Você está na página 1de 51

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Comentado [GC1]: ???

PEDRO IVO SOUZA DE ALCÂNTARA

Unidade do diálogo Protágoras e proximidades Protágoras-Sócrates: Comentado [GC2]: Muita coisas para um artigo só?

Um retorno à tese de Gagarin à luz de uma interpretação ingressiva radical

Brasília - DF
20232
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Comentado [GC3]: ???

Pedro Ivo Souza de Alcântara

Unidade do diálogo Protágoras e proximidades Protágoras-Sócrates:

Um retorno à tese de Gagarin à luz de uma interpretação ingressiva radical

Proposta de artigo

Orientador: Gabriele Cornelli

Brasília - DF
20232
UNIDADE DO DIÁLOGO PROTÁGORAS E PROXIMIDADES SÓCRATES-
PROTÁGORAS:
UM RETORNO À TESE DE GAGARIN À LUZ DE UMA LEITURA INGRESSIVA
RADICAL
Pedro Ivo Souza de Alcântara
RESUMO
__.

Palavras-chave: Filosofia Antiga, Platão, Protágoras, Sócrates, Sofística,


Relativismo., Teoria do Conhecimento. Comentado [GC4]: As palavras-chave vão do âmbito
maior (e histórico) ao menor (e teorético)
ABSTRACT
__.

Keywords: Protágoras, Sofística, Relativismo, Teoria do Conhecimento.


4

INTRODUÇÃO

O presente artigo é parte de uma tese pesquisa mais ampla – desenvolvida no


Doutorado em Metafísica da Universidade de Brasília, acerca da figura de Protágoras na obra
platônica., que pretendePretendo nela observar um artifício retórico complexo, porém Comentado [GC5]: Qual? Está na hora de colocar as
cartas na mesa. A economia de um artigo pede.
consistente, com importantes efeitos sobre a compreensão do corpus.
Nesse âmbito amplo, a pretensão será debater com a tradição o peso da significação
da personagem Protágoras na obra platônica, em especial a valoração de suas teses no contexto
dramático.
O método de interpretação segue na esteira da posição de Blondell (2002, p. I), sobre
a necessidade de unir os “campos” filosófico e literário para leitura da obra platônica. Posição
análoga já fora materializada na abordagem de Charles Kahn1, que exerce muita influência Comentado [GC6]: Harmonize o sistema de
referencias: ou sempre com nome ou sempre sem
sobre a presente leitura. nome (eu aconselho a segunda opção)

Tomo essa visão por base em razão de considerar verdadeira a antiga afirmação de
Paul Shorey de que “a qualidade dramática de Platão afeta não apenas o cenário artístico e as
personagens, mas também as ideias que ele traz ao palco” (1903, p. 6). Comentado [GC7]: Acho que esta ideia é originalmente
de Proclo.
O escopo do presente artigo, por sua vez, limita-se especificamente às partes finais do
Comentado [GC8]: Citar as páginas
diálogo Protágoras2, relacionando a discussão da Ode a Escopas de Simônides com o debate
final sobre o chamado “intelectualismo socrático”, a fim de expor alguns possíveis efeitos de
considerar a integralidade da discussão de Sócrates com Protágoras no diálogo como um eixo
coerente de abordagem da temática da ensinabilidade da excelência3. Comentado [GC9]: A nota 3 revela seu percurso
metodológico no artigo, creio que fique melhor no corpo
Concluir-se-á que, ao seguir a dramaticidade do texto, não há que se inferir4 que, nas do texto do que em nota.

passagens finais do diálogo homônimo (354d-358a), o autor pretenderia atribuir a Protágoras Comentado [GC10]: Faltou citar o ano após Lopes.

1
Em 1996, Kahn produziu o conhecido livro Plato and the socratic dialogue: the philosophical use of
a literary form, que pretendia contrapor a tendência de leitura, por ele chamada, “desenvolvimentista”
em que se lia (e ainda hoje se lê) a filosofia de Platão a partir de uma noção de desenvolvimento de
fases, aferíveis através dos estudos estilométricos. O subtítulo da obra demonstra a importância que o
interprete atribui à forma literária para interpretar os textos platônicos.
2
Doravante também chamado diálogo homônimo, por ter o mesmo nome da personagem Protágoras.
3
Vide a tese de doutoramento de João Paulo de Oliveira Teixeira (2015) Sobre a unidade do Protágoras
de Platão, que tem por objetivo defender exatamente a unidade do homônimo em função da discussão
da ensinabilidade da excelência. Porém, Teixeira defende, diferentemente de nós, que um chamado
“intelectualismo socrático” radical seria uma tese absurda, e atribuí-la ao autor do homônimo adviria de
uma má leitura. Tal má leitura, por sua vez, extirpar-se-ia com a integração do homônimo a outros
diálogos, em especial a República (seguindo a interpretação ingressiva de Kahn). Nós acompanhamos
a metodologia de Teixeira, mas, como se verá, com o objetivo específico de apresentar a razoabilidade
contextual da proposição da personagem Sócrates no homônimo, no que chamamos aqui de
“intelectualismo” radical.
4
Como fez o próprio Shorey (1903, p. 21), acompanhado por tantos outros grandes intérpretes e, mais
recentemente, por Daniel R. N. Lopes.
5

ou a Sócrates uma posição hedonista oculta, mas que o debate sobre o hedonismo serve como
um recurso retórico ad argumentandum tantum, para dissuadir Protágoras da convicção de que Comentado [GC11]: ??? O que significa? Traduzir?

a coragem é uma excelência diferencial em relação às demais.


Quer-se infundir, enfim, a conclusão de que o último argumento contra Protágoras,
que elenca uma discussão sobre a tese hedonista, tem a função de induzir não só a personagem,
como também o leitor, à conclusão da necessidade de rever exatamente o que é excelência,
antes de se afirmar que ela é ou não ensinável.
Ou seja, o objetivo do artigo é defender que a estrutura do homônimo, em especial em
suas partes finais, apresenta uma consistência interna que exerce função de incitar uma
ansiedade acerca de um tema não resolvido. Comentado [GC12]: A ansiedade é uma emoção
negativa, tem certeza que seja isso?
A verificação disso é que o homônimo aponta, por prolepse, para a necessidade de
encontrar a definição de excelência, antes de se afirmar que ela é ensinável, remetendo a outras
discussões, mais imediatamente àquela discussão presente no Menon. Comentado [GC13]: Páginas?

1. Interpretações sobre a função do seu arranjo do diálogo homônimo


Na publicação da The Liberal Arts Press da tradução do diálogo homônimo, executada Formatado: Fonte: Não Itálico

por Benjamin Jowett e revisada por Martin Ostwald, há um resumo estrutural do diálogo que é
oportuno reproduzir:
1. Por que ir a um Sofista? (309-314c)
2. Protágoras explica sua vocação (314c-319a)
3. Pode a virtude ser ensinada? (319a-320c)
4. O Grande Discurso de Protágoras (320c-328d)
5. Sócrates e Protágoras: primeiro round (328d-334c)
a. A unidade de justiça e piedade (330c-332a)
b. A unidade de conhecimento e auto-controle (332a-333b)
c. A unidade de auto-controle e justiça (333b-334c)
6. Interlúdio (334c-338e)
7. Sócrates interpreta um poeta (338e-348a)
8. Sócrates e Protágoras: segundo round (348b-360e)
a. A unidade de coragem e conhecimento (349d-351b)
b. O poder do conhecimento (351b-358d)
c. Conhecimento é coragem (358d-360e)
9. Conclusão inconclusiva (360e-362a)

Na introdução dessa referida edição, que foi elaborada por Gregory Vlastos, o
intérprete avança uma interessante tese sobre a função de sua coesão textual.
6

