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Docência Plural – Formação

em Interculturalidade e
Bilinguismo

Eixo temático: Educação e Docência; Políticas Públicas; Direitos


Humanos; Ética e Cidadania.
Fundação Escola Nacional de Administração Pública

Diretoria de Desenvolvimento Profissional

Conteudista/s
Edleise Mendes (conteudista, 2023);
Eliana Sturza (conteudista, 2023);
Isis Berger (conteudista, 2023);
Luana Ferreira Rodrigues (conteudista, 2023).

Enap, 2023
Fundação Escola Nacional de Administração Pública
Diretoria de Desenvolvimento Profissional
SAIS - Área 2-A - 70610-900 — Brasília, DF
Sumário
Módulo 1: Fronteiras Linguísticas e Culturais....................................................... 7
Unidade 1: Línguas, Culturas, Fronteiras e suas Complexidades ..................... 7
1.1 Território, Territorialidade e Comunidades Linguísticas ...................................... 7
1.2 Fronteiras Linguísticas, Culturais, Econômicas e Simbólicas ............................... 9
1.2.1 Em Busca de Definições ....................................................................................... 10
1.2.2 Que Tal Pensar na Prática? ................................................................................... 14
Referências ............................................................................................................. 17

Unidade 2: Fronteiras e Políticas Territoriais ..................................................... 19


2.1 Formação e Estabelecimento das Fronteiras Sul-Americanas: entre Tratados e
Conflitos ........................................................................................................................... 19
2.2.1 Arco Norte .............................................................................................................. 26
2.2.2 Arco Central ........................................................................................................... 28
2.2.3 Arco Sul ................................................................................................................... 31
Referências ............................................................................................................. 34

Unidade 3: Fronteiras, o Desenvolvimento Social e a Educação....................... 35


3.1 Fronteira como Problema e Espaço de Controle.................................................. 35
3.2 Fronteira como Recurso para o Desenvolvimento Social .................................. 39
3.3 E os Possíveis Caminhos? ........................................................................................ 43
Referências ............................................................................................................. 50

Módulo 2: Interculturalidade e Educação Linguística Plural............................. 52


Unidade 1: Interculturalidade: Conceitos Fundamentais ................................. 52
1.1 Conceitos de Língua, Cultura e Repertório Linguístico na Construção da
Interculturalidade ............................................................................................... 52
1.1.2 A Ideia de Língua como Prática Social ................................................................ 53
1.1.3 A Cultura como Rede de Significados ................................................................. 56
1.1.4 Repertórios Linguísticos e Contextos Bi/multilíngues ...................................... 58
1.2 Mitos e Conceitos Sobre a Interculturalidade ....................................................... 60
A Interculturalidade como Movimento de Vida .......................................................... 64
1.1.5 Língua, Cultura e Interculturalidade – A Construção de um Terceiro Lugar .. 65
Referências ............................................................................................................. 69
Unidade 2: A Educação Linguística Intercultural .............................................. 70
2.1 Educação Linguística Intercultural e seus Elementos Constitutivos .................. 70
2.1.1 Educação Linguística Intercultural e Formação de Professores para uma
Educação Plural .............................................................................................................. 75
Referências ............................................................................................................. 79

Unidade 3 - A Interculturalidade nas Práticas Educativas Plurais ................... 81


3.1 Experiências Interculturais: Análise e Reflexão sobre Situações-Problema ..... 81
3.1.1 Experiências e Memórias de Professores(as) de Línguas ................................ 82
3.1.2 A Avaliação como Prática Intercultural: Análise de Atividades Avaliativas ..... 87
3.2 A Interculturalidade na Prática: Materiais e Recursos Didáticos ........................ 91
Referências ............................................................................................................. 95

Módulo 3: Fenômenos Linguísticos das Fronteiras Hispano-Brasileiras.......... 98


Unidade 1: A Constituição do Espaço Multilíngue nas Fronteiras .................. 98
1.1 Situações do Bilinguismo: Português/Espanhol ................................................. 101
1.2 Espaço Multilíngue: Outras Línguas nas Fronteiras da América do Sul .......... 108
Referências ........................................................................................................... 114

Unidade 2: Estratégias Comunicativas no Contexto Multilíngue .................. 116


2.1 Estratégias Comunicativas nas Práticas Sociais no Contexto Multilíngue ....... 118
Glossário......................................................................................................................... 129
Referências ........................................................................................................... 131

Unidade 3: Fenômenos Linguísticos na Cultura Fronteiriça ........................... 133


3.1 Repertório Linguístico dos Fronteiriços................................................................ 133
3.2 Línguas de Fronteira nas Expressões Culturais .................................................. 134
Referências ........................................................................................................... 141

Módulo 4: Gestão de Línguas na Escola em Contextos Plurais....................... 143


Unidade 1: Políticas Linguístico-educacionais e Gestão de Línguas .............. 143
1.1 Multilinguismo, Políticas Linguísticas e Políticas Linguístico-educacionais ... 144
1.2 Gestão de Línguas na Escola ................................................................................. 151
Referências ........................................................................................................... 156

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Unidade 2: Educação Bi/Multilíngue: Conceitos e Modelos ............................ 158
2.1. O que é Educação Bilíngue?  ................................................................................ 158
2.2 Modelos de Educação Bilíngue ............................................................................ 161
2.2.1 Educação Multilíngue para as Demandas do Século XXI ................................ 165
Referências ........................................................................................................... 168

Unidade 3: A Promoção de Línguas e Culturas na Escola ................................ 170


3.1. Desafios da Educação em Contextos Plurais ..................................................... 170
3.2 Ações em Contextos Multilíngues de Fronteira .................................................. 172
3.2.1 O Programa Escolas Interculturais de Fronteira ............................................. 172
3.3 Princípios para a Promoção de Línguas e Culturas na Escola .......................... 176
Referências ........................................................................................................... 182

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Apresentação e Boas-vindas

Seja bem-vindo e bem-vinda. Neste curso você irá explorar uma série de temas
ligados a uma docência plural. Aqui serão debatidos temas como as fronteiras
linguísticas e culturais, a interculturalidade e a educação linguística, assim como os
fenômenos linguísticos das fronteiras hispano-brasileiras, as políticas linguísticas-
educacionais e as práticas pedagógicas para contextos plurais.

Bons estudos!

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Módulo

1 Fronteiras Linguísticas e Culturais


Neste módulo você irá explorar os conceitos de fronteira, território e territorialidade,
tratando, também, sobre as fronteiras simbólicas e seus múltiplos funcionamentos.
Além disso, terá a oportunidade de se aprofundar e compreender o potencial das
fronteiras linguísticas e culturais enquanto recurso para o desenvolvimento social.

Siga para entrar em contato com as reflexões contidas na unidade 1.

Unidade 1: Línguas, Culturas, Fronteiras e suas


Complexidades

Objetivo de aprendizagem

Compreender conceitos relevantes sobre as fronteiras linguísticas e culturais como um


espaço complexo.

Você já parou para pensar como o território e as línguas estão


relacionados? Partindo dessa ideia, comece esta unidade conhe-
cendo um pouco sobre o conceito de território, territorialidade e
territórios linguísticos.

1.1 Território, Territorialidade e Comunidades Linguísticas

Comumente definido como uma grande extensão de terra, o território pode ser
visto desde distintas óticas das áreas do conhecimento que se debruçam sobre seu
estudo, em especial pela Geografia Política.Tendo em vista essa definição, é possível
pensar em quatro dimensões básicas que orientam as diferentes concepções sobre
o território, de acordo com Haesbaert (2016).

Política ou jurídico-política
Visão do território como um espaço delimitado e sob controle, sobre o qual
se exerce algum tipo de poder que pode ser o poder político do Estado ou
de outros agentes.

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Cultural ou simbólico-cultural
Nesse caso, o território é visto desde uma perspectiva de valorização e
apropriação simbólica de um determinado grupo em relação ao espaço que
habita, priorizando uma noção mais simbólica e subjetiva.

Econômica
Apresenta uma noção menos difundida, com foco no território como recurso
para as relações econômicas, tendo como base o conflito entre as classes
sociais e a relação entre capital e trabalho.

Natural(ista)
Como o nome indica, aqui a noção de território se baseia nas relações entre
natureza e sociedade.

Em busca de uma concepção mais ampla podemos unir essas dimensões e propor
uma definição mais integradora que vê o território como um espaço de poder
político significado simbólica e culturalmente pelos grupos que o habitam e que
configura uma importante fonte de recursos naturais e econômicos.

Esse território é marcado pelas territorialidades que ocupam esse espaço, uma
vez que a territorialidade se constrói a partir dos usos que as pessoas fazem do
espaço em que vivem, das relações econômicas e culturais que estabelecem, dando
significado a esse lugar.

Essas territorialidades estão diretamente relacionadas ao estabelecimento dos


territórios linguísticos, uma vez que um faz parte do outro. Ao estabelecer relações
culturais e econômicas em seus territórios, as pessoas lançam mão de seus
repertórios linguísticos, demarcando assim seus territórios linguísticos.

Sobre os territórios linguísticos cabe a definição proposta por Berger (2015, p. 46):

esferas de uso das línguas, não somente as demarcadas


pelo poder exercido via instrumentos legais ou por
intermédio de instâncias governamentais, mas
também por outros agentes e grupos que, no campo das
relações, agem sobre os usos das línguas, demarcando
espaços de controle e fronteiras relacionais entre os
grupos que delas compartilham, de forma descontínua.

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Assim, é possível compreender que o território pode ser demarcado a partir de
critérios geopolíticos determinados pelos Estados Nacionais, porém também é
preciso refletir sobre as territorialidades que constituem esses espaços e que
vão influenciar na demarcação simbólica e fluida dos territórios fronteiriços,
representadas pelas línguas que são faladas nas diferentes situações e práticas
sociais dos grupos que ali transitam.

Para refletir um pouco mais sobre o conceito de território linguístico, assista a


videoaula a seguir:

Videoaula: O Conceito de Território Linguístico

1.2 Fronteiras Linguísticas, Culturais, Econômicas e Simbólicas

Mas o que são as fronteiras?

As definições mais gerais dispostas nos dicionários trazem alguns termos em comum
quanto ao vocábulo “fronteira”:

Chuva de ideias comuns sobre a definição de fronteira.


Elaboração: CEPED/UFSC (2023).

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A fronteira costuma ser definida como um espaço de divisão, separação, imposição
de limites e controle entre dois territórios, conforme observa-se na Constituição
Federal do Brasil, de 1988:

Art. 20

§ 2º A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de


largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada
como faixa de fronteira, é considerada fundamental
para defesa do território nacional, e sua ocupação e
utilização serão reguladas em lei.

Vemos, portanto, que o Estado brasileiro reconhece oficialmente a fronteira como


esse espaço importante para a manutenção da soberania territorial nacional. No
entanto, é preciso conhecer outros aspectos intrínsecos à fronteira que fazem com
que esse espaço seja tão complexo e relevante para pensar políticas em prol do bi/
multilinguismo.

Portanto é hora de buscar algumas definições.

1.2.1 Em Busca de Definições

Ao longo do tempo pesquisadores de distintas áreas do conhecimento buscaram


definir as fronteiras com base nos critérios mais adequados à suas áreas de pesquisa.
Se sobressaem estudos da área da Geografia Política, representada por cientistas
como Ratzel (1897), Ancel (1930) e Raffestin (1993).

Friedrich Ratzel (1897) vai localizar a fronteira como subordinada ao Estado,


indissociável das questões territoriais, classificando-as em naturais, políticas e
artificiais, conforme as definições a seguir (CATAIA, 2008).

Naturais
• marcos físicos: rios, montanhas, reservas, áreas protegidas;
• boas: oferecem boas condições de proteção do Estado;
• más: oferecem más condições para a proteção do Estado.

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Políticas
• simples: não se limita com outro território político;
• dupla: limita dois territórios nacionais;
• fechada: fronteiras dentro de um território político;
• descontínua: são parte de um Estado mesmo estando fora de
seus domínios territoriais (ex.: Brasil faz fronteira com a União
Europeia ao considerarmos os limites com a Guiana Francesa);
• deficiente: deficiências de demarcações anteriores que levam
a conflitos;
• elástica: resultam de erros cartográficos levando ao aumento
ou diminuição de um território.

Artificiais
• demarcadas: fronteiras demarcadas por tratados, por exemplo.

Jacques Ancel (1930) vê a fronteira como um espaço de pressão e tensão política e as


classifica em fronteiras plásticas, físicas, modernas e humanas. Entre as fronteiras
humanas, aponta duas subdivisões: fronteiras de pressão, representadas por
isóbaras políticas e as fronteiras de civilização, representadas pelas religiões e
pelas línguas, por exemplo.

Claude Rafesttin (1993), por sua vez, traz a noção de fronteira associada à uma zona
camuflada em linha, propondo a divisão entre fronteiras internas e externas.

Nas perspectivas apresentadas é possível observar que a busca por uma definição
de fronteira está atravessada por questões que remetem aos conceitos de Estado,
território, linhas e zonas de delimitação político-administrativa.

Porém, chama a atenção a noção de fronteiras de civilização propostas por Ancel


(1930) ao incluir as línguas como parte da classificação das fronteiras humanas.

Veja outras definições e conceitualizações em torno da fronteira que serão adotadas


e relevantes para todo seu estudo:

“Fronteiras são fator e contingência da existência dos


Estados Nacionais e, antes deles, com menor precisão,
de diversos tipos de ordens sociais, das tribos aos
impérios multiétnicos. Marcam o alcance de um
poder, permitem medir a capacidade de imposição da
violência legítima, definem a inclusão e a exclusão, o

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dentro e o fora, são o termômetro para as mudanças na
balança da hegemonia. Definem, enfim, uma grandeza
essencial para a existência humana: o território”
(OLIVEIRA, 2016, p. 59).

E, também:

“As zonas de fronteiras são campos de força e choques


políticos e simbólicos, mas também de variadas
misturas culturais e formas de integração. Essa
complexa realidade fronteiriça não pode ser apreendida
por meio de categorias sociológicas separadas. Os
próprios conceitos se misturam e entram em tensão
na tentativa de compreensão do fenômeno fronteiriço”
(ALBUQUERQUE, 2008, p. 56, grifo nosso).

As definições dispostas acima se relacionam a três tipos de fronteira que são de


grande relevância para os seus estudos: as fronteiras geopolíticas, as fronteiras
simbólicas e as fronteiras culturais.

Pensar a fronteira desde uma perspectiva geopolítica implica compreender as


relações de poder entre os estados nacionais para a manutenção de seus territórios,
jogos de disputa e tensões que vão configurar os limites políticos do espaço
fronteiriço. E essas tensões também se relacionam a questões simbólicas e culturais
presentes nesse espaço entre os sujeitos que o habitam.

Veja na imagem a seguir, uma síntese de possíveis definições para as fronteiras


simbólicas, culturais e linguísticas:

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Outros tipos de fronteira.
Elaboração: CEPED/UFSC (2023).

Diante do exposto, é possível afirmar que fronteiras linguísticas vão estar


diretamente relacionadas aos territórios linguísticos mencionados anteriormente,
uma vez que os limites fixados para o início e fim de um território político não irá
coincidir com os limites linguísticos estabelecidos pelas fronteiras simbólicas e
culturais dos grupos que vivem nesses espaços:

“A fronteira linguística, como o território que ela


circunscreve, não será apenas resultado e um dado,
mas uma produção determinada por uma socialização
e um posicionamento por parte dos diversos atores
sociais envolvidos” (VIAUT, 2004, p. 7, tradução nossa).

Além disso:

“A língua é um dos parâmetros paradoxais da fronteira


– a do Estado-nação – contribuindo tanto para
determiná-lo como sendo influenciado por sua

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presença ou transcendendo-o. A fronteira constrói ou
modifica a língua tanto quanto o inverso” (VIAUT, 2004,
p. 7, tradução nossa).

Refletindo sobre as ideias de Viaut (2004), é possível pensar que as relações entre
língua e fronteira são indissolúveis e as fronteiras linguísticas nos territórios
fronteiriços se (re)constroem na interação social, na escolha dos repertórios
linguísticos daqueles que se movem em determinado espaço.

Outra forma de se classificar as fronteiras é em relação ao


seu acesso. Dizemos que uma fronteira é seca quando o limite
divisório entre os países não possui rios ou lagos. Enquanto que,
quando a linha passa por esses limites naturais, é chamada de
fronteira fluvial.

Para refletir um pouco mais sobre as fronteiras, assista a videoaula a seguir:

Videoaula: As Fronteiras

1.2.2 Que Tal Pensar na Prática?

Em uma cidade localizada na fronteira


entre Brasil e Uruguai, por exemplo,
não são os limites territoriais
demarcados por esses dois Estados
que irão definir até onde chega o
português e a partir de onde se fala
o espanhol, ou se um membro dessa
comunidade se vê como um uruguaio
ou brasileiro, ou um doble chapa. Essas
fronteiras subjetivas serão definidas
a partir das práticas sociais que irão
forjar as identidades dos membros
Bandeiras do Brasil e do Uruguai. dessas comunidades.
Elaboração: CEPED/UFSC (2023).

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Outro exemplo são as fronteiras culturais e linguísticas que se constroem no contexto
migratório de pessoas expulsas de seus territórios em função de diferenças culturais
e simbólicas entre os demais grupos, como é o caso da perseguição religiosa a
indivíduos que possuem uma cosmovisão que difere de uma religião hegemônica.

Sobre esse contexto migratório, Moreira (2012, p. 23) afirma que:

os motivos que os levam a fugir de seus países


abarcam conflitos intra ou interestatais, provocados
por questões étnicas, religiosas, culturais, políticas e
econômicas, assim como regimes repressivos e outras
situações de instabilidade política, violência e violações
de direitos humanos.

Esse exemplo vai ao encontro do que está sendo discutido quando é levado em
consideração que essas pessoas vivem em seus territórios de origem tensões e
conflitos que surgem das fronteiras simbólicas, culturais e étnicas que vão levar ao
deslocamento forçado de um contingente de pessoas.

E essa migração forçada vai levar à formação de outras fronteiras, que é o que
acontece nos casos dos campos de refugiados ao longo das fronteiras da União
Europeia, por exemplo.

Esses campos de refugiados são exemplos de espaços multiculturais onde convivem


indivíduos de diferentes nacionalidades, línguas e culturas. Nesse espaço, fronteiras
linguísticas são construídas, derrubadas e ressignificadas, a partir do momento
em que diferentes grupos que ali convivem precisam lançar mão de diferentes
repertórios comunicativos para a interação social.

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Refugiados.
Fonte: Freepik (2023).

O Brasil também tem recebido grupos de migrantes oriundos de distintos países, mas
cabe destacar a chegada dos haitianos e venezuelanos, em função do quantitativo.
Hoje, caminhando em um bairro da cidade de Manaus, por exemplo, é possível
perceber os distintos territórios linguísticos que se formaram com a presença desses
grupos de imigrantes.

Para entender um pouco mais sobre as fronteiras linguísticas e as línguas na fronteira


e sobre essa visão de língua como problema, é preciso compreender como se deu o
estabelecimento das fronteiras geopolíticas entre o Brasil e os países com os quais
se limita desde os primórdios da ocupação no período colonial.

Nessa unidade você conheceu alguns conceitos importantes para compreender


os estudos direcionados para a fronteira, entendendo-a a partir de diferentes
concepções e visões. Viu que falar sobre a fronteira não significa apenas um lugar
de divisão, limite, controle territorial, uma vez que a fronteira vai além de questões
meramente políticas ou geográficas, ao falar sobre as fronteiras simbólicas,
linguísticas e culturais.

Você chegou ao final desta Unidade de estudo. Caso ainda tenha dúvidas, reveja o
conteúdo e se aprofunde nos temas propostos. Até a próxima! 

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Referências
ALBUQUERQUE, J. L. C. Fronteiras e identidades em movimento: fluxos migratórios
e disputa de poder na fronteira Paraguai-Brasil. Cadernos CERU, São Paulo, v. 19, n.
1, p. 49-63, 2008. DOI: 10.1590/S1413-45192008000100004. Disponível em: https://
www.revistas.usp.br/ceru/article/view/11843. Acesso em: 2 mar. 2023.

ANCEL, J. Geopolitique. Paris: Delagrave, 1930.

BERGER, I. R. Gestão do multi/plurilinguismo em escolas brasileiras na fronteira


Brasil – Paraguai: um olhar a partir do Observatório da Educação na Fronteira. 2015.
Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Comunicação e Expressão, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988, 292 p.

CATAIA, M. A. Fronteiras: territórios em conflito. In: Encontro Paranaense de


Estudantes de Geografia (EPEG), 13., 2008, Cascavel. Anais do XIII Encontro
Paranaense de Estudantes de Geografia (EPEG). Cascavel: Universidade Estadual
do Oeste do Paraná, 2008. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/
geoemquestao/article/download/4296/3309/15714. Acesso em: 2 mar. 2023.

CINTRA, J. P. O mapa das cortes e as fronteiras do Brasil. Revista Bol. Ciênc. Geod.,
Curitiba, v. 18, n. 3, p. 421-445. 2012. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/bcg/
article/view/29209/19006. Acesso em: 2 mar. 2023.

COSTA, W. M. O Estado e as políticas territoriais no Brasil. São Paulo: Contexto,


1988.

FREEPIK COMPANY. [Banco de Imagens]. Freepik, Málaga, 202 3. Disponível em:


https://www.freepik.com/. Acesso em: 6 mar. 2023.

HAESBAERT. R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à


multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA ESTATÍSTICA. Mapa dos municípios da


faixa de fronteira. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Disponível em: https://geoftp.ibge.
gov.br/organizacao_do_territorio/estrutura_territorial/municipios_da_faixa_de_
fronteira/2021/Municipios_da_Faixa_de_Fronteira_2021.pdf. Acesso em: 2 mar.
2023.

MOREIRA, J. B. Refugiados no Brasil: reflexões acerca do processo de integração local.

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REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana , v. 22, n. 43, p. 85–98, jul.
2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/remhu/a/zCtfF6R6PzQJB6bSgts8YWF/
abstract/?lang=pt#. Acesso em: 2 mar. 2023.

OLIVEIRA, G. M. de. Línguas de fronteira, fronteiras de línguas: do multilinguismo


ao plurilinguismo nas fronteiras do Brasil. Revista GeoPantanal, Corumbá, v. 11,
n. 21, p. 52-72, jul./dez. 2016. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/
revgeo/article/view/2573. Acesso em: 2 mar. 2023.

PESAVENTO, S. J. Fronteiras culturais em um mundo planetário - paradoxos da(s)


identidade(s) sul-latino-americana(s). Revista del CESLA, Varsóvia, n. 8, p. 9-19, jan.
2006. Disponível em: https://www.revistadelcesla.com/index.php/revistadelcesla/
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RAFFESTIN, C. Por Uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.

RATZEL, F. La Géographie Politique. Paris: Fayard, 1987(1897).

STURZA, E. R. Línguas de fronteira e política de línguas: uma história das ideias


linguísticas. 2006. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da
Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.

VIAUT, A. La frontière linguistique de la ligne à l‘espace: éléments pour une


schématisation. Glottopol - Revue de sociolinguistique em ligne, Ruão, n. 4, p.
6-20, 2004. Disponível em: http://glottopol.univ-rouen.fr/telecharger/numero_4/
gpl402viaut.pdf. Acesso em: 3 mar. 2023.

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Unidade 2: Fronteiras e Políticas Territoriais 

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de reconhecer os processos de formação e


estabelecimento das fronteiras sul-americanas.

Nesta unidade você vai ver um breve resumo que vai passar pelas principais políticas
territoriais que se relacionam ao atual estabelecimento das fronteiras geopolíticas brasileiras.

2.1 Formação e Estabelecimento das Fronteiras Sul-Americanas:


entre Tratados e Conflitos

Agora é hora de voltar um pouco no tempo para conhecer as primeiras políticas


territoriais estabelecidas durante a colonização das Américas.

Ocupar o desconhecido território das Américas não foi uma tarefa simples para os
portugueses e espanhóis durante o período colonial. Entre as principais dificuldades
é possível elencar a dificuldade de acesso e penetração do território que desencadeou
uma carência populacional e a dificuldade de controle militar dos territórios e a
proteção contra outras invasões estrangeiras.

Ao refletir sobre o período colonial e a demarcação de limites, o primeiro tratado que


vem à memória é o Tratado de Tordesilhas, firmado entre Portugal e Espanha em
1494, com o objetivo de dividir as recém “descobertas” terras durante a expansão
marítima dos dois reinos.

Porém, depois, com a chegada dos portugueses ao Brasil, as disputas se tornaram


mais acirradas e várias negociações foram feitas para se chegar aos limites entre as
colônias portuguesas e espanholas.

Veja os principais tratados que visaram pôr fim aos conflitos territoriais no período
colonial:

Tratado de Utrech - (1713 e 1715)

Assinado como forma de encerrar a Guerra de Sucessão Espanhola. O


primeiro, em 1713, anulou o Tratado de Tordesilhas e estabeleceu limites
para as fronteiras entre as colônias espanholas, portuguesas no que
hoje corresponde à região norte do Brasil, sendo as duas margens do
Amazonas pertencentes a Portugal. O segundo, em 1715, estabeleceu os

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limites das colônias ao sul, quando o limite da coroa portuguesa passa a
ser o rio da Prata e a Espanha devolve a Colônia do Sacramento a Portugal.

Tratado de Madri - (1750)

Firmado entre Portugal e Espanha no ano de 1750 com o objetivo de definir


os limites territoriais terrestres e marítimos das coroas, demarcando as
fronteiras nas colônias americanas. O tratado foi elaborado com base no
princípio do uti possidetis, ou seja, aquele que ocupa a terra é o verdadeiro
dono. O Mapa das Cortes, elaborado em 1749, foi usado como documento
que demonstrava a ocupação por parte dos súditos portugueses.

Tratado de San Ildefonso - (1777)

Confirmou o Tratado de Madri e redefiniu a posse da Ilha de Santa Catarina,


voltando ao poder da Coroa Portuguesa, enquanto a Colônia do Sacramento
e a região dos Sete Povos das Missões passava a pertencer à Coroa Espanhola.

Tratado de Badajoz - (1801)

Devolve os Sete Povos das Missões aos domínios portugueses.

A título de curiosidade, conheça o Mapa das Cortes, também denominado de Mapa


dos confins do Brasil:

Mapa dos confins do Brasil com as terras da coroa de Espanha na américa meridional – “Mapa das Cortes” (1893).
Fonte: Confins (2019).

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É importante destacar que o impacto das políticas territoriais do período colonial
para os povos originários se reflete até a atualidade.

As estratégias de ocupação do que hoje corresponde à região


norte do Brasil passaram pela política de “pacificação dos
indígenas” através das missões que deram um grande poder de
controle do território do Vale do Amazonas aos missionários de
distintas ordens religiosas.

De acordo com Costa (1988, p. 27-30), antes do estabelecimento dos tratados mencionados,
uma das iniciativas estabelecidas pelos portugueses para garantir a ocupação territorial
no período colonial foi o sistema de colonização semiprivada que garantia:

• concessão de terras a colonos;

• autonomia dos colonos sobre as terras concedidas;

• ocupação do litoral até a Foz do Amazonas, com a fundação de Belém em


1616;

• instalação de um sistema de pecuária extensiva no sertão nordestino;

• estabelecimento de missões dos jesuítas no extremo norte;

• abertura de vias de circulação no sudeste pelos bandeirantes;

• povoamento do litoral sul em confronto com os espanhóis.

Essas medidas visaram garantir o domínio territorial dos portugueses sobre a colônia,
mas apesar disso e dos tratados firmados, os limites dos territórios entre Portugal,
Espanha e França não foi um tema pacificado até a Proclamação da República,
quando se fizeram necessárias novas negociações, representadas pelo Barão do Rio
Branco, em questões relacionadas ao território de Palmas com a Guiana Francesa,
as fronteiras com a Bolívia (incluindo a anexação do Acre ao Brasil em 1903), Peru,
Colômbia e Venezuela.

A partir do período do Estado Novo, podemos destacar um caráter mais nacionalista


em relação ao território com a implementação de projetos nacionais que podem ser
verificados a seguir:

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Década de 1930

Instituição de projetos nacionais em prol da integração nacional. Como por


exemplo o projeto político da “Marcha para o Oeste”, lançado em 1938,
durante o governo de Getúlio Vargas.

Década de 1960

No período da Ditadura Militar, o território passou a ser visto desde a ótica


da regionalização como ação em prol do desenvolvimento industrial e
econômico do Estado e da iniciativa privada.

Década de 1980

Segundo Pereira (2007), há um avanço da ideologia que vai levar a uma


gestão neoliberal do território, representada pelas redes de infraestrutura
(por exemplo, construção de estradas, ferrovias, entre outras) que se
baseavam nos interesses do mercado e não nas necessidades dos usuários
do território.

Até o momento você viu como se estruturaram as principais políticas de definição


do território brasileiro a partir de uma perspectiva política e administrativa, que
priorizou a garantia da soberania e manutenção dos domínios de poder do Estado,
como é possível verificar até os dias atuais. Essas políticas em relação ao território
fronteiriço vão revelar a ideia da fronteira como um problema que precisa ser
controlado desde o ponto da segurança nacional.

A seguir, veja como as fronteiras brasileiras são geridas atualmente pelo Estado
brasileiro.

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Arcos da faixa de fronteira.
Fonte: BRASIL (2005).

O Brasil possui em sua fronteira um total de 588 municípios em 11 estados de três


regiões, sendo 122 limítrofes e 33 cidades gêmeas. Desta forma, a faixa de fronteira
ocupa 27% do território brasileiro e se limita com praticamente todos os países da
América do Sul.

Cidades gêmeas: de acordo com o extinto Ministério da Integração


Nacional, são consideradas gêmeas as cidades, com população
superior a 2 mil habitantes, localizadas na linha da fronteira,
com grande possibilidade de integração cultural e econômica.

Na próxima figura, você pode observar a localização das cidades gêmeas e demais
municípios localizados na faixa de fronteira:

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Municípios da faixa de fronteira.
Fonte: IBGE (2021).

A definição dos arcos foi proposta após estudos realizados pelo Programa de
Promoção do Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PPDFF), do Ministério da
Integração Nacional, com base no posicionamento geográfico, em aspectos culturais
e étnicos de formação da população e em indicadores socioeconômicos.

Em 2010, um decreto de lei criou a Comissão Permanente para o Desenvolvimento

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e a Integração da Faixa de Fronteira (CDIF), com o objetivo de “propor medidas e
coordenar ações que visem ao desenvolvimento de iniciativas necessárias à atuação
do Governo Federal naquela região” (BRASIL, 2010). No ano de 2019 esse decreto
foi revogado pelo Decreto Nº 9.961/2019 e a CDIF passou a integrar o Ministério
do Desenvolvimento Regional, em função da extinção do Ministério da Integração
Nacional.

Atualmente essa comissão é composta por representantes de distintos órgãos da


federação e tem como competência as seguintes ações:

I – definir, respeitadas as especificidades de atuação dos órgãos competentes,


critérios de ação governamental conjunta para o desenvolvimento e a
integração na área abrangida pela faixa de fronteira, de modo a estimular a
integração das políticas públicas e a parceria com os demais entes públicos
para promover a complementaridade das ações;

II – colaborar com a Câmara de Políticas de Integração Nacional e


Desenvolvimento Regional no âmbito de suas competências;

III – propor ações que visem ao desenvolvimento regional que considerem a


importância de programas para a integração fronteiriça e para a integração
sul-americana;

IV – zelar pela melhoria da gestão multissetorial para as ações do Governo


federal no apoio ao desenvolvimento e à integração da área abrangida pela
faixa de fronteira;

V – buscar a articulação com as ações do Comitê-Executivo do Programa


de Proteção Integrada de Fronteiras e submeter à apreciação do referido
Comitê-Executivo as propostas de ações de articulação com o Programa no
âmbito de suas competências;

VI – propor o desenvolvimento de sistema de informações para o


gerenciamento das ações a que se refere o inciso III;

VII – apresentar planos regionalizados de desenvolvimento e integração


fronteiriços;

VIII – interagir com núcleos regionais estabelecidos para debater questões


de desenvolvimento e integração fronteiriços; e

IX – emitir pareceres e recomendações sobre questões do desenvolvimento


regional na faixa de fronteira (BRASIL, 2019).

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Desta forma, a CDIF continua sendo um importante instrumento para pensar políticas
voltadas para o desenvolvimento das fronteiras, assim como o fez ao propor a organização
das fronteiras em arcos.

Para refletir um pouco mais sobre os arcos, assista a videoaula a seguir:

Videoaula: Os Arcos

Que tal conhecer esses arcos?

2.2.1 Arco Norte

Observe a imagem a seguir:

Arco Norte: Tipologia Básica das Sub-regiões.


