência do sujeito
fonte de reflexão para a docência. Faz e da história de vida como espaço de
parte do conteúdo dessa disciplina mudança aberto ao projeto de si. (DE-
LORY-MOMBERGER, 2008, p. 359).
acompanhar a prática artística dos
alunos em processo de formação, du- Marie Christine Josso (2004, p.
rante o estágio supervisionado. 27), ao propor o trabalho com “his-
Para o presente artigo, escolhi tórias de vida e formação”, indica a
trazer alguns fragmentos sobre a prá- prática da narrativa como sendo uma
tica artística e a prática docente de oportunidade para o sujeito “caminhar
algumas professoras licenciadas pela para si”, para a tomada de consciência
Escola Guignard da UEMG. Busco, dos seus percursos pessoais e profis-
através disso, revelar alguns indícios sionais.
sobre os caminhos que essas professo- A história de vida narrada é, assim,
ras têm construído no seu processo de uma mediação de conhecimento de si
ser professora-artista-pesquisadora. em sua existencialidade, que oferece
à reflexão de seu autor oportunidades
Em 2008, criamos um grupo de de tomada de consciência sobre seus
estudos a partir da disciplina de Práti- diferentes registros de expressão e de
ca de Ensino do Curso de Licenciatura representações de si, assim como so-
de Educação Artística da Universida- bre as dinâmicas que orientam a for-
de do Estado de Minas Gerais. Esse mação. (JOSSO, 2004, p. 27).
O ateliê biográfico:
um espaço de forma- grupo tinha a função de ser um espa-
Dessa maneira, os elementos do
ção continuada de ço de discussão e reflexão de formação
professoras de arte “ateliê-biográfico”, as histórias de vida
continuada para ex-alunas já professo-
e, também, os traços da pedagogia da
Kolb-Bernardes R ras. É a partir dele que faço as minhas
autonomia de Paulo Freire (FREIRE,
2004), que evidencia a relação dialó- para poder trocar experiências... Às ISSN 1982-8632
gica na construção do conhecimento, perguntas do nosso último encontro:
foram incorporados à dinâmica dos en- que artista professor que quero ser/
contros do grupo. ou que sou? Ainda não dei conta de
Revista
responder... (Fernanda, aluna do 8º @mbienteeducação.
Buscamos, assim, por meio dessas período de Artes Plásticas). 6(1): 65-72, jan/jun,
2013
diferentes formas de expressão, trazer
Em outro encontro, outra profes-
questões sobre a nossa prática em sala
sora, que levou o caderno coletivo para
de aula, sobre a professora-artista que
casa, escreveu:
somos ou gostaríamos de ser.
Foi muito emocionante a caixinha
Caracterizei esse processo como de memórias que Fernanda trouxe.
sendo um exercício de tomada da cons- A emoção da sua escrita ecoou den-
ciência de si e do outro, o qual foi rea- tro de cada um de nós. Foram poucas
lizado em três momentos: 1) Narrati- palavras e muitas verdades. Fomos
va oral: contar alguma experiência de tecendo as nossas memórias ao ouvir
sala de aula; ler em voz alta alguma a Fernanda. Parece que estamos te-
experiência para o grupo; 2) Narrativa cendo uma colcha de retalhos nestes
escrita; 3) Narrativa visual. Esses três nossos encontros, é como se a colcha e
os tecidos fossem as nossas experiên-
momentos foram vivenciados através
cias, a linha, a arte/educação, e a agu-
de uma postura reflexiva, pois o nar- lha, o diálogo. É onde as conversas e
rar a própria história e as experiências as trocas dão firmeza à costura, as
com a arte e com a educação permite nossas histórias... E quando achamos
ao professor-aluno o reconhecimento e que já era hora de alinhavar, chega-
a compreensão de si. ram flutuando as pipas da Ana Bea-
triz… mais emendas. Mais retalhos.
