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EDUCAÇÃO TEOLÓGICA E MISSÃO:

UMA RESPOSTA A JUNG MO SUNG


Franklin Ferreira

Uma de minhas alegrias é saber que a Teologia Sistemática (doravante TS), que escrevi
com meu amigo Alan Myatt, está chegando agora em sua terceira reimpressão e tem
recebido boa aceitação, sendo usada como livro-texto ou obra de consulta em seminários
e faculdades teológicas no Brasil e, mais recentemente, em Portugal e Moçambique. Nas
oportunidades em que tenho falado em instituições, em conferências ou palestras, tenho
tido conversas prazerosas sobre o conteúdo e a estrutura desta obra. Dúvidas, perguntas,
sugestões e críticas pertinentes têm nos ajudado a fazer correções e pensar numa futura
edição revisada, incluindo a elaboração dos índices, tão necessários numa obra desse tipo.
Mas, sobretudo, fico feliz com o fato de que a TS tem me proporcionado uma experiência
similar àquela de Karl Barth, sobre como sua principal obra estava sendo “lida e estudada
em muitas casas pastorais, sendo aproveitada (…) no trabalho de pregação, ensino e
poimênica, achando assim indiretamente seu caminho também para dentro da
comunidade [cristã] de um modo geral”. 1 É fonte de grato contentamento ouvir de
pastores e especialmente de membros das igrejas evangélicas que a TS tem sido usada
com proveito, para edificação, desafio e aprofundamento dos temas principais da fé cristã.

Recentemente, foi publicada no Brasil uma coletânea de ensaios intitulada Missão e


educação teológica (São Paulo: ASTE, 2011). Em um dos capítulos dessa obra, intitulado
“Educação teológica e a missão” (p. 143-181, doravante ETM), Jung Mo Sung interage
com a seção dos Prolegômenos e da Palavra de Deus da TS (p. 3-52, 86-152). O alvo
desse artigo é oferecer um resumo do ensaio ETM, apontar alguns problemas e
incompreensões que aparecem na abordagem do autor aos temas da TS e destacar duas
questões críticas subjacentes ao ensaio e à sua estrutura teológica. O autor cita vários
autores em seu texto, tais como José Comblin, Gustavo Gutiérrez, René Padilla, Paul
Tillich, Juan Luis Segundo, Jon Sobrino, entre outros. Não me preocupei em distinguir o
pensamento de Sung do destes autores, ao citá-lo, já que ele os menciona em apoio
especialmente nas questões mais críticas de seu ensaio.

O argumento de “Educação teológica e a missão”

O que Sung propõe é uma “reflexão sobre os caminhos da educação teológica (…) em
função da missão cristã”. Seguindo algumas percepções do bispo episcopal Desmond
Tutu, ele propõe uma educação teológica que responda às perplexidades e aos anseios de
um contexto específico, preparando candidatos ao ministério para lidar com “desafios
contemporâneos urgentes como HIV/AIDS, pobreza, corrupção em instâncias elevadas
da sociedade, injustiça, opressão e conflitos perenes”, entre os “seres humanos ameaçados
ou mais vulneráveis”. O autor reconhece que esta não é uma lista exaustiva, mas apenas
um ponto de partida para considerar as questões metodológicas ligadas ao fazer teológico
a serviço da missão. Seu interesse primário não está “ligado à vida interna da igreja”, mas
“para serviço do aumento da presença do Reino de Deus no mundo”. E o alvo não é uma

1
Karl Barth, “How My Mind Has Changed”, em Walter Altmann (ed.), Karl Barth – Dádiva e louvor;
artigos selecionados. São Leopoldo: IEPG & Sinodal, 1996, p. 427.
teologia contextual, mas uma “contextualização da teologia e da educação teológica”,
“com a perspectiva da missão, da transformação da realidade a partir das vítimas da
opressão existente”, preparando os estudantes de teologia “para lidar com problemas
econômicos e sociais em uma perspectiva teológica-pastoral”. Essa proposta de mudança
de eixo é necessária, segundo Sung, pois “teologia e educação ‘genérica’, que debate
verdades eternas, atemporais e não contextualizadas, se tornam cínicas por seu próprio
método e compreensão do que seja a teologia”. Em sua opinião, aqueles que trabalham
nesse último modelo de teologia, diante da lista de problemas proposta acima, “muitas
vezes não sabem como articular como teologia, ou melhor, como interpretar e criticar
teologicamente os desafios em questão”.

Posto o problema, o autor indica a necessidade de discutir qual a noção de teologia que
está por trás dos modelos de educação teológica e sua missão hoje. Para o autor, há três
tipos de compreensão do que é teologia, e a primeira é o que ele chama de “uma teologia
que tem como tarefa fundamental a ‘defesa da fé’”, passando a interagir com a TS nessa
parte do ensaio. Depois de resumir a seção onde a TS trata da importância do estudo
teológico, Sung critica a noção afirmada na TS de que o fim último do esforço teológico
é o estudo de Deus, pois ele pressupõe que uma noção de Deus como ser pessoal torna-o
transcendente, “além das doutrinas”, e esta noção implica “relação e, portanto, em
modificação ou dinamismo”. Assim sendo, ele entende que os autores da TS reduzem o
estudo teológico à “verdade” revelada, afirmando que, na ótica de seus autores, a “missão
essencial da teologia seria a defesa da fé cristã”. Logo, segundo a opinião de Sung, a
educação teológica nesse modelo teria apenas a tarefa de ensinar de “modo eficiente as
doutrinas corretas”. Em sua interpretação desse modelo, “o caminho principal da teologia
e da educação cristã é a aceitação obediente das verdades e a cosmovisão ensinada na
Escritura e a sua sistematização em uma lógica racional e a aplicação dessas verdades na
vida prática”.