Alega Vlastos que Sócrates não adentra a temática da ontologia subjetivista de


Protágoras, em razão do pressuposto de se tratar de um diálogo “da fase socrática”. Só Platão,
com suas próprias pernas teóricas, sentiria a necessidade, no Teeteto, de confrontar a ontologia
protagórica.
Diz o autor:
Nenhuma dessas doutrinas5 são mencionadas no Grande Discurso. Isso é estranho?
Platão arranja as coisas de modo que não pareça. Ele coloca Protágoras em uma
posição apertada, sem espaço para exibições de
Platão, ao contrário de seu professor, sentiu que valeria a pena refutar, e de paradoxos
deslumbrantes. Sócrates escapole entre o sofista e sua audiência admirada,
precipitando o debate, fixando seu tópico, levantando uma questão, e deixa Protágoras
sem alternativa a não ser lutar no território do próprio Sócrates. Mas por que Platão
arranjou as coisas dessa forma? Porque Sócrates é o herói no seu drama e seu interesse
dita a escolha da matéria de discussão. No subjetivismo ontológico de Protágoras - na
doutrina “aparência-é-realidade” afirmada com generalismo irrestrito de que “tudo é
para uma determinada pessoa assim como aparecer a essa pessoa - Sócrates não estaria
mais interessado do que nas grandes ontologias e cosmologias que coroaram o terreno
intelectual de seu tempo. (...)
Platão, ao contrário de seu professor, sentiu valer a pena refutar [essa tese], e deu a
Sócrates o trabalho, no Teeteto, mas apenas depois de ter feito Sócrates o porta-voz
de sua própria visão.
Note-se que a visão de Vlastos sobre o arranjo do diálogo homônimo remete à sua tese
sobre a existência de dois Sócrates’ literários de Platão, um em que se representa o Sócrates
histórico e que apareceria nos textos em que Platão estaria em seu “período socrático” e outro
Sócrates que apareceria apenas como porta-voz das teses próprias de Platão6.
Mas, obviamente, Vlastos não é o único a ter uma hipótese para dar conta da
organicidade do diálogo homônimo.
Muito antes, em sua introdução às obras de Platão, Schleiermacher (1836, pp. 85-86)
já apontava que a tática exegeta de dividir o diálogo homônimo em partes e assuntos diversos

5
As da ontologia de Protágoras.
6
Vlastos desenvolve sua tese por longo período de sua vida, que consiste não apenas em dividir um
Sócrates de Platão em sua fase jovem e outro na fase adulta, mas também em tentar achar as teses típicas
do Sócrates histórico na obra platônica. Aqueles que seguem Vlastos na tese fundamental sobre a
possibilidade de encontrar e discernir exatamente as teses do Sócrates histórico na obra de Platão são
por vezes chamados de “vlastosianos”. Uma boa síntese de suas especulações sobre a função do elenchos
do “Sócrates” dos primeiros diálogos de Platão pode ser vista em The Socratic Elenchus. The Journal
of Philosophy, 1982. Uma crítica radical aos vlastosianos pode ser encontrada em TALISSE, Robert B.
Misundertanding Socrates. Arion (9. 3 ed.): 111-121. Por sua vez, a própria tese de Kahn, que em certa
medida fundamenta a posição do presente artigo, apresenta uma contraposição mitigada à tese de
Vlastos.
7

sem relacioná-los pode conduzir a uma suposição injusta de que os assuntos do texto estão
arranjados acidentalmente, sem unidade, arte ou propósito.
Quanto às teses filosóficas que o autor do homônimo teria, segundo John Stuart Mill
7
(1834) , elas não teriam tanta importância, porque o autor privilegiaria a própria discussão em
detrimento de qualquer posição filosófica específica.
Apoiado em considerações de Schleiermacher sobre o valor filosófico de Sócrates
estar na investigação e não em posições finais, Mill sustenta que algo análogo deve ser aplicado
a Platão, valorizando-o não por uma tese específica, mas pelo seu ponto de vista de que a
verdade deve ser procurada. Cite-se:
A visão do Dr. Schleiermacher8 da natureza do serviço prestado à filosofia por
Sócrates é de que se considere não a verdade em que ele de fato chega, mas nas
aprimoradas visões que ele originou em respeito ao modelo no qual a verdade deve
ser vista: e isso nos parece, com algumas modificações, aplicável do mesmo modo a
Platão (...).
Embora ele comece as mais originais e valiosas ideias, é raro que estas, quando
relacionadas com os resultados da investigação filosófica, sejam declarados com ar de
convicção ou como se equivalessem a opiniões fixas. (...)
O diálogo com o qual se propõe iniciar é o Protágoras; supostamente uma das
primeiras produções do autor. Não há obra de Platão que parece mais obviamente
intencionada mais para exercícios da arte de investigar a verdade do que para inculcar
qualquer grupo particular de opiniões filosóficas.
Note-se que enquanto Vlastos vincula as teses do homônimo a um Sócrates histórico,
Mill apoiava que o cerne do homônimo não são teses, mas a discussão em si.
Já outra parte da tradição exegética encara o debate entre Sócrates e Protágoras como
um direto ataque de Platão ao Protágoras histórico, em algum tema específico, como
metodologia (Adam), educação (Jaeger), ética (Taylor) e epistemologia (W. Kirk)9.
Mais recentemente, a introdução da tradução de Mário Ferreira dos Santos, por um
lado, elogia a simplicidade e ausência de obscuridade, apontando o tema principal como a
virtude. Por outro, Santos defende que haveria uma falta de lógica tanto no discurso de
Protágoras quanto no discurso de Sócrates.
Nesse sentido, em Santos, a interrupção de Sócrates ao discurso de Protágoras
justificada pela alegação de ausência de memória de Sócrates - e que culminará na discussão

7
In MILL, John Stuart. Essays on philosophy and the classics. Ed. J. M. Robson. p. 39-61.
8
John Stuart Mill usa como referência o texto de Schleiermacher traduzido por Connop Thirlwall sob o
título de On the Worth of Socrates as a philosopher.
9
Vide uma contestação dessas teses de oposição em GAGARIN, Michael. The purpose of Plato’s
Protagoras.
8

sobre Simônides – é lida como causada por defeitos de raciocínio que seriam explicáveis por
serem anteriores ao desenvolvimento da lógica formal aristotélica. Veja-se:
Protágoras alinha argumentos uns após outros, mas apenas dentro de uma ordem
eloquente. Sua arte principal é a eloquência. Seus períodos são longos e belos, e seus
argumentos ornados de imagens. Sócrates protesta contra a sua arte, porque não pode
acompanhar aquela imensa quantidade de ideias, apresentadas uma após outra, sem
que se percebam bem os nexos que as correlacionam, nem se as que decorrem são
consequentes com as anteriores. O que Sócrates quer é filosofia e não estética. Quer
a sequência moderada e segura dos argumentos, quer o método demonstrativo e não
a mera persuasão.
Conduto, os argumentos de Sócrates também não primam por uma precisão lógica
impecável. Também ele pode ser acusado de sofista, não só quando violenta os textos
dos poetas, emprestando-lhes intenções que não são devidamente justificadas, como
também quando tece argumentos lógicos, que não apresentam o rigor que se exige em
tais argumentos (1965, p. 11).
Entretanto, conforme se tem insistido nos últimos anos10, não há de se ignorar que
embora Sócrates interrompa a discussão reclamando sobre a macrologia de Protágoras, o
próprio Sócrates, ao ser colocado na posição de respondedor, faz uma incrivelmente grande
macrologia acerca da Ode a Escopas, em tom de comicidade.
Não pode ser visto, por exemplo, como erro, quando o narrador, Sócrates,
textualmente, registra que lança mão retoricamente Pródico com um argumento falso, com
vistas a se recuperar de uma fala de Protágoras. Trata-se de registro, pelo autor do homônimo,
de consciência do recurso retórico por parte da personagem.
Assim, uma maior atenção a esses aspectos e uma dissolução de uma visão
excessivamente maniqueísta e dicotômica acerca dos papeis narrativos de Sócrates e Protágoras
no diálogo11 pode levar a se destacarem mais as atuações erísticas de Sócrates no nível intra-
narrativo e a visualização de aspectos cômicos no nível meta-narrativo.
Quanto ao último ponto, referindo-se à comicidade na estrutura do homônimo, Adrea
12
Capra tem produzido um consistente trabalho.