As narrativas escritas no caderno Sem previsão de bainha. Nada aca-
coletivo e no caderno pessoal eram li- bado. Será que algum dia nós vamos
das em voz alta, no início de cada en- acabar? (Professora Amanda).
67
contro. Tais narrativas eram constitu-
ídas pelo relato da experiência de uma Percebe-se que as narrativas de
das participantes do grupo ou pelos co- formação, em diálogo, instigam a cria-
mentários, impressões e avaliação do ção de uma escrita poética. Dizer o vi-
encontro anterior. Com isso, a experi- vido, narrar a experiência são também
ência de uma puxava o fio da memória espaços de criação, de construção de
da experiência da outra, provocando sentidos. Espaço regado pela memó-
um encadeamento de reflexões inten- ria. E a memória:
sas. […] é mais que lembrança, configura
um quadro de referências coletivas
Um dia, uma professora fez o se- que nos ajuda a saber quem somos,
guinte registro: quem são os outros e o que nos tor-
Uma das questões que ficaram para na tão únicos, os mesmos. Não é uma
mim durante a discussão do nos- capacidade de lembrar-se das coisas,
so último encontro foi o relato feito mas uma capacidade de relacioná-las
pela professora Amanda, ex-aluna do na busca dos significados e sentidos.
curso, sobre a sua performance com (BARROS, 2009).p.42-43
o feijão Andu. Este relato, de algu-
Na colcha de retalhos de experiên-
ma forma, confunde-se com a minha
cia que ia sendo tecida nos encontros, o
história, o catar feijão teve para mim
uma simbologia. Faço uma relação diálogo levava à reflexão. As conversas
com o processo de criação e a constru- e trocas sobre as experiências relata- O ateliê biográfico:
ção do processo educacional no qual das revelavam histórias singulares da um espaço de forma-
ção continuada de
a universidade está inserida... Tem vida de cada sujeito do grupo de estu- professoras de arte
dois anos que procuro participar de dos, permitindo a retomada dos per-
um grupo de estudo e de pesquisa... cursos de formação e autoformação, Kolb-Bernardes R
ISSN 1982-8632 construídos por cada um. Achei impressionante meu pai me
dizer que iríamos fazer um papagaio...
Assim, esse movimento de parar
para ouvir as histórias do outro, nesse ‘— Como?’
Revista
@mbienteeducação. caminho de retomada e consciência da
6(1): 65-72, jan/jun, autoformação, permitia rever as prá- Não tinha a menor ideia. Guardei
2013
ticas desenvolvidas na relação com as esta imagem por muito tempo na mi-
crianças no cotidiano educativo. Como nha memória. Hoje, ao ouvir o relato
exemplo, temos o registro de uma das sobre papagaios, reencontrei-me por
professoras que testemunha sua per- alguns minutos com o meu pai.” (Pro-
cepção, após participar do grupo, de fessora Jaqueline).
que as crianças com as quais trabalha- HISTÓRIA DE VIDA E FORMAÇÃO
va não prestavam atenção nela, não
DOCENTE
ouviam o que ela falava. Ela contou
que, a partir de então, começou a pen- O caminho metodológico que ado-
sar em algumas estratégias para a sua tamos no grupo de estudos foi, cada
aula. E, assim, ela propôs a eles a con- vez mais, se caracterizando pelas nar-
fecção de papagaios: rativas autobiográficas, abrindo espa-
ço para o acolhimento das histórias de
Pensei que, para aprender a falar vida das professoras e, assim, para a
para elas, seria significativo primei-
reflexão sobre seus caminhos de for-
ro escutá-las e aprender com elas. E
ai... logo pensei na pipa, nos meses
mação.
de vento, junho a agosto. [...] Percebi Um aspecto essencial dessa linha de
que a pipa é um brinquedo importan- pensamento de formação por meio
te e corriqueiro para as crianças des- das histórias de vida reside no reco-
te bairro. (Professora Ana Beatriz). nhecimento – ao lado dos saberes for-
mais e exteriores ao sujeito visados
68 Ao ouvir o relato de Ana Beatriz
pelas instituições escolar e universi-
sobre os papagaios, uma outra profes- tária – dos saberes subjetivos e não
sora volta à sua memória de infância formalizados que os indivíduos colo-
e narra: cam em prática nas experiências. [...]
