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A “IMAGO DEI” NO HOMEM: UM DIÁLOGO ENTRE OS CONCEITOS DA


TEOLOGIA BÍBLICA E DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA

José Ribamar Macêdo Lima Júnior1


Moises Pereira Rodrigues2

Resumo: Nesse artigo, iremos demonstrar os principais conceitos de “imago dei” no homem a
partir da Teologia Bíblica e Sistemática com o intuito de demonstrarmos que eles não se anulam
entre si. Pelo contrário, os conceitos de tais disciplinas se complementam e harmonizam-se, o
que nos mostra que há um grau de interdependência entre os conceitos teológicos da Teologia
Bíblica e Sistemática quanto a “imagem” de Deus no homem, mostrando-nos que elas, mesmo
tendo domínios distintos no campo da teologia cristã, se correlacionam.

Palavras-chave: “imago dei”; teologia bíblica; teologia sistemática; antropologia bíblica

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva um diálogo sintético entre os conceitos teológicos da


“imago dei” no homem a partir das teologias bíblicas e sistemáticas. Portanto, buscaremos
extrair tais conceitos das principais obras de teologia bíblica de eruditos como Bruce Waltke,
Geerhardus Vos, Willem Vangemeren, Gerhard Von Gronnigen, Peter G. Gentry e Stephen
Vellum, Valter Kaiser Jr e Graeme Goldsworthy em debate com as obras clássicas de teologia
sistemática de autores como Herman Bavink, Louis Berkhoff, Charles Hodge, Wayne Gruden,
Robert D. Culver, Norman Geisler, Francis Shaeffer e Augustus Strong.
Sendo assim, não é nossa intenção criar aporias entre os conceitos teológicos de “imago
dei” no homem como se fossemos anulá-los entre si, pelo contrário, entendemos que os
conceitos de “imago dei” no homem derivados das teologias bíblicas e sistemáticas
(dogmáticas) se complementam, e é exatamente isso que tentaremos demonstrar nesse trabalho.
Todavia, antes de explorarmos os conceitos teológicos de “imago dei” no homem pondo
em debates as teologias bíblicas e sistemáticas dos autores que selecionamos supracitados, faz

1
Graduando em Bacharel em Teologia pelo Centro de Estudos Bet-Hakan.
2
Graduando em Bacharel em Teologia pelo Centro de Estudos Bet-Hakan.
2

necessário definirmos o que é teologia bíblica e teologia sistemática e expormos


conceitualmente o campo de domínio teológico de cada uma.
Assim, entendemos que teologia bíblica se refere aos conceitos teológicos extraídos pela
exegese e hermenêutica bíblica de partes das Escrituras Sagradas e como tais temas teológicos
dialogam de forma diacrônica dentro da história da redenção. Carson discutindo sobre a
definição de teologia bíblica nos diz que:
Por teologia bíblica, entendo aquele ramo da teologia cuja a preocupação é estudar
cada segmento das Escrituras individualmente, especialmente quanto ao seu lugar na
história revelação progressiva de Deus. A ênfase de tal estudo recai sobre a história e
o segmento específico. (CARSON, 2001, p. 21)

Seguindo essa mesma definição de teologia bíblica, James Hamilton Jr (2016, p. 13) nos
afirma que “teologia bíblica deve ser compreendida como a compreensão dos autores bíblicos
acerca das Escrituras anteriores, a história da redenção e os eventos que eles descrevem, relatam
ou celebram nos diversos gêneros literários canônicos”.
É importante ressaltarmos acerca da importância prática da teologia bíblica dentro do
seu campo teológico. Assim, o erudito Graeme Goldsworthy (2018, p. 27) elenca que a
“teologia bíblica é importante para o cristão porque ela ajuda-o a lidar com as passagens
problemáticas das Escrituras Sagradas e como entendê-las dentro da mensagem única da
Bíblia”. Seguindo esse mesmo pensamento, o autor George E. Ladd, quando ao conceito de
teologia bíblica e o seu campo de estudo dentro da teologia cristão, afirma que:
A teologia bíblica é a disciplina que estrutura a mensagem dos livros da Bíblia em seu
ambiente formativo histórico. A teologia bíblica é primariamente uma disciplina
descritiva, cuja a abrangência não busca primariamente o significado final dos ensinos
da Bíblia ou sua relevância para os dias atuais, uma tarefa que cabe a teologia
sistemática. A tarefa da teologia bíblica é expor a teologia encontrada na Bíblia em
seu contexto histórico, com seus principais termos, categorias e formas de
pensamentos. (LADD, 2003, p. 38).

Por outro lado, James Hamilton Jr (2016, p.15-16) também discutindo sobre a
importância prática do estudo da teologia bíblica para o cristão, afirma que “ela ajuda a extrair
os conceitos teológicos dos autores bíblicos acerca da sua cosmovisão de mundo a partir da
história da redenção e o seu cumprimento em Cristo Jesus e como essa cosmovisão dos autores
bíblicos inspirados pelo Espírito Santo podem formar a cosmovisão no cristão afim dele saber
interpretar o mundo atual a partir da correta leitura bíblica. Portanto, conforme James Hamilton
Jr, o estudo da teologia bíblica ajuda o cristão a ler corretamente as Escrituras Sagradas”.
Quanto ao conceito de teologia sistemática e o seu campo de domínio teológico
afirmamos que ela compõe o corpus doutrinário da fé cristã extraída dos dados teológicos
fornecidos pela teologia bíblica que são colocados em ordem lógica e sistematizada, sendo que
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esta ordem lógica e sistematizada é oriunda da influência da teologia histórica e filosófica.