10
O grande trabalho de comentário de Daniel R. N. Lopes juntado à sua tradução do homônimo é um
bom exemplo de discussão sobre o tema.
11
Para observações antigas não maniqueístas sobre a relação entre Sócrates e Protágoras, vide LAMB.
W.R.M, Introduction to the Protagoras. In: PLATO. Laches; Protagoras; Meno; Euthydemus, 1952, p.
86-91; MILL, John Stuart. Essays on philosophy and the classics. Ed. J. M. Robson. p. 39-61;
VLASTOS, Gregory, Introduction. In: Plato Protágoras. 1956, The Liberal Arts Press, p. I-LVIII. Formatado: Português (Brasil)
12
Vide Protágoras Achilles: Homeric Allusion as a satirical weapon (Ppl. prtPrt. 340a) (2005)
https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/497862 e Agon Logon: Il “Protagora” di Platone tra Formatado: Português (Brasil)
eriística e commedia. Formatado: Português (Brasil)
9

Na esteira da tendência bem representada por Capra, há quem produza leituras do


sentido da organização da obra que apontam para uma mensagem irônica relacionada aos
problemas de uma discussão fundamentada pela intenção de obter vitória no debate e não em
função da busca pelo conhecimento.
Nesse sentido, James Arieti e Roger Barrus publicaram (2010) tradução, comentário e
apêndices do homônimo, em que introduzem o texto grego destacando os elementos cômicos e
sustentando que sobre eles se erige a mensagem fundamental do diálogo.
Para os tradutores, tal prosa cômica teria por função demonstrar que:
(...) onde o exercício intelectual é reduzido a esporte competitivo que visa à vitória
e não o conhecimento, onde princípios morais são invocados (isso quando são
invocados) como simples meios de chegar a vitória, mas não são vistos como fins
da educação – lá o verdadeiro e honesto ensino não é possível 13.
Verificamos, portanto, quatro tipos de leitura do homônimo. Um deles é aquele
hipotético criticado por Schleiermacher, mas que, em alguma medida, manifesta-se em Santos,
no qual se interpretam as mudanças no diálogo como frutos de defeitos lógicos, seja do autor,
seja das personagens.
Outro tipo, a que chamaremos de “vlastosiano”, aponta para um, ainda que respeitoso,
embate entre uma personagem Sócrates próxima do Sócrates histórico e afastado das pretensões
de outros diálogos com Protágoras. Com um Sócrates desinteressado em questões ontológicas
das posições do Protágoras histórico.
Um terceiro tipo é visível nas considerações de Mill de que o homônimo é mais
importante por levantar certos debates do que por fixar certos entendimentos a respeito destes
debates.
Um quarto tipo, talvez mais recorrente, é uma leitura que busca no diálogo uma
pretensa antinomia absolutamente radical entre o autor do texto e o Protágoras histórico.
Um quinto tipo, cronologicamente mais novo, apoia-se nos estudos sobre a comicidade Comentado [GC14]: ACIMA falas de 4 somente

do homônimo para apontar uma ironia condutora no diálogo, de modo a que seu conteúdo se
relacione com a caricatura da prática contenciosa da discussão pública, como forma de crítica.
O presente artigo pretende sustentar uma tese de sexto tipo, tese próxima daqueles (em
especial Kahn) que defendem uma unidade coerente não-irônica do diálogo homônimo (em que Comentado [GC15]: Falta o ano da obra em que ele
fala isso
pesem os visíveis elementos cômicos do diálogo), que aponta para discussões de outros
diálogos. Queremos reforçar essa tese a partir de uma perspectiva antiga, a de Jowett14 e

13
ARIETI, James A; BARRUS, Roger M. Plato’s Protagoras. Plato’s Protagoras: translation,
commentary and appendices.
14
JOWETT, Benjamin. The Dialogues of Plato. Oxford, 1953.
10

Gagarin, de que o homônimo não apresenta uma radical diferença entre Sócrates e Protágoras,
mas visa sim apresentar em que ponto Sócrates difere de seu predecessor.
Sustentaremos que, ao focar-se a discussão sobre a ensinabilidade da excelência como
cerne, é possível verificar, no homônimo, não só integralidade, mas também enunciações
vocabulares que apontam até mesmo para discussões ontológicas espalhadas pelo corpus15. Comentado [GC16]: Esta frase resulta um tanto
críptica: o que significa aqui integralidade? Quais
enunciações?

2. Referencial teórico: a interpretação ingressiva de Kahn e sua radicalização


A assim chamada interpretação ingressiva de Charles Kahn fora enunciada pelo
próprio autor no contexto de discussão sobre a ordenação da cronologia de escrita dos diálogos
platônicos16.
Kahn argumenta que sua forma de ver Platão analisa as teses filosóficas dos diálogos
considerando sua forma literária, concluindo que o modo de escrever de Platão é
deliberadamente “indireta, ingressiva e incompleta”. Com isso, Kahn, opõe, abertamente
“ingressiva”, a “visão desenvolvimentista”, conforme explicaremos logo abaixo. Comentado [GC17]: O termo ingressiva não é
imediatamente compreensível, seria o caso de. citar no
Kahn escreve em polêmica evidente e pronunciada. Seu texto se expressa contra certas inglês também e fazer uma discussão a respeito do seu
significado?
valorizações de hipotéticas cronologias de escrita por parte do autor dos diálogos, que em sua
época se tornaram famosas, com uma forte representatividade em Gregory Vlastos. Comentado [GC18]: Citar as obras mais importantes
de Vlastos neste assunto.
17
Para as tais teses, Platão se desenvolveria em três fases . Vlastos, por sua vez, avança
Comentado [GC19]: Ano?
ainda à posição de que na primeira das fases - a dos assim chamados “Diálogos Socráticos” -
haveria uma predominância de posições do Sócrates histórico (inclusive exegeticamente
mapeável), das quais Platão se desvencilharia com o avançar de sua maturidade.
Verifica-se que Kahn escreve Plato and the Socratic Dialogue: the philosophical use
of a literary form, não de todo, para combater qualquer especulação sobre possíveis fases de Comentado [GC20]: Ano?

15
Apontando, como veremos, ao menos para discussões do Menon, da República, do Teeteto e do
Sofista.
16
As bases da distinção de Platão em três grandes estágios estilísticos foram estabelecidas em seu
fundamental por Campbell e Ritter. Para uma introdução sobre o tema da ordenação dos diálogos, a
historicidade e os limites da utiliza, vide LOPES. Rodolfo. Ordenação dos diálogos. In: Platão. Coord.
CORNELLI, Gabriele; LOPES, Rodolfo. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018, pp. 79-99. Para
uma antiga (1991) exposição sintética e defesa da continuidade de estudos das relações entre estilometria
e cronologia, vide BRANDWOOD, Leonard. Stylometry and Chronology. In: EBREY, David; KRAUT.
The Cambridge Companion to Plato. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. pp. 82-116.
Para uma exposição da ótica de Kahn sobre a cronologia, vide KAHN, Charles. On platonic chronology.
In: ANNAS, J. and ROWE, C. (2002) New Perspectives on Plato, Modern and Ancient, Harvard
University Press
17
Para uma síntese introdutória da posição “vlastosiana”, que divide Platão em três fases e atribui à
primeira fase uma função “socrática” de alguma coisa distante do core da filosofia de Platão, vide
KRAUT, Richard. Introduction to the study of Plato. In: EBREY, David; KRAUT. The Cambridge
Companion to Plato. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. pp. 1-38.
11

produção da obra platônica, mas para defender que a tendência de sua época de segmentar
Platão como um antigo Wittegenstein seria um equívoco. Comentado [GC21]: Página desta afirmação?

Isso porque o Platão por ele apresentado “é um pensador com uma visão unificada e
consistente através da vida, pertencendo melhor à linha de Descartes e Hume no que toca a uma
espécie de continuidade dos pensamentos”18. Comentado [GC22]: Evitar idem e ibidem e utilizar as
notas para referenncia. Melho autor+ano no corpo do
Portanto, na linha da leitura “ingressiva” de Kahn, os assim chamados “Diálogos texto.