Essa importância dada à experiência
Senti uma imensa vontade de escre-
individual está inserida em um movi-
ver sobre a minha vida hoje ao ouvir
mento global que associa intimamen-
o relato de Ana Beatriz. Lembrei de
te os formandos aos processos forma-
muitos momentos preciosos de minha
tivos e os considera como os autores
infância. Por muito tempo achei que
responsáveis por sua própria forma-
tive uma infância ruim. Perdi meu
ção. O poder-saber dado é aquele que,
pai, ainda bem pequena, e não acha-
ao refazer a história de sua vida, ele
va graça na escola. Eu era até uma
próprio se forma – lhe permitirá agir
aluna estudiosa, mas já pensava em
sobre si mesmo e sobre o seu ambien-
outras coisas, como levantar cedo e
te, provendo os meios para reescrever
ir para o quintal olhar o céu... os pa-
sua história de acordo com o sentido e
pagaios... devia ter uns 6 ou 7 anos.
a finalidade de um projeto. (FABRE,
Lembro que foi num dia de muito
apud DELORY-MOMBERGER,
vento. Saí de casa para olhar o céu,
2008, p. 361).
quando percebi pequenos objetos vo-
adores... com rabos coloridos... não Assim, esses caminhos foram sen-
entendi e fiquei muito intrigada como do repensados e reconstruídos, por
foram parar lá no alto. Logo depois
exemplo: Fernanda, ao ouvir o relato
meu pai apareceu lá fora e disse:
da Amanda, reconheceu a si mesma na
O ateliê biográfico:
um espaço de forma- ‘— São papagaios! Quer um? busca de dar sentido ao seu processo
ção continuada de de formação na Universidade; por sua
professoras de arte — Eu: Compra pai!!! vez, com sua escrita poética e simbó-
Kolb-Bernardes R
— Não, vamos fazer...’ lica, Amanda descreveu o movimento
do grupo de estudos como a constru- na. (Professora Ana Beatriz). ISSN 1982-8632
ção de uma colcha de retalhos; e Ju-
liana, naquele momento, trouxe suas Ela segue com as comparações:
angústias em relação ao estágio super- Acredito que um conjunto destes ele- Revista
visionado e sua busca pela construção mentos da minha infância tenha pro- @mbienteeducação.
6(1): 65-72, jan/jun,
de seu próprio caminho na docência, porcionado uma transformação mais 2013
fazendo um movimento de retomar as evidente do meu olhar, o que contri-
anotações dos seus cadernos de sala buiu para minha formação enquanto
de aula e, com isso, dando sentido ao artista. Esse novo olhar me tornou
uma pessoa mais feliz. (Professora
caminho que havia traçado para atuar
Ana Beatriz).
como professora. Dessa maneira, elas
reescreveram suas histórias. Assim, também outra professora
manifestou-se:
Além das narrativas das próprias
professoras, havia a proposição de tra- Mais adiante nas minhas recorda-
balhar, também, com narrativas visu- ções, lembrei-me das brincadeiras
ais, com “o fazer”, com o investimento num pequeno cômodo, nos fundos, no
no processo de criação pessoal. Nessa quintal da casa, com minha irmã.[...]