Na seção seguinte do artigo ETM, o autor passa a discorrer sobre o conceito de verdade
que está por trás desse primeiro modelo. Tendo rejeitado a noção de infalibilidade e
inerrância das Escrituras, Sung sumaria as noções de verdade subjetivas, pragmáticas e
positivistas. Diferente dessas concepções, ele atribui aos autores da TS a defesa de um
conceito helênico de verdade, isto é, a noção de “verdade como objeto de contemplação”,
uma “concepção estática da verdade que não impulsiona à ação”. Em suas palavras, a
partir de tal concepção, “uma pessoa pode contemplar o ser de Deus, conhecer a verdade,
sem que isso a leve necessariamente a uma ação ou mudança na sua vida”. Portanto, para
Sung, “se tirarmos a tradição e Magistério eclesiástico como portadores da revelação, não
há diferença fundamental entre a teologia católica moderna e a teologia apologética
protestante representada” na TS. Em sua opinião, esse entendimento da verdade está
ligado à concepção pedagógica rotulada de “concepção bancária da educação”, que seria
incapaz de produzir “criatividade e transformação, pois isso não gera saber, muito menos
conversão”. Na perspectiva de Sung, tal concepção de verdade não é bíblica. Ao citar
alguns versículos bíblicos (Rm 1.18; Jo 14.6), ele tenta mostrar que a noção bíblica da
verdade e da revelação não lida com o erro e a ignorância, mas com a injustiça. Assim,
“verdade” seria uma palavra de revelação, de encontro, de transformação, “e não apenas
a de transmitir informações corretas”, ou seja, o conceito de verdade sugerido por Sung
“não é de ordem puramente intelectual”, antes “a verdade é revelada não somente nas
palavras ou nos ensinamentos de Jesus guardados nos evangelhos, mas na própria vida de
Jesus e tem a função de salvar, de transformar a vida, e não apenas a de transmitir
informações corretas”. Em outras palavras, “Jesus veio para denunciar e combater a
mentira que predomina no mundo e justifica, até sacraliza, as injustiças que matam. (…)
A verdade de Jesus leva ao caminho que leva à vida em abundância para todos”. Tal
verdade é encontrada por meio da “experiência pessoal de vida e as obras que comunicam
a vida”. Concluindo, “a ‘revelação’ de Deus não está destinada a que o homem saiba algo
(do que, de outra maneira, lhe seria impossível ou difícil saber), mas sim a que o homem
seja de outra maneira e viva em um nível mais humano”.

Mais adiante, Sung trata da relação entre cristianismo e cosmovisão. Ele parece sugerir
que os autores da TS sacralizam a cosmovisão e a cultura ocidentais pré-modernas,
tornando-as coincidentes do cristianismo medieval, “fruto de uma elaboração teológica
realizada principalmente na Europa pré-moderna”, quando a “cosmovisão cristã” tinha
por finalidade “sacralizar a precária ordem social do medievo, sem nenhuma perspectiva
de missão, de encontrar e dialogar com outras culturas, religiões e civilizações”. Já que
não se pode “separar a ‘essência’ da revelação de Deus da cultura e cosmovisão do povo
que a recebeu”, então, para Sung, “a missão cristã significa levar junto com a Palavra a
cultura ocidental”, o que geraria um “cristianismo-cultura”, e no caso tratado, uma
expressão cultural norte-americana, o American Way of Life – e o preço pago seria “a
renúncia ao seu papel profético na sociedade”. A suposição é que tal aproximação
facilitaria o crescimento numérico da igreja. Por isso, este modelo de teologia seria
incompatível com outras culturas não ocidentais, como é o caso da América Latina, da
África e da Ásia, lugares que, de acordo com Sung, se “têm noções muito distintas de
verdade, cosmovisão e até mesmo de valores morais”.

Sung passa a considerar a questão da hermenêutica e da educação teológica, já que a


teologia precisa afirmar a verdade da mensagem cristã e sua respectiva interpretação para
uma nova geração. Esse seria o segundo modelo de educação teológica. O que este propõe
é uma distinção entre a linguagem e o conteúdo da mensagem. Diante das mudanças
filosóficas do século 20, a teologia deve aderir a uma interpretação plural, fundada “em
uma nova compreensão da revelação”. A Escritura seria, nesse modelo, um mero
“testemunho” ou “registro” da ação de Deus na história e na experiência de fé. Assim,
não se trata de uma comunicação do alto. Antes, a revelação alcança o seu sentido
“somente na fé que acolhe”. Logo, a tarefa da teologia como hermenêutica consiste em
levar a sério a historicidade de toda verdade, tanto da verdade revelada como do ser
humano como sujeito interpretante. E a tarefa da teologia consiste em atualizar o sentido
da mensagem contida nas Escrituras, sendo “uma das principais alternativas à
compreensão apologética ou fundamentalista da teologia e da educação teológica”.

Desse modo, para essa posição, “a verdadeira compreensão ou a compreensão correta do


conteúdo da revelação não é aquela da versão fundamentalista ensinada nas suas igrejas
(…), mas sim o sentido encontrado após o uso das ferramentas hermenêuticas”. Deste
modo, para Sung, a educação teológica oriunda da “ilustração” (sic) europeia também
padece de problemas semelhantes aos da teologia conservadora. De acordo com o autor,
esse segundo tipo reproduz o mesmo modelo pedagógico já rejeitado anteriormente,
retirando e negando “o conteúdo antigo” e depositando o novo. Para ele, os professores
que trabalham nesse paradigma não têm a devida sensibilidade ao desconstruir uma
“compreensão pré-moderna e pré-reflexiva da fé dos estudantes”, pois não conseguem
distinguir “a experiência da fé da linguagem e cosmovisão que se utilizam para
compreender e expressar essa experiência”. Daí a necessidade de tato por parte dos que
ensinam nesse modelo a fim de não caírem numa leitura literal do discurso religioso dos
alunos oriundos de igrejas evangélicas, eivado de linguagem simbólica pré-moderna,
apocalíptica “e até mesmo fundamentalista para falar da sua vida de fé”. Após tratar sobre
a linguagem, experiência da fé e teologia, o autor afirma que o critério para os que
trabalham neste modelo deve levar em conta que “o mais importante no âmbito da
experiência da fé não é se esse discurso religioso corresponde à ‘realidade’, mas sim se
esse discurso está levando ou não as pessoas a viverem melhor sua missão de testemunhar
o amor de Deus ao mundo, de fazer deste mundo um lugar melhor para os pobres e pessoas
marginalizadas”.

Por fim, o autor oferece um terceiro modelo de teologia e de educação teológica, isto é,
“teologia como reflexão crítica da vida de fé” e diálogo, tarefa que pressupõe a
hermenêutica, “mas não se esgota no encontrar o sentido do evangelho para os dias de
hoje”, já que a “tarefa da compreensão está antecedida e guiada pela compreensão dos
desafios que o nosso contexto e tempo nos colocam no seguimento de Jesus”. Isso
significa, para Sung, que os dois modelos anteriores são irrelevantes aos contextos
africano e latino-americano. Mas, de acordo com o autor, não basta pensar teologicamente
a partir de certo contexto social e religioso, é necessária “reflexão crítica”, que ajudaria
os estudantes a superarem uma “visão imediata e também ideológica da compreensão da
realidade”, levando-os a suspeitar “do que antes aceitavam como óbvio, certo e
inquestionável”.2 Somente assim se supera a noção já rejeitada pelo autor de educação
como “aquisição de novos conteúdos”. Portanto, o diálogo é fundamental para superar
essa tensão. É justamente tal falta de diálogo entre docentes e discentes em faculdades de
teologia “ilustradas” (sic) que levam os alunos, cujas “experiências de seguir a Jesus” são,
“geralmente, imediata, não reflexiva, e também marcada pelas ideologias dominantes que
penetraram na cultura da população e também na sua religiosidade”, a rejeitarem tal
teologia, o que seria um entrave a “uma verdadeira aprendizagem da teologia como
reflexão crítica da fé”. Portanto, para que haja verdadeiro aprendizado, os professores
“com formação teológica em diálogo com os instrumentos teóricos do mundo moderno
precisam se abrir para as diferentes formas de compreensão da fé cristã que trazem os
estudantes, geralmente de cosmovisão pré-moderna”.