Acerca disso, Culver entende que:
[...] Quando essas doutrinas são organizadas em uma disposição lógica e coerente,
temos a teologia sistemática. Como veremos mais tarde, teologia sistemática é mais
que uma disposição lógica de doutrinas bíblicas, no entanto, nunca poderá ser menos
caso reivindique o título de teologia sistemática da religião cristã. [...] O estudo
sistemático das doutrinas da Palavra de Deus não podem nem deveria evitar a
disposição organizada e coerente das doutrinas. (CULVER, 2012, p. 28).

Notamos, portanto, que a maioria das teologias sistemáticas começam com doutrina das
Escrituras Sagradas (Bibliologia), a doutrina de Deus e suas obras (Teologia Própria e
Prolegômenos), a doutrina do homem (Antropologia), a doutrina do Pecado (Harmatiologia), a
doutrina de Cristo (Cristologia), a doutrina da Salvação (Soteriologia), a doutrina da Igreja
(Eclesiologia) e a doutrina dos Últimos eventos (Escatologia).
Assim, percebemos que a teologia sistemática nos mostra uma ordem lógica que abrange
os pilares principais da cosmovisão cristã: Deus – Criação – Queda – Redenção – Consumação.
Quanto a definição de teologia sistemática, Carson postula que:
Por “teologia sistemática”, entendo aquele ramo da teologia que visa elaborar o todo
e as partes da Escritura, demonstrando suas conexões lógicas (não apenas históricas),
dando pleno reconhecimento à história da doutrina, ao clima intelectual e às categorias
e indagações contemporâneas, tendo sua base de autoridade final nas Escrituras,
propriamente interpretadas. Teologia Sistemática lida com a Bíblia como um produto
pronto. (CARSON, 2001, p. 21).

Seguindo esse mesmo fluxo de argumento quanto a definição de “teologia sistemática”,


Ferreira e Myatt (2007, p. 24-25) postula que “a teologia sistemática deve oferecer um sistema
coerente do corpus doutrinário da Bíblia como um todo que deverá está ligado de forma lógica
com o intuito de sistematizar toda doutrina cristã a partir duma reflexão interpretativa das
Escrituras Sagradas”.
Quanto a compreensão da importância prática da teologia sistemática quanto disciplina
normativa da teologia cristã, os eruditos acima nos afirmam que:
Queremos formular nossa teologia numa linguagem pertinente aos problemas e às
necessidades atuais. O pastor precisa estar consciente da cultura ao seu redor, para
que não responda perguntas que ninguém está fazendo e não pregue uma mensagem
irrelevante. Assim, ele poderá elaborar com êxito uma teologia prática, que é a
aplicação dos resultados da teologia sistemática à vida atual. (FERREIRA E MYATT,
2007, p. 23).

Diante de tudo que foi exposto, é importante ressaltar que o tema da “imago dei” no
homem está inserido dento do loci da antropologia bíblica que se insere dentro da teologia
sistemática como uma das doutrinas cristãs que tem como objetivo estudar a criação do homem
e o seu lugar na criação divina, sua constituição natural e ontológica e o aspecto da imagem de
Deus no homem (“imago dei”) dentro do contexto escriturístico dos capítulos de Gênesis 1 a 3.
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2 A “IMAGO DEI” NO HOMEM: DEFINIÇÕES EXEGÉTICO-TEOLÓGICAS

No contexto de Gênesis 1.26-27, o termo “imagem” (tselem) repete-se três vezes


diretamente ligado ao termo “semelhança” (dêmût), o que nos mostra que o cerne da criação do
homem, bem como o propósito último da sua existência em sua relação com o seu Deus Criador,
está intimamente ligado ao aspecto dele ser portador da “imagem” divina, por isso, o termo
hebraico ‫( בְּ צַ לְּ ֵ֖מנּו‬tselem) aparece cinco vezes ligado ao homem ser criado a imagem de Deus.
Por outro lado, esse mesmo termo aparece duas vezes relacionado a cópias de ouro de
animais que representavam ídolos filisteus (conforme 1 Samuel 6.5, 11). Portanto, nota-se que
na maioria das vezes, o termo dentro do contexto veterotestamentário, referia-se à representação
da divindade. Sendo assim, seguindo essa definição exegético-teológica do termo ‫בְּ צַ לְּ ֵ֖מנּו‬
(tselem) dentro do contexto veterotestamentário, o exegeta John E. Hartley nos dá a seguinte
definição:
O homem foi criado à imagem (tselem) e semelhança (dêmût) de Deus, o que é então
explicado como ter domínio sobre a criação divina na qualidade de vice-regente de
Deus. Salmos 8.5-8; 6-9 focaliza a questão de modo parecido ao citar a glória, a honra
e o domínio que o homem recebeu da parte de Deus. A imagem divina não se encontra
no corpo do homem, que foi feito de matéria terrena, mas em sua semelhança
espiritual, intelectual e moral com Deus, de quem veio o sopro que lhe deu vida.
(HARTLEY in HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1289).

Seguindo essa mesma definição exegética, Groningen (2002, p.81) postula que o termo
‫( בְּ צַ לְּ ֵ֖מנּו‬tselem), mesmo sendo difícil determinar o seu significado a partir de sua raiz
etimológica, nas vinte e seis vezes que o termo aparece dentro do contexto veterotestamentário,
refere-se ao ídolo que é usado para representar uma deidade ou potencial divino.
Portanto, tendo em vista o uso do termo ‫( בְּ צַ לְּ ֵ֖מנּו‬tselem) dentro do contexto do Antigo
Testamento a partir das definições exegético-teológicas que expomos dos eruditos supracitados,
notamos que o termo “imagem” de Deus no homem, conforme Gênesis 1.26-27, indica que o
ele foi criado para representar fielmente o seu Criador na ordem cósmica, na qualidade de vice-
regente de Deus, recebendo assim qualidades espirituais, intelectuais e morais semelhantes às
dos seu Criador, daí o porquê, o termo “imagem” (tselem) aparece em paralelo ao termo
“semelhança” (dêmût) de acordo com Gênesis 1.26.