Fonte: BRASIL (2005).

O arco norte representa 12% da faixa de fronteira brasileira e é considerado o “arco


indígena” em função de possuir em seu território o maior contingente de terras e
povos indígenas. Compreende um total de 71 municípios localizados em 5 estados
e se limita com 7 países: Bolívia, Colômbia, Guiana Francesa, Guiana Inglesa,
Suriname, Peru e Venezuela.

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Esses municípios fazem parte de seis sub-regiões.

Oiapoque-Tumucumaque
Considerada a maior em superfície da Faixa de Fronteira, possui 350 mil km2,
está localizada na fronteira entre o Brasil, as Guianas e o Suriname. Abrange
dezessete municípios nos Estados do Amapá, Pará, Roraima e Amazonas,
banhados pelos rios Oiapoque, Jarí e Trombetas: Caroebe, São João da
Baliza e São Luiz do Anauá, no Estado de Roraima; Oiapoque, Laranjal do
Jarí, Pedra Branca do Amapari, Serra do Navio, Ferreira Gomes, Pracuúba,
Calçoene, Amapá no Estado do Amapá; Alenquer, Almeirim, Faro, Oriximiná,
Óbidos no Estado do Pará; Urucará, Nhamundá, no Estado do Amazonas.

Campos do Rio Branco


Nessa sub-região está localizada a demarcada Terra Indígena Raposa/
Serra do Sol. Abrange os municípios de Boa Vista, Bonfim, Cantá, Caracaraí,
Mucajaí, Normandia, Rorainópolis, Pacaraima e Uiramutã (dentro da Terra
Indígena Raposa-Serra do Sol), no Estado de Roraima. É a sub-região com
melhor conexão rodoviária do arco norte, ligando as capitais Manaus e Boa
Vista através da BR-174, seguindo rumo à Venezuela e Costa do Caribe, e a
BR-401, que liga Boa Vista à Costa do Caribe, passando pela Guiana.

Parima Alto Rio Negro


Sub-região com mais de 70% de sua população formada por indígenas
(abriga diversas Reservas e Terras Indígenas nas proximidades dos rios
Negro, Japurá-Caquetá, Uaupés-Vaupés, sendo os principais povos: Tukano,
Baniwa, Baré, Karapanã, Maku, Miriti Tapuia, e Makuna). Se caracteriza pelo
difícil acesso. Compreende os municípios de Alto Alegre, Amajari e Iracema,
no Estado de Roraima; Barcelos, Japurá, São Gabriel da Cachoeira e Santa
Isabel do Rio Negro, no Estado do Amazonas.

Alto Solimões
Nessa sub-região está localizada a tríplice fronteira do Trapézio Amazônico,
formada por Brasil, Colômbia e Peru. Compreende municípios localizados
no estado do Amazonas: Tabatinga, Benjamim Constant, Atalaia do Norte,
São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Jutaí, Tonantins.

Alto Juruá
Se estende do sudoeste do Amazonas ao Estado do Acre, fazendo fronteira
com o Peru na zona-tampão do Parque Nacional da Serra do Divisor (AC).
Nessa sub-região se encontram os municípios de Envira, Guajará, Ipixuna,
no Estado do Amazonas; Cruzeiro do Sul, Feijó, Jordão, Mâncio Lima, Manoel
Urbano, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter, Rodrigues Alves, Santa Rosa
do Purus e Tarauacá, no Estado do Acre.

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Vale do Acre-Alto Purus
Possui a menor densidade demográfica e compreende os municípios de
Acrelândia, Assis Brasil, Brasiléia, Bujari, Capixaba, Epitaciolândia, Plácido de
Castro, Porto Acre, Rio Branco, Sena Madureira, Senador Guiomar e Xapuri,
no Estado do Acre; Boca do Acre, Canutama, Lábrea e Pauini, no Estado
do Amazonas. Faz fronteira com o Peru e a Bolívia, através das cidades
gêmeas Assis Brasil (Brasil)-Iñapari (Peru)-Bolpebra (Bolívia) e Brasiléia/
Epitaciolândia (Brasil)-Cobija (Bolívia).

2.2.2 Arco Central

Observe a imagem a seguir:

Arco Central.
Fonte: BRASIL (2005).

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Uma das características mais relevantes do arco central é a sua localização, uma vez
que se encontra entre a Amazônia e a área Centro-Sul do Brasil, onde estão localizadas
as duas principais bacias hidrográficas da América do Sul: Bacia Amazônica e a Bacia
Paraná-Paraguai. Como vimos no mapa, se divide em oito sub-regiões, abrangendo
99 municípios e 17% da faixa de fronteira.

Madeira-Mamoré
Conectando o Vale do Amazonas e do Acre ao Sudeste do país através
da BR 364 e da hidrovia do Rio Madeira, essa sub-região se limita com
a Bolívia e compreende municípios localizados no estado de Rondônia:
Campo Novo de Rondônia, Buritis, Guajará-Mirim (cidade-gêmea), Nova
Mamoré e Porto Velho.

Fronteira do Guaporé
De perfil mais rural e com atividades econômicas incentivadas pelo
antigo modelo de estrutura fundiária herdado da ditadura militar,
também compreende municípios localizados em Rondônia como
Costa Marques, Seringueiras, São Miguel do Guaporé, Alvorada, Nova
Brasilândia d’Oeste, Novo Horizonte do Oeste, Rolim de Moura, Alta
Floresta d’Oeste, São Francisco do Guaporé, Alto Alegre dos Parecis,
Corumbiara, Cerejeiras, Pimenteiras do Oeste e Cabixi.

Chapada dos Parecis


Principal área produtora e exportadora de soja do país, essa sub-região
compreende os municípios de Chupinguaia, Colorado do Oeste, Parecis,
Pimenta Bueno, Primavera de Rondônia, Santa Luzia d’Oeste, São Felipe
do Oeste e Vilhena, no Estado de Rondônia; Comodoro, Conquista
d’Oeste, Campos de Júlio, Sapezal, Nova Lacerda e Tangará da Serra, no
Estado de Mato Grosso.

Alto Paraguai
Com baixa densidade demográfica, essa sub-região faz fronteira com
a Bolívia e abrange os municípios de Araputanga, Barra do Bugre,
Curvelândia, Figueirópolis d’Oeste, Glória d’Oeste, Indiavaí, Jauru,
Lambari d’Oeste, Mirassol d’Oeste, Pontes e Lacerda, Porto Esperidião,
Porto Estrela, Reserva do Cabaçal, Rio Branco, Salto do Céu, São José dos
Quatro Marcos, Vale de São Domingos, Vila Bela da Santíssima Trindade
no Estado de Mato Grosso.

Pantanal
Fazendo fronteira com o Chaco boliviano e com o Paraguai, essa sub-
região se destaca pela diversidade natural. Compreende os municípios
Barão de Melgaço, Cáceres, Nossa Senhora do Livramento e Poconé,

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no Estado de Mato Grosso; Aquidauana, Anastácio, Corumbá, Ladário,
Miranda, Porto Murtinho no Estado de Mato Grosso do Sul.

Bodoquena
Se destacam duas atividades em seus domínios: a criação extensiva de
gado do Pantanal e o cultivo da soja. A sub-região engloba os municípios
de Bela Vista, Bodoquena, Bonito, Caracol, Guia Lopes da Laguna, Jardim
e Nioaque, no Estado de Mato Grosso do Sul.

Dourados
Compreende os municípios de Caarapó, Deodápolis, Dois Irmãos do
Buriti, Douradina, Dourados, Fátima do Sul, Glória de Dourados, Itaporã,
Jateí, Laguna Carapã, Maracajú, Novo Horizonte do Sul, Rio Brilhante,
Sidrolândia, Taquarussu e Vicentina no Mato Grosso do Sul.

Cone Sul-mato-grossense
Abrange os municípios de Amambaí, Antônio João, Aral Moreira,
Coronel Sapucaia, Eldorado, Iguatemi, Itaquiraí, Japorã, Juti, Mundo
Novo, Naviraí, Paranhos, Ponta Porã, Sete Quedas e Tacuru, localizados
no Mato Grosso do Sul.

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2.2.3 Arco Sul

Observe a imagem a seguir:

Arco Sul.
Fonte: BRASIL (2005).

Representa 69% da faixa de fronteira brasileira e se divide em 3 sub-regiões,


abrangendo um total de 418 municípios.

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Sub-região Portal do Paraná
Localizada entre os arcos central e sul, essa sub-região se caracteriza
pela diversidade de fluxo migratório de sujeitos oriundos das regiões
nordeste e sudeste e membros da comunidade nipônica. Compreende
os municípios de Altônia, Cafezal do Sul, Cidade Gaúcha, Cruzeiro
do Oeste, Douradina, Esperança Nova, Guaíra, Icaraíma, Ivaté, Maria
Helena, Nova Olímpia, Perobal, Pérola, Querência do Norte, Rondon,
Santa Cruz do Monte Castelo, Santa Isabel do Ivaí, Santa Mônica, São
José do Patrocínio, Tapejara, Tapira, Umuarama, Vila Alta e Xambrê, no
Estado do Paraná.

Sub-região Vales Coloniais Sulinos


É a sub-região com um grande potencial industrial e a que engloba o
maior número de municípios localizados no Segmento Sudoeste do
Paraná, Segmento Oeste de Santa Catarina e Segmento Noroeste do
Rio Grande do Sul..

Sub-região Fronteira da Metade Sul do Rio Grande do Sul


Cortada por uma importante malha rodoviária e limitando-se com
Uruguai e Argentina, essa sub-região é a mais urbanizada do Arco Sul
e compreende os municípios de: Aceguá, Alegrete, Arroio do Padre,
Arroio Grande, Bagé, Barra do Quaraí, Caçapava do Sul, Cacequi,
Candiota, Canguçu, Capão do Sipó, Capão do Leão, Cerrito, Chuí, Dom
Pedrito, Encruzilhada do Sul, Garruchos, Herval, Hulha Negra, Itacurubi,
Itaqui, Jaguarão, Jagurari, Jarí, Lavras do Sul, Maçambara, Manoel Viana,
Morro Redondo, Nova Esperança do Sul, Pedras Altas, Pedro Osório,
Pelotas, Pinheiro Machado, Piratini, Quaraí, Rio Grande, Rosário do Sul,
Santa Margarida do Sul, Santa Vitória do Palmar, Santana da Boa Vista,
Sant’Ana do Livramento, Santiago, São Borja, São Francisco de Assis,
São Gabriel, São José do Norte, São Lourenço do Sul, São Sepé, São
Vicente do Sul, Tupanciretã, Turucu, Unistalda, Uruguaiana e Vila Nova
do Sul no Rio Grande do Sul.

A apresentação detalhada dos arcos nessa unidade teve como objetivo mostrar
a extensão e a complexidade da fronteira quando se utilizam critérios para a
organização e o planejamento desse território que vão além do estabelecimento
de limites geopolíticos ou de defesa da soberania nacional.

O espaço fronteiriço é construído, reconstruído e constrói


diferentes versões do território a partir dos sistemas simbólicos
que se desenvolvem nas práticas de interação dos grupos sociais
que compartilham esse espaço.

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É possível perceber, portanto, que a história do estabelecimento das fronteiras
no Brasil não pode ser vista apenas desde um ponto de vista geopolítico, uma
vez que a fluidez dos espaços transacionais reside justamente no movimento
das fronteiras simbólicas, étnicas e culturais e, claro, linguísticas. De modo que
a fronteira não é estática, a fronteira é viva e pulsante. É o espaço em que o
encontro das semelhanças e diferenças se cruzam e convergem na formação
de novas construções identitárias.

Afinal, como afirma Sturza (2006, p. 69)

“dizer e significar a fronteira, também, é dizer e


significar outras fronteiras”.

Nesta unidade você viu um breve panorama das principais políticas territoriais
desde o período colonial com o objetivo de compreender como seu deu a atual
delimitação político-administrativa das fronteiras brasileiras.

Pode conhecer os principais tratados e acordos firmados no período colonial e


as disputas entre Portugal e Espanha, as quais se conectam com as fronteiras
linguísticas que compartilhamos em nossa faixa de fronteira.

Viu também a atual definição das fronteiras com os Arcos Sul, Central e Norte e
as principais políticas de gestão da fronteira promovidas pelo Estado.

Você chegou ao final desta Unidade de estudo. Caso ainda tenha dúvidas, reveja
o conteúdo e se aprofunde nos temas propostos. Até a próxima! 

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Referências
BRASIL. Proposta de reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa
de Fronteira: bases de uma política integrada de desenvolvimento regional para
a faixa de fronteira. Brasília, DF: Ministério da Integração Nacional. Secretaria de
Programas Regionais. Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira. 2005.
Disponível em: https://www.paho.org/bra/dmdocuments/livro_completo.pdf.
Acesso em: 3 mar. 2023..

BRASIL. Decreto de 08 de setembro de 2010. Institui a Comissão Permanente para o


Desenvolvimento e a Integração da Faixa de Fronteira - CDIF. Brasília, DF: Presidência
da República, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2010/dnn/dnn12853.htm. Acesso em: 3 mar. 2023.

BRASIL. Decreto Nº 9.961, de 08 de agosto de 2019. Institui a Comissão Permanente


para o Desenvolvimento e a Integração da Faixa de Fronteira – CDIF. Brasília,
DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9961.htm. Acesso em: 3 mar. 2023.

CONFINS. Mapas dos Confins, mapa das Cortes. Confins, n. 39, 2 mar. 2019.
Disponível em: https://journals.openedition.org/confins/19181?lang=pt. Acesso em:
3 mar. 2023.

COSTA, W. M. O Estado e as políticas territoriais no Brasil. São Paulo: Contexto,


1988.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA ESTATÍSTICA. Mapa dos municípios da


faixa de fronteira. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Disponível em: https://geoftp.ibge.
gov.br/organizacao_do_territorio/estrutura_territorial/municipios_da_faixa_de_
fronteira/2021/Municipios_da_Faixa_de_Fronteira_2021.pdf. Acesso em: 2 mar.
2023.

PÊGO, B. et al. (Orgs.). Fronteiras do Brasil: uma avaliação do Arco Norte. Rio de
Janeiro: IPEA - MI, 2018.

STURZA, E. R. Línguas de fronteira e política de línguas: uma história das ideias


linguísticas. 2006. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da
Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.

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Unidade 3: Fronteiras, o Desenvolvimento Social e a
Educação

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de compreender o potencial das fronteiras
linguísticas e culturais enquanto recurso para o desenvolvimento social.

Neste momento você irá refletir sobre a visão da fronteira como um valioso recurso
para o desenvolvimento social e não apenas como um espaço que precisa de
controle e monitoramento permanente, visão que corrobora com a manutenção
de estereótipos e preconceitos negativos sobre a fronteira e tudo que é produzido
nesse espaço.

3.1 Fronteira como Problema e Espaço de Controle

A fronteira sempre foi vista como um problema para a garantia do poder territorial
dos Estados. Desta forma, as políticas voltadas para esse espaço estiveram e estão
focadas na ocupação territorial e na militarização da faixa de fronteira, considerada
uma terra sem lei, onde se propagam atos ilícitos como o contrabando e o tráfico
de drogas.

Veja nas abas (RODRIGUES, 2021, p. 98) os principais acordos e tratados firmados
entre Brasil, Colômbia e Peru sobre as áreas de fronteira:

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A autora realizou um levantamento dos principais acordos e tratados firmados
entre o Brasil, a Colômbia e o Peru que compartilham uma tríplice fronteira, com o
objetivo de verificar o teor dessas tratativas.

Você pode observar na imagem que as ações contempladas por esses acordos desde
a década de 70 tinham foco em atividades econômicas e de controle de atividades
criminosas, ou seja, voltadas para a fronteira como um espaço problemático.

Entre as iniciativas do governo federal brasileiro com esse mesmo viés podemos
citar o Programa Calha Norte, criado em 1985 no âmbito do Ministério da Defesa,
que tem como objetivo garantir a defesa nacional, maior presença do poder público
e a ocupação e fixação de habitantes na faixa de fronteira da região norte, como
foco na Amazônia setentrional.

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Fronteira da Região Norte.
Fonte: Grupo Retis (2005).

O programa continua em funcionamento com o apoio logístico e financeiro das


Forças Armadas e, atualmente, abrange 442 municípios localizados nos estados
do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Matogrosso, Matogrosso dos Sul, Pará,
Rondônia, Roraima e Tocantins.

Mas e em relação ao desenvolvimento social das fronteiras, o


que tem sido feito?

No ano de 2010 o Grupo de Trabalho Interfederativo de Integração Fronteiriça,


composto por membros de distintas instituições, lançou as “Bases para uma
proposta de desenvolvimento e integração da faixa de fronteira”.

Nesse documento se reconhece que:

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 37


A integração de fronteiras requer esforços conjuntos dos
entes federados nacionais e de seus correspondentes
nos outros países, uma vez que a complexidade do
enfrentamento dos problemas envolve questões de
soberania, de adequação de ordenamentos jurídicos,
questões econômicas, sociais e até mesmo, culturais
(BRASIL, 2010, p. 34). significar outras fronteiras”.

Na esteira dessa visão compartilhada pelo Ministério da Integração Nacional surgem


projetos de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento da fronteira como
você pode acompanhar a seguir

Projeto SIS - Fronteira – Ministério da Saúde


O Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras foi criado em 2005 pelo
Ministério da Saúde com o objetivo de melhorar a atenção à saúde
em mais de 100 municípios situados ao longo da faixa de fronteira. O
projeto já não está em operação.

Projeto Fronteiras (Sinivem) e Questões Migratórias - Programa


Pronasci Fronteiras – Ministério da Justiça/Departamento de Polícia
Federal
O Pronasci-Fonteiras é um desdobramento do Programa Nacional de
Segurança Pública e Cidadania, criado para propor ações que visem
garantir a segurança pública com foco também no desenvolvimento de
ações de cidadania.

Questões Migratórias - Ministério do Trabalho e Emprego


Uma das ações de destaque foi a criação da Casa do Migrante em Foz
do Iguaçu, em 2003, a qual atende pessoas que vivem nesse contexto
de fronteira.

Concertação de Fronteiras e Frontur e Simitur - Ministério do


Turismo Frontur (Seminário Internacional de Turismo de Fronteiras)
e o Simitur (Seminário Internacional sobre Migração e Turismo)
Fizeram parte do acordo de concertação das fronteiras com o objetivo
de desenvolver e regulamentar as ações sobre o turismo na fronteira.

Projeto Intercultural Bilíngue Escolas de Fronteira – Ministério da


Educação
Com base em um modelo de ensino comum, espelhado, em escolas

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localizadas nas fronteiras entre o Brasil e Argentina, o projeto surgiu
como uma forma de pensar a educação intercultural com foco no ensino
de português e de espanhol.

As propostas abarcavam áreas estratégicas do desenvolvimento do espaço


fronteiriço como saúde, economia, turismo, segurança e educação.

Entre as propostas está o Projeto Intercultural Bilíngue Escolas de Fronteira, a


primeira iniciativa em prol da educação bilingue em contexto fronteiriço que
surge na esteira de uma visão de integração dos países da América do Sul, com o
estabelecimento do Mercosul.

3.2 Fronteira como Recurso para o Desenvolvimento Social

Par começar, reflita sobre um conceito importante para desenvolver uma linha de
raciocínio sobre as regiões transfronteiriças (RTF):

As RTFs tornaram-se objetos políticos específicos e não


apenas territórios econômicos espontâneos e naturais.
Nesse sentido, representam formas específicas
de inovação em relação ao espaço, lugar e escala.
Implicam a produção de novos tipos de lugares ou
espaços de produção, de desenvolvimento de serviços,
de trabalho e de consumo. Eles estão ligados a novos
métodos de produção do lugar ou do espaço para criar
vantagens específicas do lugar para a produção de bens
e serviços e oferecer novas estruturas regulatórias,
infraestrutura, economias de escala, novos mercados
de trabalho etc. (JESSOP, 2004, p. 32)

Partindo dessa visão, as regiões transfronteiriças passam a integrar um espaço


importante para o desenvolvimento econômico de sua comunidade e do país por
meio da produção de bens e serviços de consumo.

No entanto, não se pode excluir o fato de que além de bens e serviços de consumo e
sua importância geoeconômica, a fronteira é um espaço de produção de patrimônios
culturais e simbólicos, tendo como eixo central as suas línguas.

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Um novo modelo de gestão, adequado ao quadro da globalização
atual, deve entender que se deve assumir como uma componente
de uma gestão integrada do território, precisamente na medida
em que as problemáticas culturais são claramente territoriais
(KANT, 1999; OOSTERBEEK, 2007; SAMASSEKOU, 2012 apud
OOSTERBEEK, 2017).

Neste sentindo e entendendo que passamos por um período de mudanças geopolíticas


importantes que geram impactos nos territórios, precisamos compreender que
a gestão do espaço fronteiriço precisa buscar o seu desenvolvimento. Um dos
patrimônios culturais que pode ser utilizado como recurso nesse processo é
justamente a língua e os modelos de gestão da pluralidade linguística que caracteriza
a fronteira.

Essa visão é corroborada por pesquisa realizada pelo Instituto de


Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com o Ministério
da Integração, que culminou na publicação do livro “Fronteiras do
Brasil: uma avaliação de política pública” em 2018, especialmente
no volume 3 da coletânea, em que se dá ênfase ao Arco Norte.

Há dois problemas elencados pelos pesquisadores que participaram do estudo e


que se relacionam à temática desse estudo (PÊGO, 2018, p. 162-163):

• falta integração produtiva, redes de APLs para atender às demandas,


escolas binacionais nas cidades gêmeas (há projeto de escola de fronteira  em
Bonfim e em Pacaraima), problemas de idioma ao se cruzar a fronteira;

• oferta restrita e de baixa capilaridade na área da educação. Por exemplo:


faltam escolas binacionais e cursos de língua estrangeira, sendo o idioma um
grave problema de comunicação e interação; ausência de ensino técnico-
profissionalizante, de comércio exterior etc., e nível superior.

Ambas as questões colocam em evidência o desproporcional tratamento dado ao


território brasileiro, especialmente quando referido à Região Norte do país. Porém,
a ausência de políticas públicas com foco na educação na fronteira é uma realidade
que se reflete em todos os arcos, em diferentes proporções.

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Conheça alguns exemplos de utilização da fronteira como recurso para o
desenvolvimento social e econômico.

EuroAirport Basel-Mulhouse-Freiburg
No âmbito europeu, cuja organização e gestão dos territórios de
fronteira se baseia em outros contextos diferentes da nossa realidade,
podemos citar o Euro-Aeroporto Basel-Mulhouse-Freiburg como
exemplo de utilização da fronteira como recurso para a economia local.
O aeroporto é operado por França e Suíça e beneficia também aqueles
que se deslocam à Freiburg, na Alemanha.

Integrierter Bachelorstudiengang Lehramt Sekundarstufe


(Licenciatura Integrada em Docência do Ensino Secundário)
Na mesma região onde se localiza o aeroporto mencionado, é possível
verificar outra ação que colabora com o desenvolvimento social da
fronteira no que tange à educação. O programa binacional (franco-
alemão) de formação de professores bilíngues é oferecido pela
Universidade de Educação de Freiburg, na Alemanha, em cooperação
com a Université Nice Sophia Antipolis, na França.

Programa Binacional de Educación Migrante (Probem)


Criado em 1982 em parceria entre os governos dos Estados Unidos
e do México, tem como objetivo auxiliar na integração de crianças
migrantes ao sistema educativo dos países envolvidos e promover o
intercâmbio docente de forma a contribuir com a: atenção educativa
a meninas e meninos migrantes; os Estados membros do Grupo
Mexicano do Probem e do Grupo dos Estados Unidos desenharam e
estruturaram conjuntamente apoios educativos específicos para esta
população escolar; o Probem constitui um valioso fator de mudança e
um instrumento que favorece, fortalece, consolida e amplia todos esses
propósitos e ações, orientados a oferecer aos migrantes binacionais
mexicanos melhores oportunidades de progresso e, com isso, um
ambiente propício para acessar melhores níveis de vida (informação
disponível no site do Governo do México).

Projeto Escolas Bilingues e Interculturais de Fronteira (PEBIF)


É um projeto de cooperação entre Portugal e Espanha e as Comunidades
Autônomas, em parceria com a Organização dos Estados Ibero-
Americanos (OEI). Tem como objetivo criar uma rede de escolas que
promovam a educação e o desenvolvimento social e econômico dos
territórios de fronteira entre os países signatários do projeto.

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Proyecto binacional Educación Superior (Brasil-Uruguai)
Se refere a um projeto interinstitucional binacional, com sede nas cidades
de Rivera (Uruguai) e Santa do Livramento (Brasil) do qual participam,
ofertando cursos de graduação, técnicos e de pós-graduação binacionais,
as seguintes instituições: Universidad de la República, Universidade
Federal do Pampa, Universidad Tecnológica del Uruguay, Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul, Centro Regional de Profesores del Norte,
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense,
Instituto de Formación Docente, Universidade da Região da Campanha,
Escuela Técnica Superior de Rivera e Polo Educativo Tecnológico de
Rivera.

Conheça o programa binacional franco-alemão acessando clicando aqui.

Visite também a página do PEBIF.

Analisando o caso do Proyecto Binacional Educación Superior e outras iniciativas em


prol do desenvolvimento social da fronteira, verifica-se que ocorreram em um período
de políticas progressistas que entendiam a necessidade de uma aproximação dos
países vizinhos como parte do desenvolvimento econômico, político e social.

Nesse caso, especificamente, a fronteira é utilizada como recurso para o


desenvolvimento de modelos de gestão da educação binacional e produção de
conhecimento científico nas instituições envolvidas.

Um exemplo interessante no campo da educação foi a instituição, no ano de 2013,


do Campus Binacional do Oiapoque, localizado no estado do Amapá, nas cidades de
Oiapoque e Laranjal do Jari. Acompanhe:

2007 - 2008

Iniciaram acordos e negociações entre o presidente Nicolas Sarkozy e Luiz


Inácio Lula da Silva com a finalidade de criar uma universidade na fronteira
entre Oiapoque e Guiana Francesa.

08/01/2009

O Protocolo Adicional ao Acordo de Cooperação Técnica e Científica entre os


dois governos, publicado no Diário Oficial da União (DOU), instituiu o Centro
Franco-Brasileiro da Biodiversidade Amazônica, com estrutura física alocada
para diferentes instituições de pesquisa do Estado.

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42
2010

A Secretaria de Educação Superior (Sesu) convocou o então reitor da


Universidade Federal do Amapá, Prof. Dr. José Carlos Tavares, para assinar
um termo de pactuação não mais do referido centro, mas de um campus
da Unifap no Oiapoque que atendesse à “ideia de Campus Binacional”.
A Licenciatura Intercultural Indígena, implantada em 2007, obedece
a uma perspectiva interdisciplinar e apresenta um núcleo comum de
conhecimentos ou de disciplinas.

2013

Os cursos do campus de Oiapoque implantados em 2013 seguiram essa


mesma concepção e organizaram-se em um tronco comum ou em um
mesmo eixo temático (Projeto Político Pedagógico do Curso de Letras-
Português/Francês da UNIFAP).

O campus binacional está localizado em uma área onde vivem povos originários
de distintas etnias como Karipuna, Galibi-Marworno, Palikur-Arukwayene, Galibi-Kalinã
ou Galibi do Oiapoque e Wajãpi com suas línguas das famílias Kheuol, Karib, Aruak e
Tupi-Guarani, em contato com o português e o francês, por isso a importância de
uma Licenciatura Indígena.

3.3 E os Possíveis Caminhos?

As iniciativas ainda são tímidas em nossas fronteiras, por isso é preciso uma revisão
da ideia de que a fronteira é um espaço que precisa de controle e limites.

Nesse sentido, o Brasil caminha a passos muito lentos quando o tema é o


desenvolvimento social de suas fronteiras, conforme afirmam Oliveira e Morello
(2019, p. 54):

A questão das fronteiras é especialmente sensível para


a geopolítica brasileira, já que o Brasil tem a terceira
mais longa linha fronteiriça do mundo depois da
Federação Russa e da China (15.735 km com 10 países).

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Logo, seria de se esperar que o Brasil tivesse formulado
políticas sistemáticas para a análise e o aproveitamento
do bilinguismo português-espanhol nas fronteiras, e
tivesse tentado transformar esse bilinguismo em um
recurso geopolítico, mas veremos que este tampouco
foi o caso.

Os exemplos apresentados partem de diferentes contextos de fronteira em que


operam uma série de elementos que se relacionam inclusive a aspectos geopolíticos,
se pensarmos nos conflitos e problemas existentes na fronteira entre México e
Estados Unidos, por exemplo.

Porém, você pode observar que todos buscam utilizar o território fronteiriço como
um espaço onde as diferenças e as semelhanças possam integrar um único objetivo:
a utilização dos patrimônios das fronteiras como um importante recurso para o
desenvolvimento dos grupos sociais que vivem nesse espaço.

Entre possíveis iniciativas é possível pensar no estabelecimento de acordos de


cooperação com foco especial na construção de um sistema educativo transnacional
e na formação docente que visem a promoção das línguas das comunidades da
fronteira, ou seja, com foco no desenvolvimento de uma educação intercultural
plurilíngue, como propõe Rodrigues (2021, p. 195):

Estabelecer acordos de cooperação transfronteiriços


com foco especial na construção de um sistema
educativo transnacional e na formação docente que
visem àpromoção das línguas das comunidades
da fronteira, ou seja, uma educação intercultural
plurilíngue.

O estabelecimento de acordos de cooperação


transfronteiriços é importante para que a gestão
da educação na fronteira seja compartilhada
entre os Estados, permitindo mais investimentos
Acordos de cooperação. e o desenvolvimento de um sistema educativo
Fonte: Freepik (2023). com base na interculturalidade e na promoção
das línguas da fronteira como um recurso para o
desenvolvimento de suas comunidades.

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44
Propor a criação de universidades bi ou trinacionais
nas fronteiras e fomentar pesquisas nos programas
de pós-graduação.

Universidades bi/trinacionais.
Fonte: Freepik (2023).

Como desdobramento da proposta anterior, acordos


como o firmado entre Brasil e Uruguai para a educação
superior binacional poderiam funcionar como um
modelo de gestão da fronteira como recurso para
a produção de conhecimento científico na fronteira
que poderia ser implementado em toda a faixa de
fronteira, permitindo a criação de novas instituições
de ensino superior (IES) e/ou a ampliação do processo
de interiorização dessas IES.

Novas instituições de ensino superior.


Fonte: Freepik (2023).

Elaborar leis que regulamentem a educação em


contexto fronteiriço, desde a educação básica ao
ensino superior.

Elaboração de leis.
Fonte: Freepik (2023).

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A elaboração de instrumentos legais que coloquem
a educação na fronteira como parte do sistema
educativo nacional, respeitando as singularidades e
complexidades desse espaço, pode colaborar com
outros pontos aqui expostos. Afinal, a atual base
nacional curricular comum contempla contextos em
que os repertórios comunicativos dos habitantes se
movimentam entre o português e o espanhol, por
exemplo.
Elaboração de instrumentos legais.
Fonte: Freepik (2023).

Ampliar o processo de cooficialização das línguas


das comunidades fronteiriças e garantir seu ensino-
aprendizagem no currículo escolar.

Cooficialização das línguas.


Fonte: Freepik (2023).

Atrelar a cooficialização de línguas à sua


implementação no currículo escolar como política
linguística baseada na demanda das comunidades
onde essas línguas são parte de sua construção
identitária.

Implementação no currículo escolar.


Fonte: Freepik (2023).

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46
Retomar e ampliar o Programa Escolas Interculturais
de Fronteira, com foco no bi/plurilinguismo.

Escolas Interculturais de Fronteira.


Fonte: Freepik (2023).

A continuidade desse programa é de suma


importância para a estruturação de uma educação
intercultural na fronteira, sendo um modelo a ser
implementado em toda a faixa de fronteira. Portanto,
a retomada e ampliação do Programa Escolas
Interculturais de Fronteira é uma das principais ações
em prol da utilização da fronteira como recurso,
uma vez que exige que a formação seja pensada de
forma indissociável, desde a formação do professor
no curso de licenciatura ao aluno da educação básica,
passando pela formação continuada de todos os Formação continuada dos agentes educacionais.
agentes da educação em atuação. Fonte: Freepik (2023).

Antes de tudo, é preciso mudar a forma como a sociedade enxerga as fronteiras. É


importante que elas sejam vistas como espaços interculturais e que as políticas
públicas reflitam essa visão. Além disso, é essencial que os modelos de gestão
das línguas nas fronteiras sejam utilizados como exemplo para a educação em
nível nacional, uma vez que a presença de diferentes línguas nas escolas já é uma
realidade em várias cidades devido às migrações.