Por outro lado, os estudantes “precisam se abrir para o diálogo com formas críticas de
compreender a tradição teológica cristã”, pois ambos, professores e alunos, “precisam
estar em acordo sobre o objetivo de transformar, humanizar, o nosso mundo”, isto é,
“estar de acordo sobre a missão de anunciar a Palavra que liberta e converte; sobre a
missão de anunciar o Reino de Deus”. E continua: “Se professores pensam que a missão
da educação teológica é transmitir as verdades eternas e imutáveis ou desconstruir a
compreensão pré-moderna da revelação por parte dos estudantes através de hermenêutica
moderna, um diálogo verdadeiro e frutífero não será possível”. Esse conceito de educação
em diálogo pressupõe amor às pessoas e ao próprio mundo, humildade e “também fé nos
seres humanos”. Daí a necessidade de se repensar a missão, os “desafios e problemas
concretos da nossa realidade concreta”, que enfatiza “não só nos conteúdos, mas
fundamentalmente nos métodos pedagógico e teológico”, e que entende a revelação
divina não “como um depósito de informações corretas”, mas como um processo
pedagógico verdadeiro, que permite o crescimento da humanidade, “onde o ser humano
aprende a ser mais humano e a realizar melhor as missões que Deus lhe dá nos dias de
hoje, no nosso contexto concreto”, isto é, anunciar o Reinado de Deus, “na defesa da
dignidade humana e vida dos excluídos e do meio ambiente, como também ao diálogo

2
Um eco da distinção entre a consciência ingênua e a consciência crítica, em Paulo Freire, Educação e
mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
com pessoas e grupos de outras religiões e espiritualidades que se unem para assumir os
grandes desafios do nosso tempo”.

Questões críticas e pressupostos

Passo a tratar agora dos problemas e incompreensões presentes no texto de Sung. O leitor
deve ter em mente que o autor do ensaio ETM é um católico-romano adepto da teologia
da libertação. Em contrapartida, minha resposta se dá no âmbito da tradição agostiniana,
reformada e evangélica.

1. Em primeiro lugar, o autor defende um conceito não bíblico de revelação, em que esta
se dá por meio de um processo de acomodação, cujas respostas teológicas são ditadas não
mais pela Escritura, como norma normans, mas por alguns temas previamente tratados
como dogma por certa ideologia política – uma reminiscência do método de correlação
de Paul Tillich. Ironicamente, em lugar da Escritura, que é a Palavra de Deus, o autor
aparentemente toma o construtivismo crítico como cânone — uma variante de uma teoria
do ensino considerada hoje ultrapassada em países em que os indicadores de desempenho
dos estudantes é o mais elevado, como Estados Unidos, Inglaterra, França e
Alemanha.3 Assumindo, então, o axioma do construtivismo de que o saber é construído
a partir do sujeito, Sung rejeita a revelação como algo “de cima”, em que o ser humano a
recebe por fé. Mas, no que se refere à revelação, a tradição cristã assume uma perspectiva
oposta: “Tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não
como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com
efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes” (1Ts 2.13). Portanto, ao rejeitar
a revelação, Sung oferece aos seus leitores a busca helênica por Deus, esboçada de forma
ambígua. Mas, em lealdade às Escrituras, devemos afirmar que a “revelação é ação
soberana de Deus no homem. Se não, não é revelação”.4 Pois, como Ireneu de Lyon
escreveu: “Não foi, portanto, por ninguém mais que tivemos conhecimento da economia
da nossa salvação, mas somente por aqueles pelos quais nos chegou o Evangelho, que
eles primeiro pregaram e, depois, pela vontade de Deus, transmitiram nas Escrituras, para
que fosse para nós fundamento e coluna da nossa fé”. 5

Na sequência, ele escreve que conservadores negam “a noção de tempo histórico no


interior da Escritura”, assim como não lidam com os “ensinamentos contraditórios ou
incoerentes” supostamente encontrados na Bíblia. Essa é uma crítica recorrente feita em
círculos liberais, que parece ignorar ou desconhecer que eruditos protestantes têm
desenvolvido o entendimento da revelação progressiva e unidade bíblica desde meados
do século 17, tratando com seriedade estas aparentes contradições. 6 Ao que parece, há
uma nítida má vontade por parte dos teólogos liberais em dialogar com a tradição biblista

3
Desde meados de 1980, especialmente nos Estados Unidos, começou um debate acalorado sobre métodos
pedagógicos, e tratá-lo está além do alcance desse ensaio. Para uma revisão da bibliografia sobre este
debate, toda ela ainda inédita em português, recomendo o ensaio de João Batista Araujo e Oliveira, “Lereis
como deuses: a tentação da proposta construtivista”, Revista Sinais Sociais. No 1, Ano 1, Maio-Agosto de
2006, p. 146-178.
4
Karl Barth, Revelação de Deus como sublimação da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, p. 32.
Originalmente esta obra é uma nova tradução de Church Dogmatics I/1, §17, feita para o inglês por Garrett
Green.
5
Adv. Haer. 3.1.1.
6
Cf., por exemplo, Geerhardus Vos, Teologia bíblica; Antigo e Novo Testamentos. São Paulo: Cultura
Cristã, 2010 e Herman Ridderbos, A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
evangélica, na medida em que afirmações assim demonstram falta de familiaridade com
esta tradição exegética e hermenêutica.

O leitor deve ter em mente que foi justamente a rejeição do ensino cristão da revelação,
isto é, de que Deus fala por meio das Escrituras (cf. Gl 3.8), que lançou as teologias
contemporâneas numa crise de transitoriedade. 7 Isso pode ser exemplificado na própria
teologia da libertação (doravante TdL). No auge da Guerra Fria, seguindo a velha
esquerda, a TdL supunha que a classe que salvaria o mundo seriam os pobres. Com a
derrocada do socialismo no leste europeu, que culminou com a derrubada do muro de
Berlim em novembro de 1989, a TdL entrou em crise, perdendo seu discurso. Agora,
seguindo a nova esquerda, a TdL entende que a classe que salvará o mundo será a dos
“excluídos” e minorias: mulheres, negros, homossexuais, índios, etc. Portanto, esses
sistemas liberais, ao abandonar o Deus transcendente que se revela nas Escrituras,
colocaram em seu lugar, num salto de fé, uma série de sistemas filosóficos que aspiram à
transcendência, mas que são tão transitórios quanto tudo o que é humano é transitório e
relativo.