Socráticos”19 não têm rupturas agressivas em relação aos temas e posições dos diálogos então
caracterizados como de “fase média”, mas esboçam conteúdos preparativos para boa parte
destes. Cite-se:
Essa distância entre texto e mensagem, ou entre o que o Platão escreve e o que ele
pretende transmitir, é o primeiro problema que qualquer interpretação deve
confrontar. Atrás disso, reside ameaçadoramente um problema maior: a distância
entre o que Platão intenciona dizer em uma passagem específica e o que ele pensa em
um contexto geral, ou, para por de forma diferente, o lugar de um texto específico
dentro de um mundo maior da Filosofia de Platão. Minha noção de exposição
ingressiva é uma proposta para lidar com o primeiro problema à luz do segundo:
identificar o significado de um argumento particular ou um livro inteiro alocando-o
dentro da grande visão-de-mundo articulada nos diálogos da fase média.
(...)
Por essa hipótese, quero defender que os sete diálogos de limiar 20 são designados a
preparar o leitor para as visões expostas no Simpósio, Fédon e República e que eles
podem ser adequadamente entendidos apenas sob a perspectiva desses trabalhos
médios.
Evidências em suporte a essa alegação serão de dois tipos. Por um lado, nós
encontramos passagens nos diálogos de limiar que são enigmáticos, desafiadores ou
problemáticos, para os quais a solução ou esclarecimento são providenciados pelo
texto ou doutrina nos diálogos médios. E, por outro, nós encontramos textos nos
diálogos médios que deliberadamente enfatizam sua continuidade com ideias
formuladas desde os diálogos antigos. Um exemplo do primeiro tipo é a gradual
emergência da terminologia para dialética. Um exemplo do segundo tipo será a
fórmula para as Formas, apresentada no Fédon e repetida na República, a qual
indubitavelmente ecoa a questão “que-é-X?” dos diálogos de definição (p. 59-60).
Veja-se que a propositura de Kahn pede o reconhecimento de que certas questões em
alguns diálogos remetem a outros, como hipótese de antecipação temática.

18
KAHN, Charles. Id. p. XIV.
19
Aos “Diálogos Socráticos” Kahn dedica, ainda em 1981, um artigo, Did Plato write socratic
dialogues, onde já elabora as bases do que seria seu livro de 1996.
20
Kahn se refere a Laques, Carmides, Eutífron, Protágoras, Mênon, Lísis e Eutidemo.
12

É pressuposto da presente leitura a concordância com a interpretação de Kahn de que


aspectos contextuais do homônimo apontam para problemas de outros diálogos, como a
República. Porém, diferimos, no fundamental, em duas posições.
Primeiramente, para apresentar essas relações, não vemos necessidade de nos
comprometer com quaisquer hipóteses de ordem cronológica de produção dos diálogos. Em
segundo lugar, verificamos que essas remissões temáticas avançam para além do quadro dos
assim chamados diálogos médios21.
Passamos, então, a um breve comentário sobre a organização do homônimo.

3. A questão inicial sobre a unidade da excelência


Em breve síntese, adotando a base da interpretação já mencionada de Teixeira22, Comentado [GC23]: ???

entendemos que o fio condutor do diálogo homônimo é o tema da ensinabilidade da excelência.


Adotemos a também já mencionada divisão de trechos do homônimo constante na
publicação da The Liberal Arts Press para a apresentação do presente resumo. Comentado [GC24]: Daqui para frente, caro Pedro Ivo,
seu texto abandona os comentadores e segue em um
Por que ir a um sofista? (309a-314c) diálogo “corpo a corpo” com o homônimo. Algo em
dúvida importante para a Tese, quiçá muito prolixo para
Inicialmente, Sócrates conversa com um amigo inominado sobre seu encontro recente um artigo.

com Protágoras, provocado pela ida de um jovem Hipócrates a sua casa a fim de conhecer o Já para a Tese, me permita duas observações:
a)Tire o grego das notas, somente utilize o grego
famoso sofista (309a-310a). quando fores de fato comentar um termo ou outro, o
acesso ao texto do homônimo é hoje universal.
b) Senti falta de um diálogo seu com os muitos
comentadores e tradutores (e suas notas) do
homônimo em cada página e passagem do
homônimo que você comenta. Este diálogo mostraria
21 suas leituras e evitaria que a banca e o leitor tivesse
Se, seguindo os pressupostos de Kahn, estamos corretos na exposição a seguir sobre o homônimo, uma impressão de solipsismo, tão anti-platonica ☺
isso pode implicar ou (a) numa crítica ao valor da perspectiva cronologista, que pretende separar Platão
em fases de produção para sob essa ótica interpretar a obra ou (b) na conclusão de que o homônimo não
gesta discussões que apontam para desdobramentos temáticos apenas nos diálogos médios, como
sustenta Kahn, mas também para alguns diálogos ditos tardios, como o Teeteto e o Sofista. Essa segunda
posição pode radicalizar a hipótese sobre a existência de um projeto de Platão que atravessa todo o
corpus. Isso radicalizaria, então, a tese manifesta pelo próprio Kahn em Plato and the post-socratic
dialogue: return to the philosophy of nature (2014). Nesta Publicação, Kahn conserva uma leitura de
independência de projeto entre os diálogos analisados no referido (Parmênides, Teeteto, Sofista, Fílebo,
Timeu e Leis – cujo tema estaria mais voltado à epistemologia e ao mundo natural) em relação ao resto
do corpus (cujo tema seria mais ético-político) (p. XII), distância que talvez não seja o caso de se alegar,
na hipótese dos objetivos platônicos postulados por Kahn serem complementares entre si.
Levar às últimas consequências uma sistemática radicalização da leitura ingressiva de Kahn, portanto,
implica em esticar o procedimento de Kahn (sobre as duas hipotéticas “secções”, os diálogos ditos
antigos em relação aos ditos médios, eliminando o “período socrático”) até à secção dos diálogos ditos
tardios, desarticulando in totum a noção de rupturas (projetuais) drásticas também entre as hipotéticas
“segunda” e “terceira” fases de escrita da obra platônica. Note-se que a aqui chamada “leitura ngressiva
radical” não implica em uma negação de hipotéticas fases estilísticas ou de aferíveis desenvolvimentos
teóricos na obra, negando-se apenas a pretensão de verificabilidade de agressivas rupturas de projeto no
corpus. O que isso significa ficará mais claro pelo exemplo abaixo, dentro do estudo de caso do
homônimo.
22
Vide nota 3.
13

No relato da história, Sócrates menciona que Hipócrates, empolgado pela presença de


Protágoras, quer aprender com este por ser o sofista conhecido por todos como o mais sábio em
raciocinar/discursar23.
O interesse de Hipócrates sobre os ensinamentos de Protágoras levanta a questão sobre
o que é a Paideia de Protágoras, ou seja, o que de fato tal personagem pretende ensinar.
Sócrates, procurando testar Hipócrates, indaga-o sobre o que Hipócrates quer aprender,
considerando o fato de Protágoras ser um sofista.
É sua primeira resposta: “por suposto que eu sustento, disse ele, como diz o nome, que
sofista é o conhecedor de coisas sábias”24. Pressionado a especificar que tipo de coisas sábias
são essas, Hipócrates responde com uma pergunta retórica: “Que responderíamos senão que
isso é, oh Sócrates, o conhecimento da realização de terrível raciocinar/ discursar?”25.
Questionado a seguir a respeito de que o sofista torna alguém terrivelmente hábil em
discursar/raciocinar (ao exemplo do fato de que o citarista que torna hábil nos
discursos/raciocínios sobre a cítara), Hipócrates não sabe mais o que responder26.
No trecho final dessa discussão, Sócrates introduz o problema da possibilidade de se
enganar acerca de uma boa educação, com a metáfora mercantil (que, como sabemos, torna a
aparecer como eixo do diálogo Sofista).
Nesse sentido, atenta Sócrates para o risco de submeter a alma ao sofista, uma vez que
ele elogia o que vende, como um mercador e um ambulante27 ao elogiar o que vende, podendo
o último enganar acerca da nutrição do corpo para efetivar sua venda.
Caracterizado o sofista como mercador ou ambulante de coisas portáveis das quais a
alma se nutre28, Sócrates finalmente define tais nutrientes como, talvez, ensinamentos
(μαθήμασιν).
Finalizada a discussão com esse acautelamento, as duas personagens se dirigem ao
portão da casa de Cálias.
Protágoras explica sua vocação (314c-319a)

23
πάντες τὸν ἄνδρα ἐπαινοῦσιν καί φασιν σοφώτατον εἶναι λέγειν (310e), todas as citações do
homônimo são conforme Plato. Platonis Opera, ed. John Burnet. Oxford University Press. 1903.
24
ἐγὼ μέν, ἦ δ᾽ ὅς, ὥσπερ τοὔνομα λέγει, τοῦτον εἶναι τὸν τῶν σοφῶν ἐπιστήμονα (312c).
25
τί ἂν εἴποιμεν αὐτὸν εἶναι, ὦ Σώκρατες, ἢ ἐπιστάτην τοῦ ποιῆσαι δεινὸν λέγειν; (312d).
26
μὰ Δί᾽, ἔφη, οὐκέτι ἔχω σοι λέγειν (312e).
27
ἔμπορός τε καὶ κάπηλος (313d).
28
ἔμπορός τις ἢ κάπηλος τῶν ἀγωγίμων, ἀφ᾽ ὧν ψυχὴ τρέφεται; (313c).
14