Este exemplo mostra que as barreiras linguísticas e culturais não se limitam apenas às
fronteiras geográficas. Elas estão presentes em diversos aspectos da vida cotidiana,
como no mercado local administrado por um sírio, nas escolas com a presença de
estudantes venezuelanos e haitianos, e nos atendimentos médicos feitos por um
médico cubano.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 47


Diversidade.
Fonte: Freepik (2023).

Nesse sentido, as fronteiras culturais estão sempre em transformação, em fluxo,


como propõe Barth (2005, p. 17):

“devemos pensar a cultura como algo distribuído


por intermédio das pessoas, entre as pessoas, como
resultado das suas experiências. Ao terem experiências
semelhantes e se engajarem mutuamente em
reflexões, instruções e interações, as pessoas são
induzidas a conceitualizar e, em parte, compartilhar
vários modelos culturais. Sugiro que um aspecto
crucial das coisas culturais é a forma pela qual elas se
tornam diferencialmente distribuídas entre pessoas e
entre círculos e grupos de pessoas”.

Ao compartilhar modelos culturais e se engajarem mutuamente, esses indivíduos


compartilham suas línguas, fazem uso de seus repertórios linguísticos que seguem
o fluxo das interações, rompendo as fronteiras construídas por eles mesmos. Por
isso, as fronteiras linguísticas são descontínuas, fluidas, móveis, se fecham e se
abrem de acordo com as necessidades dos seus falantes.

Para finalizar, é importante que você reflita sobre como a fronteira pode ser utilizada

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48
como um recurso para a construção de uma educação intercultural bi/multilíngue
durante todo o seu estudo.

Para refletir sobre as fronteiras, assista as videoaulas a seguir:

Videoaula: Um Olhar sobre a Fronteira

Nesta unidade você notou que o olhar foi direcionado para a fronteira como recurso
para o desenvolvimento social das comunidades, tendo como foco a educação e a
gestão das línguas nesse contexto. Assim, foram elencadas possíveis propostas de
intervenção sobre a fronteira que contribuem para o seu desenvolvimento, mas que
também podem posicioná-lo como centro de irradiação de modelos de gestão da
educação e das línguas.

Que bom que você chegou até aqui! Agora é hora de você testar seus conhecimentos.
Então, acesse o exercício avaliativo que está disponível no ambiente virtual. Bons
estudos! 

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 49


Referências
BARTH, F. Etnicidade e o conceito de cultura. Antropolítica, Niterói, n. 19, p.15-
30, 2º semestre. 2005. Disponível em: https://www.ppgcspa.uema.br/wp-content/
uploads/2015/06/docslide.com_.br_barth-etnicidade-e-o-conceito-de-cultura.pdf.
Acesso em: 3 mar. 2023.

BRASIL. Proposta de reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa


de Fronteira: bases de uma política integrada de desenvolvimento regional para
a faixa de fronteira. Brasília, DF: Ministério da Integração Nacional. Secretaria de
Programas Regionais. Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira. 2005.
Disponível em: https://www.paho.org/bra/dmdocuments/livro_completo.pdf.
Acesso em: 3 mar. 2023.

BRASIL. Decreto de 08 de setembro de 2010. Institui a Comissão Permanente para o


Desenvolvimento e a Integração da Faixa de Fronteira - CDIF. Brasília, DF: Presidência
da República, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2010/dnn/dnn12853.htm. Acesso em: 3 mar. 2023.

COLÔMBIA. Lei nº 2135 de 2021. Estabelece um regime especial para os departamentos


fronteiriços. Bogotá: Congreso de Colombia, 2021. Disponível em: https://www.
cancilleria.gov.co/sites/default/files/Normograma/docs/ley_2135_2021.htm. Acesso
em: 3 mar. 2023.

FREEPIK COMPANY. [Banco de Imagens]. Freepik, Málaga, 2023. Disponível em:


https://www.freepik.com/. Acesso em: 6 mar. 2023.

GOVERNO DO MÉXICO. Gobierno de México. Programa Binacional de Educación


Migrante, Cidade do México, [2016]. Disponível em: https ://www.gob.mx/
ime/acciones-y-programas/programa-binacional-de-educacion-migrante-
probem-61464. Acesso em : 3 mar. 2023.

GRUPO RETIS. Programa Calha Norte: verbas da vertente civil destinadas para os
municípios (2003-2007). Grupo Retis. Disponível em: http://www.retis.igeo.ufrj.br/
wp-content/uploads/Amazon-PCN-Vertente-Civil-03-07.jpg. Acesso em: 3 mar. 2023.

JESSOP, B. La economía política de la escala y la construcción de las regiones


transfronterizas. Revista eure, Santiago do Chile, v. 29, n. 89, p. 25-41, mai. 2004.
Disponível em: https://www.scielo.cl/pdf/eure/v30n89/art02.pdf . Acesso em: 3 mar.
2023.

OLIVEIRA G. M. de.; MORELLO, R. A fronteira como recurso: o bilinguismo português-


espanhol e o Projeto Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira do MERCOSUL

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


50
(2005-2016). Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, v. 81, n. 1, p. 53-74.
2019. Disponível em: https://rieoei.org/RIE/article/download/3567/4054/. Acesso
em: 3 mar. 2023.

OOSTERBEEK, L. Do património ao território: agendas para um futuro incerto. In:


PADOIN, A. M; NOVALES, A. F (Org.). História: Poder, Cultura e Fronteiras. Santa
Maria: Facos-UFSM, 2017. p. 7-20.

PEBIF. Projeto Escolas Bilingues e Interculturais de Fronteira. Organização de


Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), Madrid,
[20--]. Disponível em: https://oei.int/pt/escritorios/secretaria-geral/escuelas-de-
frontera/proyecto. Acesso em: 3 mar. 2022.

PÊGO, B. Et al. (Orgs.). Fronteiras do Brasil: uma avaliação do Arco Norte. Rio de
Janeiro: IPEA - MI, 2018.

RODRIGUES, L.F. Práticas e Políticas Linguísticas no Alto Solimões: plurilinguismo,


formação de professores na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru. 2021. Tese
(Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2021.

UNIFAP. Projeto Político-Pedagógico do Curso de Letras - Português/Francês


da UNIFAP. Macapá, AP: Coordenação do Curso de Letras Português/Francês,
2013. Disponível em: https://www2.unifap.br/letras/files/2013/12/Projeto-
Pedag%C3%B3gico-do-Curso-de-Letras-Portugu%C3%Aas-Franc%C3%Aas1.2.pdf.
Acesso em: 3 mar. 2023.

UNIVERSITÉ FRANCO-ALLEMANDE. Université Franco-Allemande.


IntegrierterBachelorstudiengang Lehramt Sekundarstufe. Friburgo em Brisgóvia,
[2023]. Disponível em https://www.dfh-ufa.org/programme/studienfuehrer/
integrierter-bachelorstudiengang-lehramt-sekundarstufe. Acesso em: 3 mar. 2023.

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Módulo

2 Interculturalidade e Educação
Linguística Plural
No Módulo 2, você terá como tema central a “Interculturalidade e Educação Linguística
Plural”, abordando aspectos importantes para a formação de professores(as) de línguas
em uma perspectiva mais sensível à diversidade linguística e cultural dos contextos de
ensino bi/multilíngues e às pessoas envolvidas no processo de ensino-aprendizagem.

Unidade 1: Interculturalidade: Conceitos Fundamentais

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de reconhecer os conceitos de língua, cultura,
repertório linguístico e interculturalidade, além de seus reflexos na construção de uma
educação linguística bilíngue e intercultural.

1.1 Conceitos de Língua, Cultura e Repertório Linguístico na


Construção da Interculturalidade

Para que você compreenda o significa-


do de interculturalidade, é fundamen-
tal refletir sobre algumas perguntas:

Que conceito de língua/linguagem mo-


bilizamos?

Como é possível compreender a cultura


e sua relação com a língua?

Questionamentos.
Fonte: Freepik (2023).

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


52
Assista aos dois vídeos e reflita sobre “O que é cultura” e “Cultura Objetiva vs Cultura
Subjetiva”.

Videoaula: O que é Cultura?

Videoaula: Cultura Objetiva vs Cultura Subjetiva

1.1.2 A Ideia de Língua como Prática Social

Para você compreender a interculturalidade, é importante refletir sobre a visão


de língua/linguagem que orienta uma educação linguística comprometida com os
desafios da diversidade, característica dos espaços híbridos e multilíngues.

A língua é um fenômeno histórico que se constitui e se renova na


vida e através de seus falantes, visto que é ação situada social
e culturalmente, atividade que se constrói à medida que há
interação com outros(as).

Ela é prática social, política e ideológica, pois as experiências de interação com o


mundo e com as pessoas que estão ao redor são profundamente marcadas por
nosso entorno social e cultural e por nossas experiências pessoais, pelo modo como
nos dizemos no mundo.

Língua é cultura.
Fonte: Freepik (2023).

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 53


A língua não está na cultura ou a cultura na língua – as duas estão no mesmo lugar,
porque língua é cultura.

Por isso, produzir conhecimento sobre a língua e na língua é necessariamente


olhar para o que as pessoas fazem quando estão ensinando e aprendendo a viver
em português, espanhol, italiano, francês, Libras, inglês... Nesse sentido, é preciso
compreender a língua que ensinamos e aprendemos, em contexto de língua materna
ou estrangeira/segunda, sem que fiquemos:

“enredados na trama da pureza linguística, da não


historicidade da língua, do apagamento dos sujeitos
e ideias racializadas que permeiam este desejo pela
pureza” (MUNIZ, 2016, p. 783).

Em uma educação linguística intercultural, não há lugar para uma “concepção de língua
limpa, sem rascunhos, sem sujeitos, sem história, sem política” (MUNIZ, 2016, p. 783).

Assim, é necessário pensar na língua a partir de uma nova chave, de modo que você
compreenda como atuar em contextos multilíngues e diversos, como são os espaços
educativos de fronteira, sejam elas físicas ou simbólicas. Para lhe ajudar nessa reflexão,
analise o quadro a seguir.

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Comparações entre visões de língua/linguagem.
Elaboração: CEPED/UFSC (2023).

Como você pode ver, é preciso superar as visões sistêmicas e formalistas de se


compreender as línguas e as práticas de linguagem, visto que sem fazer isso não
será possível implementar mudanças na educação linguística em espaços diversos
e multilíngues, transformando-a em verdadeiramente plural.

Assim, as ações pedagógicas devem ser voltadas para ensinar a estudantes não
a gramática fria e árida, mas modos de ser e de viver em português e nas outras
tantas línguas que fazem parte do seu repertório linguístico.

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Assista a uma videoaula que fala sobre a Língua como prática social.

Videoaula: Língua como Prática Social

Assista também a videoaula que fala sobre Visões de língua e linguagem.

Videoaula: Visões de Língua e Linguagem

1.1.3 A Cultura como Rede de Significados

A cultura precisa ser entendida como uma rede, uma matriz geradora de sentidos,
como uma complexa rede de significados que são interpretados por elementos que
fazem parte da mesma realidade social, que a modificam e são modificados por ela.

Assim, ela é uma dimensão que não existe sem a realidade social que lhe serve
de ambiente. É a vida em sociedade e as relações dos indivíduos que moldam e
definem os fenômenos culturais, e não o contrário.

A cultura não é algo que está fora do que produzimos ao vivê-la.


Não é apenas um conteúdo a ser ensinado e transmitido de pai
para filho, como um baú de recordações. A cultura se constrói na
teia da vida que vivemos.

Faz-se necessário pensar em alguns aspectos para construir uma ideia de cultura
mais aberta, flexível e significativa para a compreensão dos espaços plurais nos quais
ensinamos e aprendemos.

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56
Cultura como rede complexa de significados

Ela engloba uma teia complexa de significados que


são interpretados pelos elementos que fazem parte
de uma mesma realidade social, os quais a modificam
e são modificados por ela. Esse conjunto de significados
inclui as tradições, os valores, as crenças, as atitudes e
conceitos, assim como os objetos e toda a vida material.

Cultura como rede complexa de significados.


Fonte: Freepik (2023).

Cultura como evolução de relações

Ela não é estática, um conjunto de traços que se


transmite de maneira imutável através das gerações,
mas um produto histórico, inscrito na evolução das
relações sociais entre si, as quais transformam-se num
movimento contínuo através do tempo e do espaço.

Cultura como evolução de relações.


Fonte: Freepik (2023).

Cultura como heterogeneidade

Não é inteiramente homogênea e pura, mas constrói-


se e renova-se de maneira heterogênea através dos
fluxos internos de mudança e do contato com outras
culturas.

Cultura como heterogeneidade.


Fonte: Freepik (2023).

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 57


Cultura como produto da vivência, da
ação e da interação dos indivíduos

Está presente em todos os produtos da vivência, da


ação e da interação dos indivíduos. Portanto, tudo
o que é produzido, material e simbolicamente, no
âmbito de um grupo social é produto da cultura
desse grupo.
produto da vivência, da ação e da
interação dos indivíduos.
Fonte: Freepik (2023).

Língua-cultura

A língua, então, não faz parte da cultura ou vice-versa.


A língua é a própria cultura — uma língua-cultura.
Assim, olhar para a língua é olhar para os indivíduos
que a utilizam e o contexto histórico, cultural, político e
econômico em que as interações ocorrem. Uma língua-
cultura é o próprio lugar de interação, é prática social,
é o modo como somos e agimos no mundo, e não se
mantém presa a uma ideia de país ou nação.
Língua-cultura.
Fonte: Freepik (2023).

A língua-cultura representa uma certa maneira de interpretar


a realidade e de inserir um grupo social no mundo que o cerca
(MENDES, 2012, 2015).

1.1.4 Repertórios Linguísticos e Contextos Bi/multilíngues

Os espaços que compreendem as nossas salas de aula e todo o seu entorno


sociocultural são diversos e complexos, embora muitas formas de opressão atuem
para defini-los como homogêneos e imutáveis. As fronteiras, por exemplo, sejam
elas territoriais ou simbólicas, são ambientes heterogêneos, nos quais línguas e
culturas mesclam-se num emaranhado de sentidos.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


58
Desse modo, para compreendermos esses espaços híbridos, é importante que
você conheça o conceito de repertório linguístico, como um conjunto de recursos
linguísticos e multissemióticos de que as pessoas fazem uso em suas práticas de
interação e de produção de sentidos em ambientes bi/multilíngues.

No entanto, como muitos estudiosos apontam, os repertórios não


se desenvolvem linearmente, ordenadamente e com propósitos
bem definidos, mas sim de acordo com as diversas situações de
interação e de comunicação.

Por isso, é importante compreender que as pessoas desenvolvem práticas de


linguagem, fazendo um uso situado de seus recursos, que mudam de acordo com o
contexto e com as demandas comunicativas.

“Nesse processo, alguns recursos são permanentes


e duradouros, enquanto outros mais temporários e
dinâmicos” (OLIVEIRA, 2021, p. 27).

Em contextos bi/multilíngues e multiculturais como são as fronteiras, mais do que o


uso de variadas línguas em si, temos o uso de diversos recursos semióticos que, juntos,
orientam as práticas de linguagem e de interação das pessoas.

Como aponta Blommaert (2010, p. 102), os contextos multilíngues não devem ser vistos
como espaços onde os sujeitos lançam mão de uma coleção de línguas, mas sim de

[...] um complexo de recursos semióticos específicos,


alguns dos quais pertencem a uma ‘língua’
convencionalmente definida, enquanto outros
pertencem a uma outra ‘língua’ [...]

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 59


Tais recursos concretos são sotaques, variedades linguísticas, registros, gêneros,
modalidades como a escrita – formas de usar a língua em contextos comunicativos
particulares e esferas da vida, incluindo as ideias que as pessoas têm sobre tais
formas de uso, suas ideologias linguísticas.

Multiculturalidade.
Fonte: Freepik (2023).

1.2 Mitos e Conceitos Sobre a Interculturalidade

Nos últimos tempos, a interculturalidade vem sendo tema de interesse de variados


campos do saber e tem sido definida e compreendida de diferentes formas. No
entanto, há muitos mitos e confusões relacionados ao termo e é necessário pensar
sobre eles.

Multiculturalismo, Interculturalidade e
transculturalidade são a mesma coisa?

Reflexão.
Fonte: Freepik (2023).

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


60
O multiculturalismo e a interculturalidade não podem ser compreendidos como
a mesma coisa. O primeiro representa uma característica e condição de existência
das sociedades contemporâneas, marcadas pela diversidade e pela complexidade
humana e cultural. Por isso, quando se diz que as sociedades são multiculturais, há
o reconhecimento de que elas são marcadas pela diversidade e pelas relações entre
identidade e diferença, o que é uma evidência.

A interculturalidade não representa simplesmente a convivência


ou contato entre os diferentes, mas sim uma intervenção na
realidade multicultural. Portanto, o multiculturalismo é uma
condição das sociedades contemporâneas e a interculturalidade
é um modo de intervenção e de ação nos contextos multiculturais.

A interculturalidade e transculturalidade também não significam a mesma coisa.

Interculturalidade
Representa um modo de vida, uma intervenção no mundo, com o propósito
de construir espaços de diálogo, de convívio harmonioso e colaborativo,
marcado pelo respeito às diferenças.

Transculturalidade
Como o prefixo “trans” indica, representa a compreensão dos modos como as
culturas se relacionam entre si, num mundo marcado pela superdiversidade.
Significa que não há culturas singulares, mas entrecruzamentos e
interpenetrações constantes entre culturas, em contextos cada vez mais
híbridos e complexos.

Mas seria a interculturalidade apenas um modismo?

Pensar a interculturalidade como uma moda passageira significa não compreender


bem o seu significado, uma vez que ela:

• revela um posicionamento diante da complexidade e da diversidade das


sociedades contemporâneas, especialmente os espaços de fronteira, físicas
e simbólicas;

• representa uma postura, um modo de ser e de agir, voltado para a


negociação das diferenças;

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 61


• é dimensão necessária para a erradicação de todos os tipos de discriminação,
de preconceito e de atitudes que ofendem e prejudicam os indivíduos e/
ou seus direitos básicos e universais, especialmente o direito de viver em
diferentes línguas, nos espaços de sala de aula e, também, fora deles.

Para enriquecer os seus estudos, veja duas videoaulas que falam de Mitos
sobre interculturalidade.

Videoaula: Mitos sobre a Interculturalidade

Então a interculturalidade significa trocar informações sobre as línguas e culturas


em contato?

A interculturalidade não é algo que se constrói através do compartilhamento de


conteúdo e informações sobre línguas, culturas e grupos sociais em contato ou da
comparação sobre o que “eu penso” e o que “o outro pensa”, mas:

• revela-se na abertura ao outro e ao que ele desempenha no mundo, em


um esforço mútuo de compreensão das diferenças;

• promove a interação, a integração e a cooperação entre indivíduos de


diferentes contextos culturais, criando áreas de negociação, de interseção
– entrelugares;

• significa contribuir para construção conjunta de conhecimentos na(s)


língua(s) e cultura(s) em que se vive, se ensina e se aprende – língua-culturas
em interação.

E a pedagogia intercultural não ensina língua?

A interculturalidade na prática educativa e, em especial, na educação


linguística, orienta todas as ações pedagógicas, valorizando e fortalecendo os
conhecimentos e saberes das pessoas em interação. Conheça mais sobre a
pedagogia intercultural:

Interação
As ações de ensino-aprendizagem são centradas no sentido e nas
experiências das pessoas em interação. Cada pessoa é um elo importante
na construção do conhecimento, sempre partilhado e colaborativo.

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Vivência
O conhecimento da(s) língua(s) emerge do uso e da reflexão constante sobre
esse uso. Aprende-se língua, vivendo a língua.

Realidade
As práticas de linguagem realizam-se em situações reais de comunicação e
de interação, visando a construção de repertórios linguísticos, em espaços
multilíngues e multiculturais como são as fronteiras.

Práticas
A língua desenvolve-se a partir do desenvolvimento de práticas de leitura,
escrita, oralidade e análise linguística, sempre contextualizadas às situações
de ensino-aprendizagem e ao seu ambiente sociocultural

A interculturalidade permite o diálogo com outras perspectivas


epistemológicas e metodológicas?

A interculturalidade, como um modo de ser e de agir, como uma filosofia de vida,


não se sobrepõe ou concorre com outras abordagens, métodos e perspectivas
diversas para a educação linguística em contextos multiculturais e multilíngues
complexos, como são os espaços híbridos e de fronteira. Assim, ela dialoga
com perspectivas que:

• concebem a língua como fenômeno histórico, que se constitui e se renova


nas práticas de linguagem de seus falantes; atividade que se constrói à
medida que interagimos com outros; prática social, política e ideológica;
língua como cultura e vice-versa;

• compreendem a prática educativa como experiências sensíveis


culturalmente às pessoas envolvidas no processo de ensinar e aprender
língua(s), professores(as) e alunos(as);

• compartilham a visão de proficiência linguística como a capacidade de


desempenhar ações no mundo através da linguagem, com um propósito social.

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A Interculturalidade como Movimento
de Vida
Depois de você refletir sobre variados mitos em
torno da interculturalidade, é importante que
ela seja compreendida como uma atitude diante
do mundo que nos cerca, visto que exercitá-la
exige de nós uma mudança de comportamento,
um compromisso com a crítica e a ação em
prol da justiça social, da criação de ambientes
de convivência respeitosa entre as pessoas,
do enfrentamento às mais diversas formas de
violência social, física, intelectual e moral.

Interculturalidade como movimento. A interculturalidade não se caracteriza como


Fonte: Freepik (2023). uma abordagem de ensino em si, uma vez que

essa compreensão restringiria a sua ação como dimensão mais ampla das relações
humanas e das práticas de linguagem que desenvolvemos ao interagir com outros(as).

No entanto, ela é um dos mais importantes elementos da educação linguística,


contribuindo para o desenvolvimento de pedagogias mais democráticas, inclusivas e
que consideram a língua/linguagem como prática social, como atividade situada, sempre
marcada pelos contextos culturais e políticos nos quais se desenvolve, como visto.

Desse modo, embora não se restrinja a uma abordagem de ensino, a interculturalidade


tem orientado o desenvolvimento de ações pedagógicas culturalmente sensíveis,
capazes de construir nas salas de aulas de línguas diálogos entre as línguas-culturas
que estão em interação.

Em resumo, a interculturalidade:

• É um modo de ação que orienta as práticas cotidianas de


interação e de convivência nos espaços educativos e, também,
fora deles.

• É o viver, o fazer e o pensar junto com outros(as).

• É ação sempre em construção.

• É o exercício cotidiano da escuta, da sensibilidade e da empatia.

• O intercultural não existe como algo pronto. Precisa ser


construído.
A Interculturalidade
Fonte: Freepik (2023).

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Para refletir um pouco mais sobre a interculturalidade, assista a videoaula a seguir.

Videoaula: O que é a Interculturalidade?

1.1.5 Língua, Cultura e Interculturalidade – A Construção de um


Terceiro Lugar

A partir do que você estudou até aqui, é possível compreender que através do
diálogo entre línguas e culturas, no qual a troca e a análise de experiências, o
respeito às diferenças e a intersubjetividade tenham lugar, é possível construir
um espaço de um terceiro tipo, formado pela interseção das experiências de
professores e aprendizes.

Esse espaço é formado em parte pelas interpretações de mundo de cada um e de


todos ao mesmo tempo, pela comunhão de vontades, desejos e anseios; pela busca
da descoberta de um lugar no qual (con)viver com a diferença é a porta de entrada
para que as variadas vozes em interação possam ser ouvidas.

A ideia de um ‘outro lugar’ construído a partir do encontro de diferentes culturas,


ou línguas-culturas, vem tomando corpo em diferentes áreas do pensamento,
especialmente a partir da década de 70, sobretudo nas discussões sobre os diferentes
grupos humanos e a sua convivência no mundo contemporâneo.

Os trabalhos desenvolvidos pelo antropólogo indiano Homi


Bhabha (1996, 1998), por exemplo, sedimentaram essa ideia
a partir da definição dos ‘espaços híbridos’ e suas diferentes
configurações, como são, por exemplo, os espaços de fronteira.

Para Bhabha (1998), a articulação social da diferença, de mundos culturais distintos, é


sempre uma negociação complexa, marcada por experiências liminares, fronteiriças,
intersticiais.

Essas experiências de fronteira, as quais marcam a instância do “terceiro espaço” ou


entrelugar (Bhabha (1996, 1998) utiliza a expressão “in-between”), incitam o desejo
de reconhecimento de “outro lugar e de outra coisa” e fornecem o ambiente para
a elaboração de estratégias de subjetivação que possibilitam a criação de novos
signos de identidade,

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“[...] a encenação da identidade como interação, a
recriação do eu no mundo da viagem”. pertencem a
uma outra ‘língua’ [...]

É nesses espaços híbridos, através de processos que Bhabha (1998, p. 27-29)


denomina “processos simbólicos de tradução e negociação”, onde se articulam
elementos antagônicos, contraditórios e conflituosos, de modo a permitir que
polaridades, como dominador/dominado, desenvolvido/subdesenvolvido, eu/outro,
negro/branco, homem/mulher, rico/pobre, culto/inculto, dentro/fora, tenham os
seus limites, “bordas” e fronteiras flexibilizados, “deslizantes”.

Espaços híbridos.
Fonte: Freepik (2023).

Isso possibilita a existência de um espaço de intervenção no qual os interstícios


culturais introduzem “[...] a invenção criativa dentro da existência”. É nesse espaço
de troca, de tensão e, também, de diálogo que emerge a possibilidade de uma
vivência intercultural (MENDES, 2008, 2015).

Desse modo, é esse espaço, esse “terceiro lugar”, que uma


pedagogia intercultural busca estabelecer. No entanto, isso não
significa o equilíbrio ou neutralização de qualquer tensão ou
conflito. Ao contrário, esses espaços são marcados pela tensão
constante entre sujeitos-mundos diferentes e que, como todo
ambiente de produção e troca de significados, alimenta-se e
reestrutura-se a partir dessa própria tensão-negociação-troca.

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Ensinar e aprender línguas sob a orientação de uma abordagem que se pretende
intercultural, de modo a promover experiências de vida entre diferentes culturas,
significa contribuir para a criação dessas zonas fronteiriças, desses espaços “inter”,
“entre” ou os entrelugares, “terceiros lugares”.

Desejar esse outro lugar, no entanto, não significa deixar de lado as próprias
identidades, experiências e vontades de ir à luta, nem, tampouco, representa uma
escolha neutra, uma opção de “ficar em cima de muro”. Significa desejar um lugar
onde a minha existência e a do outro funcionem como instâncias em interação,
movidas pela busca mútua de compreensão.

Um lugar onde as oposições binárias, do tipo paulista/baiano, indígena/branco,


padrão/não-padrão, rural/urbano, sul-americano/europeu, brasileiro/argentino,
português/espanhol, falante nativo/falante não-nativo, L1/L2, não representem
fronteiras instransponíveis, nos limites das quais sempre um dos lados é o território
do estranho, do estrangeiro.

Espaços de interlocução.
Fonte: Freepik (2023).

Assim, ao buscar apreender, aprender, tomar parte de outros modos de produção


de sentidos, socialmente determinados, eu deixo o meu espaço privilegiado e
construo outro lugar, esse espaço de interlocução formado por parte do que eu sou
e por parte do que eu quero conhecer (MENDES, 2008, 2015).

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Construir relações dentro de um modo de ser, pensar, agir e sentir
culturalmente sensível aos sujeitos participantes do processo
de aprendizagem é um modo mais humano de se construir um
diálogo intercultural.

No entanto, isso exige o esforço de pesquisadores, professores e alunos, da escola


e das instituições formadoras para iniciarem a mudança e dissolverem as fronteiras
que fazem do processo de ensinar e aprender línguas, ou qualquer outro conteúdo
escolar, um resultado de práticas homogeneizantes, bipartidas e exclusivas de se
lidar com a realidade que nos cerca.

Você chegou ao final desta Unidade de estudo. Caso ainda tenha dúvidas, reveja o
conteúdo e se aprofunde nos temas propostos. Até a próxima!

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Referências
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

BHABHA, H. K. Culture’s in-between. In: HALL, S. DU GAY, P. Questions of cultural


identity. London: SAGE, 1996. p 53-59.

BLOMMAERT, J. The sociolinguistics of globalization. Cambridge: Cambridge


University Press, 2010.

FREEPIK COMPANY. [Banco de Imagens]. Freepik, Málaga, 2023. Disponível em:


https://www.freepik.com/. Acesso em: 6 mar. 2023.

MENDES, E. Língua, cultura e formação de professores: por uma abordagem de


ensino intercultural. In: Mendes, E.; Castro, M. L. S. (Org.) Saberes em português:
ensino e formação docente. Campinas: Pontes, 2008. p. 57-77.

MENDES, E. Aprender a ser a viver com o outro: materiais didáticos interculturais


para o ensino de português LE/L2. In: SCHEYERL, D. SIQUEIRA, S.. Materiais didáticos
para o ensino de línguas na contemporaneidade: Contestações e proposições.
Salvador: EDUFBA, 2012a. p. 355-378.

MENDES, E. O conceito de língua em perspectiva histórica: reflexos no ensino e na


formação de professores de português. In: LOBO, Tânia et al. Linguística histórica,
história das línguas e outras histórias. Salvador: EDUFBA, 2012b. p. 667-678.

MENDES, E. A ideia de cultura e sua atualidade para o ensino-aprendizagem de le/


l2. EntreLínguas, Araraquara, v.1, n. 2, p. 203-221, jul./dez., 2015. Disponível em:
https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/8060. Acesso em: 3 mar.
2023.

MENDES, E. Educação escolar indígena no Brasil: multilinguismo e interculturalidade em


foco. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 71, n. 4, p. 43-49, out. 2019. Disponível em: http://
cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252019000400013&lng=
en&nrm=iso. Acesso em: 3 mar. 2023.

MENDES, E. Educação linguística intercultural. In: LANDULFO, C.; MATOS, D. (Orgs.).


Suleando conceitos e linguagens: decolonialidades e epistemologias outras.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2022. p. 123-133.

Kassandra. Ainda sobre a possibilidade de uma linguística: performatividade, política e


identificação racial no brasil. Delta: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e
Aplicada, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 767-786, dez. 2016. FapUNIFESP (SciELO). Disponível
em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-445063437589564459. Acesso em: 7 mar. 2023.

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Unidade 2: A Educação Linguística Intercultural
Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz reconhecer as características dos elementos
constitutivos da educação linguística intercultural e seus reflexos nas práticas educativas.

2.1 Educação Linguística Intercultural e seus Elementos Constitutivos

Para começar a refletir sobre a educação linguística em uma perspectiva intercultural,


clique aqui e assista ao vídeo “Virada educação: encontros no território educador”.

Como você pode ver, a experiência apresentada no vídeo mostra como os nossos
espaços educativos podem se transformar em ambientes de criatividade, de
partilha de conhecimentos, de diálogo intercultural, de experimentações culturais
e artísticas variadas.

Assim, todos os espaços de nossa


atuação, especialmente os marcados
pela diversidade linguística e cultu-
ral, como são as fronteiras, são terri-
tórios educadores privilegiados.

A educação linguística intercultural, justa-


mente, busca potencializar esses territórios
e fazê-los transbordar de conhecimentos e
saberes!

Então você pode se perguntar: o que se


pode almejar para a educação linguística no
O que se pode almejar para a educação século XXI, em um momento em que exis-
linguística do século XXI. tem tantos problemas sociais, ambientais,
Freepik (2023). econômicos e políticos no mundo?

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O cenário dos nossos tempos nos desafia a pensar de modo mais alargado, fazendo
o exercício que nos propõe Ailton Krenak (2020, p. 27), que é viver a experiência
da nossa própria circulação e atuação pelo mundo, “não como uma metáfora, mas
como uma fricção”, contando uns/umas com os(as) outros(as), respeitando uns/
umas aos(às) outros(as).

Assim, precisamos pensar uma educação linguística outra, tão diversa quantos são
os contextos de seu desenvolvimento, sendo um campo de atuação e de luta, de
resistência e de renovação, e que interroga as epistemologias que não aceitam o
pensamento divergente e o reconhecimento de que a vivência das línguas e as
línguas se dá de modo conjunto, num roçar de experiências de vida e a partir de
deslocamentos constantes.

A Educação Linguística Intercultural (ELI) representa uma dimensão mais ampla


da democratização do acesso às línguas, maternas e estrangeiras/segundas, e inclui
não apenas o processo de ensino-aprendizagem de línguas em si, mas também:

• a formação de professores(as);

• o desenvolvimento de currículos;

• o desenho de materiais instrucionais;

• os processos de avaliação e certificação e as políticas linguísticas criadas.