A questão epistemológica pode ser tratada aqui por meio de perguntas: se as Escrituras
não são a revelação de Deus a nós, então, sobre qual fundamento pode-se falar, por
exemplo, do amor de Deus? Ou, se as Escrituras não são infalíveis, que segurança há de
que o que ela ensina sobre Cristo é a verdade? É bem típico dos teólogos liberais se
refugiarem no misticismo semântico para se evadir dessas questões.

2. Em segundo lugar, o autor defende um conceito não bíblico de verdade. Ao rejeitar


uma caracterização reducionista da “tese bastante difundida de que a mente de Deus é
lógica, racional”, o autor oferece uma concepção de verdade, apresentada de forma
imprecisa e ambígua, por meio da citação de textos bíblicos usados de forma seletiva – o
que não deixa de ser um apelo curioso, já que Sung não aceita a autoridade das Escrituras
– ainda que ele ousadamente afirme que “a noção que aparece no evangelho de João ou
na carta do Paulo apóstolo não é compatível com a concepção da verdade” como algo,
segundo sua interpretação, “meramente ou fundamentalmente intelectual, racional”.

Um exemplo do tratamento bíblico por parte do autor dessa questão serve de ilustração.
O versículo de Romanos 1.18 é citado como apoio à noção de que o problema real não é
a ignorância ou o erro, mas a injustiça, entendida como “sistema injusto”. Mas Sung
simplesmente cita os versículos bíblicos sem tratá-los em seu contexto canônico. Esta
seção na epístola aos Romanos trata dos limites da revelação geral e da necessidade da
revelação especial, noções que ele rejeita. Ao afirmar que os homens “detêm a verdade
pela injustiça”, o texto bíblico ensina que Deus pode ser conhecido, que “se revela do
céu”, e por isso os seres humanos são indesculpáveis, merecedores da ira divina, pois
distorceram a revelação clara preferindo adorar a “imagem de homem corruptível, bem
como aves quadrúpedes e répteis”, mudando “a verdade de Deus em mentira, adorando e
servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente” (Rm 1.25). Por
isso, os seres humanos são incapazes de alcançar a Deus por meio da criação, pois “se
tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-lhes o coração insensato”,
isto é, perderam a capacidade de conhecer a Deus. Portanto, Deus os entregou ao seu
próprio pecado, “a paixões infames” (1.24-32), por não reconhecerem a glória de Deus.

7
Para uma introdução ao assunto, cf. Hermisten M. P. Costa, Raízes da teologia contemporânea. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004 e Stanley J. Grenz & Roger E. Olson, A teologia do século 20. São Paulo: Cultura
Cristã, 2003.
Daí a necessidade da “justiça de Deus [que] se revela no evangelho, de fé em fé” (Rm
1.17) como o único meio de salvação – somente a justiça proveniente de Cristo pode
tornar justos os injustos. Deve-se notar que o autor passa ao largo das exortações presentes
nas epístolas paulinas sobre o uso da mente, o que pressupõe que o Deus que se revela
nas Escrituras se comunica em categorias racionais. 8

No evangelho de João, Jesus Cristo afirma a certeza da veracidade da Palavra de Deus:


“A tua palavra é a verdade. (…) E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que
eles também sejam santificados na verdade” (Jo 17.17, 19). O texto não diz que a Palavra
se harmoniza com algum outro padrão distinto decorrendo daí a sua veracidade, antes, o
que é afirmado é que a Palavra é a própria verdade, o padrão de verdade ao qual qualquer
alegação pretensamente verdadeira deve se adequar. Portanto, em termos bíblicos, o
conceito de verdade inclui “fidedignidade”, “aquilo que é real” ou “a verdade de uma
asseveração”, com implicações intelectuais, morais e espirituais (cf. Gl 2.6, 14; Ef 4.21),
em contraste com a mentira, o engano e a falsidade – sendo, inclusive, usada como
sinônimo do evangelho. Assim, as Escrituras nos falam de verdade absoluta, acessível,
verificável e vivenciável. E somos desafiados a conhecer a verdade e a praticá-la como
testemunho de fé. E ao fazê-lo, saberemos que a Palavra é a verdade: “Respondeu-lhes
Jesus: O meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou. Se alguém quiser fazer a
vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo por mim
mesmo” (Jo 7.16-17). 9

Diferente da caricatura apresentada, a teologia protestante não propõe um conhecimento


puramente intelectual da verdade. A vida eterna é conhecer a Deus, e esta relação não se
inicia com uma experiência, antes por um conhecimento salvador, que se manifestará
gradativamente em nossa experiência de obediência e submissão: “E a vida eterna é esta:
que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo
17.3). A salvação implica uma nova relação com Deus. Antes os seres humanos estavam
num estado de rebeldia; agora, aqueles que creem são reconciliados mediante o
conhecimento de Deus por meio de Jesus Cristo. Curiosamente, a tentativa de rotular
como helênico o método teológico esposado pela tradição evangélica também está
presente no discurso dos adeptos do teísmo aberto.10

Infelizmente, num texto que se propõe programático, Sung não trabalha com a questão
ontológica da verdade. Mas, diante dos três modelos teológicos que ele resume, qual seria
de fato o verdadeiro? O que garante a veracidade de tal método? Esta seria determinada
simplesmente por ser pós-moderna? E qual o seu fundamento final? Nas Escrituras,
respondemos. E o autor?

3. Outro problema identificado no artigo é que Sung faz uma caricatura do entendimento
cristão do Deus pessoal e infinito, descartando a possibilidade de que Deus – Pai, Filho e
Espírito Santo – seja pessoal e imutável. Há dois erros aqui: o primeiro é a afirmação
arbitrária de que, “por ser transcendente, [Deus] está além das doutrinas” — sem levar