Ao chegarem aos portões, as personagens são surpreendidas por um guardião que solta
uma interjeição – em aparente tom de indignação – pelo fato de que lhe parecem chegar mais
sofistas, dizendo então que Cálias não está desocupado29.
As duas personagens que chegam só conseguem adentrar o recinto após explicarem
que não são sofistas e que não procuram Cálias e somente após isso aparece a personagem
Protágoras a caminhar pelo pórtico da casa.
Ao se anunciarem no local, Sócrates afirma a Protágoras que estão ali por sua causa,
ao que Protágoras questiona se eles querem dialogar (e o termo é διαλεχθῆναι) com ele em
separado ou na presença dos demais.
Qualquer elaboração sobre escolhas cênicas como essa pode soar excessivamente
especulativa, mas não podemos deixar de notar que o diálogo manifesta Sócrates misturado aos
sofistas em um ambiente que parece narrar um enredo de uma confusão plausível da população
entre a figura de Sócrates e a dos demais sofistas.
Para além da cena, no âmbito das motivações da atividade de Protágoras, em seguida
o diálogo parece pôr na boca da personagem um projeto paidêutico, ou seja, um objetivo
educacional, muito próximo daquilo que aparece inúmeras vezes, explicitamente ou
implicitamente, como parte do projeto filosófico dos diálogos: o ensino da “excelência”30.
Vale citação direta das passagens de apresentação de Protágoras31:
Para um estrangeiro que percorre as grandes cidades e nelas persuade seus melhores
jovens a abandonar o convívio com os outros homens, sejam eles parentes, sejam
forasteiros, mais velhos ou mais jovens, para então conviverem consigo e se tornarem
melhores mediante tal convívio, é preciso, para quem age assim, tomar certas
precauções. Pois não são pequenas as invejas, as indisposições e as conspirações que
surgem quando nessa condição. Eu, porém, afirmo que a arte sofística é antiga, e que
os antigos homens que a colocavam em prática, por medo do ódio inerente a ela,
produziram um disfarce e encobriram-na com ele, uns usando a poesia, como Homero,
Hesíodo e Simônides, outros, os mistérios e as profecias, como os seguidores de Orfeu
e Museu; há alguns, como tenho constatado, que se serviram também da ginástica,

29
‘ἔα,’ ἔφη, ‘σοφισταί τινες: οὐ σχολὴ αὐτῷ:’ (314d).
30
“Excelência” é como preferiremos traduzir a palavra ἀρετή. Enquanto, na linguagem corrente em
português, o termo “excelente” tem um grau de sinonímia com “ótimo”; “ἀρετή” (que contem a mesma
raiz de ἄριστος) opera como substantivação e superlativo de ἀγατός (vide Autenrieth). Preterimos a
tradução ocasional por “virtude”, porque por mais que a discussão seja eminentemente moral, queremos
carregar a interpretação da noção que nos parece implícita desde a intenção de Hipócrates, que é em se
tornar, ao fim, uma pessoa excelente (no sentido de melhor do que os demais). Tal interesse implícito
sobre a possibilidade de se tornar excelente (no sentido de homem melhor) se manifesta claramente em
318a, como se verá a seguir (vide notas 30 e 31).
31
Tradução de Daniel Lopes.
15

como Ico, de Tarento, e o não menos sofista, ainda vivo, Heródico, de Selimbria,
antigamente de Mégara; Agátocles, conterrâneo de vocês, fez da música seu disfarce,
embora fosse um grande sofista, assim como Pitoclides, de Ceos, e outros mais32.
Ao passo que Sócrates explica a razão de sua vinda com Hipócrates, Protágoras diz a
Hipócrates que, caso conviva com ele, a cada dia se tornará melhor e caminhará em direção ao
melhoramento33.
Enfim, quando Sócrates qualifica a questão, ao perguntar em que aspecto Hipócrates
tornar-se-ia, de fato, melhor caso convivesse com Protágoras, o sofista responde que a sua lição
é sobre tomar boas decisões tanto em questões particulares – domésticas –, no que toca a
melhorar os cuidados relativos à casa, quanto nas questões públicas – políticas –, no que toca a
fortalecer-se tanto na prática quanto no discurso34.
Sócrates diz que lhe parece que Protágoras se refere à arte política (τὴν πολιτικὴν
τέχνην), que promete tornar os homens bons cidadãos (ἀγαθοὺς πολίτας)35.
É a partir dessa constatação de Sócrates que a conversa se fixa no debate sobre se de
fato seria ensinável a excelência.
Pode a virtude ser ensinada? (319a-320c)
Sócrates então alega que, até aquele momento, não pensava que a excelência poderia
ser ensinada36, baseado em um longo discurso sobre o fato de os mais sábios e melhores (οἱ
σοφώτατοι καὶ ἄριστοι) homens dentre os cidadãos não teriam sido capazes de transmitir
excelência por eles próprios.
Para sustentar a tese, Sócrates opera dois argumentos.
O primeiro argumento de Sócrates é que, diferentemente do que ocorre com as técnicas
como a arquitetônica e a engenharia naval, (em Atenas) todos consultam uns aos outros sobre
a administração da cidade, em pé de igualdade, seja o carpinteiro, o ferreiro, o curtidor, o
negociante, o navegante, o rico ou o pobre, ainda que não tenham aprendido ou sido instruídos
nessas matérias, o que evidenciaria que as pessoas não consideram que a arte política pode ser
ensinada37.

32
(316c-e).
33
ὦ νεανίσκε, ἔσται τοίνυν σοι, ἐὰν ἐμοὶ συνῇς, ᾗ ἂν ἡμέρᾳ ἐμοὶ συγγένῃ, ἀπιέναι οἴκαδε βελτίονι
γεγονότι, καὶ ἐν τῇ ὑστεραίᾳ ταὐτὰ ταῦτα: καὶ ἑκάστης ἡμέρας ἀεὶ ἐπὶ τὸ βέλτιον ἐπιδιδόναι. (318a).
34
τὸ δὲ μάθημά ἐστιν εὐβουλία περὶ τῶν οἰκείων, ὅπως ἂν ἄριστα τὴν αὑτοῦ οἰκίαν διοικοῖ καὶ περὶ τῶν
τῆς πόλεως, ὅπως τὰ τῆς πόλεως δυνατώτατος ἂν εἴη καὶ πράττειν καὶ λέγειν (318e-319a).
35
δοκεῖς γάρ μοι λέγειν τὴν πολιτικὴν τέχνην καὶ ὑπισχνεῖσθαι ποιεῖν ἄνδρας ἀγαθοὺς πολίτας (319a).
36
ἐγὼ γὰρ τοῦτο, ὦ Πρωταγόρα, οὐκ ᾤμην διδακτὸν εἶναι, σοὶ δὲ λέγοντι οὐκ ἔχω ὅπως ἂν ἀπιστῶ
(319a-b).
37
ἐπειδὰν δέ τι περὶ τῶν τῆς πόλεως διοικήσεως δέῃ βουλεύσασθαι, συμβουλεύει αὐτοῖς ἀνιστάμενος
περὶ τούτων ὁμοίως μὲν τέκτων, ὁμοίως δὲ χαλκεὺς σκυτοτόμος, ἔμπορος ναύκληρος, πλούσιος πένης,
16

O segundo argumento é o de que Péricles não deu aulas aos filhos nem nomeou quem
o fizesse especificamente no tema de excelência, embora o tivesse feito em outros assuntos,
enquanto que Clínias, sob tutoria de Péricles, fora enviado para Arífron, para ser educado e
evitar ser corrompido por Alcibíades, mas nem assim tinha se tornado o que pretendia38.
Isso desencadeia uma igualmente longa pretensão de justificação de Protágoras.
O Grande Discurso de Protágoras (320c-328d)
O assim chamado Grande Discurso de Protágoras tem duas formas explicações, (1)
um longo mito sobre a criação do homem e (2) um trecho discursivo que pode ser interpretado
como explicativo ou complementar em relação ao primeiro.
Quanto ao mito (1), sua conclusão também tem duas partes. A primeira se dá na (1.1)
afirmação de que nos homens, presenteados pelo fogo de Hefesto e a técnica de Atena por
astúcia de Prometeu39 para dar conta de seus limites físicos, são os únicos congêneres ao divino,
foram os únicos animais a creem em divindades e erigir templos40.
A segunda parte da conclusão infirma que, não bastando o fogo e a técnica para lhes
garantir a sobrevivência – pois lhes faltava técnica bélica (contra os animais) e ao tentarem
construir cidades não conseguiam em razão de injustiças mútuas –, (1.2) é lhes concedida a arte
política, tendo sido em todos os homens inserido tanto o pudor quanto a justiça pelas mãos de
Hermes, por decisão de Zeus. Isso se dá em todos e não apenas em alguns humanos, como
ocorre com as demais técnicas humanas, para garantir o advento das cidades41.
O fim do mito claramente remete à tese de que a excelência não é apenas ensinável,
mas também que ela é ensinável por todos e para todos os homens (o que responde ao primeiro
argumento de Sócrates, 319a-e).