Na videoaula a seguir, reflita um pouco mais sobre a Educação Linguística


Intercultural (ELI):

Videoaula: Educacao Linguistica Intercultural (ELI)

Nessa perspectiva, uma ELI deve ser pensada considerando-se as suas


dimensões constitutivas.

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Dimensões constitutivas da Educação Linguística Intercultural (ELI).
Fonte: Elaborado pela autora (2023).

Para que você possa compreender melhor cada uma dessas dimensões
constitutivas, assista à videoaula a seguir.

Videoaula: Dimensões Constitutivas da Educação Linguística Intercultural (ELI)

Como visto, a ELI aqui está sendo compreendida como campo de ação e de
construção de saberes, práticas e epistemologias diversas, e não como processo
individual.

Já que ela é concebida como dimensão da experiência de interação e de produção


conjunta de conhecimentos, não se constrói sem as pessoas, agentes que
atuam a partir de diferentes posições de sujeito, professores(as), alunos(as),
pesquisadores(as), gestores(as), criadores(as) de políticas, entre outros(as).

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Por ser aberta e movente, a educação linguística numa perspec-
tiva intercultural pressupõe ação criativa e propositiva em to-
das as suas dimensões constitutivas, em busca da construção
de espaços interculturais nos quais a experiência da diferença é
a sua maior força motriz.

Por isso, ela tem como primeiro objetivo promover a paz, a equidade e a justiça
social, visto que é, sobretudo, um ato político de resistência e de luta contra todo
tipo de discriminação e de racismo, pois como nos diz Nascimento (2019, p. 19):

  “uma vez que admitimos que o racismo está na


estrutura das coisas, precisamos admitir que a língua é
uma posição nessa estrutura”. 

A ELI desloca os sujeitos de suas certezas, obriga-os a se interrogar sempre. A


interrogação constrói o exercício crítico cotidiano de questionamento das estrutu-
ras de poder e de opressão, que operam em diferentes instâncias da vida social e
que favorecem os privilégios de uns/umas em detrimento de outros(as).

A ELI obriga professores(as) a fazerem o exercício constante de “desnaturalizar


o olhar condicionado pelo racismo” (RIBEIRO, 2019, p. 9), as variadas formas de
opressão linguística e cultural, os diversos modos de preconceito contra pessoas
e seus modos de existência, de modo a criar meios de responsabilização e de ação
social e educativa.

Como é uma instância sempre em movimento e que se alimenta


das perguntas que são feitas na medida em que se desenvolve,
a ELI reconhece que todo processo educativo é atravessado por
incertezas e incompletudes, porque não há respostas prontas,
enlatadas, empacotadas.

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O que movimenta a ELI são as interrogações
(quando, por quê, onde, para quê, para quem),
condição fundamental para qualquer processo
educativo que se constrói à medida que caminha.

O que movimenta a ELI?


Fonte: Freepik (2023).

Assim, a ELI recusa todo tipo de explicação e de prática que não seja construída
na experiência, buscando incorporar no fazer teórico e pedagógico outras episte-
mologias, outras cosmogonias, outros modos de ensinar e aprender línguas, mais
sensíveis às pessoas e ao que elas significam no mundo.

Por sua natureza proativa e movente e por buscar construir uma pedagogia ou-
tra, a ELI nos obriga a rever nossas crenças e concepções sobre os significados de
língua/linguagem, de ensinar e aprender e dos papeis que assumem as pessoas
envolvidas no processo educativo, professores(as) e alunos(as), bem como outros
agentes que dele participam, direta ou indiretamente.

Também é necessário repensar o espaço da sala de aula, os currículos e desenhos


de cursos, os materiais didáticos e o processo de avaliação, o que impactará na
própria visão de proficiência linguística, entre outros aspectos.

Nesse sentido, o desenvolvimento de


uma educação linguística intercultural,
antes de ser um exercício de constru-
ção teórica, deve obedecer a um crite-
rioso processo de planejamento e es-
truturação.

A educação linguística intercultural


e seu processo de planejamento.
Fonte: Freepik (2023).

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74
Este processo envolve desde o estabelecimento dos princípios norteadores da
ação pedagógica, até o planejamento de cursos, seleção e produção de materiais
e recursos didáticos e elaboração de estratégias de monitoramento e avaliação,
sempre tendo em vista qual é o público ao qual se destina a ação pedagógica, em
que contexto, ou contextos, e sob que condições.

Esse tipo de cuidado e orientação, fundamental para o processo de ensino/


aprendizagem intercultural, impede-nos de incorrer no erro clássico de tratar o
processo de ensinar e aprender como uma fórmula única e imutável, a qual se
presta às mais diferentes situações, de modo homogêneo.

2.1.1 Educação Linguística Intercultural e Formação de Professores


para uma Educação Plural

Todos os conteúdos e reflexões com que você entrou em contato até aqui têm
como pano de fundo a necessidade de que a formação, inicial e continuada,
de professores de línguas prepare-os para atuar em contextos de ensino-
aprendizagem complexos e marcados por diferenças linguísticas e culturais.

Não basta apenas ao professor dominar o objeto do seu ensino,


a língua, mas saber atuar e intervir em ambientes cada vez mais
multilíngues e multiculturais, visto que lidamos com sujeitos
ativos, assentados em diferentes histórias de vida, e que levam
para a sala de aula a diversidade de suas experiências no mundo.

Compreender as relações entre língua e cultura na construção de uma educação


linguística intercultural pressupõe desenvolver capacidades no professor para
analisar as tradições em seu contexto de atuação em uma nova perspectiva,
mais dinâmica e que considera as interações linguísticas como ações situadas e
altamente marcadas contextualmente.

Assim, ensinar e aprender devem ser compreendidos como processos dialógicos,


nos quais professores e alunos aprendem juntos, com a contribuição de todos,
porque a rigidez das posições bem-marcadas cede lugar à flexibilidade e ao
diálogo de identidades.

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Processo de ensinar e aprender.
Fonte: Freepik (2023).

Assim, numa educação linguística intercultural, torna-se relevante que o


professor seja capaz de organizar as experiências de ensinar e aprender com foco
no sentido, no uso da língua que se desenvolve na interação e que, por isso, é
altamente situado, em detrimento da prática excessiva e descontextualizada de
estruturas formais e gramaticais.

Quaisquer que sejam os conteúdos tomados como ambientes para o


desenvolvimento da aprendizagem, para práticas de leitura, escrita, oralidade e
análise linguística, o importante é o modo como esses conteúdos funcionam como
pontes e passaportes de acesso a novas experiências e significados construídos
em conjunto, por todos os sujeitos em interação.

Os materiais e recursos didáticos, por sua vez, devem funcionar como fonte,
como ponto de partida para as experiências de ensinar e de aprender, e não o
único conteúdo que circula em sala de aula. A seleção dos “gatilhos” que disparam
experiências de interação deve privilegiar conteúdos autênticos, culturalmente
significativos, centrados nos interesses e necessidades dos aprendizes.

Professores e alunos, ainda, ao ensinarem e aprenderem língua, participam de


processos que englobam, além dos aspectos linguísticos, aspectos que caracterizam
o uso da linguagem, como:

• socioculturais;

• cognitivos;

• afetivos; e

• psicológicos.

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Esses são processos que visam ao engrandecimento do indivíduo, como sujeito
histórico, cultural e como cidadão, e ao uso comum da nova língua-cultura como
passaporte para a inserção pacífica e dialógica do sujeito no mundo à sua volta.

Desse modo, professores e alunos atuam como agentes de


interculturalidade, que promovem o diálogo entre culturas
através da interação e da produção conjunta de conhecimentos,
guiados por sentimentos de cooperação, colaboração, respeito
mútuo e respeito às diferenças.

Faz parte desse modo de ser e de agir de professores e alunos abrir-se para a
aceitação do novo e praticar a humildade e a tolerância, ao mesmo tempo em
que agem como analistas e críticos das experiências que partilham para que
possam intervir, complementar e modificar o seu processo de aprendizagem
com autonomia, criatividade e responsabilidade.

Ademais, é importante ressaltar, nesse processo,


a relevância da avaliação, que se transforma
em análise crítica das experiências de ensinar
e aprender, envolvendo todos os participantes
do processo, em regime de colaboração e de
partilha.

A relevância da avaliação.
Fonte: Freepik (2023).

A avaliação tem como foco o desenvolvimento do processo de aprendizagem e não


o seu fim, assim como se preocupa com a qualidade do que foi aprendido, e não
com a quantidade, num contínuo movimento de alimentação e retroalimentação.

Portanto, é importante ressaltar que todas as ideias, princípios e conceitos


discutidos são insuficientes se não forem mobilizados nas práticas educativas
cotidianas. Para isso, os professores precisam refletir, repensar e problematizar as

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 77


antigas práticas, transformando o seu espaço pedagógico em um ambiente mais
sensível à diversidade e mais respeitoso às diferenças, assumindo o seu papel
como mediador intercultural e como transformador da realidade que o cerca.

Você chegou ao final desta Unidade de estudo. Caso ainda tenha dúvidas, reveja o
conteúdo e se aprofunde nos temas propostos. Até a próxima!

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Referências

FREEPIK COMPANY. [Banco de Imagens]. Freepik, Málaga, 2023. Disponível em:


https://www.freepik.com/. Acesso em: 6 mar. 2023.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MENDES, Edleise. Abordagem comunicativa intercultural: uma proposta para ensinar


e aprender língua no diálogo de culturas. 2004. Tese (Doutorado em Lingüística
Aplicada) - Programa de Pós-graduação em Lingüística Aplicada da Universidade
Estadual de Campinas, São Paulo, 2004.

MENDES, Edleise. Língua, cultura e formação de professores: por uma abordagem de


ensino intercultural. In: Mendes, Edleise; Castro, M. L. S. (Org.) Saberes em português:
ensino e formação docente. Campinas: Pontes Editores, 2008. p. 57-77.

MENDES, Edleise. Por que ensinar língua como cultura? In: SANTOS, Percília. ORTIZ,
Maria Luisa. Língua e cultura em contexto de ensino de português para falantes de
outras línguas. Campinas: Pontes Editores, 2010. p. 53-77.

MENDES, Edleise. O português como língua de mediação cultural: por uma formação
intercultural de professores e alunos de PLE. In: Mendes, Edleise. (Org.) Diálogos
interculturais: ensino e formação em português língua estrangeira. Campinas:
Pontes, 2011. p. 139-158.

MENDES, Edleise. A ideia de cultura e sua atualidade para o ensino-aprendizagem de le/


l2. EntreLínguas, Araraquara, v.1, n.2, p. 203-221, jul./dez. 2015. Disponível em: https://
periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/8060. Acesso em: 7 mar. 2023.

MENDES, Edleise. Educação escolar indígena no Brasil: multilinguismo e


interculturalidade em foco. Ciência e Cultura, São Paulo , v. 71, n. 4, p. 43-49, out. 2019.
Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-
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MENDES, Edleise. Educação linguística intercultural. In: LANDULFO, Cristiane; MATOS,


Doris (Org.). Suleando conceitos e linguagens: decolonialidades e epistemologias
outras. Campinas: Pontes Editores, 2022. p. 123-133.

MUNIZ, Kassandra. Ainda sobre a possibilidade de uma linguística: performatividade,

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 79


política e identificação racial no brasil. Delta: Documentação de Estudos em Lingüística
Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 767-786, dez. 2016. FapUNIFESP (SciELO).
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-445063437589564459. Acesso em: 7
mar. 2023.

NASCIMENTO, Gabriel. Racismo linguístico – Os subterrâneos da linguagem e do


racismo. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.

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Unidade 3: A Interculturalidade nas Práticas Educativas
Plurais

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de refletir criticamente sobre a experimentação
pedagógica a partir de situações de ensino-aprendizagem e da análise de materiais e
recursos didáticos.

3.1 Experiências Interculturais: Análise e Reflexão sobre


Situações-Problema

Para iniciar os estudos desta unidade clique aqui e assista ao vídeo “Olhe para
além das fronteiras” e reflita um pouco sobre a experiência realizada.

Como você pode ver na experiência mostrada no vídeo, quando nos aproximamos
do que é diferente de nós, o primeiro impacto é sempre de estranheza, de
deslocamento e até um pouco de desconforto.

Isso é natural, porque somos orientados socialmente a reproduzir padrões de


todos os tipos:

• de conduta;

• de classe;

• moral;

• físico;

• étnico;

• racial, entre outros.

Nesse sentido, todo encontro entre culturas e línguas representa uma espécie
de estranhamento, a princípio, mas que a depender de como são construídas as
relações e interações, pode se transformar em aprendizado mútuo.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 81


Assim, no vídeo, é possível perceber o desconforto inicial das pessoas, mas, em
seguida, pela simples disposição que elas têm de “enxergar o outro”, a experiência
se transforma em empatia, em afeto, em comunhão.

Por isso, desenvolver ambientes de diálogo intercultural, o que


é fundamental para desenvolvermos uma educação linguística
intercultural e crítica, exige das pessoas envolvidas no processo
de ensinar e aprender a disposição para a escuta atenta e a
sensibilidade de se colocar não apenas “no lugar do outro”, mas
ao lado dele.

Para ampliar a reflexão, durante o estudo dessa unidade, a proposta será pensar
sobre algumas experiências de deslocamento e de atuação de professores em
ambientes complexos e marcados pela diversidade linguística e cultural.

3.1.1 Experiências e Memórias de Professores(as) de Línguas

Nas práticas de formação de professores, inicial ou continuada, um dos principais


problemas que se tem discutido é o fato de que as instituições desenvolvem
políticas de formação para professores sem os professores.

Isso significa que são feitos planejamentos de cursos com modelos pedagógicos e
materiais inovadores, mas que não consideram perguntas preliminares e básicas,
como as seguintes:

• O que esses(as) professores(as) sabem?

• De que modo eles(as) ensinam?

• Quais são as suas experiências e como elas podem auxiliar no processo de


renovação pedagógica?

Assim, nenhum processo de formação pode ser bem-sucedido se não levar em


consideração as experiências, histórias, memórias e práticas dos professores em
formação. Afinal, somente se pode aprender o novo refletindo sobre o que se
sabe. Além disso, já há muito foi superada a ideia de que o que os professores
fazem em sala de aula não tem valor teórico, porque são teorias “informais” que
se constroem em sala de aula. Pelo contrário, todo professor é um produtor de
teorias e de práticas entrelaçadas.

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Para refletir mais sobre esse tema, analise algumas experiências relatadas por
professores participantes do curso A Docência Plural – Formação em interculturalidade
e bi/multilinguismo. O curso foi realizado pelo Projeto Cruzando Fronteiras, da OEI,
em modalidade híbrida, com carga horária de 40 horas, em novembro de 2022. Os
nomes dos professores foram omitidos, para assegurar o seu anonimato.

Primeiro Relato
“A Interculturalidade é vista e vivida no cotidiano social e escolar. E
verdadeiramente traz influência, interação, mudanças no linguajar e
perspectivas humanas do outro. Enquanto professora de Literatura e Língua
Portuguesa, vejo, na prática, como esta gera ações, reações, pensamentos,
neologismos, enriquecimento (por vezes nem tanto) pessoal e acadêmico.

Interculturalidade como fenômeno capaz de empreender mudanças.


Fonte: Freepik (2023).

Neste relato, é possível perceber que a interculturalidade é vista pelo(a)


professor(a) como um fenômeno capaz de empreender mudanças, de
produzir novos sentidos e de recriar o mundo. A diversidade, ao invés de
ser um problema, passa a ser um recurso importante para a construção de
ambientes de acolhimento e de partilha. Também é algo que se constrói no
dia a dia, a partir de toda a sorte de encontros, tanto na sociedade quanto
na educação escolar.

Segundo Relato
“Não tenho experiência intercultural, mas gostaria muito de vivenciar essas
situações e obter experiências tão ricas que só quem vive nas fronteiras sabe
explicar. Temos que ter a consciência que somos iguais em direitos e diferentes
em cultura. Como seres plurais devemos respeitar e aceitar o outro.”

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Interculturalidade como possibilidade de encontro.
Fonte: Freepik (2023).

Nesse segundo relato, o(a) professor(a) acredita não ter experiência


intercultural, porque não vive em região de fronteira. No entanto, as
fronteiras não são somente aquelas físicas, mas também as fronteiras
simbólicas, invisíveis “a olho nu”, mas que impactam muito a vida das
pessoas. Com certeza, o(a) professor(a) já vivenciou diferentes possibilidades
de encontros com o diferente, mas ainda não percebeu como eles podem
ter influenciado a sua percepção sobre ele(a) mesmo(a) e sobre o mundo.
Além disso, ele(a) reconhece a pluralidade social e ressalta o fato de que
todas as pessoas devem ter direitos iguais. Esse é um primeiro passo para
se pensar a interculturalidade.

Terceiro Relato
“Nos últimos 30 anos, ministrei aulas numa região de fronteira terrestre, divisa
da Guiana Francesa com o Brasil, onde há tribos indígenas, comunidades
ribeirinhas e quilombolas, além de alunos com DV (deficiência visual) e
DA (deficiência auditiva), todos convivendo harmônica e respeitosamente
no mesmo ambiente. Víamos uma mescla das tradições, falares, saberes,
costumes em que um passava naturalmente ao outro, aprendendo e
ensinando. Verdadeiramente, uma troca cultural e de linguagem. E por
mais simples que fosse a escola, com recursos parcos, costumava-se
trabalhar, por lá... com a valorização do que eles possuem como próprio.
Para facilitar a compreensão dos alunos, o aprendizado é fazer com que
fossem valorizados, que criassem um vínculo de aprendizado que passe
pelo gostar de apreender e construir saber, com um sentido profundo de
pertencimento. Não se despreza a cátedra, mas se usa o informal como
apoio pedagógico para o fazer científico.”

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A riqueza de conviver.
Fonte: Freepik (2023).

Nesse relato, o(a) professor(a) descreve a riqueza de sua experiência em


conviver com a diversidade apresentada por diferentes grupos de pessoas
com os quais conviveu, compartilhando línguas, culturas e vivências, quase que
numa relação simbiótica. Isso acontece quando as experiências de encontro são
orientadas por comportamentos de abertura, de solidariedade e de empatia.
Também é relevante ressaltar neste relato o fato de que, nas práticas escolares
do(a) professor(a), sempre foram beneficiadas as experiências e saberes dos
alunos, “por mais simples que fossem”, visto que, em sua ação de construção
da interculturalidade, está a compreensão de que somente valorizando as
pessoas, o que elas são e representam, é possível construir pertencimento e
produção do conhecimento compartilhado e colaborativo.

Quarto Relato
“Há 25 anos atrás, quando lecionava em Itapecerica da Serra (SP),
experienciei o processo de escolarização de crianças da comunidade
cigana seminômades, de etnia Calon. Pude conhecer a identidade, os
costumes, a vestimenta e, principalmente, a língua ágrafa distinta dessa
comunidade: Shib Kalé ou Caló (mistura de Romanês ou Romani, Português
e Espanhol), o que diferencia o povo cigano do não cigano. Uma troca
incrível! Nessa troca, observei a cultura pouco, ou quase nada, entendida,
seja por preconceitos seja por medo, de um povo que chegou ao Brasil no
início do período colonial, mas só neste ano (2022) é que teve aprovado o
Estatuto dos Povos Ciganos.
Muitos anos depois, participei de uma pesquisa sobre a “Escravidão Urbana na

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região metropolitana de São Paulo: Os latino-americanos ilegais e a espoliação
capitalista do Brasil” em que também pude perceber que, apesar da Constituição
Federal, não somos uma nação monolíngue, mas uma nação multilíngue.

E essas duas experiências mostraram que, aqui em São Paulo, embora não
façamos fronteiras com nenhuma outra nação, somos uma verdadeira Torre
de Babel de diversidade linguística.”

Construção da interculturalidade.
Fonte: Freepik (2023).

Há, nesse relato, variados aspectos relevantes para compreender como em


nossa prática cotidiana como professores vamos produzindo experiências de
deslocamento e de ruptura com ideias rígidas e pré-concebidas sobre o mundo
e sobre as pessoas. O(a) professor(a) relata o quão rico foi conhecer um grupo
tão discriminado e marginalizado como o dos ciganos, quase sempre alijados
do convívio social das cidades, por desconhecimento das pessoas sobre as
suas histórias e riquezas culturais. Ao conhecer o diferente e valorizá-lo, foi
possível empreender a mudança, através do olhar atento e da escuta sensível.
Também o(a) professor(a) reconhece que vivemos em um país multilíngue e
multicultural e que as diferenças estão em cada esquina. Isso nos mostra que
viver e construir a interculturalidade começa pela vontade de ver o diferente
com outros olhos, de modo que possamos compreender, profundamente, o
quanto temos a aprender uns com os outros.

Quinto Relato
“Moro na fronteira com a Bolivia em Corumbá, Mato Grosso do Sul, e é
muito visível a necessidade de se trabalhar com a interculturalidade no dia
a dia. Temos um fluxo muito grande de Bolivianos com que convivemos
diretamente em nossas ruas, presentes em feiras livres, em restaurantes
e, principalmente, no comércio. A cidade respira esse convívio. No último

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dia 10/11 comemora-se o dia da Saltenha, uma comida típica boliviana, e,
na cidade, no domingo 13/11, tivemos o dia festivo para essa comida e foi
um sucesso. Teve até show a tarde toda na orla do porto com cumbias e
grupos musicais. Um grande acontecimento. Momento de aprendizagem e
convivências com outras culturas. Ou seja, interculturalidade presente!”

Construção da interculturalidade.
Fonte: Freepik (2023).

Como se constrói a interculturalidade? Vivendo-a! É isso que nos mostra o


relato do(a) professor(a), pois reconhece que as experiências de convivência
e de entrelaçamento de culturas, línguas, memórias e histórias são fontes
inesgotáveis de aprendizado, para todos os envolvidos. Além disso, ele(a)
destaca a compreensão da interculturalidade, como já estudamos aqui, como
algo que se constrói no dia a dia, nas práticas cotidianas de interação com
os outros e com o mundo que nos cerca. Mas, para isso, é necessário que
tenhamos um comportamento de abertura e de partilha, para que possamos
compreender e dialogar com o diferente e não apenas conviver com ele.

3.1.2 A Avaliação como Prática Intercultural: Análise de Atividades


Avaliativas

Para muitos professores, avaliar o desenvolvimento da aprendizagem tem


significado muitas coisas. Entre as diferentes feições que a avaliação pode
apresentar, serão vistos dois grandes blocos.

Avaliações que Priorizam a Quantidade


De um lado, estão os procedimentos de avaliação que priorizam a quantidade
do que se aprende, e não a qualidade, que estabelecem como foco da
avaliação o aluno e elegem o professor como o único capaz de avaliar. A
preocupação nesse tipo de avaliação tem sido voltada para a “medição” e

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constatação do conteúdo que foi dado em sala de aula, e se esse conteúdo
foi aprendido em quantidade suficiente para que o aluno seja aprovado ou
alçado para outro nível de proficiência na língua.

A questão é: que tipo de proficiência o aluno adquiriu? Ou, melhor, que qualidade
de proficiência ele alcançou? Nesse tipo de avaliação, essas questões importam
menos. Felizmente, as discussões relativas à avaliação de aprendizagem no ensino/
aprendizagem de línguas têm focalizado a necessidade de se empreender mudanças,
não só nos modos e procedimentos de avaliação, mas também na postura de
professores e alunos e das instituições diante desse processo. O questionamento,
então, diz respeito ao tipo de conhecimento que desejamos que os nossos alunos
construam, ou seja,w o que desejamos que eles aprendam?

Avaliações focadas no processo de ensinar e aprender


O outro bloco ou conjunto de procedimentos de avaliação representaria
as iniciativas que visam empreender mudanças no processo de avaliação
como um todo e, consequentemente, no desenvolvimento do processo de
ensinar e aprender línguas. Aqui a preocupação não é a quantidade, e sim a
qualidade do que se aprende.

A questão é: qual a importância do meu aluno comprovar o domínio de todos os


conteúdos e aspectos gramaticais da língua, fornecidos em sala de aula, se ele não
sabe contextualizá-los socioculturalmente, transformá-los em ação que o permita
interagir através da língua?

O que importa na avaliação não é a meta final que devemos


alcançar, mas o desenvolvimento da aprendizagem em todas as
suas etapas, o qual inclui também a reflexão sobre as atuações
dos sujeitos envolvidos e os acontecimentos em sala de aula, com
o objetivo de promover mudanças.

De acordo com uma abordagem de ensino culturalmente sensível e dentro de


uma educação linguística intercultural, a avaliação não deve ser algo que acontece
à parte do que alunos e professores fazem em sala de aula.

Pelo contrário, assim como avaliar é uma ação natural que realizamos a todo o
momento em nossas vidas, assim deve ser quando ensinamos e aprendemos línguas.

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Para sistematizar o que está sendo discutido, veja o que significa avaliar em uma
perspectiva intercultural.

1. Avaliar é Estar Atentos ao que Fazemos


Avaliar é estarmos atentos para o que fazemos e como fazemos quando
aprendemos, e para o que devemos fazer para que possamos avançar. Esse
avanço não é solitário, a responsabilidade pelo progresso é de todos.

Nessa perspectiva deixamos de ser apenas espectadores, passamos a agir


como protagonistas na construção de nossos saberes (MENDES, 2022).

Avaliar é estar atento ao que fazemos.


Fonte: Freepik (2023).

Para sistematizar o que está sendo discutido, veja o que significa avaliar em uma
perspectiva intercultural.

2. Significados de Avaliar numa Perspectiva Intercultural


A avalição como prática intercultural desenvolve-se na vivência com o outro,
na experiência de construir repertórios na língua para agir no mundo.

Avaliar é partilhar e colaborar, porque sou sensível àqueles(as) com quem


eu divido a experiência de aprender.

Vivência com o outro para construir repertórios e agir no mundo.


Fonte: Freepik (2023).

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3. Dinâmica da Avaliação Geradora
Veja que é possível visualizar a dinâmica da avaliação geradora na perspectiva
da educação linguística intercultural:

Dinâmica da avaliação geradora.


Fonte: Elaborada pela autora (2023).

A avaliação, em toda a sua amplitude e importância, deve ser uma ferramenta,


uma estratégia complementar do processo de aprendizagem como um todo, de
modo que contribua para o enriquecimento das experiências desenvolvidas em
sala de aula e, consequentemente, para o avanço da aprendizagem.

Pensando também nos aspectos que estão além da sala de aula, destaca-se a
importância de que sejam incluídas, nas práticas de formação de professores de
línguas, em estágio inicial ou em serviço, a reflexão sobre a avaliação. Isso não
se refere apenas à avaliação de proficiência, mas de todo o sistema envolvido no
processo mais amplo de ensinar e aprender línguas, incluindo-se aí as instituições
que o abrigam.

O professor que não reflete sobre a importância da avaliação em sua prática


cotidiana, ainda que seja bem-intencionado, correrá o risco de ver os seus esforços
de mudança esbarrarem em dificuldades, visto que avaliar, como aqui destacamos,
é mais do que uma etapa final do processo de ensinar e aprender, mas uma ação

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aliada, capaz de contribuir para que a sala de aula de línguas seja mais democrática
e inclusiva, ambiente no qual o conhecimento seja construção de todos.

A avaliação, sendo responsabilidade de todos(as) e estando voltada para a


qualidade e não a quantidade, para o avanço e não o retrocesso, para o respeito
e a colaboração e não a discriminação, pode ser capaz de seduzir professores(as)
e alunos(as) no sentido de fazer do ato de avaliar algo mais prazeroso, através
do qual todos(as) trabalham juntos(as) para empreender as mudanças e para
construir novos conhecimentos na/com a língua-cultura alvo.

A avaliação como prática intercultural é um modo de mediação


das experiências de ensinar e aprender língua, atuando para
promover a equidade, a empatia e a justiça social, dentro e fora
da sala de aula.

3.2 A Interculturalidade na Prática: Materiais e Recursos Didáticos

Para começarmos o estudo sobre os materiais e recursos didáticos, cabe inicialmente


a pergunta: o que são materiais?

Materiais podem ser compreendidos como um conjunto de recursos, físicos e/ou


digitais, organizados como fonte, como mediadores nas práticas situadas de ensinar
e aprender línguas, com base em princípios teóricos e metodológicos comuns.

O livro didático é apenas um modo de organização dos


materiais, que desejavelmente devem ser flexíveis,
abertos e manter um baixo grau de previsibilidade
quanto às experiências que promovem na aprendizagem
da língua em uso (MENDES, 2012, 2018, 2019).

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O livro didático.
Fonte: Freepik (2023).

Em uma educação linguística intercultural, as experiências de ensinar e aprender


uma nova língua-cultura devem ser significativas, desenvolvidas dentro de
contextos e voltadas para a interação entre os sujeitos participantes do processo
de aprendizagem. A partir desse princípio, é necessário que os materiais sofram
uma mudança de enfoque.

O teórico indiano Prabhu (1988) adota a denominação de source materials (materiais


fonte) para descrever os materiais e recursos que são altamente flexíveis, abertos
e que possibilitam variadas formas de planejamento de lições, atividades e
tarefas, promovendo insumos variados, em diferentes níveis de dificuldades e em
diferentes quantidades, deixando o professor livre para aproveitá-los de acordo
com as necessidades e oportunidades concretas vivenciadas em sala de aula. Para
este estudo será adotada essa nomenclatura.

Veja, a seguir, algumas características do material fonte:

De Baixa a média previsibilidade: o material é o ponto de partida para as


experiências de uso da língua.

Múltiplo: possibilita ser expandido, ampliado, reconstruído.

Desafiador: desafiador para professores(as) e alunos(as), pois permite interações


centradas em experiências reais de uso da língua.

Crítico e Intercultural: deve ser potencialmente crítico e intercultural.

Experiencial: promove experiências de interação e de construção de conhecimento.

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No contexto de ensino-aprendizagem de línguas, especialmente em ambientes
complexos e diversos, as exigências do público aprendiz estão cada vez maiores e mais
diversificadas e os materiais didáticos que temos disponíveis no mercado não dão
conta dessa diversidade, sobretudo quando consideramos situações de aprendizagem
marcadas pela grande complexidade do seu público, como são as fronteiras.

Independentemente das dificuldades que enfrentamos para a produção e a


publicação de novos materiais, precisamos criar alternativas, diversificar, ampliar as
possibilidades de escolha do professor que, entre tantas tarefas, também é produtor
de materiais e recursos, ao longo de sua prática cotidiana (MENDES, 2012).

O planejamento e a elaboração de um material que funciona como


fonte, como ponto de partida e não de chegada, devem ser orientados
por uma abordagem crítica e culturalmente sensível, de acordo com
as características de uma educação linguística intercultural.

Em resumo, os materiais didáticos produzidos sob essa orientação devem permitir,


quanto à sua estrutura e conteúdo:

1 Funcionar como suporte, apoio e fonte de recursos que criem oportunidades


de interação entre alunos, professores e materiais, possibilitando a realização de
experiências de uso da língua-cultura e, consequentemente, maiores chances de
desenvolvimento e avanço da aprendizagem;

2 Ser ajustado, modificado e adaptado de acordo com os desejos, interesses e


necessidades dos alunos e com as percepções do professor do que acontece em
sala de aula;

3 Ter um baixo grau de previsibilidade, quanto ao que deve ser ensinado,


como deve ser ensinado e em que quantidade, permitindo aos alunos e
professores decidirem os caminhos a seguir na construção do conhecimento
em sala de aula;

4 Flexibilizar a ordenação e sequência dos conteúdos, unidades, atividades


e tarefas de acordo com as necessidades e avanços dos aprendizes e/ou
percepções do professor; propor as atividades e tarefas como pontos de
partida, pontapé inicial, gatilho para que se construam novas experiências
de uso da língua-cultura em sala de aula, e não objetivo final ou etapa a ser
cumprida dentro do planejamento da aula;

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5 Organizar as suas atividades e tarefas dentro de ambientes propícios,
para o uso da língua-cultura, os quais são compostos por áreas de uso culturais/
interculturais que permitam o diálogo e troca de experiências das línguas-
culturas em interação;

6 Deslocar o foco nas formas estruturais da língua para um segundo


plano, ou seja, devem deixar de ter um papel de destaque para emergir
em decorrência das situações de uso da língua-cultura, das necessidades e
interesses dos alunos e das dificuldades e/ou necessidades observadas pelo
professor no desenvolvimento do processo de aprendizagem (MENDES, 2012).

Além disso, quanto aos princípios teórico-metodológicos, os materiais e recursos


didáticos em uma perspectiva intercultural são orientados por uma concepção de
língua como prática social, que é indissociável da cultura. Veja a seguir.

Materiais e recursos didáticos em uma perspectiva intercultural.


Fonte: Elaborada pela autora (2023).

Que bom que você chegou até aqui! Agora é hora de você testar seus conhecimentos.
Então, acesse o exercício avaliativo que está disponível no ambiente virtual. Bons
estudos! 