8
Cf., por exemplo, John R. W. Stott, Crer é também pensar. São Paulo: ABU, 1994.
9
Para um estudo detalhado sobre o significado bíblico deste vocábulo, cf. Gordon H. Clark, “Verdade”, em
Walter A. Ewell (ed.), Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009, p.
613-615 e A. C. Thiselton, “Verdade”, em Lothar Coenen & Colin Brown (ed.), Dicionário Internacional
de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 2601-2630.
10
Michael S. Horton, “Helênico ou hebreu? O teísmo aberto e o método teológico reformado”, John Piper,
Justin Taylor & Paul K. Helseth (ed.), Teísmo aberto. São Paulo: Vida, 2006, p. 243-286.
em conta, com a devida seriedade, que a tradição cristã afirma tanto a transcendência
quanto a imanência, tanto a majestade divina quanto a aliança graciosa, Deus por nós. O
segundo refere-se à possibilidade de “modificação ou dinamismo” em Deus, quando o
testemunho apostólico afirma: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto,
descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança”
(Tg 1.17). A tradição cristã reconhece os limites e a inadequação da linguagem humana
para se falar sobre Deus. Mas até o presente momento não apareceu nenhum termo
alternativo para se falar de Deus, então a linguagem cristã tradicional se mantém, apesar
de suas limitações. Portanto, falamos sobre Deus porque Deus mesmo falou sobre si na
Escritura, se revelando como aquele que ama em santidade e age em graça soberana, “que
preserva a vida de todas as coisas, (…) bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor
dos senhores; o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem
homem algum jamais viu, nem é capaz de ver” (1Tm 6.13-16). Deus é um ser pessoal
imutável, mas não inativo. Então, frases de efeito do tipo “um Deus que não se esvazia é
um diabo” não passam de retórica vazia sem significado, na medida em que se evadem
das implicações teológicas e bíblicas em questão ⎯ além de ser, obviamente, um
afastamento do ensino bíblico sobre Deus. Aliás, o leitor deve ter em mente que a noção
de que há mudança na divindade tem sua origem na filosofia do processo, cujas raízes
remontam à filosofia grega. E que a noção de que Deus é dipolar fatalmente implicará a
negação da distinção Criador–criatura, da Trindade, da presciência e da predestinação,
assim como conduzirá seus adeptos ao maniqueísmo dualista.

Nesse contexto, surpreende a afirmação do autor de que ele não vê diferença entre a
teologia católica e o que é exposto na TS. Isso talvez aponte para um aparente
desconhecimento do autor justamente daquilo que realmente separa a teologia católica da
protestante: a ênfase católica na analogia entis, que difere da ênfase protestante — e
especialmente reformada — na analogia fidei, 11 tema presente do começo ao fim tanto
na TS quanto em outra obra que escrevi recentemente, a Teologia cristã. Esse problema
da linguagem bíblica sobre Deus, e que possibilita falarmos dele, também se manifesta
em círculos liberais no campo da expiação, principalmente no tocante ao ressurgimento
da noção medieval de que na expiação Deus sofreu com a humanidade, não para pagar a
penalidade do pecado, nem para satisfazer a justiça divina, mas para revelar seu amor. Os
adeptos dessa posição supõem erroneamente que a linguagem bíblica sobre Deus é
unívoca, quando esta linguagem é, na verdade, analógica. Ainda no tocante à questão da
salvação, o autor em momento nenhum define o que é “vida” ou “vida em abundância”,
citadas em seu texto sem qualificação. Essas expressões bíblicas são conectadas no
evangelho de João à vida eterna e ressurreição do corpo, temas não mencionados em
momento algum no ensaio.

Entendo ser necessário tocar em outro ponto. Não há como separar Cristo e a Escritura,
como se Cristo fosse a revelação e a Escritura fosse meramente o veículo dessa revelação.
Essa é, na verdade, uma distinção artificial, pois tudo o que sabemos sobre Cristo está nas
Escrituras. Então, se estas não são confiáveis, as crenças que a igreja professa sobre Cristo
também não serão confiáveis. Ou, parafraseando Martinho Lutero, a Escritura é o berço
sobre o qual Cristo repousa. Se o berço for frágil, ele não sustentará o bebê. Se somente
o Cristo revelado na Escritura salva, então esta precisa ser um documento confiável para
encontrarmos o verdadeiro salvador nela (cf. Jo 7.37-39). Portanto, Cristo é o centro da
Escritura – tudo gira em torno da pré-existência, promessa, encarnação, morte expiatória,

11
Cf. Franklin Ferreira & Alan Myatt, Teologia sistemática. São Paulo; Vida Nova, 2007, p. 37-44.
ressurreição corporal, ascensão e a segunda vinda em glória e poder do Verbo de Deus.
A mensagem de toda a Escritura gira em torno do tema Was Christum Treibet – toda a
mensagem da Escritura aponta para Cristo e dele deriva, e aquele que se aproxima da
Escritura deve encontrar Cristo em cada uma das suas páginas, pois a Escritura é “aquilo
que promove Cristo”. Nele temos o modelo de interpretação e conhecimento da verdade;
a verdade absoluta personificada e a verdade que serve de padrão absoluto e final para a
nossa existência. Logo, o apelo último da fé cristã não é à razão ou à experiência, mas ao
Deus encarnado como revelado nas Escrituras ⎯ nele encontramos a verdade e o sentido
de todas as coisas.

Como motif de seu texto, Sung usa o reino/reinado de Deus como categoria da missão,
mas esse tema bíblico implica reconhecer que “reina o Senhor, nosso Deus, o Todo-
Poderoso” (Ap 19.6), e que seu único Filho, Jesus Cristo, “regerá com cetro de ferro” as
nações e, “pessoalmente, pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso”,
tendo em “seu manto e na sua coxa um nome inscrito: REI DOS REIS E SENHOR DOS
SENHORES” (Ap 19.15-16) ⎯ imagens de poder e realeza que causam reações alérgicas
severas em adeptos da TdL e do teísmo aberto. Assim, a descrição de H. Richard Niebuhr
sobre o velho liberalismo sintetiza bem a noção do reino sem Rei destes movimentos
contemporâneos: “Um Deus sem ira levou homens sem pecado para um reino sem
julgamento através das ministrações de um Cristo sem uma cruz”. 12

Em tudo isso permanece um problema desconcertante e, de certa forma, recorrente em


cientistas da religião. Pressupondo uma suposta neutralidade ou isenção de preconceitos
diante de seus objetos de estudo e que todas as expressões de fé são idênticas, eles não
aceitam as crenças cristãs como ponto de partida para o estudo da religião, atribuindo de
modo constante e arbitrário categorias estranhas à fé cristã, na intenção de “interpretá-
la”, criticá-la e descartá-la, uma vez que a preocupação de tal ciência é apenas estudar
como o homem reage ou responde ao fenômeno religioso. Eles não conseguem aceitar
que “considerada a partir da revelação, a religião criada pelos homens é uma contradição
feita à revelação. Contradiz a revelação porque a verdade somente pode chegar ao homem
por meio da verdade. Ao tratar de tomá-la por si mesmo, o homem peca
indefectivelmente. O homem teria de crer, teria de ouvir. (…) Mas na religião o homem
fala, não escuta. (…) Por isso [a religião] é a expressão concentrada da incredulidade
humana. (…) O que faz o homem é fabricar para si um substituto da revelação, com a
qual pretende se antecipar ao que Deus haveria de dar-lhe”.13 Os três pilares da tradição
cristã são Deus, revelação e graça – estes são inegociáveis e aqueles que quiserem estudar
o cristianismo precisam levar estas crenças em conta, na medida em que estas são
basilares aos que abraçam a fé cristã.