γενναῖος ἀγεννής, καὶ τούτοις οὐδεὶς τοῦτο ἐπιπλήττει ὥσπερ τοῖς πρότερον, ὅτι οὐδαμόθεν μαθών,
οὐδὲ ὄντος διδασκάλου οὐδενὸς αὐτῷ, ἔπειτα συμβουλεύειν ἐπιχειρεῖ: (319c-d).
38
ἐπεὶ Περικλῆς, ὁ τουτωνὶ τῶν νεανίσκων πατήρ, τούτους ἃ μὲν διδασκάλων εἴχετο καλῶς καὶ εὖ
ἐπαίδευσεν, ἃ δὲ αὐτὸς σοφός ἐστιν οὔτε αὐτὸς παιδεύει οὔτε τῳ ἄλλῳ παραδίδωσιν, ἀλλ᾽ αὐτοὶ
περιιόντες νέμονται ὥσπερ ἄφετοι, ἐάν που αὐτόματοι περιτύχωσιν τῇ ἀρετῇ. εἰ δὲ βούλει, Κλεινίαν,
τὸν Ἀλκιβιάδου τουτουῒ νεώτερον ἀδελφόν, ἐπιτροπεύων ὁ αὐτὸς οὗτος ἀνὴρ Περικλῆς, δεδιὼς περὶ
αὐτοῦ μὴ διαφθαρῇ δὴ ὑπὸ Ἀλκιβιάδου, ἀποσπάσας ἀπὸ τούτου, καταθέμενος ἐν Ἀρίφρονος ἐπαίδευε
(319e-320a).
39
καὶ κλέψας τήν τε ἔμπυρον τέχνην τὴν τοῦ Ἡφαίστου καὶ τὴν ἄλλην τὴν τῆς Ἀθηνᾶς δίδωσιν
ἀνθρώπῳ, καὶ ἐκ τούτου εὐπορία μὲν ἀνθρώπῳ τοῦ βίου γίγνεται (321e-322a).
40
ἐπειδὴ δὲ ὁ ἄνθρωπος θείας μετέσχε μοίρας, πρῶτον μὲν διὰ τὴν τοῦ θεοῦ συγγένειαν ζῴων μόνον
θεοὺς ἐνόμισεν, καὶ ἐπεχείρει βωμούς τε ἱδρύεσθαι καὶ ἀγάλματα θεῶν (322a).
41
‘πότερον ὡς αἱ τέχναι νενέμηνται, οὕτω καὶ ταύτας νείμω; νενέμηνται δὲ ὧδε: εἷς ἔχων ἰατρικὴν
πολλοῖς ἱκανὸς ἰδιώταις, καὶ οἱ ἄλλοι δημιουργοί: καὶ δίκην δὴ καὶ αἰδῶ οὕτω θῶ ἐν τοῖς ἀνθρώποις, ἢ
ἐπὶ πάντας νείμω;’ ‘ἐπὶ πάντας,’ ἔφη ὁ Ζεύς, ‘καὶ πάντες μετεχόντων: οὐ γὰρ ἂν γένοιντο πόλεις, εἰ
ὀλίγοι αὐτῶν μετέχοιεν ὥσπερ ἄλλων τεχνῶν: (322c-d).
17

Protágoras encerra a explicação do mito dizendo que é por esse motivo que os homens
se aconselham entre si sobre a virtude política, pois sobre o tema todos devem agir com justiça
e sensatez e plausivelmente se engajam, já que ou todos os homens são próprios para partilhar
da excelência ou então não se mantêm as cidades42.
Na segunda forma de explicação (2), Protágoras se fundamenta na (2.1)
particularidade da justiça e do restante da excelência política, na questão da (2.2) admoestação
dos injustos.
Primeiro, faz ele a afirmação de que é normal a todo homem ter vergonha e ser
repudiado caso se declare injusto, enquanto que nas demais técnicas regulares, como a técnica
do aulo, faz-se ridículo aquele que se declara técnico sem o ser.
Todos dizem necessário que o homem deva aparecer aos outros como justo, ainda que
não sendo, ao passo que é considerada maluquice da parte dos que sequer fingem ser justos.
Isso ocorre porque (2.1) é necessário que todos compartam dela (da justiça), sem a qual não se
insere entre homens43.
Em segundo lugar, Protágoras defende que (2.2) ela, a excelência política, não emana
por natureza ou automaticamente, mas por educação somada ao empenho44.
Protágoras pretende demonstrar isso a Sócrates através do fato de que homens não
costumam punir nem admoestar senão visando o desagravo. A partir disso, o pensamento da
punição prova que homem pensa ser ensinável a virtude: pois pune-se a fim de dissuadir 45 (com
o efeito de educar a sociedade).
O argumento se volta complementarmente contra a primeira afirmação de Sócrates,
que se baseava na tese de que o comportamento político (dos atenienses) sugeria a implicação
de que eles próprios não considerariam, pela prática cotidiana, a excelência política ensinável.
Por fim, Protágoras se volta ao segundo argumento de Sócrates, que enxergava grandes
homens, como Péricles, como incapazes de, por si próprios, ou por delegados, operarem a
manifestação de igual excelência em seus tutelados46.

42
ὅταν δὲ εἰς συμβουλὴν πολιτικῆς ἀρετῆς ἴωσιν, ἣν δεῖ διὰ δικαιοσύνης πᾶσαν ἰέναι καὶ σωφροσύνης,
εἰκότως ἅπαντος ἀνδρὸς ἀνέχονται, ὡς παντὶ προσῆκον ταύτης γε μετέχειν τῆς ἀρετῆς ἢ μὴ εἶναι πόλεις.
(322e-323a).
43
ἢ μαίνεσθαι τὸν μὴ προσποιούμενον δικαιοσύνην: ὡς ἀναγκαῖον οὐδένα ὅντιν᾽ οὐχὶ ἁμῶς γέ πως
μετέχειν αὐτῆς, ἢ μὴ εἶναι ἐν ἀνθρώποις (323b-c).
44
ὅτι δὲ αὐτὴν οὐ φύσει ἡγοῦνται εἶναι οὐδ᾽ ἀπὸ τοῦ αὐτομάτου, ἀλλὰ διδακτόν τε καὶ ἐξ ἐπιμελείας
παραγίγνεσθαι ᾧ ἂν παραγίγνηται (323c).
45
καὶ τοιαύτην διάνοιαν ἔχων διανοεῖται παιδευτὴν εἶναι ἀρετήν: ἀποτροπῆς γοῦν ἕνεκα κολάζει
(324b).
46
Vide (319c-d).
18

