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A ATIVIDADE TEOLÓGICA NO SÉCULO 21 PONDERADA A PARTIR

DE UMA OBRA DO SÉCULO PASSADO

Roney Ricardo Cozzer1

Mar. 2021

RESENHA DA OBRA: GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica


teológica. Trad.: Benôni Lemos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989, 322pp.

“Podemos definir a teologia como hermenêutica


atualizante da Palavra de Deus. Mas não pode haver
interpretação teórica da Escritura que faça abstração
da prática atual dos cristãos. A teologia não é saber
constituído anterior à práxis da fé e da caridade dos
cristãos. Ela é o lugar e o instrumento da interpretação
da Escritura”.

CLAUDE GEFFRÉ, 1989, P. 28.

A obra aqui resenhada é de autoria do teólogo francês, Claude Geffré, falecido


em 09 de fevereiro de 2017, aos 91 anos. Teólogo proeminente, que participou
ativamente da reflexão teológica do período posterior ao Concílio Vaticano II. Seu
trabalho esteve muito associado a duas grandes questões da Teologia
contemporânea, a saber: a Hermenêutica e a pluralidade religiosa.2 Aliás, sua obra
aqui resenhada aborda a Teologia justamente como fazer hermenêutico.
A obra está estruturada em 14 capítulos distribuídos em três partes. A primeira
parte é intitulada como Da teologia como hermenêutica. A segunda parte, O

1 Bacharel em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória (ES), possui formação em Psicanálise, é
licenciado em Pedagogia e em História e mestre em Teologia pelas Faculdades Batista do Paraná
(FABAPAR). É membro do Grupo de Pesquisa "Perquirere: Práxis Educativa na Formação e no Ensino
Bíblico", participou como autor e pesquisador do Projeto Historiográfico do Departamento de Missões
das Assembleias de Deus do Vale do Rio Doce e Outros (DEMADVARDO) e atua no ensino superior
como docente, coordenador pedagógico e conteudista. Contato: roneyricardoteologia@gmail.com |
Blog Teologia & Vida: www.teologiavida.com
2 Morre, aos 91 anos, Claude Geffré, teólogo do encontro das religiões. Disponível em:

<http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/564775-morre-aos-91-anos-claude-geffre-
teologo-do-encontro-das-religioes>. Acesso em 17 mar. 2021.
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testemunho interpretativo da fé e, a terceira parte, A prática dos cristãos
reinterpreta o Cristianismo. Trata-se de um livro provocante que, embora publicado
no final da década de 1980, continua sendo bem atual e relevante para a reflexão e
prática da Teologia na contemporaneidade.
Na primeira parte, intitulada Da Teologia como Hermenêutica, Geffré inicia
seu empreendimento discorrendo sobre a inevitável atividade interpretativa sobre os
dados da Teologia. Nesta parte, o autor discorre sobre a função hermenêutica da
teologia (p. 25), propondo que nossa leitura das Escrituras e do dogma seja feita
também a partir do horizonte de nossa história. E que deve considerar ainda as
condições de produção da linguagem (p. 27), evitando afirmações herméticas e
rígidas, mas reconhecendo que a Teologia, em diálogo com as Ciências Humanas,
precisa abrir-se ao debate epistemológico. Geffré afirma:

A teologia deve fazer tudo por melhor inteligência do crer cristão. Mas,
mesmo preservando sua originalidade irredutível, ela não pode constituir um
saber em ruptura com as novas aproximações científicas da realidade,
aproximações que são menos saberes totalizantes do que empreendimentos
de verificação e de produção da racionalidade (p. 28).