3 A “IMAGO DEI” NO HOMEM: DEFINIÇÕES CONCEITUAIS NA TEOLOGIA


SISTEMÁTICA

Depois de expormos as definições exegético-teológica da “imago dei” no homem, nesse


tópico demonstraremos os conceitos teológicos da imagem de Deus no homem extraindo-os
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das principais obras clássicas de teologia sistemática. Contudo, faz-se necessário expormos um
breve resumo do desenvolvimento teológico da “imago dei” no homem na teologia histórica,
perpassando o período da patrística até a reforma.
Assim, no chamado período patrístico, teólogos como Tertuliano e Irineu afirmaram que
a uma diferença entre “imagem” e “semelhança” de Deus, mostrando que o termo “imagem”
se referia aos aspectos corporais, enquanto o termo “semelhança”, estava relacionado com a
espiritualidade do homem.
Por outro lado, os teólogos Clemente de Alexandria e Orígenes não relacionaram os
termos “imagem” e “semelhança” com aspectos corporais, apenas indicaram que se referiam as
características do homem com tal e suas qualidades não essenciais que podem ser perdidas.
O bispo Agostino de Hipona entendia o termo “imagem” relacionado a razão humana
que refletia a sabedoria divina dando-lhe capacidade de relacionar-se com o seu Criador.
Citando o pensamento de Agostinho, o teólogo Sturz assim nos diz:
De acordo com Agostinho, a “imagem” subsiste na alma, especificamente na mente
(razão). Fica claro que o pecado pode deformar, mas não destruir ou corromper
completamente a “imagem”. Para restaurar a “imagem”, Deus enviou seu Filho
Unigênito, a [imagem consubstanciai] que imago consubstantialis suprimiu o pecado
(redenção) e deu ao homem o poder de agir de acordo com as exigências da imago
Dei. (STURZ, 2012, p. 296).

No período da Idade Média, onde prevaleceu o pensamento da teologia escolástica,


vemos que o termo” imagem” de Deus concebia as faculdades intelectuais da razão e da
liberdade, enquanto o termo “semelhança” se referia a justiça original perdida com a queda.
Por outro lado, entre os reformadores, os termos “imagem” e “semelhança” se equivaliam e
significavam a justiça original pertencente a própria natureza humana em sua condição pré-
queda.
Calvino, por exemplo, afirmava que o termo “imagem” de Deus estava relacionado a
tudo aquilo que pertencia a natureza humana que a diferenciava das outras criaturas terrenas.
Assim, para o reformador, o termo “imagem” de Deus, então, referia-se ao seu intelecto puro e
a sua razão que governava toda a natureza humana a partir da justiça original e santidade
original. Entretanto, entre os teólogos luteranos, diferenciando-se radicalmente dos teólogos
reformados, o termo “imagem” de Deus se referia de modo restrito a justiça original relacionada
apenas às qualidades espirituais pré-queda.

3.1 A “imago dei” na Teologia Sistemática

O teólogo presbiteriano Louis Berkhof (2009) em sua clássica “Teologia Sistemática”


(1932) seguindo a abordagem histórica dos teólogos reformados, entende que a “imagem” de
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Deus refere-se a justiça original relacionada ao verdadeiro conhecimento, justiça e santidade.


Para Berkhof, todavia, deve-se pensar também que a “imago dei” se relaciona com as
faculdades mentais, aos sentimentos e a liberdade moral.
Assim, Berkhof entende que mesmo com o pecado, o homem não perdeu essa parte da
imagem divina, contudo, apenas se corrompeu com a queda original. Berkhof, também entende,
que o aspecto espiritual do homem e sua imortalidade derivadas de Deus, devem ser
relacionados também a “imago dei” no homem. Vejamos assim, o conceito de imagem de Deus
no homem, segundo a teologia reformada calvinista, no qual, Berkhof se fundamenta:
Em resumo, pode-se dizer que a imagem de Deus consiste (a) Da alma ou do espírito
do homem, isto é, das qualidades de simplicidade, espiritualidade, invisibilidade e
imortalidade. (b) Dos poderes ou faculdades psíquicas do homem como um ser
racional e moral, a saber, o intelecto e a vontade com as suas funções. (c) Da
integridade moral e intelectual da natureza do homem, que se revela no verdadeiro
conhecimento, justiça e santidade, Ef 4.24; Cl 3.10. (d) Do corpo, não como
substância material, mas como o apto órgão da alma, e que participa da imortalidade
desta; e como o instrumento por meio do qual o homem pode exercer domínio sobre
a criação inferior. (e) Do domínio do homem sobre a terra. (BERKHOF, 2009, p. 191)

O teólogo reformado holandês Herman Barvink (2022) seguindo a mesma abordagem


da tradição reformada calvinista, que já foi exposta acima pelo pensamento de Louis Berkhof,
postula que a “imagem” de Deus no homem o diferencia radicalmente das outras criaturas,
dando-lhe capacidade de dominá-las, porquanto em sentido restrito, a imagem de Deus no
homem significa o fato dele ser uma criatura espiritual. Sendo assim, conforme o pensamento
de Bavink, é esta “imago dei” que qualifica o homem, em toda sua integralidade (incluindo o
próprio corpo, já que a própria Escritura proíbe o derramamento de sangue posteriormente) a
relacionar-se com o seu Criador por meio da justiça original que lhe foi imputada antes da
Queda.
Por outro lado, o teólogo batista Wayne Grudem em sua obra de “Teologia Sistemática:
atual e exaustiva” (1999) sintetiza o conceito de “imago dei” afirmando que “o fato de ser o
homem a imagem de Deus significa que ele é semelhante a Deus e o representa”. Para esse
erudito batista, os termos “imagem” e “semelhança” de Deus no homem devem ser apenas
compreendidos a partir dos leitores originais do livro de Gênesis que entendiam que o homem
era semelhante ao seu Criador e o representava na ordem criada. Portanto, conforme entende
Grudem, tais termos devem ser entendidos na medida que lemos a Bíblia em diante, pois ela
explicará progressivamente os significados deles. Quanto aos conceitos de “imagem” e
“semelhança”, Grudem postula que:
Quando nos damos conta de que as palavras hebraicas que exprimem “imagem” e
“semelhança” simplesmente informavam aos primeiros leitores que o homem era
semelhante a Deus, e em muitos aspectos representava Deus, vemos que boa parte da
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controvérsia acerca do significado de “imagem de Deus” é a busca de um significado


excessivamente estreito e específico. (GRUDEM, 1999, p. 364).