4. Outro ponto crítico no texto de Sung é a interpretação que ele faz a respeito do lugar
dos enunciados doutrinais na TS e na tradição protestante. Já que Sung citou as Escrituras,
isso nos dá oportunidade de remeter o leitor a outros textos do Novo Testamento que
ensinam a importância da doutrina. Por exemplo, enfatiza-se a necessidade de se
conservar “o mistério da fé com a consciência limpa” (1Tm 3.9), em se manter “firme na
palavra fiel, conforme a doutrina” (Tt 1.9) e na necessidade de se falar “em harmonia com
a sã doutrina” (Tt 2.1). Portanto, o ministro cristão deve pregar estas doutrinas, pois algum

12
H. Richard Niebuhr, The Kingdom of God in America. Nova York: Harper & Row, 1959, p. 193.
13
Karl Barth, Revelação de Deus como sublimação da religião, p. 46-47. Algumas críticas perceptivas à
ciência da religião podem ser lidas em Karl Barth, Palavra de Deus, palavra do homem. São Paulo: Novo
Século, 2004, p. 141-166.
conhecimento delas é essencial à salvação: “Venho lembrar-vos o evangelho que vos
anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseverais; por ele também sois salvos, se
retiverdes a palavra tal como vo-la preguei, a menos que tenhais crido em vão. Antes de
tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados,
segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as
Escrituras” (1Co 15.1-4), porquanto, “graças a Deus porque, outrora, escravos do pecado,
contudo, viestes a obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues” (Rm
6.17).

Para a tradição evangélica, as verdades doutrinais não são um fim em si, mas têm como
alvo a comunhão com o Deus pessoal e a transformação ética. Portanto, o fim da tarefa
teológica é a glória de Deus, não somente ou meramente “a defesa da fé cristã”, como
Sung insiste. E o anseio pela glória de Deus é o principal impulsor do cristão para a
transformação da sociedade – um aparente paradoxo que surpreendeu Christopher Hill
em seus estudos sobre a guerra civil inglesa do século 17, o que levou a chamá-la de
primeira revolução moderna.14

5. Um quinto problema é a proposta do autor de uma inversão da tarefa da teologia ⎯ em


vez da reforma eclesial, a transformação da sociedade. Este tem sido o caminho que
alguns clérigos têm trilhado na tentativa de tornar a igreja relevante e justificar a fé na
esfera pública. Mas há alguns problemas: quando ministros tentam transformar a
sociedade, abandonando a reforma da igreja, perde-se no processo a igreja como
comunidade cristã e também não se transforma a sociedade. O padrão bíblico e histórico
é que, quando a igreja é reformada, a sociedade é modificada. Uma ilustração que posso
citar é o avivamento inglês do século 18, que ao mesmo tempo renovou a vida interna da
igreja, salvou a sociedade inglesa de um banho de sangue de terror, como na Revolução
Francesa, e disparou mudanças sociais profundas, como a libertação dos escravos,
reforma prisional, educação gratuita, etc. Mas há outro fator: quando clérigos,
descuidando das igrejas locais, tentam transformar a sociedade, traem seu chamado e a
própria razão de ser da igreja ⎯ esta foi chamada para ser comunidade da Palavra e do
sacramento, não uma espécie de organização não governamental “cristã”. E aqueles que
se reúnem numa comunidade de fé o fazem na pressuposição de que serão visitados,
cuidados e guiados por meio da Palavra em sua peregrinação. E não negligenciados em
suas necessidades espirituais e afetivas, usados em um movimento por mudanças na
sociedade ⎯ tarefa essa legítima e que deveria ser conduzida, não por um clero político,
mas por cristãos vocacionados e nutridos por igrejas saudáveis, habilitados para esse fim
e dedicados a tal tarefa, por meio de ONGs ou OSCIPs agindo de forma independente da
igreja.

Ao rejeitar uma ênfase na “doutrina correta”, Sung escreve que “quando se assume o
método dedutivo na relação teoria-prática (…) os problemas concretos e angústias das
pessoas envolvidas são desconsiderados”, um juízo de valor que demonstra pouca
familiaridade com a prática pastoral evangélica em nosso país. A maioria dos pastores
que conheço, como aqueles ligados às igrejas assembleias de Deus, batistas, Betel
brasileiro, carismáticas, cristãs evangélicas, estão situados entre os de nível
socioeconômico baixo ou médio-baixo, servindo em favelas e nas periferias dos grandes
centros urbanos no sudeste ou nos ribeirinhos e sertões no norte e nordeste do país.
14
Cf. especialmente Christopher Hill, O eleito de Deus; Oliver Cromwell e a revolução inglesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990 e Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça; idéias radicais durante a
revolução inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Mesmo com suas limitações (não raro, esses pastores precisam equilibrar o ministério
com algum outro trabalho para complementar a renda), têm exercido seu papel com
coragem, lutando para se manter fiéis à tradição cristã. Muitos dos problemas listados
pelo autor são tratados por estes pastores, não por um foco ideológico, mas por meio da
Palavra, que cativa e liberta. Afastando-se das sugestões mágicas do ensino
neopentecostal e da utopia da TdL, a pregação desses pastores gera nos membros de suas
comunidades aquelas virtudes já descritas como a ética protestante do trabalho: vocação,
frugalidade, disciplina, santidade do trabalho e a valoração dos estudos seculares. Aqueles
que têm servido em comunidades carentes, de forma leal à mensagem evangélica, têm
testemunhado mudanças sociais dramáticas entre os membros destas igrejas. Isso é
ilustrado no belo documentário Santa Cruz, produzido pelo canal GNT. E a ironia é que,
na medida em que a TdL “colocou os pobres no lugar de Cristo”,15 estes lhes viraram as
costas, abraçando o pentecostalismo.

Por causa das questões peculiares do Brasil (violência, concentração de renda numa classe
política obtusa e corrupta, desigualdades sociais abissais, aparelhamento e omissão do
Estado em áreas-chave, etc.), tratamos na TS do pecado estrutural, que tem sua origem
no pecado original e pessoal — um tema muitas vezes negligenciado em livros similares
e mesmo na pregação evangélica —, assim como sugerimos pistas para o serviço político
do cristão na sociedade.