direção, lançamos mão de diferentes Fazíamos de porta duas vassouras
cruzadas e revezávamos quem seria a
estratégias, como a utilização de tex-
visita que, com um boneco de plástico
tos literários (inspirando-me, também
nos braços, vestido com roupas feitas
aqui, em parte da minha prática do- por nossa mãe.[...] Nessas lembran-
cente). Foi com esse propósito que as- ças consigo perceber uma “estética da
sistimos ao vídeo “Histórias da Unha escassez” em que conseguíamos ver
do Dedão do Pé do Fim do Mundo” além do que tínhamos materialmen-
(2007), com poesias de Manoel de Bar- te. Acho que nós nunca devíamos per-
ros, criado a partir do seu livro “Me- der esse espírito imaginativo e criati-
mórias Inventadas” (BARROS, 2003). vo da infância, ou melhor, as escolas 69
Um dos poemas presentes no vídeo poderiam partir destes atributos da
infância para tirar partido nas aulas
fala do quintal da casa, da intimidade
de Arte.” (Professora Marilene).
com as coisas, do afeto que nos cons-
tituem e que, por vezes, esquecemos. Da poesia e ludicidade de Manoel
Tudo isso estava ligado à memória, ao de Barros, fui buscar a poesia Carrego
caminho que estávamos traçando no Comigo, de Carlos Drummond de An-
grupo. drade, e o trabalho plástico da artista
Téti Waldraff. Trabalhar com a poesia
Uma professora, ao assistir ao ví-
de Drummond e com a obra de uma
deo, lembrou-se da oficina do pai no
artista contemporânea no contexto da
quintal da sua casa. Revelou a me-
sala de aula veio de uma experiência
mória de uma infância carregada de
minha com a arte no Ensino Funda-
questões que foram importantes para
mental, veio de um “saber da experi-
o seu processo de criação artística.
ência” (BONÍA, 2002), de um saber
Cresci em uma casa onde no quintal construído na minha relação com o
existe uma oficina, é a minha pri- cotidiano docente. Foi esse saber, vali-
meira memória que aparece quando dado na reflexão, que me permitiu tra-
penso na minha infância. É a oficina zer essa experiência para o âmbito da
do meu pai. Lá meu pai, em seu pro- universidade.
cesso criativo, construía e compunha
o tempo todo. Criava os nossos brin- Iniciei essa atividade mostrando a
quedos, construía casinha na árvore, obra Estratégias de Mudanças, da ar- O ateliê biográfico:
criava muitas coisas que facilitavam tista gaúcha Téti Waldraff. É uma obra
um espaço de forma-
ção continuada de
o nosso dia a dia. Algumas vezes fica-
que fala dos sentimentos e da memória. professoras de arte
va observando meu pai, que passava
horas do seu final de semana na ofici-
O suporte do trabalho da artista é o “car- Kolb-Bernardes R
ISSN 1982-8632 rinho” de viagem, usado para empilhar versidade e volto para as primeiras
sacolas, malas e compras. Ela apresen- aulas no primeiro período, até as ofi-
ta sete carrinhos com trouxas costura- cinas do sétimo período. Percorro este
caminho até chegar à minha primei-
Revista das, coladas e embrulhadas. Não dava
ra aula como professora, onde escolhi
@mbienteeducação. para saber o que havia dentro dos em-
6(1): 65-72, jan/jun, trabalhar com o olhar. Percebo, nas
2013 brulhos. Todas as sete trouxas estavam minhas reflexões, que estou sempre
cobertas com tecidos coloridos, florea- buscando olhar, saber que estou sem-
dos e muitas lantejoulas. Em algumas pre buscando olhar, saber enxergar,
trouxas, era possível identificar flores desembaraçando olhares próprios e
de plástico, como copos-de-leite. Em alheios. [...] Eles são o meu suporte.
outra trouxa, apareciam uma bandeja, (Juliana, aluna do 8º período).
um prato, copos e talheres, não ficando
Ao ouvir Juliana refletindo sobre
muito visível o que a artista carregava
o seu processo de ser professora, penso
na sua bagagem. Após a apreciação da
na contribuição da pesquisa autobio-
obra, perguntei às professoras o que,
gráfica no processo de formação. De
afinal, cada uma carregava na sua ba-
acordo com Souza (SOUZA, 2010, p.