Verificamos que o erudito Augustus Strong, outro teólogo batista renomado do século
XIX, afirma na sua clássica obra em dois volumes de “Teologia sistemática” (2003) que o termo
“imagem” de Deus está presente na alma do ser humano que reflete por meio do corpo,
mostrando que a parte material do homem em algum aspecto é semelhante a Deus. Portanto,
segundo Strong, o homem como um ser integral, sendo ele dicotômico, mostra-nos que a parte
espiritual do homem é o cerne da imagem divina, contudo, ela só pode ser refletida na ordem
criada pela instrumentalidade do corpo humano.
O também teólogo batista Richard J. Sturz em sua obra de “Teologia Sistemática”
(2012) entende que o termo “imagem” de Deus no homem deve ser compreendida em três
aspectos: primeiro, refere-se ao homem ser uma criatura que possui personalidade espiritual,
dotada de intelecto, vontade, liberdade e autoconsciência, que o faz ser responsável diante do
seu Criador; o segundo elemento da “imago dei” está no fato que Adão ao ser criado a imagem
divina recebeu o privilégio de dominar sobre a criação como um represente do seu Criador; o
terceiro aspecto da imagem divina no homem seria o fato deste ser uma “cópia” dos atributos
divinos do amor, da santidade e da bem-aventurança.
Percebemos que o teólogo batista Millard J. Erickson em sua clássica obra de “Teologia
Sistemática” (2015) condensa o conceito de “imago dei” no homem, conforme pensado ao
longo da teologia histórica, em três aspectos que denomina de “imagem essencial”, “imagem
relacional” e “imagem funcional”. O erudito Erickson, então, afirma que o sentido de “imagem
essencial” está relacionado a natureza física, psicológica e espiritual do homem. Já o conceito
de “imagem relacional” significa a capacidade que o homem foi dotado de relacionar-se com o
seu Criador de forma autoconsciente.
Por outro lado, o conceito de “imagem funcional” denota o sentido da capacidade de
domínio sobre a ordem criada. Contudo, após expor esses três conceitos de “imagem divina”
no homem, Millard J. Ericson entende que os conceitos de “imagem relacional e funcional” não
são a “imago dei” em si mesma, entretanto, são implicações da presença da imagem de Deus
no homem. Sendo assim, conforme pensa o teólogo Erickson, a “imago dei” significa as
faculdades da personalidade do ser humano que o capacita a raciocinar, refletir, tomar decisões
e interagir com outras pessoas. Nesse sentido, então, o teólogo Erickson acredita que a “imago
dei” no homem confunde-se com os próprios atributos comunicáveis de Deus refletidos no
homem. Assim, vejamos o que esse erudito afirma sobre a “imagem” de Deus no homem:
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A imagem propriamente dita é o conjunto de características necessárias para o


desenvolvimento dos relacionamentos e para o exercício do domínio. São as
características de Deus que, refletidas nos seres humanos, tornam possíveis a
adoração, a interação pessoal e o trabalho. Se pensarmos em Deus como um ser com
essas características, não teremos dificuldade para aceitar o fato de que os seres
humanos também as apresentam. Os atributos de Deus classificados, às vezes, como
comunicáveis constituem a imagem de Deus; ela não se limita a algum dos atributos
em particular. A condição humana tem uma natureza que abrange tudo o que constitui
a personalidade ou o eu: inteligência, vontade, emoções. Esta é a imagem com a qual
os seres humanos foram criados, que lhes dá capacidade de ter um relacionamento
com Deus e com os outros indivíduos, segundo a intenção divina, e de exercer
domínio. (ERICKSON, 2015, p. 499-500)

Notamos que o teólogo pentecostal Stanley M. Horton entende que a “imagem” de Deus
no homem refere-se ao aspecto moral-intelectual-espiritual. Assim, tais aspectos, conforme
pensa Horton, dão capacidade ao homem de se relacionar com o seu Criador, com outras
pessoas e exercer o domínio correto sobre a criação. Vejamos o que esse erudito diz em sua
obra de “Teologia Sistemática: uma perspectiva pentecostal” (1996):
[...] imagem de Deus na pessoa humana é algo que somos, e não algo que temos ou
fazemos. Esta opinião está em perfeito acordo com o que já estabelecemos como
propósito de Deus na criação da humanidade. Primeiro: o homem foi criado para
conhecer, amar e servir a Deus. Segundo: relacionamo-nos com outros seres humanos
e temos a oportunidade de exercer o domínio apropriado sobre a criação de Deus. A
imagem de Deus em nós ajuda-nos a fazer exatamente essas coisas. (HORTON, 1996,
p. 259).