A teologia precisa ser pensada a partir do homem, tendo em vista que – nas
palavras de Geffré – “[...] a teologia se torna hermenêutica à medida que compreende
que toda afirmação sobre Deus implica uma afirmação sobre o homem” (p. 30). E esse
modo hermenêutico de fazer teologia, isto é, essa atividade interpretativa da Teologia,
é essencial para o autor. Ele chega a afirmar que “[...] pessoalmente, penso que se
formos até o fim no questionamento radical da hermenêutica, o exercício do ato
teológico se tornará impossível” (pp. 31,32).
Geffré insurge-se contra uma exegese literalista, ou contra uma interpretação
literalista. Nossa aproximação do texto bíblico precisa possibilitar o diálogo com outros
textos e ele nega que o cristianismo precise depender da literalidade de textos (p. 37).
“[...] Também aqui estamos em completa ruptura com a ambição do método histórico-
crítico em exegese” (p. 38).
É nesta esteira que o autor prossegue, nos capítulos três (Dogmática ou
Hermenêutica) e quatro (A liberdade hermenêutica do teólogo) discorrendo sobre
a “virada” hermenêutica. Essa virada consiste em reconhecer que a Teologia fala
(interpreta) de um tópos, isto é, de um “lugar” vivencial e sua verdade é expressa como
linguagem interpretativa.
2
Na segunda parte, intitulada O testemunho interpretativo da fé, o autor
desenvolve mais cinco capítulos e aborda temas que dão continuidade ao que
desenvolve na primeira parte. Discorre sobre a ressurreição de Cristo em termos de
testemunho interpretativo. Retoma assim o sentido da palavra “testemunha” tal como
se encontra no Novo Testamento e observa que, embora no Evangelho de Lucas, “[...]
a ideia de testemunha esteja ligada ao testemunho dado a acontecimentos históricos,
ela é alargada: trata-se sempre de testemunho de crentes” (p. 109).
Tendo isto em vista, os crentes são convidados a testemunhar hoje. Geffré
pontua que “o testemunho é sempre a interpretação de uma experiência particular” e
que experiência e linguagem estão diretamente associadas (p. 122). O testemunho
tem caráter hermenêutico, isto é, interpretativo. Geffré afirma que “[...] o testemunho
dos Apóstolos não é relato de eventos, mas o ‘evento de palavra’ que resulta
inseparavelmente da experiência de fenômeno real e de interpretação crente”.
O Senhor Jesus é aquele que se identifica a si mesmo como o Filho do homem,
aquele que se alinha com os pobres, ou que “[...] está sempre do lado dos pobres e
dos que se revoltam” (p. 137). E isto em função do perfil do ministério de Jesus na
Palestina do primeiro século, atuando diretamente com o povo simples e com os
marginalizados e excluídos de seu tempo (crianças, publicanos, prostitutas).
Na terceira parte, o autor faz uma sugestão ousada, mas segura e muito
propositiva: a secularização é um processo do qual a própria Igreja toma parte.
Noutras palavras, a secularização, por vezes criticada e “evitada” pela Igreja, e vista
como um fenômeno social e global, pode ser na verdade reflexo do recuo da própria
Igreja.
Geffré propõe então que o testemunho dos cristãos reinterprete o Cristianismo
e que o Cristianismo seja religião do êxodo, que imita a Cristo e que resulte em
ortopraxia. No desdobramento do seu pensamento, o autor chega à questão dos
direitos humanos, e mostra, de maneira muito honesta, a negligência da Igreja
Católica nessa questão. Mas não se restringe apenas nessa falha histórica por parte
da Igreja Católica, já que ele destaca os avanços profundos que foram dados pelo
Concílio Vaticano II a este respeito, na década de 1960. A Igreja Católica saiu de uma
postura de tolerância para uma postura de maior engajamento com a questão dos
direitos humanos, deixando de lado a ideia de combate a determinados aspectos
dessa discussão. Geffré fala em termos de “adesão da Igreja católica à causa dos
direitos humanos” (pp. 286ss).
3
O autor conclui sua obra com o décimo quarto capítulo intitulado A
reinterpretação da missão da Igreja, a partir da página 298. Apresenta uma outra
noção de evangelização e propõe, ousadamente, uma revisão na ideia de missão. Isto
pode ser notado quando ele fala da inculturação como exigência da evangelização
(pp. 303ss). Essa evangelização repensada deve incluir o diálogo com outras religiões
e culturas, não em termos de um Cristianismo que se considera superior, que coloniza
e suprime, mas que parte do amor de Cristo e do esforço para comunica-lo ao mundo.
Geffré enfatiza também – e dentre vários outros aspectos abordados – que a missão
da Igreja passa a ser entendida não mais em termos de uma atividade a ser
desenvolvida por um colegiado de especialistas, especificamente treinados para isso.
O Concílio Vaticano II, afirma Geffré, “[...] é testemunho da grande mudança que se
verificou na consciência missionária da Igreja desde o fim da Segunda Guerra
Mundial. De um lado, toda a Igreja é concernida para a missão” (pp. 298,99).
Geffré conclui sua obra convidando seus leitores à insistência na urgência da
missão da Igreja “[...] neste fim do segundo milênio” (p. 319), já que seu livro é
publicado em 1989 (no Brasil, em português, mas originalmente em 1983, em inglês).
E isto pela razão da Igreja ser – em suas palavras – “testemunha do Deus vivo e
libertador” e que por isto ela toma para si a consciência dessa grande
responsabilidade histórica que tem sobre o futuro do homem, contribuindo diretamente
com “todos os homens de boa vontade” na construção de um mundo melhor, um
mundo menos desumano.
O livro de Claude Geffré constitui uma excelente leitura, escrita por um teólogo
muito competente e que fala a partir de dentro. Isto fica evidente, inclusive, pelo
conhecimento que ele expressa de contextos da Igreja Católica Romana. O livro é
altamente recomendável para quem deseja considerar os desafios a serem superados
para a reflexão teológica na atualidade. E também porque o autor traça um panorama
da Teologia na atualidade. Conquanto Como fazer teologia hoje seja uma obra da
década de 1980, fato é que vários dos pressupostos e conclusões que apresenta
continuam em vigor, na atualidade do século 21. Tal fato a respeito desta obra a torna
uma leitura não só necessária, mas também muito interessante. O autor desta
resenha recomenda sem reservas, mesmo não concordando absolutamente com
todas as percepções de Geffré. Com efeito, ler a obra de Geffré contribuirá para que
se produza uma atividade teológica mais equilibrada e leal ao Evangelho. Possibilitará
uma análise da atividade teológica do século atual a partir de uma obra do século
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passado que, a despeito de ser do século passado, fala com propriedade ao século
atual.

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