Nessa última fala, Protágoras sustenta que todos ensinam seus filhos, desde a tenra
infância. Cada qual, por tarefas e discursos, ensina e aponta o que é justo e injusto, belo e
vergonhoso, pio e ímpio, “faça isso”, “não faça aquilo”47.
Na esteira do argumento, Protágoras sustenta que mesmo após estarem livres da longa
educação, a cidade segue obrigando-os a aprender leis e tomar tais imagens por paradigmas, a
fim de que eles não ajam sem rumo por si próprios48.
Então por que filhos medianos de pais bons?
Como, entre homens, todos são, ao longo da vida, imergidos em leis e educações para
excelência, sobe-se muito a expectativa. Já que todos são, em alguma medida, expertos no
assunto, torna-se difícil aparecer um mestre. Assim, se aparece algum entre nós que se distingue
um pouco na matéria de educar quanto à excelência, este é bem-quisto49.
Sócrates diz estar encantado50 com o discurso antes de fazer suas considerações.
Esse resumo nos serve à demonstração de que a exposição de Protágoras, dividida em
uma explicação nomeadamente mítica (1) e outra complementar (2), não parece ter qualquer
elemento textual a fazer inferir que o elogio seguinte de Sócrates carregue algum tom de ironia
ou discordância de fundo quanto à exposição por parte do autor.
Não há indício narrativo tampouco de que a posição inicial contestada por Protágoras
fosse irônica ou de implicância retórica da personagem Sócrates51.
A exposição, em seu conjunto, que tinha a função de afastar a afirmação cética de
Sócrates sobre a ensinabilidade da excelência, parece ter sido suficiente para ao menos afastar
os fundamentos do argumento inicial contra a hipotética ensinabilidade, quais sejam: a alegação
de que a prática ateniense implicaria em uma consciência coletiva de que a excelência política
não é ensinável; e o exemplo contra-factual baseado na incapacidade de Péricles de fazer
reproduzir sua capacidade pessoal sobre seus tutelados.
Sócrates e Protágoras: primeiro round (328d-334c)

47
ἕκαστον καὶ ἔργον καὶ λόγον διδάσκοντες καὶ ἐνδεικνύμενοι ὅτι τὸ μὲν δίκαιον, τὸ δὲ ἄδικον, καὶ
τόδε μὲν καλόν, τόδε δὲ αἰσχρόν, καὶ τόδε μὲν ὅσιον, τόδε δὲ ἀνόσιον, καὶ τὰ μὲν ποίει, τὰ δὲ μὴ ποίει
(325d).
48
ἐπειδὰν δὲ ἐκ διδασκάλων ἀπαλλαγῶσιν, ἡ πόλις αὖ τούς τε νόμους ἀναγκάζει μανθάνειν καὶ κατὰ
τούτους ζῆν κατὰ παράδειγμα (326c).
49
ἀλλὰ κἂν εἰ ὀλίγον ἔστιν τις ὅστις διαφέρει ἡμῶν προβιβάσαι εἰς ἀρετήν, ἀγαπητόν (328a-b).
50
Κεκηλημένος (328d).
51
Ainda que se possa sustentar tanto a existência de uma ironia de Sócrates quando de sua dúvida sobre
a ensinabilidade da excelência ou sobre seu elogio ao fim da exposição, sustentamos aqui a exegese em
sentido contrário tem, no âmbito da lógica interna da narrativa do homônimo, ao menos o mesmo peso
de validade.
19

Contudo, Sócrates evidentemente continua carregando algumas objeções (certamente


não baseada nas alegações anteriores) quanto à tese de ensinabilidade da excelência.
Dado que a exposição de Protágoras sobre a excelência pareceu manifestá-la com
múltiplas características, Sócrates o interpela questionando sobre o fato de que fora mencionado
que Zeus enviou justiça e pudor, enquanto em outro momento se refere à justiça, à sensatez e à
piedade como se fossem o mesmo: excelência.
Assim, a questão de Sócrates passa a ser sobre essa relação. Pergunta Sócrates se seria
a excelência uma coisa da qual fazem parte justiça, sensatez e piedade ou são todos nomes de
um e mesmo ente52.
Dizendo ser uma questão fácil, Protágoras responde que as coisas questionadas são
parte da excelência, que é ente único53.
Com uma metáfora, a próxima questão de Sócrates é sobre de que forma as partes são
partes. Se como a boca, nariz, olhos e orelhas em relação ao rosto, ou se como partes do ouro,
em que cada qual delas não difere das demais, nem entre si nem do todo, a não ser em grandeza
e pequenez54.
Protágoras, apontando claramente para a distinção entre elas, opta pela metáfora do
rosto.
Então, Sócrates se concentra na relação entre essas postuladas partes da excelência,
não apenas sob a ótica que podemos chamar, modernamente, de conceitual, mas também em
face de sua aplicação prática, o que podemos chamar de discussão ética.
A questão de Sócrates, portanto, é sobre se quando os homens participam 55 dessas
partes da excelência, alguns participam de umas, enquanto outros de outras, ou se é necessário
que quando uma pessoa nela toma parte se tenha todas56.
Note-se que, ainda que se queira especular sobre um hipotético teor retórico de erística
na fala de Sócrates, não há que se olvidar de que essa temática é intrinsecamente filosófica.

52
πότερον ἓν μέν τί ἐστιν ἡ ἀρετή, μόρια δὲ αὐτῆς ἐστιν ἡ δικαιοσύνη καὶ σωφροσύνη καὶ ὁσιότης, ἢ
ταῦτ᾽ ἐστὶν ἃ νυνδὴ ἐγὼ ἔλεγον πάντα ὀνόματα τοῦ αὐτοῦ ἑνὸς ὄντος (329c-d).
53
ὅτι ἑνὸς ὄντος τῆς ἀρετῆς μόριά ἐστιν ἃ ἐρωτᾷς (329d).
54
ὥσπερ προσώπου τὰ μόρια μόριά ἐστιν, στόμα τε καὶ ῥὶς καὶ ὀφθαλμοὶ καὶ ὦτα, ἢ ὥσπερ τὰ τοῦ
χρυσοῦ μόρια οὐδὲν διαφέρει τὰ ἕτερα τῶν ἑτέρων, ἀλλήλων καὶ τοῦ ὅλου, ἀλλ᾽ ἢ μεγέθει καὶ
σμικρότητι; (329d).
55
Μεταλαμβάνουσιν.
56
μεταλαμβάνουσιν οἱ ἄνθρωποι τούτων τῶν τῆς ἀρετῆς μορίων οἱ μὲν ἄλλο, οἱ δὲ ἄλλο, ἢ ἀνάγκη,
ἐάνπερ τις ἓν λάβῃ, ἅπαντα ἔχειν; (329e).
20

Por isso dissemos aqui que o questionamento socrático é relacionado à filosofia ética,
por um lado, e, por outro, à filosofia conceitual57.
Ao mesmo tempo em que a questão discute a hipótese de conjugação concreta de
valores tidos como excelências políticas, ensaia a discussão sobre a definição de excelência
face às noções de multiplicidade de parte de um mesmo e único ente (τοῦ αὐτοῦ ἑνὸς ὄντος).
Aqui não se pretende negar a possibilidade de uma dimensão erística nessa parte do
discurso socrático, mas apenas destacar o teor inextricavelmente filosófico da questão levada
ao debate, tanto do ponto de vista da discussão sobre a ética, quanto na discussão conceitual58.
À vista desta questão, Protágoras opta pela separabilidade das partes, alegando que há
homens injustos corajosos e justos não sábios59.
Assim, inclui Protágoras também na lista das partes da excelência a coragem e a
sabedoria, enunciando Protágoras que a sabedoria seria a mais magnânima das partes60
Há de se destacar que embora Vlastos61 considere excessivamente rigoroso o seguinte
apontamento especial de Sócrates sobre essa adição, não podemos perder de vista - ao nível da
narrativa unitária - que coragem e sabedoria serão atores principais do desfecho do diálogo.
Voltando à metáfora do rosto, Sócrates pergunta se cada uma delas é uma diante de
62
outras , não sendo então as partes da excelência nem uma como a outra, nem a mesma dinâmica
dela63.
Sintetizada conceitualmente a posição, Sócrates busca testar a tese sobre as relações e
incidências das partes da excelência, através de exemplos que se pretendem contra-factuais. No