6. Sung não compreendeu o tratamento oferecido na TS ao tema das cosmovisões e,


especialmente, ao papel controlador dos pressupostos sobre nossa interpretação do
mundo. Não raro, os conservadores sacralizam ou reproduzem certas expressões culturais
– ainda que este não seja um erro exclusivo a este grupo.16 Mas o tema das cosmovisões
foi retirado de seu contexto, na TS, para sugerir que a cosmovisão da teologia
conservadora é mera reprodução de uma cosmovisão pré-moderna, o que, obviamente, é
uma boa ilustração do típico argumento “espantalho” — inventa-se uma caricatura para
depois rejeitá-la. Mas isso oferece a possibilidade de testarmos a cosmovisão do
liberalismo teológico, que subjaz ao ensaio ETM. Usando o método que estrutura a TS,
podemos citar alguns dos principais temas liberais enfatizados em escolas teológicas pelo
Brasil:

(a) ênfase numa interpretação científica da Bíblia, onde o método histórico-crítico ou uma
hermenêutica de suspeita são as únicas ferramentas que podem descobrir a mensagem
bíblica;
(b) negação da inspiração das Escrituras, da encarnação, da morte expiatória, da
ressurreição corporal; dos milagres, que são negados ou reinterpretados;
(c) as doutrinas cristãs se tornam apenas símbolos ou metáforas;
(d) ética situacional ou relativista;
(e) soteriologia universalista.

15
Devo esta percepção ao ensaio de Clodovis M. Boff, “Teologia da libertação e volta ao fundamento”,
Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 67, nº 268 (2007), p. 1001-1022. Cf. também Clodovis M. Boff, “Volta
ao fundamento: Réplica”, Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 68, nº 271 (2008), p. 892-927.
16
Para a tipologia da relação entre evangelho e cultura, ainda é obrigatória a leitura de H. Richard Niebuhr,
Cristo e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. Evangélicos fundamentalistas agem sob o modelo
“Cristo contra a cultura”, enquanto liberais adotam o modelo “Cristo da cultura”. O modelo assumido na
TS é o de “Cristo transformador da cultura”. Cf. Franklin Ferreira & Alan Myatt, Teologia sistemática, p.
669-675, 689-695.
Mas quais são os pressupostos que estão por trás dessas afirmações? Quais são aquelas
pré-compreensões assumidas como verdade por parte dos teólogos liberais e que
controlam esse programa metodológico? Podemos citar alguns desses axiomas:

a) completa negação da transcendência, ênfase no imanentismo;


(b) anti-sobrenaturalismo;
(c) o ser humano finito se torna o critério último da verdade;
(d) o existencialismo, a fenomenologia ou o marxismo (entre outros) passam a ser a chave
para a interpretação da Escritura e do mundo.

No fim, qual a cosmovisão que, no liberalismo teológico, governa a interpretação de


Deus, da Escritura e do mundo? Nesse caso, é o ateísmo, que pode ser descrito como um
sistema filosófico que nega a existência de Deus, que afirma que o universo existe como
uma uniformidade de causa e efeito num sistema fechado e que aspira à objetividade
científica. Portanto, a cosmovisão da teologia liberal em suas muitas variantes é
naturalista, e seus pressupostos/axiomas são basicamente ateístas. E a TdL é uma
profunda marxização do cristianismo, cujos adeptos retiram “do homem toda e qualquer
capacidade de se ver como responsável pelo mal, a menos que ele seja rico, oprima sua
mulher e seja homofóbico”. Mas que, “ao retirar a contradição moral de ‘dentro’ do
homem e colocá-la na política, ‘fora dele’”, roubam “do homem a possibilidade de
angústia moral verdadeira, dizendo para ele que a culpa é dos ricos, e com isso elas
apagam toda a tradição cristã de reflexão espiritual e moral centrada na consciência
moral”,17 assim como a experiência de redenção e restauração em Cristo crucificado e
ressurreto.

A abordagem que seguimos na TS reconhece que nenhum fato, histórico ou não, pode ser
interpretado de maneira coerente sem pressupor o Deus trino revelado nas Escrituras.
Portanto, avançamos a partir das pressuposições das Escrituras, através das proposições
das Escrituras, chegando às conclusões das Escrituras. Essa abordagem descarta a noção
ingênua de “neutralidade científica”. E podemos sugerir dois argumentos a seu favor: (1)
“Metodologicamente, não podemos esperar que sequer entendamos, e muito menos que
aceitemos”, a mensagem da Escritura “se impusermos sobre ela pressuposições
estranhas”; (2) “Devemos, portanto, permitir que nosso pensamento, pelo menos
temporariamente, seja moldado pelas pressuposições da própria Escritura, simplesmente
a fim de entendê-la”, pois, em última análise, as Escrituras apresentam “não meramente
uma descrição plausível do mundo e dos princípios de ordem que o governam, como
também a verdade objetiva revelada pelo Autor da realidade”. Portanto, “a aceitação das
pressuposições bíblicas” nos preservará da tentação da idolatria intelectual “e nos levará
a um conhecimento” da verdade e da realidade como reveladas nas Escrituras. 18

7. Por outro lado, diferente do que o autor sugere no texto, de que a teologia conservadora
é irrelevante em contextos não ocidentais, é justamente essa fé que tem crescido
maciçamente no sul do globo, não as teologias liberais ou de suspeita hermenêutica. Ele
afirma que na Ásia “somente 3% da população são cristãs”, mas este é um dado impreciso
– hoje 8.75% da população asiática são cristãs. Na atualidade, o cristianismo é a maior
religião formal da China. As várias obras de Philip Jenkins sobre o atual crescimento da

17
Luiz Felipe Pondé, Guia politicamente incorreto da filosofia; ensaio de ironia. São Paulo: Leya, 2012,
p. 153-154.
18
Harold O. J. Brown, “A opção conservadora”, Stanley Grundry (ed.), Teologia contemporânea. São
Paulo: Mundo Cristão, 1987, p. 354-355.
fé cristã são obrigatórias para o estudo desse fenômeno.19 Em 1900 havia entre oito e dez
milhões de cristãos na África, mas na atualidade há cerca de 515 milhões de cristãos, o
que representa cerca de 62.60% da população africana. Em termos quantitativos, este é o
maior crescimento religioso que já ocorreu em toda a história. O mesmo pode ser dito
sobre o Oriente Médio e a América Latina. E o perfil dessa nova cristandade é descrito
por Jenkins nesses termos: “Essas novas igrejas pregam uma fé pessoal profunda e uma
ortodoxia comunal, assim como o misticismo e o puritanismo, todos calcados na clara
autoridade das Escrituras”. Na atualidade o liberalismo teológico está circunscrito a
bolsões no norte dos Estados Unidos e no oeste da Europa — locais onde a fé cristã está
se tornando periférica e irrelevante para a cultura ao seu redor.