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Referências

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University Press, 2010.

FURTOSO, V. B. Interface entre avaliação e ensino-aprendizagem: desafios na formação


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o ensino das línguas estrangeiras. Londrina: UEL, 2008. p. 127-158.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2020.

MENDES, Edleise. Abordagem comunicativa intercultural: uma proposta para ensinar


e aprender língua no diálogo de culturas. 2004. Tese (Doutorado em Lingüística
Aplicada) - Programa de Pós-graduação em Lingüística Aplicada da Universidade
Estadual de Campinas, São Paulo, 2004.

MENDES, Edleise. Língua, cultura e formação de professores: por uma abordagem de


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ensino e formação docente. Campinas/SP: Pontes. 2008. p. 57-77.

MENDES, Edleise. Por que ensinar língua como cultura? In: SANTOS, Percília. ORTIZ,
Maria Luisa. Língua e cultura em contexto de ensino de português para falantes de
outras línguas. Campinas: Pontes Editores, 2010. p. 53-77.

MENDES, Edleise. O português como língua de mediação cultural: por uma formação
intercultural de professores e alunos de PLE. In: Mendes, Edleise. (Org.) Diálogos
interculturais: ensino e formação em português língua estrangeira. Campinas: Pontes
Editores, 2011. p. 139-158.

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MENDES, Edleise. Aprender a ser a viver com o outro: materiais didáticos interculturais
para o ensino de português LE/L2. In: SCHEYERL, Denise; SIQUEIRA, Sávio. Materiais
didáticos para o ensino de línguas na contemporaneidade: contestações e
proposições. Salvador: EDUFBA, 2012a. p. 355-378.

MENDES, E. O conceito de língua em perspectiva histórica: reflexos no ensino e na


formação de professores de português. In: LOBO, Tânia et al. Linguística histórica,
história das línguas e outras histórias. Salvador: EDUFBA, 2012b. p. 667-678.

MENDES, Edleise. A ideia de cultura e sua atualidade para o ensino-aprendizagem


de le/l2. EntreLínguas, Araraquara, v.1, n.2, p. 203-221, jul./dez. 2015. Disponível em:
https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/8060. Acesso em: 7 mar.
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MENDES, Edleise. Educação escolar indígena no Brasil: multilinguismo e


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Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-
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MENDES, Edleise. Educação linguística intercultural. In: LANDULFO, Cristiane; MATOS,


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MUNIZ, Kassandra. Ainda sobre a possibilidade de uma linguística: performatividade,


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Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-445063437589564459. Acesso em: 7
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PPPLE. Portal do Professor de Português Língua Estrangeira / Língua Não Materna.
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RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras,
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SEVERO, Fabián. Discurso de Fabián Severo pronunciado en la mesa de apertura


del 16º Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol. Plataforma Permanente
para o Acompanhamento da Implantação do Espanhol no Sistema Educativo
Brasileiro. [s.l.], 1, agosto. 2015. Disponível em: https://espanholdobrasil.wordpress.
com/2015/08/01/discurso-de-fabian-severo-pronunciado-en-la-mesa-de-apertura-
del-16o-congresso-brasileiro-de-professores-de-espanhol/. Acesso em: 7 mar. 2023.

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Módulo

3 Fenômenos Linguísticos das


Fronteiras Hispano-Brasileiras
Neste módulo você vai conhecer, reconhecer e identificar os fenômenos linguísticos
das fronteiras hispano-brasileiras. Aqui a proposta é que você saiba mais sobre as
práticas linguísticas dos falantes que vivem nas zonas de fronteira do Brasil com os
demais países latino-americanos.

Você contará com um conjunto de registros da ocorrência dos fenômenos linguísticos


na forma de paisagens linguísticas, presentes em diferentes lugares dessas
fronteiras, localizadas no Arco Sul do Brasil, com os demais países sul-americanos.
Bons estudos!

Unidade 1: A Constituição do Espaço Multilíngue nas


Fronteiras

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de reconhecer os fenômenos linguísticos da


fronteira do Português/Espanhol na América do Sul.

As zonas de fronteira entre o Brasil e os demais países da América do Sul apresentam-


se com diferentes configurações geográficas, culturais, econômicas, sociais e
também linguísticas. No chamado arco sul da divisão das grandes regiões das
fronteiras brasileiras, como se vê no mapa a seguir, está localizada uma quantidade
de cidades de ambos lados das fronteiras, identificadas como cidades gêmeas.

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Mapa das cidades gêmeas.
Fonte: Grupo Retis (2011).

A existência das cidades gêmeas é determinante para a fluidez do contato entre


os moradores fronteiriços, pois facilita a intensidade das trocas cotidianas que
caracterizam a vida social na fronteira. Nessas condições, como dito, a fronteira
é um espaço de muita diversidade, porque há também nelas a presença de uma
variedade de línguas além do português e do espanhol, reconhecidas com as duas
principais línguas nacionais na América do Sul.

A intensidade dos contatos e a dinâmica econômica e social de cada fronteira


favorecem uma maior comunicação entre os fronteiriços, que buscam estratégias
de aproximação e interação com os vizinhos. A necessidade de se comunicar,
negociar, comercializar, trocar, vender e comprar, estudar, visitar amigos e parentes,
por exemplo, leva-os a encontrar meios para interagirem do modo mais eficiente
possível nas suas conversações.

As práticas sociais típicas da realidade cotidiana das fronteiras possibilitam que os


falantes busquem apoiar sua comunicação e interlocução na utilização de estratégias
baseadas em práticas linguísticas que deem conta de resolver as suas interações
linguísticas com o vizinho do outro lado do rio ou da avenida. Deste modo, os
falantes optam por estratégias que resolvam suas necessidades imediatas. Misturar

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 99


as línguas pode ser uma delas, assim como falar alternadamente cada uma das
línguas dominantes, com a mesma habilidade (bilinguismo) ou com domínio parcial
de uma das línguas. Todas essas são estratégias usadas pelos fronteiriços quando
se trata de interagir com o outro, que fala uma língua diferente da sua.

Assim, as estratégias de comunicação


funcionam como recursos linguísticos que
são experimentados pelos falantes que vivem
entre línguas diferentes, pois estão em contato
cotidiano com uma língua além da sua. Essa é
uma realidade nas fronteiras hispano-brasileiras,
sobretudo nas cidades gêmeas.

Estratégias de comunicação
nas fronteiras.
Fonte: Freepik (2023).

A pergunta que pode ser feita a partir da ideia de que nas fronteiras hispano-brasileiras
temos de um lado o português e de outro o espanhol é se de fato temos situações
de bilinguismo nas zonas de fronteiras. A probabilidade do bilinguismo resulta da
história de como as línguas se fizeram presentes nas comunidades fronteiriças, do
quanto os falantes têm uma proficiência e qual seu grau, bem como saber se as
línguas, no caso o português e o espanhol, têm a mesma representatividade para
vida social dos falantes.

É importante destacar que cada zona de fronteira tem sua característica geopolítica.
A sua dinâmica social está determinada por um conjunto de práticas sociais locais,
uma história de ocupação e de como se constitui o seu povoamento, as etnias que
contribuíram para conformação de cada sociedade fronteiriça e como se desenvolve
a economia da fronteira, fator que movimenta as trocas de moedas, de mercadorias,
de serviços, entre outros. As fronteiras linguísticas entre o português e o espanhol
na América do Sul não seguem sempre as linhas demarcatórias das fronteiras que
definem os limites geopolíticos entre os países. As populações se deslocam, cruzam
para o território vizinho, organizam seus núcleos familiares e mantêm suas línguas
familiares/maternas.

Nesta unidade, você vai conhecer mais das situações linguísticas nos contextos
de fronteira, destacando aquelas sobre as quais já há um conjunto de estudos e

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100
pesquisas que discutem não só o bilinguismo, mas também o multilinguismo no
contexto de fronteira.

1.1 Situações do Bilinguismo: Português/Espanhol

O conceito de bilinguismo está relacionado aos enfoques dados pelas diferentes


dimensões sobre as quais ele é abordado: social, cognitiva e linguística. De acordo
com Zimmer, Finger & Scherer (2008) as primeiras classificações foram apresentas
por Roberts, em 1939, que o classificou como sendo de dois tipos: bilinguismo
subordinado e bilinguismo coordenado.

Posteriormente, nos anos 50 do século XX, Weinrich (1953) acrescentou um terceiro,


estabelecendo três categorias de bilinguismo, tomando como base a relação entre
léxico e sistemas conceituais nas duas línguas:

1 o bilinguismo coordenado, em que duas palavras (uma de cada língua falada


pelo bilíngue) representariam conceitos separados;

2 o bilinguismo composto, em que duas palavras (uma de cada língua falada pelo
bilíngue) representariam um único conceito combinado;

3 o bilinguismo subordinado, em que uma palavra da L2 seria acessada por


intermédio da sua tradução na L1 (ZIMMER; FINGER; SCHERER, 2008, p. 3).

As abordagens contemporâneas consideram os propósitos que levam um bilingue


a usar uma ou outra língua. Outro aspecto é que o sistema linguístico do bilíngue se
apresenta muito mais complexo, além de que o uso da linguagem por um bilíngue
está fortemente relacionado a um contexto específico e ao nível de proficiência na
segunda língua (BUTLER; HAKUTA, 2006 apud ZIMMER; FINGER; SCHERER, 2008). As
autoras acrescentam:

Juntando esses dois fatores, percebe-se que o


tópico de discussão, a relação de intimidade entre
interlocutores, o nível de formalidade do ambiente,
as condições psicológicas e físicas dos indivíduos, por
exemplo, são fatores que afetam não somente o grau
de proficiência que os indivíduos irão adquirir em cada
um dos domínios de habilidade (fala, escrita, etc) nas
duas ou mais línguas, como também determinam em
que medida os indivíduos irão alternar entre um e

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outro sistema e se serão capazes de usá-los de forma
separada (ZIMMER; FINGER; SCHERER, 2008, p. 4).

O que estudos sobre bilinguismo concluem é que já não se pode esperar que
os sujeitos sejam bilíngues perfeitos, pois há muitos fatores atualmente que
são considerados no uso de duas línguas para definir se um sujeito é de fato
bilíngue. A ideia de bilíngue perfeito olha para a questão do bilinguismo de modo
unidimensional, sem considerar outros aspectos, como o psicológico, o cognitivo, o
social, o contextual e o cultural.

Megale (2005), apoiada em Harmers e Blanc (2000), afirma que o bilinguismo é


multidimensional, ou seja, os fatores que classificam uma situação de bilinguismo
são múltiplos: “competência relativa; organização cognitiva; idade de aquisição;
presença ou não de indivíduos falantes da L2 no ambiente em questão; status das
duas línguas envolvidas e identidade cultural” (MEGALE, 2005, p. 3).

A autora reproduz o quadro de classificação proposto por Harmers, que nos apresenta
um panorama das múltiplas dimensões que definem os tipos de bilinguismo. Veja o
quadro reproduzido por Megale (2005, p. 6-7):

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Tipos de bilinguismo
Fonte: Megale (2005).

No caso específico das fronteiras hispano-brasileiras, faz-se necessário ponderar


sobre o tipo de bilinguismo português-espanhol. Em primeiro lugar, sobre as
cidades fronteiriças, há poucos mapeamentos sociolinguísticos e os existentes
não são estudos em grande escala, ou seja, que sirvam para demonstrar de modo
definitivo se existem zonas com um bilinguismo extenso, tampouco existem
zonas bilíngues oficialmente reconhecidas. Exemplo disso é que não existe em
funcionamento um sistema público de educação bilíngue nas fronteiras hispano-
brasileiras, resultado, justamente, do não reconhecimento, sobretudo, do status
das línguas e das identidades culturais que coexistem no contexto dessas fronteiras.
Ainda, nesse caso, o bilinguismo depende também da forma como as famílias ou
núcleos familiares estão compostos: um pai e/ou mãe brasileiros e um pai e/ou mãe
argentina, paraguaia, boliviana, uruguaia etc.

Para ilustrar, veja o seguinte mapa que descreve a presença de brasileiros na zona
norte do Uruguai, fronteira com extremo sul do Brasil, onde predomina o português
como a língua materna da população local.

Português no norte do Uruguai.


Fonte: Rona (1965).

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 103


O mapa elaborado por José Pedro Rona em meados dos anos 50 do século XX (RONA,
1965), descreve a extensão da língua portuguesa no norte do Uruguai, região que foi
povoada por brasileiros já no século XVIII. Observe que a presença do português em
território uruguaio ocorre ao longo da fronteira com todo o extremo sul do Brasil. A
manutenção de uma variedade do português como língua materna dos brasileiros
e seus descendentes possibilitou que a língua portuguesa se mantivesse como a
língua falada no âmbito das famílias e nas pequenas comunidades rurais.

Criou-se, nessas condições de funcionamento de duas línguas com funções


diferentes, um sistema diglóssico: o espanhol, uma língua de prestígio, o chamado
idioma nacional no Uruguai, e uma variedade do português brasileiro com uso
restrito aos âmbitos familiares e grupos sociais que compartilham da mesma língua
materna, o português brasileiro.

Para ilustrar, em uma escola da comunidade rural de Cerro Pelado, no


interior da cidade de Rivera, zona com predomínio de descendentes
de brasileiros, as crianças usam nos ambientes internos da escola
o espanhol, já para se comunicarem com os colegas no pátio da
escola, utilizam o chamado Português do Uruguai, uma variedade
do português brasileiro com uma significativa interferência do
espanhol. As crianças se comunicam entre seus pares, meninos e
meninas que vivem na mesma comunidade e, de modo geral, têm
essa variedade de português como língua materna. É a língua dos
seus pais, avós, vizinhos e amigos.

Em contato com o espanhol, a língua portuguesa foi se constituindo em uma


variedade do Português do Uruguai (PU), com bastantes empréstimos do espanhol.
Atualmente, cada vez mais, se nomeia também de Portunhol. Assim é prática
linguística de grande parte da população da região norte do Uruguai.

Para compreender melhor como os falantes fronteiriços usam as línguas e o que elas
representam na construção das suas identidades, vamos assistir a um documentário
realizado na fronteira Brasil-Uruguai.

Para saber mais assista o documentário “A linha imaginária”.

Agora, veja uma videoaula e reflita sobre o que você viu no documentário:

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Videoaula: A Situação Linguística da Fronteira Brasil-Uruguai

A situação linguística da fronteira Brasil – Uruguai é propícia ao bilinguismo, embora


a variedade do português seja pouco prestigiada, porque não é a variedade padrão,
as duas línguas, português e espanhol, têm usos muito determinados pelos status
de cada uma e pelas necessidades de uso segundo as práticas sociais onde uma ou
outra é mais requerida ou eficiente na comunicação diária.

Outro aspecto a ser destacado é que o português é ensinado como segunda língua
desde anos iniciais nas escolas públicas da região norte do país. O português
é reconhecido como uma língua da região, portanto sua oferta é obrigatória nas
escolas primárias até 6º ano. As aulas de português são relacionadas aos temas das
disciplinas escolares, ou seja, não se ensina sobre a língua, mas ela está presente
no ensino de conteúdos que são previamente combinados com a professora de
espanhol. A partir do 6º ano, os alunos podem seguir estudando o português ou
outra língua no Centros de Línguas, de modo gratuito.

O ensino de português nas escolas do norte uruguaio contribuiu para introduzir


a variedade padrão do português, frente à variedade de uso que é o português
do Uruguai (PU), variedade reconhecida nos documentos que orientam o sistema
educacional uruguaio.

Na vida cotidiana, observa-se o uso do espanhol, do português padrão e do português


do Uruguai. Os usos dependem do contexto, do propósito e da situação: o espanhol
como língua majoritária, nacional e dominante, usado em situações formais e
informais; o português padrão, língua da escolarização, de uso em situações
formais; e o português do Uruguai, língua materna ou segunda, minoritária, usada
em situações informais e ambientes familiares.

Veja dois exemplos do uso das duas línguas:

Placa de padaria em Rivera/Uruguai


Foto: Eliana Sturza.

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Observe que a figura acima, é uma padaria localizada no lado uruguaio e há um cartaz
fixado ao lado do caixa com um aviso em português, informando que só podem
usar o banheiro do estabelecimento aqueles que estão comprando ou consumindo
lanches no local. Evidentemente, o cartaz está dirigido aos clientes brasileiros.

Placa de padaria em Rivera/Uruguai


Foto: Eliana Sturza.

A imagem acima é um anúncio de um salão de beleza localizado na Avenida


Sarandi, a avenida principal da cidade de Rivera, que se utiliza das duas línguas
para informar os serviços oferecidos pelo salão. As imagens mostram como as
duas línguas funcionam com a mesma importância. Nesse local há brasileiros e
uruguaios comprando, vendendo, consumindo, negociando e realizando várias
outras atividades.

Nos exemplos, é possível ver a relevância do contexto de uso das duas línguas e
a importância dos espaços urbanos onde há maior movimento do comércio, dos
negócios, da compra e venda de mercadoria. Os vendedores das lojas, por exemplo,
se comunicam nas duas línguas e, muitas vezes, se utilizam também de uma mistura
de línguas, o que popularmente chamam de “Portunhol”.

Agora, veja também como o mesmo ocorre no Brasil, o que mostra a condição para
bilinguismo social, nas duas imagens abaixo:

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Aviso bilíngue na cidade de Rosário (Sul do Brasil).
Foto: Eliana Sturza.

A figura traz um aviso bilíngue de identificação do banheiro em um restaurante


localizado na cidade de Rosário do Sul, local frequentado por turistas uruguaios
e argentinos, caminho de passagem para o litoral brasileiro. A cidade está situada
dentro da faixa de fronteira do Brasil, definida assim por estar dentro de um território
de até 150km para dentro do Brasil.

Aviso bilíngue na cidade de Quaraí (Sul do Brasil).


Foto: Eliana Sturza.

A figura mostra um aviso em espanhol em um restaurante localizado na cidade


brasileira de Quaraí, fronteira com Artigas, no Uruguai. O aviso do restaurante é
porque o sistema é de serviço por quilo, o que não existe no Uruguai, e está escrito
em espanhol porque a orientação do aviso está dirigida ao cliente uruguaio.

Embora não se tenha uma descrição ampla e detalhada do funcionamento de

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bilinguismo na população local que dê conta de todas as situações comunicativas,
observa-se que, do ponto de vista do status, existe um bilinguismo social, embora
seja mais evidente nos fronteiriços uruguaios. As figuras, mais uma vez, mostram
como os fronteiriços criam estratégias comunicativas de acordo com as necessidades
impostas pela vida cotidiana.

Para entender o bilinguismo social, é preciso definir os dois tipos definidos por Appel
& Muskyen (1996).

Bilinguismo aditivo
Nele o falante acrescenta uma segunda língua ao seu repertório, favorecido
pelo fato de que há outra língua a sua disposição. Ambas, a primeira e a
segunda língua, têm o mesmo prestígio. Seria o caso das famílias nas
quais pais e filhos aprendem as duas línguas e as usam em todas as suas
habilidades.

Bilinguismo subtrativo
Se caracteriza em razão de que uma das línguas não tem o mesmo prestígio
que a outra. Este seria caso do português dos brasileiros que vivem na
fronteira argentina, em lugares nos quais o português falado pelos migrantes
não é um português padrão, ao que eles chamam de “brasilero”, assim como
muitos descendentes de brasileiros, que ainda vivem no norte uruguaio,
usam uma variedade de português brasileiro da região sul do Brasil.

1.2 Espaço Multilíngue: Outras Línguas nas Fronteiras da América


do Sul

As diferentes maneiras como as fronteiras se formaram, os tipos de travessias, o


controle da entrada e saída de pessoas, os acordos locais entre as cidades gêmeas,
tornam a fronteira um lugar poroso, de idas e vindas, contribuindo para que ela seja
um espaço de encontros. Desta maneira, as línguas também transitam, tornando a
fronteira um espaço multilíngue.

A mobilidade de pessoas de diferentes lugares e o trânsito frequente são


características das cidades fronteiriças, formando-se um espaço muito diverso, onde
se produzem muitas interações, contatos sociais, culturais, comerciais e linguísticos.

Em relação às línguas, destacamos o que afirma Oliveira (2016):

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Ser da fronteira, portanto, é pertencer a uma
comunidade de prática: em muitos casos aquela que
usa, em maior ou menor grau, diferentes línguas em
contextos adequados, alternando-as, ou conversando
em mais de uma língua concomitantemente, mesmo
que às vezes apenas passivamente, e mesmo que às
vezes a contragosto. É pertencer, portanto, a mais
de uma comunidade linguística, o que coloca vários
problemas para as identidades pessoais construídas
sob a orientação de Estados monolíngues. (p. 66)

Os deslocamentos e migrações, no passado e no presente, contribuem fortemente


para ampliar a presença de outras línguas nas zonas de fronteira. São brasileiros que
cruzam para países vizinhos em busca de trabalho e oportunidades, são bolivianos
que se deslocam para trabalhar em São Paulo, são os venezuelanos em busca de
refúgio, são os haitianos de passagem na procura por acolhimento. E, acrescentamos
a estes, as populações de indígenas de diferentes etnias, sobretudo, ao longo da
fronteira do arco central e do arco norte. Assim é que a fronteira se constitui em um
grande território multilíngue.

Para ilustrar, o mapa a seguir descreve a presença do português ao longo das zonas
de fronteira em territórios dos países vizinhos.

Português além das fronteiras.


Fonte: Lipski (2017).

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O mapa apresenta a distribuição do português dentro de territórios dos países
vizinhos ao Brasil. Observe a fronteira oeste do Brasil com o nordeste da Argentina,
na divisa de Santa Catarina e Rio Grande do Sul com a Província de Misiones. Nesta
região existem comunidades de brasileiros que atravessaram o Rio Uruguai para
a exploração das terras argentinas para agricultura. A leva de famílias formaram
a base de povoados como “El Soberbio”, onde se fala português majoritariamente,
além do espanhol, do alemão e do guarani mybiá.

O depoimento de um morador de uma colônia na região de San Javier, fronteira


com a cidade brasileira de Porto Xavier, descreve como se constituiu o repertório
linguístico dos habitantes dessa região:

“Nosotro aprendimo alemán por los padres, porque ellos son antes, vinieron de Europa
y ahí… y allá aprendimo el brasilero, el portugués, y hablo el castellano, todo medio
mezclado, porque estamo acá en la frontera. (Ralf Kramer, 71, Piñalito” (CERNO, 2019).

Para compreender melhor, veja a tradução desta fala:

"Nós aprendemos alemão pelos padres, porque eles vieram


antes, vieram da Europa e aí... e depois aprendemos o brasileiro,
o português, e falo o castelhano, tudo meio misturado, porque
estamos aqui na fronteira."

Em relação à dinâmica da vida nas comunidades localizadas do outro lado da


fronteira, na província de Misiones, segundo Daviña (2003, p. 6):

Tales movimientos están sostenidos en entramados


culturales de negociaciones in vivo y de sostenimiento
intergeneracional (también de segregaciones y
negaciones), que dan forma a una dialogía vital que
sustenta su valor como lenguas identitarias y de
sentido de pertenencia grupal –no sin tensiones y
contradicciones con las demandas e interpelaciones
ideológicas de lealtad lingüística oficial. En los mercados,
las charlas vecinales y radiales, en las ruedas de mate,
la posibilidad de ‘mudar lenguas’, de traspasar de una
a otra según edades o temas, operan entre turnos
conversacionales o acontecen en distintos tramos de
un mismo enunciado; los protagonistas – hablantes
nativos de español (o portugués o guaraní) – se disponen
también a sostener la mutua intercomprensión en
un diálogo a dos lenguas, sin abandonar los mutuos
territorios propios/apropiados.

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Para compreender melhor, veja a tradução desta citação:

"Tais movimentos estão sustentados nos entrosamentos culturais


de negociações ao vivo e de sustentação intergeracional (também
de segregações e negações), que dão forma a um diálogo vital
que sustenta seu valor como línguas identitárias e de sentido
de pertença em um grupo - não sem tensões e contradições com
as demandas e interpelações ideológicas de lealdade linguística
oficial. Nos mercados, nas conversas com vizinhos e no bairro,
nas rodas de mate, a possibilidade de 'mudar línguas', de passar
de uma a outra de acordo com idades ou temas, operam entre
turnos de conversas ou acontecem em diferentes partes de
um mesmo enunciado; os protagonistas - falantes nativos de
espanhol (ou português, ou guarani) - se dispõem também a
sustentar a mútua compreensão em um diálogo de duas línguas,
sem abandonar os mútuos territórios próprios/apropriados."

Também na fronteira do Brasil com o Paraguai, um grande contingente de brasileiros


e seus descendentes ocuparam terras paraguaias para exploração com lavouras de
soja e arroz, a tal ponto que o domínio de brasileiros e seus descendentes na região
fez com que eles passassem a ser identificados como brasiguaios. Nessa região, a
língua portuguesa circula em âmbitos comunitários e familiares e ainda divide seu
espaço com o espanhol e o guarani. Nas fronteiras de grande fluxo comercial há
também a presença de árabes, libaneses, palestinos e chineses que mantêm o uso
das suas línguas.

Este é o caso de Ciudad del Leste e de Foz do Iguaçu. A primeira por ser um polo
de comércio de free shops e a segunda pelo turismo. Além disso, ambas formam a
tríplice fronteira com a cidade argentina de Puerto Iguazú, cidade fronteiriça que atrai
muitos brasileiros e tem um comércio e turismo dirigido tanto ao público falante de
espanhol como o de falantes de português.

Clique aqui e você poderá conhecer mais da fronteira argentino-brasileira e seu


multilinguismo no documentário “Mixtura de vidas”.

Para esclarecer sobre o multilinguismo e plurilinguismo, Oliveira (2016) aponta que:

Se as fronteiras, como outros espaços, são multilíngues,


isso não quer dizer necessariamente que sejam
plurilíngues. Temos feito a distinção entre o termo
que aponta para a presença de várias línguas numa

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 111


localidade ou sociedade – o multilinguismo, um termo
descritivo, portanto. Plurilinguismo, em contraste, seria
o termo que aponta para uma valorização positiva
deste multilinguismo, a sua utilização como efetivo
recurso para a vida das pessoas envolvidas nas práticas
comunicativas em questão, para as instituições e para
o país: somente neste caso falamos de plurilinguismo.
Assim, as nossas fronteiras são espaços multilíngues, mas
dada a geopolítica dos Estados e muito especialmente
do Estado brasileiro, recém começam a ser espaços
plurilíngues” (OLIVEIRA¨, 2016, p.71).

Fasold (1996), quando aborda sobre a origem histórica do plurilinguismo, inclui as zonas
de fronteira, reforça a ideia de que as fronteiras geopolíticas não coincidem com as
fronteiras linguísticas, destacando a função das fronteiras geopolíticas para os estados
nacionais. Cruzar de um lado a outro das fronteiras define a composição sociocultural
da fronteira.

Em síntese, o plurilinguismo é uma condição dos falantes que apresentam habilidades


linguísticas em mais de duas línguas, o repertório linguístico desses falantes é plural.
Já o multilinguismo é como o espaço se caracteriza pela presença de várias línguas às
quais os falantes estão expostos.

O Projeto Observatório da Educação na Fronteira (OBEDEF) realizado pelo Instituto de


Desenvolvimento em Políticas Linguísticas (IPOL) mapeou as línguas em circulação em
três fronteiras (Roraima, Acre e Mato Grosso do Sul).

O mapeamento sociolinguístico identificou as línguas faladas nas fronteiras dessas


regiões, mostrando-nos um conjunto de línguas indígenas brasileiras e outras dos
países vizinhos, línguas nacionais, e os diferentes nomes atribuídos a elas pelos falantes,
e práticas linguísticas como o Portunhol. Os resultados do mapeamento mostram um
conjunto de línguas que nos revela o quanto a fronteira é um espaço multilíngue.

Para saber mais sobre o Projeto Observatório da Educação na


Fronteira, clique aqui.

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112
Você chegou ao final desta Unidade de estudo. Caso ainda tenha dúvidas, reveja o
conteúdo e se aprofunde nos temas propostos. Até a próxima!

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Referências
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Barcelona – Espanha, 1996.

CAMBLONG, Ana. Habitar la frontera, un viaje perpetuo a lo paradójico. Lima-Peru. In:


Congreso latinoamericano de educación intercultural bilíngüe, 5., 6 a 9 de agosto
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www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1851-16942019000100006&lng=es
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DAVIÑA, Liliana S. Fronteras Discursivas en una Región Plurilingüe. Español y


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ELIZAINCÍN, A.; BARRIOS, G.; BEHARES, L. Nos falemo brasilero. Dialectos Portugueses
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Madrid: Visor Libros, 1996.

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https://www.freepik.com/. Acesso em: 6 mar. 2023.

GRUPO RETIS. Zona de Fronteira: Tipos de Articulação entre cidades gêmeas (mapa).
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MEGALE, Antonieta Heyden. Bilingüismo e educação bilíngüe – discutindo conceitos. Revista
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OLIVEIRA, Gilvan Müller de. Línguas de fronteira, Fronteiras de línguas: do Multilinguismo


ao Plurilinguismo nas Fronteiras do Brasil. Revista Geopantanal. Corumbá, n. 21, p.
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RONA, J. P. El dialecto “fronterizo” del Norte del Uruguay. Montevideo: Adolfo Linardi
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ZIMMER, M.; FINGER, I; SCHERER, L. Do bilingüismo ao multilingüismo: intersecções


entre a psicolingüística e a neurolingüística.Revista Virtual de Estudos da Linguagem
– ReVEL, v. 6, n. 11, ago. 2008. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/
handle/10183/96131/000723023.pdf?sequence=1. Acesso em: 7 mar. 2023.

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Unidade 2: Estratégias Comunicativas no Contexto
Multilíngue

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de reconhecer o espaço multilíngue dos territórios
fronteiriços, por meio de exemplos presentes no repertório linguístico dos falantes.

Nesta unidade vamos destacar algumas estratégias comunicativas descritas por


alguns pesquisadores sobre fenômenos linguísticos característicos de zonas de
contato intenso e extenso nas fronteiras onde é possível identificar um número
significativo de cidades fronteiriças interligadas via pontes, balsas, estradas,
avenidas e ruas.

Línguas que circulam nas fronteiras


Foto: Freepik (2023).

Os contextos e as dinâmicas características dessas fronteiras, o contato interpessoal


e as interações cotidianas e frequentes contribuem para o contato entre os falantes
do português e do espanhol, assim como para a exposição dos fronteiriços a um
conjunto de outras línguas que circulam nas fronteiras.

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As duas figuras que você vê a seguir são capas de dois dicionários elaborados por
alunos de 6º ano de duas escolas brasileiras da cidade de Itaqui, fronteira com a
cidade de Alvear, na Argentina.

Línguas de fronteira.
Fonte: Dicionário Compartilhado de Língua de Fronteira (2014).

Eles são produtos de um trabalho realizado conjuntamente entre as escolas, a


coordenação do Programa das Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF) e o grupo
PET Letras da Universidade Federal de Santa Maria. A seleção de palavras para
compor os dicionários foi feita pelos alunos, bem como as fotos e desenhos que
ilustraram os dois volumes.

A experiência possibilitou o registro, com definição e exemplos, de uma quantidade


de palavras do espanhol já incorporados ao Português Gaúcho da Fronteira (PGF).
Ou seja, na variedade do português usada pelos falantes brasileiros que vivem nesta
fronteira, encontramos léxicos que são empréstimos do espanhol e já fazem parte
do vocabulário dos fronteiriços. Palavras como: remolacha, a la pucha, entrevero,
avil, churipán, paisano, macanudo, hermano, entre outras. Se tiver curiosidade, veja
os significados dessas palavras em português no glossário ao final desta unidade.
Para ilustrar situações nas quais identificamos os fenômenos linguísticos existentes
nas fronteiras hispano-brasileiras, estamos utilizando imagens registradas em
diferentes fronteiras do nosso contexto em foco. O que estamos trazendo são
exemplos de paisagens linguísticas.

Mas você pode estar se perguntando: O que são paisagens


linguísticas?

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 117


As paisagens linguísticas estão dispostas nos espaços públicos. Permitem-nos
identificar como as línguas estão presentes em anúncios, placas, avisos, sinalizações,
entre outras formas de inscrevê-las na paisagem.

Ao observar, é possível notar como essas paisagens visibilizam as línguas, e


passamos a prestar atenção no nosso entorno linguístico. Assim veremos como ele
está constituído de outras línguas além da nossa língua nacional.

Para esclarecer, analise a descrição de Berger & Lecheta (2019):

O campo da Paisagem Linguística (doravante PL) visa


analisar a forma como as línguas se fazem presentes
nos espaços de convívio social, sejam públicos ou
privados, com vistas a depreender como se manifestam
as relações de poder entre elas (ecologia das línguas)
em espaços de visibilidade, bem como identificar
políticas linguísticas (implícitas ou explícitas) que
culminam na exposição ou marginalização de línguas
(e mensagens nessas línguas) em dado território.