Verificamos de forma interessante, o conceito de “imago dei” elaborado pelo teólogo


Robert Culver, pois condensa o sentido de “imagem” de Deus naquilo que chama de sentido
“amplo” e “restrito”. O sentido “amplo” está relacionado aos elementos de personalidade,
racionalidade, senso e capacidade morais, enquanto, o sentido “restrito” denota a semelhança
moral (retidão e santidade) e verdadeiro conhecimento de Deus. Assim, conforme pensa Culver,
com a Queda, o sentido “amplo” de “imago dei” não se perdeu, apenas se corrompeu. Por outro
lado, o sentido “restrito” foi totalmente perdido como consequência do pecado original. Nota-
se isso na sua obra de “Teologia Sistemática: bíblica e histórica” (2012):
A questão de como a raça, depois da perda da integridade moral e em uma condição
caída, pôde continuar possuindo a imagem do seu Criador como em sua primeira
integridade, tem sido tratada normalmente distinguindo-se entre a imagem em um
sentido amplo e a imagem em um sentido restrito, tendo a última sido perdida na
Queda, e a primeira retida. O sentido amplo (às vezes chamado de semelhança natural)
inclui elementos como personalidade, racionalidade, senso e capacidade morais, senso
estético, e talvez senso de humor e amor pela diversão. Estes são os aspectos do ser
espiritual: o sentido moral sendo semelhança moral (retidão e santidade) e verdadeiro
conhecimento de Deus. No sentido amplo, então, a humanidade ainda é a humanidade
embora grandemente desfigurada, enquanto no sentido restrito a imagem não existe
mais. (CULVER, 2012, p. 351)

Portanto, conforme expomos acima acerca dos principais conceitos teológicos dos
eruditos da “Teologia Sistemática”, verificamos que a “imago dei” no homem está relacionada
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diretamente com os aspectos da espiritualidade do homem que envolve os seus traços de


personalidade, racionalidade, liberdade e autoconsciência de sua própria existência e do seu
ambiente, fazendo com que seja semelhante ao seu Criador, também em qualidades morais,
como justiça e retidão. Portanto, como possuidor da “imagem” de Deus conforme as
qualificações listadas, o homem teve a capacidade de dominar a ordem criada e sujeitá-la, assim
como, relacionar-se com o Seu Criador e com o seu próprio mundo.

4. A “IMAGO DEI” NO HOMEM: DEFINIÇÕES CONCEITUAIS NA TEOLOGIA


BÍBLICA

Após expormos acima os conceitos da “imago dei” a partir das principais obras clássicas
de “Teologia Sistemática” e discutirmos os conceitos teológicos entre elas, suas similaridades
e diferenças, nesse último tópico desenvolveremos os conceitos da “imagem” de Deus no
homem a partir do olhar das principais obras de “Teologia Bíblica” traduzida ao português nos
últimos anos.

4.1 A “imago dei” na Teologia Bíblica

O teólogo bíblico Graeme Goldsworthy em sua obra “O Filho de Deus e a Nova


Criação” (2017) entende que a “imago dei” está relacionada com o aspecto da filiação de Adão
com Deus. Apesar de não está inferido a expressão “filiação ou filho” no contexto de Gênesis
1.26-27, contudo, o erudito Goldsworthy parte da leitura do Evangelho de Lucas 3.38, onde
afirma que “Adão é filho de Deus”.
Portanto, conforme o pensamento de Goldsworthy, a expressão da filiação de Adão com
o seu Criador está relacionada com o fato dele ser criado a “imagem” de Deus, que será refletida
no domínio de Adão sobre a ordem criada como dádiva dada por Deus ao cria-lo à sua própria
“imagem”, significa que Adão, então, entrou numa relação vital com o seu Criador. Vejamos,
então, esse pensamento de Goldsworthy sobre o significado da “imago dei”:
Ser feito à imagem de Deus, como seu filho, está fortemente conectado, na narrativa
bíblica, com exercer domínio. O fato de que Deus é o Senhor que governa sobre tudo
na criação é simplesmente uma consequência de ser ele o criador. Por meio de sua
palavra, ele trouxe do nada todas as coisas à existência e decretou o que acontecerá na
ordem das coisas. Por dar à humanidade domínio sobre o resto da criação, Deus revela
sua própria soberania prioritária e designa a raça humana como seu vice regente.
(GOLDSWORTHY, 2017, p. 67)

Seguindo esse mesmo conceito de Goldsworthy, quanto a “imago dei” relacionada ao


domínio do homem sobre a ordem criada, os teólogos bíblicos Craig G. Bartholomew e Michael
W. Goheen em sua obra “O Drama das Escrituras” (2017), afirma que a “imagem” de Deus está
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relacionada ao aspecto do domínio do homem sobre o cosmo criado. Assim sendo, conforme
pensam os eruditos acima, o domínio do homem sobre a criação tem como finalidade levá-la
ao seu potencial desenvolvimento para que ela possa glorificar ao seu Criador, o que para os
autores, leva o homem a ter plena liberdade e responsabilidade diante do seu Criador como
mordomos reais.
Notamos que a compreensão da “imago dei” na obra de Bartholomew e Goheen, parte
da compressão do contexto histórico do Antigo Oriente Próximo, no qual se deve interpretar a
literatura de Gênesis. Portanto, citando o teólogo von Rad, eles afirmam que os reis terrenos da
Antiguidade reivindicavam o seu domínio ao erigirem imagens de si mesmo nas províncias de
seu império em que poderiam aparecer pessoalmente. Portanto, conforme acredita
Bartholomew e Goheen, Deus ao criar o homem conforme a sua imagem, significa que por
meio dele o Criador governaria a sua própria criação. Vejamos esse conceito de “imago dei”,
segundo Bartholomew e Goheen, vinculado ao domínio do homem sobre o cosmo nos trechos
abaixo:
A partir disso, deve estar claro que a semelhança fundamental entre Deus e a
humanidade é a vocação singular da humanidade, seu chamado ou comissão feitos
pelo próprio Deus. Sob Deus, a humanidade deve dominar sobre as partes não
humanas da criação na terra, no mar e no ar, do mesmo modo que Deus é o dominador
supremo sobre tudo. [...] Ser humano significa ter liberdade e responsabilidade
enormes, responder a Deus e prestar contas por essa resposta. Assim, a melhor forma
de expressar o conceito de “domínio” da humanidade sobre a criação pode ser afirmar
que somos os mordomos reais de Deus, colocados aqui para desenvolver o potencial
não revelado na criação divina, a fim de que toda ela possa celebrar a glória de Deus.
[...] O chamado de Deus a nós para “ter domínio” sobre a sua criação acarreta esse
tipo de elogio ao que somos capazes de realizar como seus mordomos. Também
acarreta uma grande responsabilidade correspondentemente pelo que resulta dessa
mordomia. Se isso é o que ser “à imagem de Deus” inclui, então claramente nosso
serviço para Deus deve ser tão amplo quanto a própria criação e incluirá cuidar bem
do meio ambiente. (BARTHOLOMEW E GOHEEN, 2017, p. 44-45).