Conclusões
Para encerrar, gostaria de tratar de duas questões críticas que ultrapassam o texto ETM,
mas que oferecem ocasião para tratar brevemente do programa teológico liberal:

Não deixa de ser irônico que Sung tenha escolhido pontuar críticas à TS, uma obra que
propõe uma teologia em diálogo — a começar pela metodologia integrativa empregada.
Na seção de agradecimentos, mencionamos nominalmente dezoito pessoas que leram
partes ou mesmo todo o manuscrito. Entre esses há especialistas em Antigo Testamento
e Novo Testamento, hermenêutica, teologia sistemática, história, filosofia, matemática,
física, biologia, pedagogia, direito, psiquiatria, literatura, psicologia, formados em pelo
menos três continentes. Há eruditos e leigos, homens e mulheres. Travamos intenso e
frutífero debate com esses irmãos e irmãs, que nos ajudaram em vários momentos
específicos, enquanto a escrevíamos e a revisávamos. E, conscientemente, em todo o
livro, dialogamos intensa, respeitosa e criticamente com alguns dos principais escritores
cristãos, especialmente com Ireneu de Lyon, Atanásio de Alexandria, Agostinho de
Hipona, Anselmo de Canterbury, Martinho Lutero, João Calvino, Jonathan Edwards,
John Wesley, Dietrich Bonhoeffer, Karl Barth e Cornelius van Til. Os principais
documentos confessionais cristãos também são citados em quase todas as páginas da TS.
Quando pontuamos nossas discordâncias na TS, fizemos com respeito, seja com irmãos
na fé, seja com aqueles que estão em posição antagônica. Mais diálogo que isso é
impossível, não é mesmo? Portanto, a conclusão que chego é que Sung, ao rejeitar um
modelo representado por um livro construído em diálogo e que almeja ser uma confissão
de fé evangélica, parece simplesmente oferecer um roteiro para desconstruir de forma
amena a linguagem (e a experiência) de fé daqueles oriundos de “igrejas evangélicas
fundamentalistas”, como ele as chama em seu texto.

Devemos lembrar que, como escreveu J. Gresham Machen, “liberalismo não é


cristianismo”.20 O liberalismo teológico é episódico em nosso país. Gerou divisão entre
presbiterianos na década de 1930, mas ganhou mais visibilidade por volta de 1950, por
meio de missionários estrangeiros, se fixando em escolas teológicas ligadas às igrejas
protestantes históricas em meados de 1960. Depois, brasileiros que estudaram no exterior
19
Cf. Philip Jenkins, The Next Christendom: The Coming of Global Christianity. New York: Oxford
University Press, 2011, The New Faces of Christianity; Believing the Bible in the Global South. New York:
Oxford University Press, 2006 e Mark Noll, The New Shape of World Christianity; how Americans
experience reflects global faith. Downers Grove, Il: IVP, 2009. Para os sofrimentos da igreja chinesa sob
os quase 60 anos de regime do Partido Comunista da China, cf. Liao Yiwu, Deus é vermelho. São Paulo:
Mundo Cristão, 2011. Para os que quiserem conferir o tipo de teologia que tem recebido imensa aceitação
na África subsaariana, recomendo Tokunboh Adeyemo (ed. geral), Comentário bíblico africano. São Paulo:
Mundo Cristão, 2010.
20
J. Gresham Machen, Cristianismo e liberalismo. São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 157.
a reintroduziram nessas escolas no fim da década de 1970. Em meados da década de 1990
ressurgiu nessas mesmas instituições teológicas. E mais uma vez reaparece, desta vez em
setores à margem da corrente principal do protestantismo brasileiro. O que precisa ser
dito é que uma teologia que descarta a inspiração das Escrituras, Deus e o pecado, a pessoa
de Cristo e a redenção por meio de sua morte e ressurreição, e a nova vida como obra do
Espírito Santo, perdeu o direito de ser reconhecida como “uma resposta cristã” aos
desafios que enfrentamos no Brasil. Como Robinson Cavalcanti escreveu:
“Lamentavelmente, o secularismo-liberalismo se consolidou nos espaços protestantes.
Não somente a Reforma foi abandonada, mas também o próprio cristianismo, como
entendido desde a sua origem. Uma coisa é atualizar linguagem, métodos, ênfases,
estratégias; outra é substituir conceitos e preceitos de uma religião que se pretende de
revelação. Doutrinas e padrões de comportamento são relativizados, e esses aloprados
ainda esperam que uma pessoa humana normal adira a essa mixórdia!”21

Nesse sentido, a teologia liberal é mais propriamente uma heresia, mera variante do
gnosticismo enfrentado pela igreja em seus primórdios. 22 Pois tornar a leitura bíblica
dependente de pressupostos filosóficos estranhos à fé cristã é torná-la um sistema
esotérico, é tornar a leitura do texto bíblico dependente de uma gnose: o oposto,
certamente, de uma leitura “inclusiva” e aberta aos humildes, que são em teoria o alvo
preferencial da TdL.23 Logo, o liberalismo opera da mesma forma que o antigo
gnosticismo, mantendo os enunciados cristãos, mas mudando seu significado/conteúdo,
em que a pessoa pode ser “salva” por meio do conhecimento de uma suposta verdade
filosófica/ideológica oculta à grande maioria das pessoas. Os “cristãos positivos” alemães
eram fervorosos adeptos da teologia liberal. E a resposta a esse movimento foi dada por
Karl Barth em 1934, e faríamos bem em escutá-la: “Vocês têm uma fé diferente, um
espírito diferente, um deus diferente”. 24 Não há como cristãos subestimarem o liberalismo
teológico. Como já se sugeriu, esta corrente teológica é parasitária. Liberais não plantam
igrejas, não fundam seminários, não constroem hospitais nem escolas. Pelo contrário, eles
os fecham. Os monumentos do liberalismo são as esvaziadas faculdades de teologia, as
igrejas paroquiais e as catedrais das igrejas estatais europeias, vivas apenas como
vestígios de lembranças melancólicas de um tempo que não volta mais. É verdade: eles
promovem uma ilusão (2Tm 4.4) e abraçam “uma fé diferente, um espírito diferente, um
deus diferente”.

“A palavra do Senhor, porém, permanece eternamente” (1Pe 1.25).

21
Robinson Cavalcanti, “Igreja – o futuro está no resgate do passado”, Revista Ultimato, nº 318 (Maio-
Junho 2009), p. 42.
22
A definição empregada aqui para “heresia” é uma negação ou comprometimento de uma doutrina cristã
essencial à salvação.
23
Craig M. Gay, “A sociologia do conhecimento e a arte da suspeita (uma interpretação sociológica da
interpretação)”, em Elmer Dyck (ed.), Hermenêutica; uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica.
São Paulo: Shedd, 2012, p. 97-124.
24
Cf. Franklin Ferreira, “A Igreja Confessional Alemã e a ‘Disputa pela Igreja’ (1933-1937)”. Fides
Reformata, vol. 15 (2010), p. 9-36.

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