As paisagens linguísticas aqui apresentadas objetivam não só exemplificar os


fenômenos linguísticos, mas despertar o olhar de quem tem interesse pelos temas
das línguas da fronteira, do bilinguismo e, especialmente, de como nossos ambientes
são espaços multilíngues.

2.1 Estratégias Comunicativas nas Práticas Sociais no Contexto


Multilíngue

As imagens a seguir são paisagens linguísticas presentes em cidades fronteiriças


bem distantes, mas com uso de estratégias comunicativas muito similares.

A primeira é na cidade de Foz do Iguaçu, é o registro de uma placa escrita em espanhol


identificando um estabelecimento que vende comida árabe, “pastas árabes”.

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Cidade de Foz do Iguaçu.
Foto: Eliana Sturza.

A segunda é a placa, também escrita em espanhol, de um supermercado localizado


na cidade de Barra do Quaraí, tríplice fronteira do Brasil, Argentina e Uruguai. A
tríplice fronteira no extremo sul do Brasil é formada pelas cidades de Barra do
Quarai - Brasil; Monte Caseros - Argentina e Bella Unión - Uruguai.

Barra do Quaraí/Brasil.
Foto: Eliana Sturza.

Fenômenos linguísticos como esses ocorrem pelo contato entre comunidades


linguísticas e mostram a relação com outras línguas e culturas presentes na vida
fronteiriça. O contato das línguas pode produzir diferentes interferências e mesclas
linguísticas, sempre usadas como estratégias na comunicação e interação cotidianas.

Na sequência, você verá aqueles fenômenos linguísticos mais recorrentes e que


vêm sendo descritos por pesquisadores brasileiros, uruguaios, argentinos.

O uso dessas estratégias está relacionado à necessidade imediata dos falantes de

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manterem uma conversação fluída, uma interlocução que avance na boa e eficiente
compreensão do que se está falando.

São elas:

Alternância de códigos
Os falantes alternam as línguas. É uma estratégia muito utilizada, e acontece
quando cada falante usa a sua língua (nacional e/ou materna). A alternância
não impede o grau de compreensão e entendimento entre eles.

De acordo com Mozzillo (2013, p. 190)


“Lançar mão de elementos de uma e outra língua durante a conversação bilíngue
ativando e desativando-as é um recurso comunicativo natural e inerente à condição
de usuário de mais de um idioma, sendo uma estratégia de adaptação comunicativa
interessante do ponto de vista pragmático.”

O code-switching, ou alternância do código linguístico, também é uma


característica do falante bilíngue. Ele faz escolhas de acordo com a situação
de fala e com o interlocutor, com objetivo de desenvolver estratégias de
adequação à situação comunicativa na qual se encontra.

Empréstimos Linguísticos
O empréstimo linguístico pode ser de palavras, de expressão, do modo de
pronunciar. O mais frequente é o uso de um léxico tomado de empréstimo,
ou de uma palavra da outra língua cumprindo a função gramatical da outra.

Vemos no exemplo abaixo como se toma de empréstimo do espanhol a


expressão nominal “La Frontera” para destacar o nome do estabelecimento,
localizado no lado brasileiro, na cidade de Uruguaiana, fronteira com a
Argentina.

Logo abaixo do nome, está a especificação de quais produtos são vendidos


na loja, escritos em português: “Moda jovem gaúcha”.

Cidade de Uruguaiana/Brasil.
Foto: Emanuele Coutinho.

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120
Mistura de línguas
A mistura de línguas é uma estratégia muito utilizada, em especial com
falantes de português e espanhol. A transparência entre as duas línguas
facilita a comunicação. Por outro lado, a mistura sempre é aleatória, depende
do contexto de fala e do quanto se sabe da outra língua. Falar misturado é
algo comum na fronteira.

Segundo Mozzillo (2013, p.193)

“O que define o grau da mistura não é apenas o conjunto de evidências gramaticais,


mas as funções comunicativas e a história sociolinguística dos falantes. O grau
vai depender da história da aquisição linguística de cada usuário, das pressões
sociolinguísticas que influenciam sua vida e seus falares, além dos vários contextos
e funções da situação de contato que levam aos sistemas mistos.”

Se você tem curiosidade para saber mais sobre os tipos de alternância de códigos,
veja que há pelo menos três tipos:

Alternância com frases feitas e vocativos


É a introdução de palavras de uma língua na outra para chamar atenção,
exclamar ou evocar.

a) Buenas, tudo tranquilo?


b) Hola, que tal? Tudo bem?
c) Dios mío, o que aconteceu?

Alternância intra-oracional
Ocorre com a introdução de uma palavra de outra língua no meio do
enunciado. Ou seja, uma palavra do espanhol no meio do enunciado em
português ou vice-versa. Isso ocorre muito com o inglês, quando introduzimos
um vocábulo do inglês no meio de um enunciado em português: vou fazer
o check in.

Veja alguns exemplos da fronteira:

a) Não gosto daquela mulher, ela fala muito chisme.


b) Tem de enchufar na parede.

O exemplo da imagem abaixo é um aviso fixado no guichê do posto de


imigração brasileiro na fronteira de Santana do Livramento e Rivera. Neste
caso, é uma palavra do espanhol em um enunciado em português: um
“llamado”.

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Cidade de Santana do Livramento/Brasil.
Foto: Eliana Sturza.

Alternância inter-oracional
Ocorre entre enunciados, alterna-se um enunciado em cada língua. O
falante vai alternando enunciados como se os separasse em fragmentos,
cada um deles em uma língua, embora faça isso de modo natural e intuitivo
e demonstre assim que tem domínio de ambas as línguas.

Por exemplo:

a) Pero aquí é una frontera e tudo o mundo fala eh… saben castellano mas
falam brasilero aqui. (Patricia Da Luz, 62, Itacaruaré)
(CERNO, 2019, p.146)
b) Cliente- Sí, ¿no tienes más chico? (um tempo depois) a ver cómo queda...
c) Camila- Só tem uma coisinha no bolso só (tempo depois). ¿Cómo quedó?
(GONÇALVES, 2013, p. 72)

No cartaz você pode ver uma lista de produtos oferecidos pelo restaurante
aos clientes brasileiros que cruzam a fronteira de Foz de Iguaçu - Puerto
Iguazú para fazer compras. Os nomes dos produtos estão em espanhol, mas
o destaque é para o cliente brasileiro e está em português. Ficam claras as
palavras “aqui”, “agora”, “pastel na hora”, “preços especiais”, por exemplo.

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Bar em Puerto Iguazú/Argentina.
Foto: Eliana Sturza.

De acordo com Haugen (1950), citado por Appel & Muysken (1996), existem
dois processos básicos no empréstimo linguístico: importação e substituição.
Conheça-os a seguir:

Importação
Implica acrescentar o modelo de uma língua outra. Na fronteira Brasil –
Uruguai e Brasil – Argentina o uso da expressão “que sei eu”, emprestada
da expressão “qué sé yo”, do espanhol, usada para indicar falta de certeza do
que se está dizendo, como um “sei lá”.

Substituição
Implica mudar algo de uma outra língua na língua nativa. Uso de “remolacha”,
do espanhol, no lugar de “beterraba”, no português. Ou então, usar a palavra
“plancha” para “ferro de passar roupa”.

E se você tem curiosidade para saber mais sobre a mistura de línguas, continue
sua leitura.

A alternância de códigos, o empréstimo e a interlíngua contribuem para a


compreensão e para interação. Por essa razão, “falar misturado” o português e o
espanhol, popularmente, é falar “portunhol”. Vale ressaltar que as misturas podem
ser variadas, dependem do contexto comunicativo e do quanto o falante sabe da
outra língua. Se consideramos os modos de falar misturado, temos, também, o
Yaporá, mistura do guarani com espanhol, que se usa no Paraguai.

A seguir, você poderá, clicando aqui, escutar um áudio disponível no YouTube, no


qual a pessoa entrevistada mistura o espanhol com o português.

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Agora, preste atenção nas seguintes imagens:

Puerto Iguazú/Argentina
Foto: Eliana Sturza

Puerto Iguazú/Argentina
Foto: Eliana Sturza.

Nessas imagens você pode ver que se misturam línguas de tal modo que se produz
uma alteração na grafia da palavra “aceitonas”, que em espanhol seria “aceitunas” e
em português “azeitonas”, para assim se produzir uma terceira palavra.

Os fronteiriços usam estratégias comunicativas constantemente, pois estão em


contato com pessoas que vêm e vão na travessia da fronteira, com os que chegam
e se estabelecem ou interagem por causa do trabalho, da escola, dos negócios, das
festas e comemorações.

Veja como os moradores sabem usar essas estratégias no relato feito por uma
moradora de uma comunidade de brasileiros na província de Misiones, Argentina.

Ela descreve como mistura as línguas e também como muda de língua conforme
a língua da pessoa com quem ela conversa. Refere-se à mescla como “portunhol”.
Este exemplo também reforça a importância das práticas linguísticas usadas nas
relações interpessoais entre os fronteiriços:

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124
“Hay caso en que vos estás hablando en portuñol y de repente seguís
hablando en castellano. Como si nada. Y después estás hablando en
castellano y empezás a hablar el portugués, esa mezcla.” (Liliana
Radtke, 36, Andresito) (CERNO, 2019, p. 138)

Cada região da fronteira do Brasil com os demais países sul-americanos tem modos
diferentes de nomear o jeito misturado de falar. Ou seja, os falantes dão um nome
para a língua misturada que usam nas suas relações cotidianas, do português com
o espanhol ou, também, do guarani com o espanhol, no caso do Paraguai.

A interlíngua como fenômeno linguístico descreve uma situação frequente ao


longo do processo de aprendizagem de uma segunda língua ou língua estrangeira.
Refere-se ao momento em que o aprendiz mistura as línguas na busca de alcançar a
proficiência na língua alvo, aquela que ele está aprendendo. Ocorre no aprendizado
de outras línguas, não é um fenômeno exclusivo do contato português – espanhol.

O “aprendizer” mistura as línguas.


Fonte: Freepik (2023).

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Um bom exemplo é o dos alunos que fazem cursos de português ou espanhol. É
normal que, em fases iniciais, os aprendizes misturem as línguas, em especial porque
o português e o espanhol são línguas próximas e com gramáticas muito transparentes,
com estruturas morfossintática e semântico-lexical com muitas semelhanças.

Um brasileiro aprendendo espanhol tende a transferir palavras e estruturas do


português para o espanhol porque identifica essas semelhanças inclusive como um
recurso, um apoio no momento do aprendizado. Mas a interferência linguística deve
ser entendida como uma fase a ser superada, pois nem sempre funciona para que
o aprendiz brasileiro se comunique de modo eficiente em espanhol em situações de
uso da língua que requerem uma proficiência maior.

É justamente por essa razão que a interlíngua é característica do processo de


aprendizagem, entendendo-a como uma fase, não como objetivo do aprendizado a
ser alcançado.

A interlíngua, portanto, é uma estratégia comunicativa


identificada e assim nomeada pelos estudiosos que se dedicam
ao ensino-aprendizagem de línguas.

Selinker (1991), um dos pesquisadores que pela primeira vez definiu a interlíngua
como parte de um processo de aprendizagem de uma segunda língua ou, como ele
se refere, uma língua objeto (LO), afirma que há comportamentos linguísticos em que
a produção de enunciados do aprendiz estaria composta por:

• locuções na língua materna (LM);

• locuções na interlíngua (IL); e

• locuções na segunda língua ou língua objeto (LO).

No caso das fronteiras hispano-brasileiras, há autores que identificam a mistura


de línguas como um processo de interlíngua. São perspectivas teóricas de olhar o
fenômeno linguístico e identificar o que é o resultado de uma mistura de línguas
como estratégia de comunicação.

No entanto, é importante destacar que, para Selinker (1991, p.83-84), a interlíngua


tem a ver com as tentativas de aprender uma outra língua e seria, portanto, uma
estratégia determinada pela estrutura psicológica dos aprendizes, como um recurso,
um apoio no momento que se dispõe a aprender.

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126
A intercompreensão, do mesmo modo
que a mistura de línguas, baseia-se na
transparência entre o português e o espanhol,
devido à sua mesma origem românica. Ela
é usada como um recurso estratégico que
facilita a interação e a comunicação entre os
falantes dessas línguas.

A intercompreensão, inclusive, pode ter


graus diferentes, ou seja, pode ser alta
A intercompreensão facilita a ou pode ser baixa. O fato de as línguas
interação e comunicação. serem aparentadas contribui muito para a
Fonte: Freepik (2023). compreensão do contexto, pois falar cada

um em sua língua também depende do ambiente, da familiaridade entre os falantes.


No caso da fronteira amplia-se em razão de que o modo de viver e habitar a fronteira,
as práticas sociais comuns, as atividades cotidianas, são reconhecidas por todos.
A dinâmica da vida potencializa a intercompreensão nas práticas comunicativas
cotidianas dos falantes.

Veja no anúncio a seguir como um restau-


rante na fronteira brasileira oferece no
cardápio os pratos típicos do Uruguai: mi-
lanesa, pancho e chivito, juntamente aos
pratos brasileiros: a la minuta e chuleta.

A intercompreensão tem sido muito dis-


cutida como uma abordagem pedagógica
e didática para ensino de línguas, justa-
mente porque se parte do princípio de
que os aprendizes de línguas podem ter
um aprendizado mais amplo e plural se
conseguem aprender concomitante mais
de uma língua, neste caso, as de uma
mesma família linguística. No caso das lín-
guas românicas, é considerar que o por-
tuguês e espanhol têm um potencial alto
de intercompreensão.

Cidade de Jaguarão/Brasil.
Fonte: Foto: Eliana Sturza.

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Nesta perspectiva de centrar a intercompreensão em uma metodologia para ensino
das línguas, Capucho (2010) recupera a ideia de uma abordagem desta natureza:

Intercompreensão (IC) é, como o afirmava recentemente Jean-Pierre Chavagne


(2009: 1), uma prática ancestral e um fenómeno recente. Reportada numa
tradição secular de práticas comunicativas entre habitantes de regiões limítrofes
ou inserida nas vivências dos viajantes de todos os tempos, a IC foi recuperada
há cerca de vinte anos por investigadores no âmbito da Didáctica das Línguas,
da Linguística Aplicada, da Sociolinguística, da Psicolinguística ou da Linguística
Contrastiva, para referir apenas as disciplinas mais frequentemente solicitadas
(CAPUCHO, 2010, p. 102).

Todos esses fenômenos linguísticos ocorrem porque há uma proximidade geográfica,


por se tratar de territórios limítrofes nas fronteiras hispano-brasileiras; uma
aproximação social e cultural pela existência de cidades, povoados, comunidades
na vizinhança; e uma transparência linguística entre o português e o espanhol, duas
línguas com a mesma origem românica.

Você chegou ao final desta Unidade de estudo. Caso ainda tenha dúvidas, reveja o
conteúdo e se aprofunde nos temas propostos. Até a próxima! 

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128
Glossário
Este glossário apresenta palavras e/ou expressões em espanhol ou em portunhol
que aparecem nos exemplos desta unidade:

1 A la pucha: expressão de surpresa; puxa; puxa vida; nossa;

2 Avil: isqueiro;

3 Aceitunas: azeitona;

4 Aceite de oliva: azeite de oliva;

5 Buenas: equivale a Como estás?; uma saudação;

6 Chisme: fofoca, barulho; agito;

7 Chivito: lanche típico do Uruguai; xis-burger;

8 Churipán: pão com linguiça, em “espanhol” choripan;

9 Cómo quedó: como ficou;

10 Díos mío: Meus Deus;

11 Enchufar: ligar na tomada;

12 Empanada: pastel assado recheado, típico da culinária sul-americana, com


algumas diferenças de um país para outro, pode ser assado ou frito;

13 Entrevero: comida feita com várias carnes diferentes; confusão;

14 Hamburguesa: hambúrguer;

15 Hermano: irmão, parceiro;

16 Hola: saudação em espanhol, oi, alô;

17 La Esfirraria: local onde se vende esfirra;

18 Llamado: chamado;

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19 Macanudo: muito bom, ótimo;

20 Milanesa: comida típica da Argentina e Uruguai, bife à milanesa;

21 Paisano: camarada; gente boa;

22 Pancho: cachorro quente;

23 Plancha: ferro de passar roupa;

24 Qué tal: Como vais?, cumprimento;

25 Remolacha: beterrada.

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130
Referências
APPEL, René; MUYSKEN, Pieter. Bilinguismo y Contacto de Lenguas. Barcelona: Ariel
Editorial, 1996.

BERGER, Isis Ribeiro; LECHETA, Michelle. A paisagem linguística de um campus


universitário fronteiriço: língua e poder em perspectiva. Entrepalavras, Fortaleza, v.
9, n. 2, p. 396-414, maio-ago, 2019. Disponível em: http://www.entrepalavras.ufc.br/
revista/index.php/Revista/article/view/1486. Acesso em: 6 mar. 2023.

CAPUCHO, M. F. Ciência, ideologia, intervenção: a Intercompreensão para além das


utopias, Synergies Europe, n. 5, p. 101-103, 2010.

CERNO, Leonardo. Portugués, español, alemán y brasilero. Lenguas y variedades en


contacto en el alto Uruguay (Misiones, argentina). Avá. Revista de Antropología, n.
34, p. 131-153, 2019. Disponível em: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1851-16942019000100006. Acesso em: 6 mar. 2023.

DICIONÁRIO compartilhado da língua de fronteira. Dicionário compartilhado da


língua de fronteira. Santa Maria: UFSM, 2014. Disponível em: http://coral.ufsm.br/
diciofronteira/. Acesso em: 6 mar. 2023.

FREEPIK COMPANY. [Banco de Imagens]. Freepik, Málaga, 2023. Disponível em:


https://www.freepik.com/. Acesso em: 6 mar. 2023.

GONÇALVES, Dânia. O falar dos comerciantes brasileiros na fronteira de Jaguarão-


Río branco. 2013. Dissertação (Mestrado em Letras) - UFPEL: Programa Pós-Graduação
em Letras, Pelotas, 2013.

KERSCH, Dorotea. Aspectos identitários e de atitudes dos falantes bilíngues da região


da fronteira do Uruguai com o Brasil – os dados do ADDU. In: MATZENAUER, Carmen
L. B. et al (Orgs.). Anais do VII Encontro do CELSUL – Círculo de Estudos Lingüísticos
do Sul [CD -ROM]. Pelotas: EDUCAT, 2008. Disponível em: http://www.leffa.pro.br/
tela4/Textos/Textos/Anais/CELSUL_VII/dir/arq24.pdf. Acesso em: 7 mar. 2023.

MOZZILLO, Isabela. Aspectos do portunhol na fronteira Brasil-Uruguai. Revista PAPIA,


São Paulo, v. 2, n. 23, p. 187-199, Jul/Dez, 2013. Disponível https://www.academia.
edu/21054246/Aspectos_do_portunhol_na_fronteira_Brasil_Uruguai. Acesso em: 6
mar. 2023.

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SELINKER, L. La Interlengua. In: LICERAS, Juana Muñoz (comp.). La Adquisición de las
Lenguas Extranjeras. Madrid: Visor Lingüística y Conocimiento, 1991.

STURZA, Eliana. Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira. Revista


Iberoamericana de Educación, v. 81, n. 1, p. 97-113, 2019. Disponível em: https://
rieoei.org/RIE/article/download/3568/4055/. Acesso em: 6 mar. 2023.

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132
Unidade 3: Fenômenos Linguísticos na Cultura Fronteiriça

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade você será capaz de identificar a presença dos fenômenos linguísticos
nas expressões da cultura e da identidade dos fronteiriços.

Nesta unidade você irá conhecer a produção cultural da fronteira, dando ênfase
para textos literários que utilizam uma língua misturada como expressão da cultura
fronteiriça. Além disso, verá exemplos dessa produção para abordar a relação da
cultura local da fronteira e as identidades fronteiriças.

O Portunhol e o Portunhol Salvaje/Selvagem são práticas linguísticas que têm sido


utilizadas para reivindicar o espaço da fronteira como um território diferenciado
em relação aos outros territórios nacionais.

Si poesia fuera istrela


Cuando se fuese u sol
Ficaría iluminada a frontera
Dus versos en Portuñol
(Lingua Mae – Nu ceu num tem frontera)

3.1 Repertório Linguístico dos Fronteiriços

Assim como no Brasil há variedades linguísticas do português que são definidas pelo
recorte regional e social, também há nas fronteiras hispano-brasileiras variedades
do espanhol usadas no contexto da América Latina. Também existem outras línguas
presentes e circulando em diferentes âmbitos dos territórios fronteiriços.

A seguir, veja os diferentes nomes dados às duas línguas nacionais predominantes


na fronteira hispano-brasileira e os nomes dados às variedades e às práticas
linguísticas resultantes dos contatos linguísticos.

O repertório linguístico dos fronteiriços pode conter mais de duas línguas, portanto,
justamente esse repertório ampliado com práticas linguísticas como portunhol ou
yaporá, além de muitas outras línguas que circulam nas fronteiras, torna os espaços
fronteiriços multilíngues.

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LÍNGUAS DA FRONTEIRA:

Os exemplos de nomes mencionados foram coletados de vários registros feitos


por pesquisadores da área da Sociolinguística, Sociologia da Linguagem, Política
Linguística e da Linguística Aplicada. São registros de como os falantes nomeiam as
línguas que falam ou como identificam o seu modo de falar.

Um boliviano não diz que fala espanhol, diz que fala castellano, assim como um
uruguaio. O boliviano ainda pode acrescentar outras línguas do seu repertório como
o quechua e/ou aymara. Um argentino diz que fala castelhano, mas também diz que
fala argentino. Um descendente de imigrante brasileiro no Uruguai pode dizer que
fala fronterizo, Portuñol ou brasilero, do mesmo modo que um brasileiro vivendo
na fronteira de Misiones (Argentina). Um paraguaio pode dizer que fala castelhano,
paraguaio, guarani ou yaporá.

3.2 Línguas de Fronteira nas Expressões Culturais

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O primeiro verso do poema de Fabián Severo, autor uruguaio, fronteiriço da cidade
Artigas, fronteira com a cidade de Quaraí (Brasil), na língua misturada com que ele
escreve, nos mostra o sentimento do fronteiriço em relação a este modo falar, que
não está nos dicionários e nas gramáticas: “Mi lengua le saca la língua al diccionario”.

Para Grimson (2000), a fronteira é um lugar de encontro e de desencontros. E apesar


da linha divisória, as interações sociais e culturais, muitas vezes, são o centro das
dinâmicas da vida fronteiriça. Para ele

Las fronteras son espacios de condensación de procesos socioculturales. Esas


interfases tangibles de los Estados nacionales unen y separan de modos diversos,
tanto en términos materiales como simbólicos. Hay fronteras que solo figuran
en mapas y otras que tienen muros de acero, fronteras donde la nacionalidad es
una noción difusa y otras donde constituye la categoría central de identificación e
interacción. Esa diversidad, a la vez, se encuentra sujeta a procesos y tendencias.

O número de produções culturais que centralizam as temáticas sobre a fronteira,


os fronteiriços, sua arte, sua música, sua literatura e suas línguas tem crescido nos
últimos anos.

Vale destacar algumas dessas produções com objetivo de pensar o papel das línguas
na articulação entre as expressões culturais e as identidades fronteiriças. Neste
caso, o foco estará nos autores que escrevem alternando o português e o espanhol
ou usando o Portunhol e o Portunhol Salvaje/Selvagem.

O primeiro autor apresentado é Fabián Severo. Ele é uruguaio de Artigas, cidade


uruguaia mapeada nos estudos de Rona (1965), Elizaincín, Barrios & Behares (1987)
como uma das regiões de ocorrência, no caso do primeiro, do chamado “Fronterizo”
e, no segundo, o que os três autores nomearam de Dialecto Portugués del Uruguay
(DPU). Observem que os temas também se referem à vida na fronteira: pobreza,
contrabando, injustiça, natureza, clima, língua.

Veja exemplos da sua poesia:

Si a frontera noum escu uma frontera


as pedra presiosa que pisamo
enyenarían nosos prato
Mas aquí us patrón
tapan con gayeta esc
a boca da yente,
i cuelgan a inyustisa uescuezoso.

(Viento de Nadie)

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Artigas teim uma língua sin dueño.

(Noitunnu Norte)

Rosa (2015), define o Portunhol dessa fronteira e explica historicamente como essa
prática linguística se instituiu como língua dos fronteiriços na fronteira Brasil – Uruguai.

El Portuñol, lengua de la frontera Uruguay-Brasil, hablada por fronterizos de


ambos países, pero mayoritariamente por uruguayos norteños, está instalado
en estas tierras antes mismo que el Estado Nación hubiera nacido. Surge del
contacto entre ambiciones imperiales, luego entre disputas nacionales, sobrevive
la persecución policiaca de la alfabetización, se reproduce en el contacto del
comercio y de los medios de comunicación. (2015, p.13)

Outro exemplo de escrita da literatura da fronteira, são os textos do escritor


brasileiro e fronteiriço Aldyr Schlee. Os personagens se movem para ambos os
lados da fronteira e usam as línguas conforme a situação narrada pelo autor. Pode-
se dizer que há no seu texto vários empréstimos do espanhol. A escrita destaca uma
variedade do português brasileiro: o da fronteira.

Em várias passagens do texto é possível verificar o uso de palavras e enunciados em


espanhol, além da narrativa tematizar de modo recorrente o que é habitar fronteira
e o que é ser fronteiriço: a travessia, a vida de um lado e outro, a nacionalidade
compartilhada em Brasil e o Uruguai, entre outros temas.

Veja agora dois fragmentos do livro “O Outro Lado. Noveleta Pueblera” (2018):

Fragmento I
José Jacinto vai seguido a Jaguar e Río Branco, e Melo e Treinta y Tres; já
esteve em Bagé e Santa Vitória do Palmar, e no Herval. Mas é homem
andariego que mais gosta de pueblos do que de cidades

Fragmento II
- Mire – podia ter dito – eu sou assim como me vê, meio uruguaio, mas não
sou do outro lado; nasci brasileiro e até sentei praça no Regimento
- Bueno...- foi só o que disse, quando pagou e saiu, depois de volcar o copo.

Observe que no fragmento I e II aparecem palavras em espanhol como: andariego,


pueblos, mire, bueno, volcar, além das referências geográficas, quando menciona os
nomes de cidades brasileiras e uruguaias localizadas na zona de fronteira.

A seguir, veja o trecho de uma música do cantor riverense (Uruguai) Chito de Mello.
Para ele, os fronteiriços são rompidiomas, porque misturam as línguas, ou seja, são
falantes de Portunhol.

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136
Soy de Rivera, soy de lo fronterizo.
Donde cualquiera habla entreverado
Medio mestizo sin compromiso desde guri
Tengo mi doma, no canto broma
Soy rompidioma y no toy ni aí

Capa do livro Rompidioma.


Fonte: De Mello (2005).

As letras das músicas de Chito de Mello descrevem a dinâmica da fronteira, enfatizam


o modo de viver, a língua misturada e a integração da cidade de Rivera e Santana do
Livramento. Clique aqui e ouça a música La Misturada.

Na fronteira Brasil/Paraguai há outro escritor que também tematiza a fronteira,


escreve seus textos em uma língua que ele nomeou como Portunhol Salvaje ou
Selvagem, Douglas Diegues.

Chama-se Portunhol Salvaje porque, de acordo com o escritor, a mistura de


línguas ocorre entre português, o espanhol e o guarani. A sua escrita, embora
predominantemente seja em Portunhol Salvaje, tem palavras em outras línguas,
mostrando justamente como a fronteira é um lugar de passagem de gente de toda
parte, de línguas de vários lugares, um espaço multilíngue.

Diegues usa as línguas da fronteira na sua linguagem literária, no título de uma das
suas obras podemos identificar: espanhol e inglês.

Capa do livro Triple Frontera Dreams.


Fonte: Diegues (2015).

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O que o autor nomeia de Portunhol Salvaje, língua da sua escrita literária, representa
ainda um olhar sobre os modos de viver na fronteira. Ele aborda a fronteira e escreve
em uma língua da fronteira. Na sua obra “Uma Flor na Solapa da Miséria” (2005), ele
define o que é o Portunhol Salvaje:

U portunhol salvaje es la língua falada en la frontera do Brasil com u Paraguai por la gente
simples que increíblemente sobrevive de teimosia, brisa, amor al imposible, mandioca,
vento y carne de vaca. Es la lengua de las putas que de noite vendem seus sexos en la
linha de la fronteira. Brota como flor de la bosta de las vakas. Es una lengua bizarra,
transfronteriza, rupestre, feia, bella, diferente. Pero tiene una graça salvaje que impacta.

O espaço multilíngue representado na linguagem literária de Diegues reflete o quanto


a fronteira é plural. A fronteira possibilita o trânsito das pessoas e das línguas. As
línguas e as misturas linguísticas do Portunhol Salvaje presentes na escrita do autor
contribuem para dar visibilidade ao multilinguismo que existe ao longo das fronteiras
hispano-brasileiras.

O fenômeno do uso do Portunhol como língua das expressões culturais é fato recente.
De ser um “estigma” para os falantes, o Portunhol tornou-se uma língua dos afetos, de
identificação com a origem dos seus falantes e de sua representação social, ou seja,
do que é ser fronteiriço, especialmente no contexto da fronteira Brasil – Uruguai. O
vínculo entre a língua e a identidade dos fronteiriços dessa região incentivou agentes
e coletivos culturais a reivindicar o Portunhol como patrimônio cultural.

Sturza (2019) destaca:

A “língua dos afetos” está na relação do portunhol uruguaio com sua história, com
o ambiente familiar e, portanto, remete a uma população que se reconhece pela
língua. O portunhol uruguaio tem apelo afetivo por seu uso social e sua relação
com a cultura fronteiriça, de origem luso-brasileira, que quer se diferenciar de
outras regiões do país. Há visivelmente uma mudança cultural na sociedade
fronteiriça em busca de valorização do Portunhol.

Essa fronteira é singular, nela os que têm famílias compostas por brasileiros e
uruguaios têm uma dupla nacionalidade e são chamados popularmente de “doble
chapas”, uma referência ao uso, em uma determinada época, de duas placas nos
carros: uma brasileira e outra uruguaia. Cada fronteira tem sua complexidade cultural,
social e linguística. No arco central e norte há outras etnias e línguas que entram no
repertório linguístico dos fronteiriços.

O Portunhol ou Portuñol remete: à mistura do português e do espanhol; o “mal falar”


uma dessas línguas; a uma língua de contato; a uma prática linguística caraterística
das fronteiras hispano-brasileiras; e a língua que expressa uma identidade fronteiriça.

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Atualmente, o Portunhol vem sendo cada vez mais reconhecido como uma língua
da fronteira hispano-brasileira. Outro aspecto relevante é que tem ganhado registro
escrito, ou seja, deixado de ser uma prática apenas oral. A literatura escrita em
Portunhol não só valoriza uma cultura da fronteira como também contribui para o
seu registro escrito.

Outro aspecto também importante é que todo este movimento de valorização do


Portunhol e de seu reconhecimento como um patrimônio cultural, especialmente
no norte do Uruguai, dá um novo status e prestígio a um modo de falar que está
diretamente relacionado com um modo de vida: o da fronteira.

Para ilustrar, veja o mapa publicado no verbete “Portuñol Riverense” da Wikipedia. Estes
registros contribuem para a divulgação e circulação do Portunhol como uma língua
vinculada à fronteira e um património cultural a ser valorizado, não negado.

Imagem do verbete Portuñol Riverense.


Fonte: Wikimedia (2020).

Aqui uma breve lista com sugestões de outras produções culturais, de documentários
e grupos musicais. Entre eles:

• Linha Imaginária: Mixturade Vida;

• Fronterizos;

• Portuñol;

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 139


• Contrabando;

• Grupo Musical Língua mae;

• Grupo musical Doble Chapa;

• Rompidioma.

Esses exemplos são indícios da expressividade que uma língua de contato


português – espanhol demonstra ao estar fortemente vinculada à necessidade do
reconhecimento social dos falantes. Observa-se que o Portunhol vem perdendo sua
relação com a ideia de “mal falar” o português ou o espanhol, justamente por sua
valorização nas diferentes formas de expressão cultural: música, poesia, narrativas,
vídeos e documentários.

Que bom que você chegou até aqui! Agora é a hora de você testar seus conhe-
cimentos. Para isso, acesse o exercício avaliativo disponível no ambiente virtual.
Bons estudos!