gagem... na sua mala... para ser uma
163): “A ideia é de que é a pessoa que
professora.
se forma e forma-se através da com-
Olho para as coisas e quero trans- preensão que elabora do seu próprio
formá-las. Quero interferir no meio percurso de vida [...]”. É preciso, pois,
ambiente. Não é sonho, talvez leveza, dar espaço para os professores em for-
como Ítalo Calvino apresenta. Olho mação mostrarem suas bagagens, pen-
para o mundo e tento ver além do sarem no que trazem e no que poderão
que está parado diante de mim.[...]
colocar na mala da experiência dali
Lembro de dois períodos importantes
da Universidade... Dois períodos com
para a frente.
meus primeiros registros. Primeiro No sentido de buscar uma outra
70 estágio. Era um estágio em recreação.
dimensão e aprofundar mais ainda
Dúvidas saltavam pelo meu ser: Pos-
so ensinar arte na recreação? E assim esse trabalho, com as nossas malas
volto aos meus cadernos...[...] Preciso abertas, seguimos para a costura de
alimentar-me das minhas anotações patuás: após a leitura da poesia Car-
anteriores. Será que algum professor rego Comigo, cada participante es-
falou sobre isso? Sinto-me angustiada creveu pequenos bilhetes, recheados
e pensei: a escrita é um ato de refle- com a sua história, segredos, sonhos
xão, que talvez possa me ajudar neste e desejos, na busca do seu processo de
momento tão solitário. Durante meus ser professora e artista. Esses bilhetes
estágios, recorria aos meus cadernos, foram costurados, remendados em pe-
minhas anotações. Lembrava das au-
quenas trouxas, pequenas almofadas,
las da professora Sônia Assis, do pri-
meiro período, quando nos mostrava patuás.
as possibilidades dos olhares. Sabia Nesse processo, percebi a dificul-
que tinha que olhar este estágio de
dade de algumas e a facilidade de ou-
uma forma diferente. Meu movimen-
to era o de refletir, sobre as aulas tras em escrever sobre seus segredos
que tive na Universidade, tentando e sonhos na jornada de ser professora,
relacioná-las com o estágio. Buscava pois algumas pediam mais papel (os
dar sentido àquilo que estudei e o que bilhetes ficaram grandes) e outras dei-
estava vivendo no estágio... e em que xavam sobrar espaço no papel (os bi-
momentos estas coisas se encontra- lhetes eram mínimos). Escrever é desa-
vam? Será que se encontravam?[...] fiador, principalmente para o professor
O ateliê biográfico:
um espaço de forma- Observo que estas anotações foram e de arte, que, raramente, utiliza essa
ção continuada de estão sendo meus suportes para cons- linguagem. Porém, ao mesmo tempo,
professoras de arte truir meu caminho, como professora.
é fundamental “dizer-se” por escrito
Agora já quase no final do curso [...]
Kolb-Bernardes R
revi todas as aulas que tive na Uni- para poder tomar-se nas mãos, para
poder ver e significar seu percurso. caminhos da narrativa poética de Car- ISSN 1982-8632
los Drummond de Andrade, pelas me-
Na narrativa escrita, a reflexão é mórias inventadas do poeta Manoel de
potencializada. Barros ou pelas trouxas misteriosas Revista
O trabalho centrado nas histórias de da artista Téti Waldraff. @mbienteeducação.