Percebemos no pensamento do teólogo bíblico Hans Walter Wolff em sua clássica obra
de “Antropologia Bíblica” (2007) que ele também compreende o termo “imagem” de Deus
vinculado ao domínio do homem sobre a criação como vice-regente do seu Criador. Contudo,
Wolff trás outro conceito de “imago dei” que dá sentido ao domínio do homem sobre o cosmo.
Conforme Wolff pensa, a expressão “imagem” de Deus deve está relacionada ao vínculo de
correspondência entre o homem e o seu Criador e ao caráter relacional entre eles, que faz com
que o homem responda a Deus em obediência. Vejamos, então, o conceito de “imago dei” na
obra de Wolff:
Logo, na incumbência da administração do mundo não se deverá esquecer a
proximidade especial de Deus em relação ao ser humano que está expressa de modo
eminente na ligação através da palavra. Contudo, de acordo com o sentido específico
da imagem do dominador no contexto da afirmação de 1.26a,b, deve-se registrar que
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a relação de correspondência consiste na dominação do ser humano sobre o resto da


criação. (WOLFF, 2007, p. 248)

O teólogo bíblico Bruce k. Waltke em sua obra “Teologia do Antigo Testamento”


(2015) nos trás alguns conceitos relacionados a “imago dei” no homem, contudo, o cerce da
sua intepretação da “imagem” de Deus está na representação fiel e adequada de Deus no
homem. Para Waltke, as expressões “imagem” e “semelhança” devem ser entendidas
distintamente, pois o termo “semelhança” refere-se aos limites entre a natureza infinita de Deus
e a finita do homem. Acerca dessa distinção entre os termos “imagem” e “semelhança”,
Humbert afirma que:
A “semelhança” (demút) estabelece distinção entre a imagem e aquele que a cria ou
gera (c£ Gn 5.3), ressalta a noção de que a imagem não passa de uma representação
fiel e adequada de Deus e previne qualquer noção pagã que equipare a imagem à
divindade e, portanto, a torne digna de adoração. (HUMBERT APUD WALTKE,
2015, p. 246)

Portanto, o termo “imagem”, segundo Waltke, denota que o homem representa


fielmente o seu Criador em toda sua integralidade, sendo o homem uma unidade
“psicossomática” que reflete a Deus por ser uma criatura pessoal. No entanto, o erudito Waltke
afirma que a “imago dei” no homem, denotando a representação fiel e adequada de Deus,
manifesta-se na ordem criada através da sujeição da criação pelo homem como resultado do
“mandato cultural” de Deus. Vejamos isso no trecho da obra de Bruce Waltke:
Todavia, contrastando com a teoria política existente no antigo Oriente Médio,
Gênesis 1 concede a todos os seres humanos essa condição oficial de imagem de Deus,
de modo que todos nós somos reis, pois recebemos a responsabilidade de governar a
terra na condição de vice-regentes de Deus. Deus chamou os seres humanos para
serem seus vice-regentes e seus sumos sacerdotes na terra. Middleton chega à
conclusão de que o conceito de humanidade como imagem de Deus e detentora de
uma função régia foi cuidadosamente expresso em oposição consciente às estruturas
sociais da Mesopotâmia. (WALTKE, 2015, p. 246).

O teólogo bíblico holandês Gerhard Von Gronnigen, em sua clássica obra “Criação e
Consumação” (2002, Vol.1), entende a “imago dei” no homem sob três aspectos simultâneos.
Para ele, a imagem de Deus refere-se, primeiro, a representação Dele no homem de acordo com
o que estava em sua mente; segundo, ao relacionamento singular entre Deus e o homem e ao
“status” de realeza do homem dado por Deus. Quanto a representação de Deus no homem,
Gronnigen nos diz que:
Da mesma forma como Moisés construiu o tabernáculo de acordo com o modelo que
Deus lhe havia dado (Ex 25.9, 40), Deus também fez a humanidade de acordo com o
modelo que ele tinha em mente. Este modelo, no entanto, embora não idêntico ao
próprio Deus, refletia e representava muito daquilo que Deus é. (GRONNIGEN, 2002,
p. 81)
12

Notamos que no pensamento de Gronnigen, esse reflexo e representação de Deus no


homem, não significa que a humanidade foi criada no patamar de igualdade ontológica e
substancial com Deus, e sim, na capacidade racional que o homem tem, por ser um ser pessoal
dotado de faculdades mentais e intelectuais, que lhe dá condições de relacionar-se com Deus.
Gronnigen também afirma o conceito de relacionamento e “status” régio como reflexo
da “imago dei” no homem. Assim, no seu pensamento, a singularidade do relacionamento ímpar
entre Deus e o homem, é vista na criação dele à imagem de Deus, no qual, nenhuma criatura
possuía. Vejamos tal conceito no pensamento de Gronnigen abaixo:
O relacionamento que Deus estabeleceu entre si mesmo e a humanidade é, antes de
tudo, um de semelhança. [...] Isso não significa identidade; não significa da mesma
essência, natureza ou capacidades. Como uma semelhança de pedra é diferente em
substância de seres humanos, assim o homem é diferente de Deus. Mas é importante,
no caso, mostrar a diferença nesta comparação observando que a humanidade foi feita
para ter capacidades e virtudes similares às de Deus. Por exemplo, Deus fez o homem
para ser capaz de se comunicar com ele. (GRONINNGEN, 2002, p. 86).