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


140
Referências
BARRIOS, Graciela. La denominación de variedades lingüísticas en situaciones de
contacto: dialecto fronterizo, DPU, portugués uruguayo, portugués fronterizo o
portuñol. In: HIPPERDINGER, Y. (comp.). Lenguas: conceptos y contactos. Bahía Blanca,
EdiUNS (Editorial de la Universidad Nacional del Sur), 2014. p. 77-105.

CAPUCHO, M. F. Ciência, ideologia, intervenção: a Intercompreensão para além das


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https://pmb.parlamento.gub.uy/pmb/opac_css/index.php?lvl=categ_see&id=100430.
Acesso em: 7 mar. 2023.

DIEGUES, Douglas. Um Flor na Solapa da Miséria (en Portuñol). Buenos Aires: Eloísa
cartonera, 2005.

DIEGUES, Douglas. Foto Douglas Diegues 2015. 2015. 1 fotografia. 624×911 pixels.
Disponível em: https://malhafinacartonera.wordpress.com/2016/02/17/a-resistencia-
das-cartoneras/. Acesso em: 7 mar. 2023.

ELIZAINCÍN, A.; BARRIOS, G.; BEHARES, L. Nos falemo brasilero. Dialectos Portugueses
en Uruguay. Montevideo: Amesur, 1987.

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https://www.freepik.com/. Acesso em: 6 mar. 2023.

GRIMSON, Alejandro. Pensar fronteras desde las fronteras. Nueva Sociedad,


Buenos Aires, nov.-dez., 2000 Disponível em: https://static.nuso.org/media/articles/
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ROSA, Enrique (Org.) Jodido Bushinshe. Del hablar y del ser. Montevideo: Ed. Centros
MEC, 2015.

SCHLEE, Alcyr. O outro lado. Noveleta Pueblera. Porto Alegre: Ed. Ardotiempo, 2018.

SEVERO, Fabián. Noite Un Norte. Montevidéu: Rumbro editorial, 2011.

SEVERO, Fabián. Viento de Nadie. Montevidéu: Rumbro editorial, 2013.

STURZA, Eliana. Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira. Revista


Iberoamericana de Educación, v. 81, n. 1, p. 97-113, 2019. Disponível em: https://
rieoei.org/RIE/article/download/3568/4055/. Acesso em: 6 mar. 2023.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 141


STURZA, Eliana. Portunhol: língua, história e política. Revista Gragoatá. Niterói, v. 24,
n. 48, p.95-116, jan-abril. 2019.

WIKIMEDIA. Dialectos del español en Uruguay. 2020. Disponível em: https://commons.


wikimedia.org/wiki/File:Dialectos_del_espa%C3%B1ol_en_Uruguay.svg. Acesso em: 7
mar. 2023.

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142
Módulo

4 Gestão de Línguas na Escola em


Contextos Plurais
Os conteúdos deste módulo irão levar você a refletir sobre as diferentes formas de
gestão da pluralidade de línguas nas escolas, com especial enfoque nas instituições
de ensino localizadas em contextos plurais como os de fronteira.

Esta unidade se consolida na apresentação de subsídios para que você possa


refletir sobre as formas de gestão de línguas em sua escola, com sugestões de
encaminhamentos para tomada de decisões e ações concretas entre a comunidade
escolar.

Bons estudos!

Unidade 1 - Políticas Linguístico-educacionais e Gestão de


Línguas

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de reconhecer o que são políticas linguístico-
educacionais e as formas de gestão de línguas em espaços escolares plurais, como os de
fronteira.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 143


1.1 Multilinguismo, Políticas Linguísticas e Políticas Linguístico-
educacionais

Bem-vindo em múltiplas línguas.


Fonte: Freepik (2023).

Estima-se a existência de mais de 7000 línguas no planeta, em um total de 193 países


reconhecidos internacionalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esses
números indicam que a maioria dos países é multilíngue.

Há países mais multilíngues do que outros, em que coexistem diferentes línguas


nas mais variadas formas e funções sociais, sejam elas línguas de comunidades
originárias (como línguas de indígenas), línguas incorporadas aos territórios por
colonizadores ou línguas de imigrantes que levam suas memórias e sua herança
cultural para os países receptores em diferentes momentos históricos.

Também é possível afirmar que há países em que existem mais pessoas bilíngues
ou plurilíngues, com repertórios linguísticos mais plurais e que se comunicam
cotidianamente em mais de uma língua em diversas atividades cotidianas (trabalho,
estudo, comércio, viagens).

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


144
Pense por alguns minutos e liste
todas as línguas que você conhece e
das quais já ouviu falar.

De quantas línguas você já ouviu falar?


Fonte: Freepik (2023).

Que línguas você listou? Ao fazer esse exercício, é provável que venha à sua mente
primeiramente as línguas que você fala e compreende. Depois, tente listar aquelas
línguas que possuem alguma função social importante em nosso país, como a de
‘língua oficial’, ‘língua nacional’ ou ‘língua de instrução dos conteúdos escolares’.

É possível pensar também naquelas que fazem parte de nosso contexto social, que
as pessoas usam na comunidade ou no comércio, as línguas que possuem prestígio
internacional e que se destacam como línguas de produção científica, do turismo e
de trocas econômicas.

E as línguas faladas em países mais distantes ou presentes em culturas?

É possível que você liste também línguas que considere mais distantes de sua
realidade, ou línguas que considere como ‘exóticas’.

Após essa breve reflexão, é possível concluir que há mais línguas ao nosso redor e no
mundo, do que cotidianamente percebemos. Todas essas línguas, as que listamos
e todas as demais que possivelmente não cabem em nossa rápida contagem, são
importantes e fazem parte da enorme riqueza do planeta.

Infelizmente, a grande maioria dessas línguas, principalmente línguas de


comunidades originárias, estão ameaçadas de extinção, conforme dados da
UNESCO.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 145


Uma grande parte dessas milhares de línguas são faladas por minorias étnicas que,
muitas vezes possuem desvantagens em diversos níveis. Uma dessas desvantagens
é o fato de que várias dessas línguas não estão presentes em práticas escolares,
ou seja, embora sejam faladas em muitos lares, elas não estão presentes no
planejamento pedagógico de muitas escolas.

Por esse motivo, muitas crianças que falam em suas casas e em suas comunidades
línguas diferentes das línguas das atividades escolares estão em situação de grande
vulnerabilidade em relação ao sucesso nas diferentes etapas de escolarização. Esse
desequilíbrio promove desigualdades educacionais, econômicas e sociais.

Por essa razão, organizações internacionais e diversos países vêm propondo ações e
implementando esforços para valorização da pluralidade de línguas, compreendidas
como veículos de culturas, memórias coletivas e valores.

Para saber mais sobre as muitas línguas do mundo, acesse a


página do Ethnologue, maior catálogo sobre as línguas existentes
no planeta.

E no Brasil?

De acordo com especialistas, no Brasil existem cerca de 300 línguas, além da língua
portuguesa, que é a língua oficial, declarada na Constituição Federal de 1988 e da
Libras (Língua Brasileira de Sinais), que foi reconhecida e regulamentada como meio
legal de comunicação e expressão dos surdos do país no ano de 2002.

O Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE),


identificou 274 línguas indígenas no país e pesquisadores apontam mais de 50
línguas de imigração que compõem o mosaico linguístico e cultural brasileiro.
Algumas dessas línguas indígenas e de imigração possuem o status especial de
línguas cooficiais em mais de 20 municípios brasileiros.

Para saber mais sobre as línguas cooficiais em municípios


brasileiros, acesse a página do Instituto de Investigação e
Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL).

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146
Nas regiões de fronteiras nacionais, entre Brasil e outros países da América do Sul, o
multilinguismo é uma característica marcante. As interações linguísticas e culturais
são intensificadas, devido aos movimentos circulares entre os territórios nacionais
e, por isso, esses ambientes se caracterizam pela presença de um contingente
expressivo de indivíduos bilíngues e plurilíngues que fazem uso de diferentes
línguas, de forma dinâmica, em diversas situações e espaços sociais.

Para Morello (2016, p. 18)


“[…] as realidades multilíngues e plurilíngues se impõem. Elas são parte da história,
estão ligadas aos movimentos migratórios, à convivência entre distintos grupos
humanos e alicerçam, desde longa data, lutas políticas por direitos cidadãos
equânimes. As línguas, em sua diversidade e diferenças, são dinâmicas, persistem
e pressionam os limites do monolinguismo.”

Mas se há tantas línguas no Brasil e no mundo, por que, em geral, se desconhece


essa realidade?

O conhecimento ou o desconhecimento sobre a realidade linguística e plural de um


país podem ser reflexos das ações e decisões sobre as línguas e sobre os lugares
que as diferentes línguas ocupam nas práticas no imaginário social. Chamamos as
determinações e decisões referentes às línguas na sociedade de políticas linguísticas.

No Brasil, ao longo de seus mais de 500 anos de história, foram tomadas várias
decisões e ações que, infelizmente, resultaram na perda e esquecimento de muitas
línguas. Estamos falando de línguas de centenas de povos indígenas e de línguas de
imigrantes e seus descendentes.

É possível citar dois exemplos de intervenções sobre as línguas que marcam a história
linguística do país:

Exemplo 1
Um deles foi o documento intitulado Diretório dos Índios, de 1758, em que
Marquês de Pombal, um diplomata e estadista português, obrigava o uso da
língua portuguesa na colônia e proibia o uso e ensino das línguas indígenas.

Exemplo 2
O outro exemplo é o conceito de ‘crime idiomático’ instituído em 1939, durante
o período do Estado Novo, que criminalizava o uso de línguas estrangeiras
em território nacional. Essa foi uma decisão que fazia parte da campanha
de nacionalização para forçar a integração dos imigrantes estrangeiros no
Brasil, para impor entre eles a língua portuguesa e para reduzir as influências
estrangeiras no ideal de cultura brasileira.

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Ambos os exemplos evidenciam uma faceta das ações sobre as línguas, orientadas
por uma perspectiva de que a pluralidade de línguas era um problema.

Atualmente, no Brasil e no mundo, vivenciamos um movimento internacional de


valorização e promoção das mais diversas línguas e culturas do mundo. Isso porque
as línguas são cada vez mais reconhecidas como patrimônios da humanidade, como
direitos dos seus falantes e como elementos constitutivos de identidades individuais
e coletivas, pois são repositórios de memórias e culturas das mais diversas. Por
essa razão, hoje o multilinguismo é um recurso importante para promoção de uma
cultura sustentável e de paz.

Nessa perspectiva, podemos citar o Inventário Nacional da Diversidade Linguística,


decretado no Brasil no ano de 2010, como um exemplo desse novo movimento em
direção à valorização do multilinguismo. O inventário tem o objetivo de produzir
conhecimentos e documentação sobre as muitas línguas brasileiras e contribuir
para a garantia dos direitos linguísticos de muitas comunidades.

A partir desses exemplos, podemos compreender o que são as políticas linguísticas.


Também chamadas de políticas de línguas, podemos afirmar, de modo geral,
que essas decisões podem ser sobre as formas das línguas (ortografia, alfabetos,
vocabulário), sobre sua função em várias esferas da vida social (na legislação, na
mídia, no espaço público, na educação etc.), assim como sobre seus usos e sua
difusão nos sistemas de ensino.

Veja mais alguns exemplos de políticas linguísticas:

• A determinação da função social de ‘língua oficial’, por meio de legislação,


é uma política linguística;

• Uma reforma ortográfica que tem o objetivo fazer mudanças e normalizar


a forma de escrita de uma língua é uma política linguística;

• A promoção de uma língua, em diversos meios, para representar uma


cultura ou identidade nacional é uma política linguística;

• A proibição de uma língua em determinado espaço da vida pública (escola,


igreja, comércio) é uma política linguística;

• A obrigatoriedade do uso de determinadas línguas em instituições públicas


é uma política linguística;

• A decisão sobre quais línguas devem ser ensinadas e praticadas nas escolas
é uma política linguística. Nesse caso, é considerada uma política linguístico-
educacional, termo que exploraremos na sequência.

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148
A partir desses exemplos, podemos afirmar que as políticas linguísticas podem ser
expressas na forma de documentos e podem ser identificadas por meio de práticas e
da cultura linguística de dada sociedade. Isso significa que as decisões sobre as línguas
podem ser identificadas não só em instrumentos legais (leis, decretos etc.), de forma
explícita, mas também por meio de práticas consolidadas em relação às línguas.

Cultura linguística é a soma de ideias, valores, crenças,


atitudes, preconceitos, mitos, estruturas religiosas e
todo o complexo que conforma a bagagem cultural que
os falantes das línguas imprimem às suas relações com
as línguas a partir de sua cultura (SCHIFFMAN, 2006).

Para Spolsky (2009),


“[…] a política linguística existe mesmo naqueles contextos em que ela não foi
explicitada ou estabelecida oficialmente. Muitos países, instituições e grupos
sociais não têm uma política linguística formal, de modo que a natureza de sua
política linguística deve ser derivada a partir do estudo de suas práticas e crenças
linguísticas. Mesmo naqueles contextos em que há uma política linguística formal
seu efeito nas práticas linguísticas não é garantido nem consistente.”

As políticas linguísticas geram efeitos sobre as coletividades, pois as decisões sobre


as línguas e seus usos orientam nossas opiniões e escolhas sobre nossas práticas
linguísticas nas mais variadas situações cotidianas.

E as políticas linguístico-educacionais?

É possível dizer que as políticas linguístico-educacionais são as decisões e deliberações


sobre as línguas na e da escola.

Elas se referem às decisões, ações e estratégias de gestão das línguas, voltadas para
os espaços de ensino-aprendizagem, em especial para os espaços de escolarização
formal. Elas são comumente adotadas por governos centrais, regionais ou locais.
Mas também podem ser adotadas por membros de comunidades escolares, que
deliberam sobre quais línguas devem ser ensinadas, sobre as suas formas de
aprendizagem e sobre aquelas que servirão de meios de instrução dos conteúdos
escolares.

Para Shohamy (2006), as políticas linguístico-educacionais são os mecanismos


usados para criar práticas linguísticas nas instituições educacionais.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 149


Veja três exemplos de políticas linguístico-educacionais explícitas, ou seja, decisões sobre
as línguas que estão presentes na legislação de diferentes países da América do Sul:

“§ 3º O ensino fundamental regular será ministrado em língua


portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.”
(Parágrafo 3º do Artigo 32, da Seção III da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDB 9394/1996).

“Art. 4o O sistema educacional federal e os sistemas educacionais


estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir
a inclusão nos cursos de formação de Educação Especial, de
Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior,
do ensino da Língua Brasileira de Sinais - Libras, como parte
integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs,
conforme legislação vigente.” (Artigo 4º da Lei no. 10.436/2002
que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras
providências).

“Artículo 29.- De las lenguas oficiales como instrumentos didácticos.


Las lenguas oficiales serán utilizadas como medio en la enseñanza en
todos los niveles del sistema educativo: inicial, escolar básica, media
y superior, de conformidad con la competencia requerida para cada
nivel.” (PARAGUAY, 2010)

No primeiro exemplo, destacamos um trecho da Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional Brasileira, em que há a menção explícita sobre qual língua deve
ser usada como língua de instrução dos conteúdos escolares: a língua portuguesa.

No segundo, vemos o trecho da lei que garante o ensino de Libras em cursos de


formação de professores no Brasil.

No terceiro exemplo destacamos um artigo da Lei de Línguas do Paraguai (Ley de


Lenguas no. 4.251/2010), que versa sobre os idiomas na educação. O texto explicita a
obrigatoriedade do uso das línguas oficiais do país (castelhano e guarani) em todos
os níveis do sistema educativo.

Em grande parte dos países, com sistemas educacionais centralizados, as decisões


sobre as políticas linguístico-educacionais são feitas por autoridades governamentais,
sendo, portanto, alinhadas às políticas linguísticas nacionais.

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“A escola [...] não é uma instituição neutra, mas contribui para um processo de
escolarização das línguas e dos modos de aprendizagem.” (SEVERO, 2020, p. 297).

1.2 Gestão de Línguas na Escola

Agora que você já compreendeu a relação entre o multilinguismo, políticas


linguísticas e políticas linguístico-educacionais, vamos aprender sobre a gestão de
línguas e diferentes perspectivas em relação à pluralidade de línguas.

Quando falamos em gestão, nos referimos a um conjunto de ações que tem como
propósito administrar e organizar algo, visando alcançar um objetivo. Portanto,
ao usar o termo ‘gestão’ de línguas na escola, está se falando sobre as diversas
estratégias e etapas de planejamento em relação às línguas no espaço escolar.

A gestão das línguas na escola está vinculada às políticas linguísticas.

Para os pesquisadores Kaplan e Baldauf (1997), o planejamento de línguas na


educação é o recurso mais potente para propiciar mudanças. Ele se refere, por
exemplo, à seleção de línguas como meios de instrução e às línguas a serem
ensinadas. E esse planejamento está condicionado a questões sociais, econômicas e
culturais que impactam na forma como os diversos grupos expressam suas opiniões
em relação às línguas.

Gestão de línguas na escola.


Fonte: Freepik (2023).

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 151


Assim, é possível definir gestão de línguas na escola como a administração
da presença e do lugar das línguas na escola, por meio de estratégias
e práticas adotadas por diferentes agentes, interferindo nas relações
da comunidade escolar com as línguas em uso (BERGER, 2017).

A seguir, veja algumas das decisões que estão implicadas no que se chama de ‘gestão
de línguas na escola’:

• A escolha sobre as línguas que compõem os currículos escolares;

• A escolha sobre quais línguas serão meios de instrução dos conteúdos


escolares;

• A definição dos lugares das línguas nos currículos (língua materna; língua
estrangeria; língua adicional etc.);

• A distribuição da carga horária de estudo das línguas ou de exposição nas


línguas;

• A escolha do modelo de educação bi ou multilíngue mais adequado ao


contexto de ensino-aprendizagem;

• A definição das metodologias a serem usadas para o ensino das línguas;

• A formação de recursos humanos (professores) para implementarem as


propostas pedagógicas determinadas;

• A escolha ou elaboração de materiais instrucionais para ensino das línguas;

• A definição de critérios e sistemas de avaliação da aprendizagem nas


línguas;

• A avaliação da gestão das línguas para fins de aperfeiçoamento.

Como é possível perceber, não se trata somente de tornar explicita a decisão sobre
as línguas na legislação. Uma série de estratégias e ações posteriores são necessárias
para colocar em prática uma determinação.

Instâncias governamentais regionais e locais, profissionais da educação e


comunidade escolar fazem parte do conjunto de agentes que podem participar
dessas ações, dependendo do grau de autonomia dos sistemas escolares. Por isso,
podemos afirmar que professores podem participar dessa gestão.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


152
As línguas que compõem os currículos escolares e que estão
presentes nas várias etapas da escolarização como línguas de
instrução dos conteúdos escolares tendem a ser aquelas que, em
geral, possuem reconhecido lugar como língua oficial do país e/
ou que possuem prestígio social.

Em muitos casos, os currículos são pré-estabelecidos por instâncias superiores, o


que faz com que, nem sempre, a comunidade escolar local possa fazer modificações
na forma como as línguas estão presentes na distribuição dos conteúdos escolares.

Em escolas localizadas em contextos multilíngues e plurais, como é o caso de muitas


regiões de fronteira, muitas vezes as práticas da comunidade e do entorno social
não estão refletidas nos currículos escolares ou não são mencionadas nos Projetos
Político Pedagógicos. Por essa razão, o tema do multilinguismo em espaços de
escolarização vem sendo debatido intensamente nos últimos anos.

A partir de Berger (2015), podemos dizer que a gestão das línguas na escola se dá
em dois eixos integrados:

• A gestão que se dá na forma como as línguas são mencionadas e reguladas


em instrumentos normativos e que é a base para a composição dos
currículos;

• A gestão que se dá na forma como as línguas são praticadas e geridas nas


práticas escolares cotidianas, pela comunidade escolar local.

Várias pesquisas demonstram fenômenos e problemáticas relacionadas aos


modelos de gestão de línguas na escola. A presença de estudantes que falam línguas
diferentes das línguas da escola, ou de alunos bi e plurilíngues, com repertórios
linguísticos cada vez mais plurais nos espaços de escolarização, exige que as
comunidades escolares e sistemas educacionais adotem novas formas de lidar
com essa pluralidade de línguas e culturas, propondo práticas pedagógicas mais
adequadas para esses estudantes.

A pluralidade de línguas como um problema, um direito ou um recurso?

Um influente pesquisador do campo das Políticas Linguísticas, Richard Ruiz, em


1984, publicou um texto em que discutiu a existência de três diferentes perspectivas
em relação à pluralidade de línguas: língua como problema; língua como direito; e
língua como recurso.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 153


Essas perspectivas, chamadas por ele de orientações, estão na base de decisões
sobre as línguas e podem ser identificadas em diferentes políticas linguísticas. Para
Ruiz (1984), essas orientações delimitam o que e como falamos sobre as línguas e
sobre seus papéis na sociedade.

Aplicadas à gestão das línguas na escola, podemos explicar essas perspectivas da


seguinte forma:

Língua como problema


é uma perspectiva que compreende a pluralidade de línguas na escola ou as
línguas maternas dos alunos como problemas a serem resolvidos. Em geral,
os modelos de gestão de línguas que partem dessa perspectiva tendem a
desconsiderar o valor das línguas maternas dos alunos e visam à substituição
linguística a curto e médio prazo. Para contornar o problema, segundo essa
perspectiva, uma língua é escolhida pela escola para ser o alvo do processo
de ensino-aprendizagem e as demais são pouco a pouco desconsideradas.

Língua como direito


é uma perspectiva que compreende que as línguas maternas dos alunos são
constitutivas de direitos humanos fundamentais. Por isso, são consideradas
como repositórios de suas culturas e expressão de suas identidades individuais
e coletivas. Por esse motivo, nessa perspectiva o uso de suas línguas maternas
pelos alunos é um direito a ser respeitado e garantido pela escola, em suas
práticas pedagógicas. Modelos de educação que partem dessa orientação
tendem a respeitar as experiências multilíngues na escola, garantindo aos
alunos a possibilidade de interagirem em suas línguas.

Língua como recurso


é uma perspectiva que compreende que as diferentes línguas podem
ser um potencial recurso ao desenvolvimento cognitivo e educacional e
podem agregar valores à sociedade e àqueles que as falam. Desse modo,
não somente alunos que possuem línguas maternas diferentes da língua
majoritária na sociedade, e da língua da escola, como também os demais
podem ser beneficiados pelas experiências multilíngues.

Podemos depreender essas perspectivas língua como problema, língua como


direito e língua como recurso não somente nas políticas linguísticas como também
em práticas escolares cotidianas. Veja algumas possibilidades de como isso pode
ocorrer no dia-a-dia da escola.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


154
Perspectivas da língua.
Fonte: Adaptado de Berger (2015).

A compreensão dessas diferentes perspectivas é também a chave para o


entendimento dos diferentes modelos de educação bi e multilíngue, como os que
abordaremos no próximo tópico. Também é importante que compreendamos
essas perspectivas para diagnosticar abordagens em relação à gestão das línguas
em escolas situadas em contextos plurais, como os de fronteira.

Agora, assista a videoaula a seguir para compreender melhor a questão da gestão


das línguas na escola.

Videoaula: Gestão das Línguas na Escola

Você chegou ao final desta Unidade de estudo. Caso ainda tenha dúvidas, reveja o
conteúdo e se aprofunde nos temas propostos. Até a próxima!

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 155


Referências
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Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 157


Unidade 2: Educação Bi/Multilíngue: Conceitos e Modelos

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de reconhecer diferentes modelos de educação bi/
multilíngue e identificar suas características.

2.1. O que é Educação Bilíngue?  

Educação Bilíngue.
Fonte: Freepik (2023).

Você provavelmente já ouviu falar em Educação Bilíngue. A proposição de um


programa de educação bi ou multilíngue é um exemplo de gestão de línguas na escola
e pode ser explicitado por meio de uma política linguístico-educacional pública, no
caso de haver legislação específica ou diretrizes para seu desenvolvimento.

O termo Educação Bilíngue é bastante abrangente, o que significa dizer que não há
um único modelo, mas muitos deles. Eles variam dependendo do objetivo social
e educativo, da proposta de ensino-aprendizagem, do público alvo, do contexto
sociopolítico e educacional de implementação, da forma como os currículos são
organizados, do tempo de exposição que será destinado às línguas do programa,
dentre outros elementos.

Desde a década de 1920, pesquisas sobre esse tema vêm sendo realizadas, o que
explica o grande volume de publicações sobre o assunto. Há diversos pressupostos
teóricos que orientam os modelos e programas envolvendo o uso de duas ou
mais línguas como meios de instrução. Por essa razão, apresentaremos esse tema

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158
de maneira abrangente e introdutória, fornecendo as principais bases para a
compreensão desse assunto tão vasto. Você terá a oportunidade de aprender sobre
esse assunto para refletir sobre seu contexto plural de ensino-aprendizagem.

Tradicionalmente, o termo Educação Bilíngue pode se dar em dois caminhos


diferentes. Há modelos voltados para a escolarização de crianças falantes de
línguas minoritárias, diferentes da língua da sociedade em geral, como é o caso de
comunidades indígenas e de imigrantes. E há modelos que se referem ao ensino de
conteúdos escolares por meio de diferentes línguas e, paralelamente, visando ao
ensino de línguas adicionais. Não somente as línguas são objeto desses modelos,
como também aspectos culturais a elas relacionados.

Para Antonieta Megale, pesquisadora de referência em Educação Bilíngue no Brasil,


“a definição do conceito de Educação Bilíngue é complexa e pode variar em diferentes
contextos, pois depende de uma série de aspectos, entre eles a comunidade em que
se insere, os interesses dos agentes nela envolvidos, o status econômico e social
dos sujeitos que a compõem, a presença (ou não) de regulamentação para seu
funcionamento, o prestígio das línguas utilizadas e como os meios de comunicação
compreendem e propagam o fenômeno” (MEGALE, 2019, p. 21).

Quando falamos em Educação Bilíngue, diversos elementos devem ser


considerados dependendo do contexto em que ela será implementada, pois sua
proposição e estruturação envolve questões políticas, sociolinguísticas, econômicas,
administrativas e metodológicas. Também as línguas escolhidas para compor os
programas, bem como as metodologias adotadas, são fatores que interferem no
modo como compreendemos Educação Bilíngue.

No Brasil, por exemplo, você provavelmente já ouviu falar em Educação Bilíngue para
surdos, em Educação Escolar bilíngue e intercultural para os povos indígenas e em
Educação Bilíngue em língua inglesa em escolas privadas. São propostas bastante
distintas que se aplicam a públicos igualmente diferentes, cujas línguas a serem
aprendidas também possuem diferentes valores sociais.

Pense um pouco mais sobre isso.

Propor um modelo de Educação Bilíngue em um contexto geopolítico de fronteira,


em que diferentes línguas estão em situação de contato no entorno social e onde
há um grande número de alunos que falam várias línguas é diferente de pensar um
modelo de Educação Bilíngue voltado para a oferta de uma única língua adicional ao
longo do processo de escolarização, para pessoas majoritariamente monolíngues.
As diferenças se dão tanto no plano contextual, como no plano estrutural.

Para Hornberger (1996), as características contextuais são formuladas em termos

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 159


do perfil do público-alvo, do perfil linguístico da comunidade, dos aspectos sociais,
do valor atribuído às línguas na comunidade ou de aspectos socioeconômicos. As
características estruturais se referem ao modo de implementação do programa
na escola, às metodologias a serem adotadas, à organização curricular e ao modo
como as línguas serão usadas em sala de aula.

A seguir, veja os aspectos estruturais que são levados em consideração para


distinguir os diferentes programas:

• o tempo de instrução a que os alunos são submetidos para a aprendizagem


das línguas;

• o perfil linguístico do alunado-alvo (membros de grupos linguísticos


majoritários ou minoritários);

• o perfil que se espera que o alunado possua ao final da instrução


(monolíngues em uma língua majoritária; bilíngues com limitações em
termos de proficiência em uma das línguas; bilíngues com desenvolvimento
da habilidade oral e escrita em ambas as línguas; plurilíngues com
competências em diversos níveis em várias línguas);

• a organização do currículo escolar para inserção das línguas ao longo do


processo de escolarização (línguas ensinadas de forma concomitante ou
sequencialmente);

• quais línguas de instrução serão usadas em sala de aula para ministrar


diferentes conteúdos e disciplinas.

No Brasil, é muito comum ouvir o termo Educação Bilíngue em escolas da rede


privada, que ofertam o ensino-aprendizagem de inglês como língua adicional de
modo diferenciado em seus programas curriculares, devido ao valor econômico e ao
prestígio internacional que a língua alcançou no decorrer dos anos. No entanto, no
contexto da América do Sul em que se destaca a língua espanhola, bem como tantas
outras línguas originárias e regionais, é preciso contemplar o leque de possibilidades
e oportunidades que o contexto oferece.

Vejamos alguns dos possíveis objetivos que podem ser identificados em modelos de
Educação Bilíngue:

• Promover a assimilação linguística e cultural de grupos minoritários em


uma sociedade em que há uma língua majoritária;

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• Preservar e valorizar identidades linguísticas, culturais, étnicas e religiosas;

• Promover a inclusão social por meio do acesso à educação, via línguas


maternas de grupos minoritários;

• Prover habilidades linguísticas em uma língua visando empregabilidade e


prestígio em um mundo economicamente competitivo;

• Fortalecer as línguas de grupos dominantes e suas posições linguísticas


privilegiadas na sociedade;

• Promover o equilíbrio entre línguas diferentes em um contexto socialmente


bilíngue.

• Promover uma educação linguística com foco na sensibilização para a


pluralidade de línguas e culturas.

2.2 Modelos de Educação Bilíngue

Aqui você conhecerá algumas formas de classificar modelos de Educação Bilíngue.

Como as pesquisas sobre essa temática ocorrem há mais de um século, em diversos


contextos entre os países do mundo, as formas de classificar os modelos de Educação
Bilíngue e os tipos de programas já propostos podem variar.

Uma forma tradicional de distinguir os programas de Educação Bilíngue é a partir


de seu objetivo do ensino-aprendizagem. Ou seja, se ao final da escolarização se
promoverá o bilinguismo aditivo ou o bilinguismo subtrativo.

Veja a diferença entre os dois:

Bilinguismo Aditivo
Como a palavra indica, os programas que enfatizam o bilinguismo aditivo
têm como objetivo adicionar outra língua ao repertório linguístico dos
alunos no decorrer dos anos de permanência na escola. Podemos dizer
que, nesse caso, os alunos podem ser bi ou plurilíngues no sistema escolar,
tendo aprendido ou desenvolvido na escola mais de uma língua para se
comunicarem, em diferentes contextos sociais e com variados níveis de
proficiência, dependendo da forma como o programa é estruturado.

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Bilinguismo Subtrativo
Quando falamos em bilinguismo subtrativo, a subtração de línguas do
repertório dos alunos é uma consequência do tipo de programa proposto.
Nesse caso, de modo geral, alunos falantes de línguas diferentes da língua
majoritária de determinada sociedade, como é o caso de imigrantes, são
instruídos tanto em sua língua materna quanto na língua majoritária no
início da vida escolar. Porém, ao longo do processo de escolarização, a
língua materna dos alunos é eliminada do programa, sendo, aos poucos,
substituída pela língua de maior prestígio social.

Diante dessas primeiras considerações, uma forma de distinguir os modelos


de Educação Bilíngue é caracterizá-los como: modelo de transição, modelo de
manutenção ou modelo de enriquecimento. Você poderá perceber que a definição
desses modelos é muito parecida com o que explicamos anteriormente.

Veja a seguir a explicação:

Modelos de transição têm como objetivo a assimilação linguístico-cultural de


forma que os alunos – geralmente indivíduos de grupos linguísticos minoritários –
integrem-se ao grupo linguístico de maior prestígio em detrimento de suas línguas.

Entendemos por assimilação o processo pelo qual um grupo é levado a estar em


conformidade com uma cultura e língua dominantes, por meio de práticas de
coerção. Essas práticas visam a substituição de suas línguas e culturas pelas do
grupo dominante, que possui maior prestígio social em dada sociedade.

O modelo de transição abrange programas que visam à mudança linguística, à


assimilação cultural e à incorporação social de minorias em uma sociedade nacional.

Podemos chamar esse modelo também de subtração, conforme mencionamos


anteriormente, pois seu objetivo é subtrair e substituir a língua e a cultura do aluno
por outra, considerada mais prestigiosa. A longo prazo, esse tipo de Educação
Bilíngue pode levar à perda linguística entre as gerações, ou seja, há uma tendência
a abandonar a língua materna e de herança em favor da língua considerada mais
valorosa pela instituição escolar.