6(1): 65-72, jan/jun,
vida, diários biográficos e narrativas 2013
de formação, adota, além da reflexivi- CONSIDERAÇÕES FINAIS
dade, outros aspectos e questões rela- Tudo tinha sentido. Sentadas ao
tivos à subjetividade e à importância redor de uma mesa posta, comparti-
de se ouvir a voz do professor ou com-
lhávamos não só a comida que nos ali-
preender o sentido da investigação-
-formação, centrada na abordagem
mentava o corpo físico mas o alimento
experiencial [...](SOUZA, 2006), p. 1). que dava significado às nossas vidas
de professoras. Através do ato de nar-
A cada encontro, fomos aprofun- rar, reconhecemo-nos como sujeitos da
dando as relações de confiança, afir- nossa própria história, dando sentido
mando as identidades das vozes pro- para a professora que somos ou gosta-
nunciadas nos seus tons diferentes, ríamos de ser.
percebendo que, como dizem Guilher-
me Prado et al. (2008, p. 73), “a partir Foi assim que, seguindo pelas
do outro tentamos dar forma às nossas trilhas internas de cada uma, envol-
histórias”. Formas que, às vezes, se vidas pelos fios da experiência, tive-
pareciam com uma colcha de retalhos, mos a oportunidade de viver momen-
com corações bordados, onde a tessi- tos fundadores, os quais se formaram
tura do sonho não ficava no avesso da oralmente, por escrito e visualmente.
costura, projetava-se para o primeiro Organizar esse grupo de estudos, ins-
plano. Histórias carregadas de desejo pirado na proposta do “ateliê-biográfi-
e de afeto, acolhidas pela escuta silen- co”, possibilitou revelar, neste artigo,
alguns indícios sobre o caminho que 71
ciosa e atenciosa de cada uma. À medi-
da que o grupo se encontrava, costurá- nós professoras temos construído com
vamos essas histórias, seguindo pelos a arte, com a vida, na escola.

O ateliê biográfico:
um espaço de forma-
ção continuada de
professoras de arte

Kolb-Bernardes R
ISSN 1982-8632 REFERÊNCIAS

BARROS, J. M. Sobre panos, borda- PRADO, G. V. T. et al. GEPEC: da


Revista dos e memórias In:__ CRAVEIRO, F. educação continuada ao desenvolvi-
@mbienteeducação. Escrituras bordadas. Belo Horizonte: mento pessoal e profissional em uma
6(1): 65-72, jan/jun,
2013
Com/Arte, 2009. perspectiva narrativa. In: SOUZA, E.
C.; PASSEGGI, M. C.; ABRAHÃO,
BARROS, M. Memórias inventadas: a M. H. M. B.(Org.) Pesquisa (auto)
infância: São Paulo: Planeta, 2003. biográfica e práticas de formação.
BONÍA, J. L. Notas sobre a experiência Natal, R N: EDUFRN; São Paulo:
e o saber de experiência. Revista Bra- Paulus,2008.p.59-74 .
sileira de Educação, p. 20-28, 2002. SOUZA, E. C. O conhecimento de si,
Disponível em: < http://www.scielo.br/ as narrativas de formação e o está-
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413- gio: reflexões teórico-metodológicas
-24782002000100003&nrm=iso >. sobre uma abordagem experiencial de
DELORY-MOMBERGER, C. Biogra- formação inicial de professores In:__
fia e educação: figuras do indivíduo- ABRAHÃO, M. H. M. B. Aventura
-projeto: São Paulo: Paulus, 2008. (Auto)biográfica: teoria e empiria. Por-
to Alegre: EDIPUCRS, 2006.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia:
saberes necessários à prática educati- SOUZA, E. C. Acompanhar e formar,
va: São Paulo: Paz e Terra, 2004. mediar e iniciar: pesquisa (autobiográ-
fica) e formação de formadores In:__
JOSSO, M. C. Experiências de vida e PASSEGGI, M. C. S., V.B. (ORGS).
formação: São Paulo: Cortez, 2004. Invenções de vidas, compreensão e iti-
nerários e alternativas de formação.
MURRAY, R. Manual da delicadeza de
72 São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
A a Z: São Paulo: FTD, 2001.
p.157-180.

O ateliê biográfico:
um espaço de forma-
ção continuada de
professoras de arte

Kolb-Bernardes R

Você também pode gostar