Quanto ao conceito de “imagem” de Deus relacionado ao “status” régio de Adão sobre


a ordem criada, Gronnigen entende que a humanidade, sendo a imagem de Deus, foi convocada
pelo seu Criador para “a sua família real”, recebendo o privilégio de cooperar no governo de
Deus e sua sujeição sobre a ordem criada, daí o porquê o homem recebeu dons e potenciais que
os capacitavam a sujeitar a criação. Nota-se isso no pensamento de Gronnigen:
Ao criar o homem e a mulher à sua imagem, estabelecer uma relação de semelhança
e unidade (vínculo), dar-lhes características, capacidades, potenciais e funções de
maneira finita, Deus trouxe a humanidade para "sua família real". Ele não lhes
concedeu sua deidade; ele os dotou com o privilégio e a responsabilidade de serem
co-trabalhadores com ele nas tarefas reais a serem executadas na criação.
(GRONNIGEN, 2002, p. 85).

O teólogo bíblico Willen Vangemeren na sua obra “O progresso da Redenção” (2019),


indo na mesma de linha de pensamento de Gronningen, entende que a “imago dei” refere-se ao
governo do homem sobre a ordem criada debaixo da soberania do seu Criador, o que lhe dava
dignidade real e ao mesmo tempo lhe colocava numa posição de prestação de contas a Deus.
Vangemeren também entende que o homem refletindo a “imagem” de Deus tinha capacidade
natural de comunicar-se com Ele, afetar as coisas, mostrar poder e cuidado que refletiam a
gloria de Deus. Notemos, então, alguns argumentos de Vangemeren sobre o conceito de “imago
dei”:
A imagem de Deus na humanidade está nos dons concedidos pelo Rei à criatura,
graciosamente escolhida para governar a terra e desfrutar da companhia do Senhor.
Ser criado à imagem envolve prestar contas ao Criador. [...] A dignidade real do
homem consiste em seu governo sobre a criação e sua capacidade para civilizar a terra
[...]. Os homens e mulheres também são semelhantes a Deus em sua capacidade
derivada de se comunicar, afetar as coisas, mostrar poder e cuidar – dessa maneira
eles refletem a glória do Criador. Os seres humanos, na totalidade do seu corpo e
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espírito, refletem à imagem de Deus em toda sua existência criativa, incluindo o corpo.
(VANGEMEREN, 2019, p. 63).

Os teólogos bíblicos Peter G. Gentry e Stephen Vellum destacam em sua obra “O Reino
de Deus através das Alianças de Deus” (2021) que o sentido teológico de “imagem” de Deus
deve ser compreendido a partir duma exegese histórico-gramatical que leve em consideração o
significado do termo dentro da linguagem histórico-cultural do Antigo Oriente Próximo. Assim,
acerca dessa abordagem interpretativa pretendida pelos autores quanto ao significado de “imago
dei”, eles afirmam:

Na revelação bíblica, Deus se comunica na cultura e na linguagem do povo. No


entanto, ao empregar uma linguagem que as pessoas entendam, ele também preenche
os termos com um novo significado. A chave para a interpretação correta, portanto, é
comparar e contrastar o texto bíblico e os dados das culturas contemporâneas. Deve-
se notar não apenas as semelhanças entre a Bíblia e o contexto do antigo Oriente
Próximo, mas também as diferenças, que mostram o novo significado sendo revelado
por Deus. (GENTRY E VELLUM, 2021, p. 79).

Assim sendo, para os eruditos Gentry e Vellum, a expressão “imagem” de Deus no


contexto do Antigo Oriente Próximo estava relacionado ao relacionamento do rei humano com
a sua divindade padroeira que levava o monarca a ser considerado uma espécie de “rei-servo”,
ou seja, que governa sobre o seu povo e os seus inimigos debaixo da autoridade da divindade
que representa por ter um relacionamento de filiação com a divindade. Vejamos essa ideia dos
autores supracitados abaixo:
O epíteto ou título descritivo do rei egípcio como uma “estátua viva de tal e tal deus”
era comum no Egito de 1630 a.C em diante e, portanto, era bem conhecido dos
israelitas. No pensamento egípcio, o rei é a imagem de deus porque ele é o filho de
deus. [...] Em vez disso, o comportamento do rei reflete o comportamento do deus. A
imagem reflete os traços de caráter do deus. A imagem reflete as noções essenciais do
deus. [...] No antigo Oriente Próximo, uma vez que o rei é a estátua viva do deus, ele
representa o deus na terra. Ele torna o poder do deus uma realidade presente. [...] O
rei é a imagem de deus porque ele tem uma relação com a divindade como filho de
deus e uma relação com o mundo como governante do deus. No antigo Oriente
Próximo, isso seria entendido como relações de aliança. Devemos presumir que o
significado na Bíblia é idêntico ou pelo menos semelhante, a menos que o texto bíblico
distinga claramente seu significado da cultura circundante. (GENTRY E VELLUM,
2021, 80-81).