Como é possível supor, programas de Educação Bilíngue desse modelo são orientados
por uma perspectiva de língua como problema, ou seja, as línguas maternas dos
alunos são consideradas problemas a serem resolvidos pela escola, por meio de seu
paulatino apagamento e do ensino e difusão da língua majoritária da sociedade em
que se inserem.

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162
Para a renomada pesquisadora Ofélia Garcia (2009):

“Educar crianças em uma língua que elas não compreendem


geralmente conduz ao insucesso escolar. Se o espaço da língua
majoritária não incluir a prática linguística das crianças e se o
professor não maximizar a comunicação lançando mão das
práticas linguísticas de seus alunos, o insucesso na comunicação
e na educação certamente ocorrerá.”

Para refletir: No contexto dos Estados Unidos da América, a perspectiva ‘língua como
problema’ orientou a formação de Educação Bilíngue de transição, amplamente
difundido no país, com o objetivo de fazer com que imigrantes aprendessem o inglês
de modo efetivo. O bilinguismo estava associado a problemas de escolarização e
problemas sociais e era relacionado à educação dos mais pobres e incapacitados,
bem como de imigrantes não desejados no país.

Por isso, vários modelos de Educação Bilíngue desenvolvidos naquele país tinham
o objetivo de desenvolver nas crianças a fluência em inglês e não valorizavam a
experiência linguística prévia dos alunos. Por isso, a perspectiva de língua como
problema desencadeou um problema do ponto de vista do desenvolvimento e
fomento do multilinguismo, aspecto hoje presente na agenda da Unesco e em uma
diversidade de pesquisas acadêmicas.

Assista a um curto trecho do Documentário “Escolarizando o


Mundo”. Nesse trecho você assistirá relatos de uma instituição
de ensino que possui uma abordagem que pode ser considerada
um exemplo de modelo de transição. O trecho de interesse dessa
passagem se encontra entre 41min34s 43min20s.

Agora é hora de compreender os modelos de manutenção. Os programas que são


orientados por essa perspectiva proporcionam a aquisição de uma segunda língua
pelos alunos ao mesmo tempo em que preservam suas línguas maternas e suas
línguas de herança cultural, tidas como um dos elementos constitutivos de sua
identidade. Programas concebidos a partir desse modelo visam à afirmação dos
direitos civis e linguísticos dos grupos étnicos e não têm como objetivo a substituição
das línguas dos alunos.

Para Baker (2006), um importante pesquisador dos estudos em Educação Bilíngue,


o modelo de manutenção pode ser subdividido em dois tipos: um deles visando

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 163


à manutenção da língua do aluno no mesmo nível de proficiência que ele tinha
quando ingressou no sistema de ensino. Nesse caso, verifica-se uma manutenção
e estabilização da língua de casa; e o outro tipo visando ao desenvolvimento tanto
da língua materna do aluno e como das demais línguas que ele aprende na escola,
também chamado de manutenção evolutiva, já que as línguas de casa continuam
sendo desenvolvidas nas práticas escolares.

É possível dizer que a perspectiva que orienta esses modelos é a de língua como
direito, uma vez que a língua que o aluno traz de seu convívio familiar é reconhecida
pela instituição escolar.

Vejamos agora o modelo de enriquecimento. Esse tem como objetivo atender


grupos de comunidades linguísticas minoritárias ou majoritárias, e não se restringe
somente à manutenção da língua materna trazida pelo aluno para a escola. Esse
modelo visa também ao desenvolvimento e à ampliação das línguas minoritárias, ao
pluralismo cultural e à integração social com base na autonomia de grupos culturais.
Podemos dizer que, nesse caso, a Educação Bilíngue ou Multilíngue é orientada por
uma perspectiva de língua como um recurso potencial para o desenvolvimento
social e sustentável por meio das línguas.

Veja uma síntese:

Modelo de transição
substituição das línguas maternas dos alunos pela língua da sociedade
majoritária e assimilação cultural;

Modelo de manutenção
manutenção das línguas maternas dos alunos e fortalecimento de sua
identidade linguística e cultural;

Modelo de enriquecimento
enriquecimento e desenvolvimento dos repertórios linguísticos dos alunos,
visando á pluralidade de línguas e culturas.

Em se tratando de programas de Educação Bilíngue para contexto de fronteira,


trazemos como exemplo o Programa de Educação Bilíngue por Imersão em escolas
públicas do Uruguai.

O Programa de Educação Bilíngue por immersión em escuelas públicas del Uruguay,


foi implementado na zona de fronteira uruguaio-brasileira e gerenciado pela
Administración Nacional de Educación Pública (ANEP). O programa foi um exemplo de
política linguístico-educacional pública visando a valorização das práticas linguísticas
fronteiriças e a busca pela qualidade da educação pública primária no país.

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164
Implementado em escolas localizadas em áreas
fronteiriças situadas nos Departamentos de Artigas,
Rivera, Cerro Largo e Rocha, o programa adotou
um modelo de imersão dual em espanhol e em
português, em que os conteúdos escolares são
ensinados nas duas línguas, de modo equilibrado,
ou seja, com o mesmo tempo de exposição nas duas
línguas, visando à formação de alunos bilíngues. O
programa, portanto, desenvolveu um modelo que se
caracteriza como bilinguismo aditivo em escolas de
tempo integral.

Para a pesquisadora Claudia Brovetto (2010), a


metodologia de imersão supõe a utilização do
português para a apresentação dos conteúdos
curriculares, sem que a língua se constitua foco
de atenção explícita das atividades escolares.
Isso significa que não se ensina a língua por
meio de apresentação explícita de sua estrutura.
Diferentemente, a língua é utilizada como meio de
instrução de conteúdos programáticos em diversas
áreas, por um docente que possua competência
avançada em língua portuguesa.

Avenida que ‘divide’ as cidades de Rivera


(Uruguai) e Livramento (Brasil).
Foto: Eliana Sturza.

Isso leva os alunos a aprenderem a língua de modo indireto, por meio da exposição.
Além disso, como a língua faz parte do cenário sociolinguístico da região, a imersão
os leva a adquirirem a língua naturalmente em contexto real de uso.

2.2.1 Educação Multilíngue para as Demandas do Século XXI

Devido à percepção cada vez maior, a nível mundial, de que a pluralidade de línguas
é um importante patrimônio da humanidade e um recurso que deve contribuir para
a promoção de vivências harmoniosas entre diferentes povos, podemos ampliar a
noção de Educação Bilíngue para a de Educação Multilíngue, possibilitando maiores
oportunidades de conhecimentos e ampliando as oportunidades de trocas em mais
línguas.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 165


Programas de Educação Multilíngue que considerem as práticas linguísticas plurais
dos alunos bilíngues como potencialidades para o desenvolvimento de estratégias
didático-pedagógicas podem construir novas possibilidades educacionais e de
comunicação para os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.

No ano de 2021, a Unesco enfatizou o fomento ao multilinguismo para a inclusão


social na educação e na sociedade. A organização reconhece que as línguas e o
multilinguismo podem propiciar a inclusão, o que vai ao encontro de uma das metas
mundiais de desenvolvimento sustentável que é “não deixar ninguém para trás”. A
organização parte da compreensão de que a educação deve valorizar e ter como
base as primeiras línguas dos sujeitos nos primeiros anos da escolarização, como
fundamento para a aprendizagem de modo que os indivíduos tenham acesso e
valorizem o seu legado cultural.

É nesse contexto que diversas pesquisas vêm sendo desenvolvidas internacionalmente


sobre abordagens pedagógicas plurais visando uma Educação para o multilinguismo.
Essas abordagens possuem como princípio a sensibilização quanto à multiplicidade
de línguas e culturas, o desenvolvimento de atitudes positivas diante da diversidade,
bem como a valorização das experiências e vivências dos alunos em relação às
línguas de sua comunidade.

A complexidade linguística e cultural do século XXI, caracterizada pelo fluxo de


pessoas entre as fronteiras, pela disponibilização de informações e serviços em
línguas diversas, pela crescente migração, faz com que os países tenham que lidar,
cada vez mais, com novas formas de gestão de línguas em seus territórios. Dessa
realidade emergem diferentes modelos educacionais, em contextos sociopolíticos
variados, para contemplar e atender ao público escolar cada vez mais plural, do
ponto de vista linguístico e cultural.

Para Berger (2015), “os modelos centrados no ensino de uma língua nacional única,
que tratam as demais línguas somente sob o estatuto de línguas estrangeiras, são
considerados inadequados nesse novo milênio. O reconhecido multilinguismo
existente no âmbito dos países (ainda que tardio) e o intenso fluxo de pessoas, suas
línguas e culturas colocam, dentre os desafios da atualidade, a necessidade de se
pensar outras formas de encarar a presença e o lugar das línguas nas escolas e
outras formas de encarar o bi/multi/plurilinguismo, de modo que deixem de ser
tidos como um problema para os processos de ensino-aprendizagem e possam ser
encarados como potencialidade para a construção de sociedades plurais.”

Nesse contexto surgem as seguintes abordagens: abordagem intercultural para


o ensino de línguas e culturas; a abordagem da intercompreensão entre línguas
próximas; e a abordagem da conscientização linguística. A pesquisadora Ingrid
Kuchenbecker Broch, referência em estudos sobre Educação para o Plurilinguismo

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no Brasil defende que a educação precisa promover uma sensibilização para o
plurilinguismo, pois é de responsabilidade das instituições de ensino reconhecer
o multilinguismo como um fenômeno natural e indispensável a todos os contextos
(BROCH, 2014).

No ano de 2020, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou


o parecer que normatiza a educação bilíngue no Brasil, por meio
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação
Plurilíngue. Até então, não havia uma política linguística pública
explícita, em nível nacional, para a regulamentação e criação de
um modelo de ensino de bilíngue.

Você chegou ao final desta Unidade de estudo. Caso ainda tenha dúvidas, reveja o
conteúdo e se aprofunde nos temas propostos. Até a próxima!

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 167


Referências
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BROCH, Ingrid Kuchenbecker. Ações de promoção da pluralidade linguística em


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em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.

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Unidade 3 - A Promoção de Línguas e Culturas na Escola

Objetivo de aprendizagem

Ao final desta unidade, você será capaz de analisar diferentes propostas de ações
pedagógicas e projetos de valorização do bi/multilinguismo na escola

3.1. Desafios da Educação em Contextos Plurais

Em contextos intensamente multilíngues e multiculturais, é quase impossível se


comunicar sem ser afetado pela experiência da diversidade. Por essa razão, as
salas de aulas localizadas nesses espaços devem considerar as línguas e culturas
da comunidade, bem como as práticas linguísticas locais no cotidiano das ações
escolares.

Ao fazer isso, além de propiciar maior integração entre o que ocorre na vida cotidiana
e o que se passa na escola, as salas de aula também podem se tornar espaços
de reconhecimento e valorização da pluralidade. Como consequência, as escolas
podem ser espaços de fomento à convivência harmoniosa entre pessoas de línguas
e culturas diversas.

Quando falamos em práticas pedagógi-


cas para contextos plurais, como os de
fronteira, nos referimos a procedimentos
e atividades desenvolvidos em espaços
de ensino-aprendizagem em que há cir-
culação de línguas e culturas diferentes.

Trata-se de práticas que tenham como


objetivo valorizar diferentes culturas e
promover diálogos em diferentes lín-
guas que permitam construir e compar-
tilhar conhecimentos de forma plural.
Essas práticas podem se dar tanto no
plano da documentação escolar, como
no plano das práticas pedagógicas im-
plementadas por educadores, nos dife-
rentes espaços em que o trabalho peda-
Convivência harmoniosa entre gógico se realiza.
pessoas de línguas diversas.
Fonte: Freepik (2023).

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170
No que se refere ao espaço da sala de aula, cujas práticas são orientadas pelos
currículos e pelas formas como a construção de conhecimentos é concebida pela
instituição escolar e educadores, há desafios a enfrentar em contextos multilíngues.

Os desafios são multifacetados, principalmente em contextos em que os sistemas


educacionais foram historicamente construídos a partir de perspectivas monolíngues,
ou seja, de perspectivas que valorizam uma única língua ou que creditam ao
multilinguismo a noção de que a diversidade é um problema a ser resolvido.

Nesse caso, a ausência de políticas linguístico-educacionais próprias para esses


contextos educacionais plurais é um agravante. Por isso, há lacunas no que se
refere à oferta de subsídios teóricos e práticos para preparar professores para essas
realidades.

Para a pesquisadora Elizabeth Coelho (2012), o ensino em situações de diversidade


linguística e etnocultural pode apresentar desafios especiais para os professores,
que provavelmente receberam pouca ou nenhuma preparação durante a formação
inicial para lecionar em realidades de salas de aula multilíngues e multiculturais.

Muitos professores novos esperam ensinar os alunos da forma como eles mesmos
aprenderam, por isso pode ser um choque que alguns dos alunos ainda não sejam
proficientes na língua de ensino ou tenham um conhecimento cultural diferente
daquele presente no currículo e materiais didáticos que os professores devem usar.

O grande desafio das escolas localizadas nesses contextos está em propor formas de
gestão da pluralidade linguística nas práticas pedagógicas, que tenham como objetivo
valorizar a presença de alunos bilíngues e plurilíngues, respeitando e acolhendo
seus repertórios diversificados e compreendendo-os como potenciais recursos para
a construção de espaços plurais que visem o enriquecimento linguístico e cultural
de todos.

Não há uma única proposta, assim como pudemos constatar na diversidade de


programas de Educação Bilíngue já desenvolvidas mundo afora. Por essa razão,
nas próximas seções destacamos algumas experiências e, posteriormente, alguns
subsídios para que escolas em contextos plurais possam prover os encaminhamentos
para fins de uma educação plural que acolha e oportunize o desenvolvimento
linguístico e cultural da comunidade.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 171


3.2 Ações em Contextos Multilíngues de Fronteira

Aqui você terá oportunidade de conhecer três ações desenvolvidas em regiões


multilíngues de fronteira, cujos princípios foram a formação docente para promover
a sensibilização e reflexões sobre as especificidades da educação na fronteira, o
atendimento das demandas socioeducacionais desses contextos, bem como o
desenvolvimento de práticas inovadoras voltadas para a valorização das experiências
linguísticas e culturais das fronteiras.

3.2.1 O Programa Escolas Interculturais de Fronteira

Muito conhecido pela sua sigla PEIF, o Programa Escolas Interculturais de Fronteira
teve seu início em 2005, a partir de um esforço bilateral, entre Brasil e Argentina, para
construir uma identidade regional bilíngue em português e espanhol, no âmbito do
Mercosul , respaldado em uma cultura de paz e de cooperação fronteiriça. A partir
do ano de 2006, as relações se estenderam a outros países fronteiriços, tendo um
perfil multilateral.

Esse programa foi inicialmente concebido na forma de projeto,


com o nome Projeto Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira
(PEIBF). Somente no ano de 2012, a ação foi instituída como
Programa Escolas Interculturais de Fronteira pelo Ministério
da Educação do Brasil, por meio da Portaria no. 789 (19 de julho
de 2012), envolvendo a Secretaria de Educação Básica (SEB),
universidades federais brasileiras, Secretarias Estaduais e
Municipais de Educação e escolas fronteiriças.

O programa desenvolveu um modelo de ensino-aprendizagem na forma de


intercâmbio entre professores de escolas dos países participantes, viabilizando
a vivência do encontro e de trocas linguísticas e culturais que privilegiavam a
descoberta e a pesquisa como centro das atividades pedagógicas.

Professoras de ambos os países cruzavam a fronteira, em um movimento que ficou


chamado de cruce, para ministrar aulas da educação infantil no país vizinho, adotando
suas línguas maternas como línguas de instrução. Com isso, os alunos de ambos
os países tiveram a oportunidade de vivenciar práticas de ensino-aprendizagem na
língua do país vizinho, bem como ter vivências interculturais diversas.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


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A pesquisadora Eliana Sturza, explica:

“O ‘cruce’ é a travessia, que em algumas fronteiras é a ponte; em


outras, a balsa; em outra, apenas a rua. Mas cruzar, na dinâmica
proposta para esse programa, é muito mais, pois coloca o professor
no centro do processo à medida que é ele que leva a língua, a
cultura e o conhecimento, mediando-os com os alunos da escola
parceira. O professor articula, planeja e desenvolve projetos
em conjunto com o colega argentino, paraguaio, venezuelano e
uruguaio” (STURZA, 2014, p. 5).

As atividades pedagógicas foram planejadas tendo como fundamentos o fomento


à interculturalidade e ao bilinguismo, marcadamente em português e espanhol,
característico das regiões de fronteira da América do Sul.

Além disso, foi proposta a metodologia de ensino via projetos de ensino-


aprendizagem, construídos na vivência e negociações entre professores e alunos,
propiciando a centralidade e participação ativa dos alunos como centro do processo
de ensino-aprendizagem.

Nesse sentido, o currículo das atividades do programa foi construído levando em


conta as peculiaridades de cada região de fronteira, em suas características históricas
e culturais.

Sobre as práticas pedagógicas desenvolvidas no PEIF, a coordenadora geral do


Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas (IPOL), Dra.
Rosângela Morello (2011, p. 15), avalia:

“[...] a construção de um modelo de ensino comum supõe uma perspectiva de


atuação que não imponha um modelo de ensino de um país sobre o outro. Por
isso, elege-se como unidade de trabalho projetos de ensino-aprendizagem (ou
de pesquisa) propostos pelas turmas, de cujo planejamento todos participam,
organizando a partir deles suas atuações.”

Como o programa foi desenvolvido em diferentes contextos socioculturais de fronteira,


foram muitas as experiências acumuladas por docentes e alunos dessas regiões.

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Conheça um pouco do trabalho desenvolvido na fronteira Brasil
– Argentina – Paraguai, sob a gestão Universidade Federal da
Integração Latino-Americana.

Para saber mais sobre essa ação, acesse também o vídeo.

O Observatório da Educação na Fronteira

O projeto multi-institucional Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF) foi


desenvolvido entre os anos 2011 e 2013 em articulação às iniciativas do Instituto de
Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas (IPOL), duas universidades
públicas brasileiras e a parceria de cinco escolas públicas brasileiras localizadas em
municípios fronteiriços.

Marca gráfica do projeto Observatório da Educação na Fronteira.


Fonte: Observatório da Educação na Fronteira (2012).

O Observatório da Educação na Fronteira

O projeto teve como prioridade a ampliação do campo de observação sobre a fronteira


e sobre os processos educativos peculiares a essas regiões e seus efeitos, visando
ao fomento de pesquisas e políticas linguísticas para os espaços de escolarização
em contextos plurais.

Desse modo, os objetivos foram a construção de um panorama da situação social e


linguística de escolas localizadas na fronteira, seus efeitos nos processos de ensino-
aprendizagem e o desenvolvimento de investigações para fins de proposição de
metodologias de ensino-aprendizagem e políticas educacionais públicas em prol da
valorização da diversidade linguístico-cultural.

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Entre as muitas atividades realizadas, procedeu-se a realização de diagnósticos das
línguas e culturas entre a comunidade de cada uma das escolas parceiras, observações
sistematizadas de aulas e de práticas escolares, seminários de estudos e debates
em torno dos temas língua/educação/fronteira, planejamento e implementação de
propostas metodológicas para ensino bi ou multilíngue.

No que se refere às práticas pedagógicas, para os contextos plurais de fronteira em


que o observatório foi desenvolvido, as escolas participantes propuseram, a partir de
seus quadros docentes, atividades que incorporassem as línguas do entorno social
nas aulas regulares dos primeiros anos do ensino fundamental.

A presença de professores bi e plurilíngues nas escolas viabilizou modos de docência


em que os limites entre as línguas não foram impostos nas explicações dos conteúdos
e das atividades, no auxílio aos alunos e nas atividades lúdicas. Com isso, muitos
alunos que, antes, se sentiam alijados das interações em sala de aula, por não se
sentirem aptos a se comunicarem na língua majoritária de instrução (o português),
tornaram-se sujeitos ativos nos processos de ensino-aprendizagem, participando e
colaborando ativamente com o coletivo.

Destacamos, dessa experiência, os relatos de professoras participantes do projeto


e que lecionam em escolas de Pedro Juán Caballero, MS, fronteira entre Brasil e
Paraguai. Naquele contexto, as línguas oficiais do Estado Brasileiro e do Estado
Paraguaio (português), castelhano e guarani estão em situação de encontro cotidiano.

Relato Prof. Rosa


“Então... com o OBEDF eu tive uma outra visão, eu pude me colocar no lugar do
aluno e imaginar como seria difícil eu estudar num lugar onde a língua materna
não fosse a minha, fosse diferente, e que eu tivesse que conviver com aquela
língua, tivesse que esquecer tudo o que eu sei para começar a aprender uma
nova língua.” (Professora Rosa) (BERGER, 2015)

Relato Prof. Helena


“Com o OBEDF eu aprendi que a gente pode estar trabalhando com as três
línguas com os alunos. Antes do OBEDF eu não trabalhava com eles. Era só o
português, né. Depois com a pesquisa feita com o observatório, as pesquisas
feitas em sala de aula, observação com os alunos, eu fui interagindo com eles
em guarani, espanhol e tive muitos... ótimos resultados na aprendizagem das
crianças.” (Professora Helena) (BERGER, 2015)

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 175


Para saber mais sobre o OBEDF, clique aqui.

3.3 Princípios para a Promoção de Línguas e Culturas na Escola

Conforme você viu, a promoção de línguas e culturas na escola implica em uma


série de decisões, que demandam reflexão e planejamento por parte dos agentes
envolvidos na formulação dos objetivos educacionais e sociais almejados para a
comunidade escolar.

Também é necessária a existência de políticas linguístico-educacionais que


possibilitem a formulação de currículos escolares adequados aos contextos plurais
e de fronteira. Esse é um dos importantes elementos que determinam as bases para
que práticas diferenciadas sejam propostas e consolidadas nos espaços das escolas.

Acrescenta-se, ainda, a importância de formação docente que contemple e


problematize as especificidades e demandas linguístico-educacionais de contextos
plurais. Formar educadores para o século XXI demanda um olhar para a pluralidade.

Sobre isso, veja a afirmação de Berger (2015):

“Ao não se contemplar a questão da pluralidade linguística e das políticas linguísticas


como parte essencial e indispensável à formação de professores, precisamente nos
dias de hoje, em que os fluxos migratórios levam a configurações demográficas plurais
no âmbito dos países, estados e cidades, corre-se o risco de formar professores para
atuarem em um mundo uniforme e homogêneo que não existe” (BERGER, 2015, p. 157).

São diversas as experiências didático-pedagógicas e abordagens plurais que podem


servir de modelo para a formulação de novas práticas. Abordagens plurais são
aquelas que têm como princípios os seguintes:

• Sensibilização quanto à multiplicidade de línguas e culturas;

• Desenvolvimento de atitudes positivas diante da diversidade;

• Valorização das experiências e vivências dos alunos em relação às línguas


de sua comunidade.

A Educação Intercultural é um exemplo de abordagem plural para o ensino de


línguas e culturas.

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Educação Intercultural.
Fonte: Freepik (2023).

Com o objetivo de contribuir para a criação de um percurso que culmine na promoção


de línguas e culturas na escola, a partir de Berger (2015), destacamos princípios para
a proposição de ações que podem ser desenvolvidas no contexto escolar, visando
subsidiar o reconhecimento da realidade plural da comunidade escolar e a vivência de
novas experiências bi ou multilíngues e pluriculturais nos processos pedagógicos.

Cada um dos princípios apresentados é seguido de perguntas para que a reflexão esteja
no cerne do desenvolvimento de ações entre a equipe pedagógica:

1º Princípio: Conhecer e refletir sobre o contexto plural de línguas e culturas onde


a escola se situa

Contextos multilíngues e plurais, em que há circulação de falantes de diferentes


línguas, como é o caso das regiões de fronteiras, são espaços de oportunidades de
trocas interculturais. Escolas localizadas nessas regiões geralmente recebem alunos
com repertórios linguístico-culturais diversos e que trazem consigo histórias e vivências
que precisam ser consideradas pela escola. Por esse motivo, perceber, conhecer e
compreender o entorno social em sua diversidade é uma importante tarefa que cabe à
escola para a construção de práticas pedagógicas realistas frente ao público atendido.

Vejamos algumas questões que servem de base para reflexão entre a equipe pedagógica:

• Quais as características do contexto em que a escola se localiza?

• É uma região de fronteira?

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 177


• Que línguas são usadas nesse contexto?

• Que línguas podem ser visualizadas e percebidas no espaço público


urbano (paisagem linguística)?

• Em que ambientes as várias línguas são mais ou menos usadas?

2º Princípio: Conhecer e refletir sobre a relação da comunidade escolar com as


línguas e culturas do entorno social

Compreender e refletir sobre a relação da sociedade local com as línguas e culturas


do entorno social são caminhos para a sensibilização da equipe pedagógica em
relação às oportunidades e tensões que o contexto oferece. As tensões entre
falantes de línguas diferentes e suas culturas tendem a ser fundadas em relações
socioeconômicas assimétricas, em desigualdades culturais, em conflitos históricos,
ou em valores socialmente reproduzidos. Por essa razão, é importante compreender
que tipo de relação a comunidade escolar estabelece com as línguas do entorno
social, de modo que esse conhecimento possibilite o planejamento de ações na
escola. Seguem algumas possibilidades de questões:

• As relações da comunidade escolar com as línguas e culturas do


entorno social contribuem para a construção de um espaço favorável
à diversidade e à integração? De que forma?

• O que se pensa em relação às línguas e culturas do entorno interfere


na forma como os educadores lidam com a presença dessas línguas e
com os seus falantes nas práticas pedagógicas? De que forma?

• A escola pode promover mudanças em relação às atitudes de alunos


e equipe pedagógica diante das línguas/falantes na escola e na
sociedade do entorno? De que forma?

3º Princípio: Identificar e refletir sobre o perfil linguístico e cultural da


comunidade escolar (alunos, pais, professores)

Para que possamos conhecer em profundidade, o perfil linguístico e cultural


dos diversos membros da comunidade escolar (alunos, pais, educadores, dentre
outros), é necessário que sejam realizados mapeamentos linguístico-escolares. Esse
mapeamento pode ser realizado no ato da matrícula dos alunos ou no decorrer
do ano letivo, conforme disponibilidade da equipe pedagógica. O desenvolvimento

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desse tipo de ação parte do pressuposto que a percepção e identificação do
perfil linguístico e cultural da comunidade é o primeiro passo do percurso para a
valorização das experiências plurais na escola (BERGER; KUERTEN, 2021).

Destacamos algumas questões que podem compor esse tipo de mapeamento:

• Que línguas os educadores e a equipe pedagógica declaram falar ou


compreender?

• Qual o nível de conhecimento dos educadores em relação a essas


línguas?

• Que línguas os alunos que ingressam na escola falam e compreendem?

• Que línguas fazem parte da história familiar desses alunos?

• Qual o nível de conhecimento que os alunos possuem nas línguas que


falam ou compreendem?

• As línguas que os alunos falam e compreendem são usadas, por eles,


na escola? Em que situações?

• O Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas


possui largo conhecimento e tradição na realização de diagnósticos
sociolinguísticos.

4º Princípio: Conhecer e analisar a legislação educacional e os documentos que


orientam o ensino de/nas línguas e os seus usos na escola

Conforme você teve a oportunidade de estudar neste módulo, as políticas linguístico-


educacionais são reconhecidas como importantes bases para a formulação de
ações nas escolas. Por esse motivo, conhecer e analisar a legislação educacional é
tarefa que envolve todos os educadores, uma vez que esses documentos e decisões
incidem no trabalho pedagógico.

• Quais políticas linguístico-educacionais orientam o trabalho pedagógico?

• Que documentos orientam as práticas pedagógicas em relação às lín-


guas e culturas na escola?

• Esses documentos contemplam as especificidades do contexto plural


em que a escola se localiza?

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 179


• Que línguas são priorizadas nos documentos que orientam o trabalho
pedagógico?

• Qual é o lugar que essas línguas ocupam nesses documentos (língua ma-
terna, língua estrangeira, língua adicional, língua da comunidade etc.)?

• Os educadores participam na construção de documentos orientadores


das atividades da escola?

“A realidade plurilíngue do entorno e evidenciada na escola pressupõe políticas


e planejamento linguístico-educacionais próprios para atender as demandas
educacionais desses contextos, de modo que as instituições de ensino tenham
condições de prover condições de acesso e permanência de alunos de diversas
origens e culturas na escola” (BERGER; KUERTEN, 2021, p. 88).

5º Princípio: Conhecer e analisar o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola,


em relação às línguas e culturas do contexto plural em que se situa

O Projeto Político Pedagógico de uma instituição de ensino deve ser o seu plano
global em que se definam as ações que se deseja implementar na educação e
seus objetivos em razão da realidade em que se situa e que se pretende construir.
Esse documento deve refletir a identidade da instituição e seu posicionamento em
relação à comunidade atendida. Por isso, em se tratando de escolas localizadas em
contextos plurais e de fronteira, o PPP deve incorporar reflexões quanto ao entorno
social e a forma de atender às demandas linguístico-educacionais na comunidade.

Listamos algumas perguntas que servem de base à análise do documento


institucional:

O PPP da escola faz menção ao ambiente sociolinguístico da fronteira e ao bi ou


multilinguismo presente no espaço escolar?
Os encaminhamentos didático-pedagógicos do PPP preveem estratégias para lidar
com o bi ou multilinguismo em sala de aula e fora dela?
Os PPP e os planejamentos docentes tratam da avaliação de alunos com repertórios
plurais e das especificidades linguístico-culturais do contexto?

E então... de que forma sua escola ou instituição de ensino lida


com a pluralidade de línguas e culturas do entorno social?

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Você chegou ao final de seus estudos, fica a expectativa de que esse material
tenha auxiliado a conhecer e refletir criticamente sobre seu contexto de ensino-
aprendizagem e lhe proporcionado um olhar diferenciado em torno da multiplicidade
que está ao redor.

Que bom que você chegou até aqui! Agora é a hora de você testar seus conhecimentos.
Para isso, acesse o exercício avaliativo disponível no ambiente virtual. Bons estudos!

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 181


Referências
BERGER, Isis Ribeiro. Experiências e ações de Política Linguística no âmbito do
Observatório da Educação na Fronteira. Revista do GEL, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 138-
163, 2015. Disponível em: https://revistas.gel.org.br/rg/article/view/465. Acesso em: 6
mar. 2023.

BERGER, Isis Ribeiro. Princípios para a gestão do plurilinguismo na escola: questões para
reflexão e proposição de ações. In: MORELLO, R.; MARTINS, M. F. Política Linguística
em contextos plurilíngues: desafios e perspectivas para a escola. Florianópolis:
Editora Garapuvu, 2016.

BERGER; Isis Ribeiro; KUERTEN, Miriam Regina Giongo. Mapeamento linguístico escolar
em um município da fronteira plurilíngue Brasil-Paraguai-Argentina: percepções e
práticas docentes. In: RIBEIRO; Simone Beatriz Cordeiro; BELONI, Wânia Cristiane.
Pesquisas em Políticas Linguísticas e Ensino de Línguas. São Carlos: Pedro e João
Editores, 2021. p. 87-108. D

BRASIL. Portaria nº 798, de 19 de junho de 2012. Brasília, DF: Ministério da Educação,


2012. Disponível em: https://abmes.org.br/legislacoes/detalhe/1271/portaria-
mec-n-798. Acesso em: 7 mar. 2023.

BROVETTO, Cláudia. Educación bilingüe de frontera y políticas lingüísticas en Uruguay.


Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 3 , p. 25-43, set./dez. 2010. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/pp/a/8CmSfxDCNVrv8wsbyyK3qMd/?format=pdf&lang=es. Acesso
em: 6 mar. 2023.

COELHO, Elizabeth. Language and Learning in Multilingual Classrooms: A Practical


Approach. Multilingual Matters: Bristol, 2012.

FREEPIK COMPANY. [Banco de Imagens]. Freepik, Málaga, 2023. Disponível em:


https://www.freepik.com/. Acesso em: 6 mar. 2023.

MORELLO, Rosângela. Educação linguística: compartilhar a gestão, promover as


línguas, qualificar as políticas – desafios e novos protagonismos. In: Ideação, Cascavel,
v. 13, n. 2, p. 11-20, 2. sem., 2011. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.
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MORELLO, R. MARTINS, M. F. Política Linguística em contextos plurilíngues: desafios


e perspectivas para a escola. Florianópolis: Editora Garapuvu, 2016.

OBSERVATÓRIO da Educação na Fronteira. [Site institucional]. 2012. Disponível em:


http://obedf2010.blogspot.com/. Acesso em: 7 mar. 2023.

Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública


182
STURZA, E. R. Das experiências e dos aprendizados no Programa Escolas Interculturais
de Fronteiras. In: BRASIL. TV Escola. Salto para o Futuro. Escolas Interculturais de
Fronteira. Ano XXIV - Boletim 1. maio, 2014.

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