Notemos, então, que conforme os argumentos acima, o significado da expressão


“imagem”, na linguagem extra-bíblica, refere-se a fato do monarca ser filho do deus refletindo
em si mesmo e em seu reinado, os traços de caráter do deus através duma relação pactual com
ele. Portanto, conforme interpreta os teólogos bíblicos Gentry e Vellum, a expressão “imagem”
e “semelhança” de Deus em Gênesis 1.26-27, deve ser entendida de forma distinta, nesse
sentido, os autores se distanciam das abordagens clássicas que interpretavam que as expressões
“imagem” e “semelhança” têm o mesmo sentido. No entanto, Gentry e Vellum, entendem
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“imagem” como o relacionamento entre Deus e Adão em que este governa a criação em nome
do Criador, enquanto a expressão “semelhança” refere-se ao relacionamento de filiação entre
Deus e Adão. Observemos, portanto, a abordagem interpretativa de “imagem” e “semelhança”
de acordo com a teologia bíblica de Gentry e Vellum nos trechos abaixo:
Dados os significados normais de "imagem" e "semelhança" no cenário cultural e
linguístico do Antigo Testamento e do antigo Oriente Próximo, "semelhança"
especifica uma relação entre Deus e os humanos de tal forma que ‘adam’ pode ser
descrito como o filho de Deus, e “imagem” descreve um relacionamento entre Deus
e os humanos de tal forma que 'adam pode ser descrito como um rei servo. [...] Estes
seriam entendidos como relacionamentos caracterizados por fidelidade e amor leal,
obediência e confiança - exatamente o caráter dos relacionamentos especificados
pelos convênios após a Queda. Nesse sentido, a imagem divina implica uma relação
de aliança entre Deus e os humanos, por um lado, e entre os humanos e o mundo do
outro. (GENTRY E VELLUM, 2021, 83).

O teólogo bíblico Valter Kaiser Jr em sua obra clássica de teologia bíblica “O plano da
Promessa de Deus” (2011) entende que a “imago dei” no homem deve ser compreendida a partir
das definições neotestamentárias, onde está diretamente relacionada com o verdadeiro
conhecimento de Deus (Cl 3.10); “justiça e santidade” (Ef 4.24) e na capacidade que o homem
tinha de se comunicar com Deus e ter comunhão com Ele, pelo qual, o levava a ter um papel de
domínio e liderança sobre a criação como “protótipos” do Deus Soberano que governa sobre
todo cosmo. Assim, então, Kaiser Jr nos diz:
É somente no futuro, no Novo Testamento, que o conteúdo desta imagem ficará mais
claro em termos de definições (p. ex, a “imagem de Deus” incluirá “conhecimento”,
Cl 3.10; e “justiça e santidade”, Ef4.24). [...] Vemos que são expressos em conceitos
tais como a possibilidade da comunhão e comunicação com Deus, o exercício de
domínio e liderança responsáveis sobre a criação que pertence a Deus, e o fato de que,
de algum modo que ainda não foi especificado, Deus é o protótipo do qual o homem
e a mulher são meras cópias, réplicas (selem “estátua ou cópia lavrada ou trabalhada”)
e fac-símiles (demût, “semelhança”). (KAISER JR, 2011, p. 38-39).

Portanto, após verificarmos as abordagens teológicas quanto ao significado de


“imagem” de Deus no homem, conforme as obras supracitadas, notamos que o sentido de
“imago dei” está relacionado em que o ser humano é o representa de Deus sobre a ordem criada,
privilégio dado graciosamente pelo seu Criador, que pôs o homem como o “rei-servo” sobre o
cosmo a fim de que toda criação viesse a glorificar o seu Criador por meio do domínio da
humanidade. Quanto a isso, o erudito Clines postula que:
O ser humano não é criado na [be essentiae], já que Deus não tem uma imagem de si
mesmo, mas como imagem de Deus, ou, melhor, para ser a imagem de Deus, isto é,
para servir de representante no mundo criado do Deus transcendente que permanece
fora da ordem do mundo. O fato de o ser humano ser à imagem de Deus significa que
ele é o representante visível, corpóreo, do Deus invisível e incorpóreo; ele é
representante e não representação, pois a idéia de retratar é secundária no significado
da imagem. O termo “semelhança”, por sua vez, é uma confirmação de que o ser
humano é um representante adequado e fiel de Deus na terra. Todo o ser humano é a
imagem de Deus, sem distinção de espírito e corpo. Toda a humanidade, sem
distinção, é a imagem de Deus. (CLINES APUD SMITH, 2001, p. 234).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de analisarmos os conceitos teológicos de “imagem” de Deus no homem,


colocando lado a lado as principais obras de “Teologia Sistemática” e Teologia Bíblica”,
verificamos que os conceitos de ambas teologias não se anulam, pelo contrário, eles são
interdependentes. Vejamos, segundo a maiorias dos teólogos sistemáticos, a “imago dei” está
relacionada ao aspecto da espiritualidade, racionalidade, santidade, moralidade e capacidade do
homem de se comunicar e se relacionar com Deus, por possuir tais atributos que o Criador os
comunicou.
Por outro lado, os teólogos bíblicos procuraram dá um significado teológico a partir
duma hermenêutica histórico-gramatical-cultural, ou seja, como os leitores originais de Gênesis
entenderam a expressão “imagem” de Deus dentro do seu contexto histórico-cultural, daí o
porquê, as obras de “Teologia Bíblica” afirmam que o significado de “imago dei” refere-se ao
domínio do homem sobre a ordem criada como se fosse uma espécie de “rei” sobre a criação
que foi colocado para governá-la debaixo da soberania do seu Criador. Assim, conforme os
conceitos de “imagem” de Deus na “Teologia Bíblica”, Adão era um monarca sobre o cosmo
que representava e refletia fielmente a Deus.
Contundo, podemos nos questionar, será se tais conceitos se anulam ou se
complementam? Poderia o homem dominar sobre a criação e representar o seu Criador nela, se
não fosse um ser espiritual, intelectual e moral? Como o homem governaria a criação em nome
de Deus, se não tivesse a capacidade de relaciona-se e comunicar-se com Ele? Obviamente que
os termos não se anulam, conforme sugerimos na abordagem introdutória do presente trabalho,
entretanto, compreendemos que os termos teológicos da “Teologias Sistemática” e “Teologia
Bíblica” se harmonizam na compreensão teológica do significado de “imago dei” no homem.
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