57
Notadamente, é de se destacar que essa leitura de como Sócrates é representado no homônimo implica
em uma visão de que tal personagem tem semelhança com o que o autor da Metafísica Α diz sobre
Sócrates> uma pessoa voltada para a ética, não detida na busca dos primeiros princípios concentrando-
se sobre a natureza inteira, mas, no lugar disso, detendo seu pensamento sobre as definições, que exige
se deter sob outras coisas que não as sensíveis, já que estas estão sempre vindo-a-ser - Σωκράτους δὲ
περὶ μὲν τὰ ἠθικὰ πραγματευομένου περὶ δὲ τῆς ὅλης φύσεως οὐθέν, ἐν μέντοι τούτοις τὸ καθόλου
ζητοῦντος καὶ περὶ ὁρισμῶν ἐπιστήσαντος πρώτου τὴν διάνοιαν, ἐκεῖνον ἀποδεξάμενος διὰ τὸ τοιοῦτον
ὑπέλαβεν ὡς περὶ ἑτέρων τοῦτο γιγνόμενον καὶ οὐ τῶν αἰσθητῶν (987b).
58
Dimensão conceitual que, conforme pretendemos defender, é intrínseca e condutora de todo
desenrolar seguinte do diálogo homônimo.
59
πολλοὶ ἀνδρεῖοί εἰσιν, ἄδικοι δέ, καὶ δίκαιοι αὖ, σοφοὶ δὲ οὔ (329e).
60
μέγιστόν γε ἡ σοφία τῶν μορίων (330a).
61
Diz ele: “os três primeiros (i.e. justiça, piedade e sensatez) são as únicas mencionadas após o mito
(323a, 323e-324a, 325a) e Sócrates guarda a tríade com cuidado em sua mente (329c), fazendo um
apontamento especial sobre a adição posterior da sabedoria e da coragem à lista (330a); mas ele é
desnecessariamente rigoroso, eis que Protágoras nunca disse que a primeira tríade eram as únicas
virtudes” p. xi.
62
ἕκαστον δὲ αὐτῶν ἐστιν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἄλλο, τὸ δὲ ἄλλο; (330a).
63
ἆρ᾽ οὖν οὕτω καὶ τὰ τῆς ἀρετῆς μόρια οὐκ ἔστιν τὸ ἕτερον οἷον τὸ ἕτερον, οὔτε αὐτὸ οὔτε ἡ δύναμις
αὐτοῦ (330a-b).
21

decorrer da primeira fase da discussão, Sócrates elenca a incidência una de justiça e piedade
(330c-332a); a incidência una de conhecimento e sensatez (332a-333b); e a incidência una de
sensatez e justiça (333b-334c)
Como recurso retórico, Sócrates passa, então, a invocar o interlocutor fictício64.
Então Sócrates, por via do interlocutor fictício, questiona se a coisa denominada justiça
é ela própria justiça é justa ou injusta65, tangenciando a questão do que modernamente tem se
chamado o problema da auto-predicação.
Obtendo resposta positiva e de afirmar que seria difícil outra coisa ser pia, caso não
fosse a própria piedade pia66, obtendo também concordância de Protágoras. Daí se inicia a tese
da incidência una67.
Sócrates, respondendo ao interlocutor fictício, separa-se da figura de Protágoras,
afirmando que não defende a tese de que as partes da justiça têm ser – no que toca a relação de
umas com a outras – tal qual uma delas não é como a outra68.
Sócrates ainda afirma que, nesse caso e por ele próprio, diria que a justiça é pia e a
piedade justa69, concedendo que, por Protágoras, responderia – caso lhe fosse permitido – que
justiça e piedade são o mesmo ou coisas das mais similares, sendo, mais do que tudo, a justiça
como a piedade e a piedade como a justiça70.
A Protágoras, porém, não parece plausível se alinhar ao discurso de Sócrates de que a
justiça é pia e a piedade justa, por haver diferença entre elas71, embora conceda reticentemente
tratá-las como tal.

64
Parece-me que o interlocutor fictício tem a função de representar a postura intencionalmente amena,
ausente de erística, em benefício da personagem Sócrates, eis que toda argumentação posterior de
Sócrates implicará em necessária inclinação à refutação. Seja como for, Sócrates daqui em diante
funcionará como portador do discurso em favor da unidade de incidência das partes da excelência, contra
a posição então avançada por Protágoras.
65
ἡ δικαιοσύνη, αὐτὸ τοῦτο δίκαιόν ἐστιν ἢ ἄδικον; (330c).
66
σχολῇ μεντἄν τι ἄλλο ὅσιον εἴη, εἰ μὴ αὐτή γε ἡ ὁσιότης ὅσιον ἔσται (330d-e).
67
Sócrates parece operar uma noção de que a incidência ou participação de uma parte da excelência
implicaria na predicação contingente da forma adjetiva relativa àquela parte da excelência.
68
τὰ τῆς ἀρετῆς μόρια εἶναι οὕτως ἔχοντα πρὸς ἄλληλα, ὡς οὐκ εἶναι τὸ ἕτερον αὐτῶν οἷον τὸ ἕτερον:
(330e).
69
ἐγὼ μὲν γὰρ αὐτὸς ὑπέρ γε ἐμαυτοῦ φαίην ἂν καὶ τὴν δικαιοσύνην ὅσιον εἶναι καὶ τὴν ὁσιότητα
δίκαιον (331b).
70
καὶ ὑπὲρ σοῦ δέ, εἴ με ἐῴης, ταὐτὰ ἂν ταῦτα ἀποκρινοίμην, ὅτι ἤτοι ταὐτόν γ᾽ ἐστιν δικαιότης ὁσιότητι
ἢ ὅτι ὁμοιότατον, καὶ μάλιστα πάντων ἥ τε δικαιοσύνη οἷον ὁσιότης καὶ ἡ ὁσιότης οἷον δικαιοσύνη
(331b).
71
οὐ πάνυ μοι δοκεῖ, ἔφη, ὦ Σώκρατες, οὕτως ἁπλοῦν εἶναι, ὥστε συγχωρῆσαι τήν τε δικαιοσύνην ὅσιον
εἶναι καὶ τὴν ὁσιότητα δίκαιον, ἀλλά τί μοι δοκεῖ ἐν αὐτῷ διάφορον εἶναι (331b-c).
22

O rigor retórico de Sócrates exige não que Protágoras conceda ad argumentandum


tantum, mas que, de fato, expresse sua opinião, forçando Protágoras a se comprometer com as
assertivas.
Neste passo, Protágoras se compromete com a tese de que, de fato, a justiça se
assemelha a algo pio72. Entretanto, diz que algum nível de “assemelhar-se” pode se retirar de
quaisquer coisas, pois o branco se assemelha ao preto de alguma forma, bem como o duro ao
macio e outras coisas que te parecem ser sumamente opostas entre si73.
Portanto, diz ele, não seria justo chamar “coisas similares” aquelas que têm algo
similar, nem “coisas não similares” as que têm algo não similar, caso se trate de muito pequena
similitude74.
Sócrates, então, se diz estupefato e pergunta a Protágoras se ele acha que a similitude
que o justo e o pio têm entre si é pequena, ao que Protágoras responde negativamente, dizendo
incisivamente que “de fato não, ao reverso do que você me parece pensar”75.
A personagem Sócrates afirma interpretar que a sugestão por ela feita irritava
Protágoras e decide mudar de assunto, pautando a nova temática pela incidência una da sensatez
e da sabedoria, mantendo o tópico anteriormente levado por Protágoras acerca de coisas que
parecem sumamente opostas entre si76.
Sócrates pergunta se Protágoras chama algo de insensatez e se, em relação a essa coisa,
não seria a sabedoria algo que totalmente se lhe opõe77.
Com o comprometimento de Protágoras com essa afirmativa, desdobra Sócrates a
questão conceitual conforme pretendia na dualidade anterior.
A essa altura, Sócrates, adotando outros exemplos, termina por sintetizar o raciocínio,
arrancando de Protágoras a confirmação de que a maneira de um tipo pratica está ligado a uma
causação providenciada por “algo”, enquanto a forma oposta de prática seria causada por algo
oposto78.

72
ἀλλὰ μέντοι, ἦ δ᾽ ὅς, προσέοικέν τι δικαιοσύνη ὁσιότητι (331d).
73
τὸ γὰρ λευκὸν τῷ μέλανι ἔστιν ὅπῃ προσέοικεν, καὶ τὸ σκληρὸν τῷ μαλακῷ, καὶ τἆλλα ἃ δοκεῖ
ἐναντιώτατα εἶναι ἀλλήλοις (331d).
74
ἀλλ᾽ οὐχὶ τὰ ὅμοιόν τι ἔχοντα ὅμοια δίκαιον καλεῖν, οὐδὲ τὰ ἀνόμοιόν τι ἔχοντα ἀνόμοια, κἂν πάνυ
σμικρὸν ἔχῃ τὸ ὅμοιον (331e).
75
καὶ ἐγὼ θαυμάσας εἶπον πρὸς αὐτόν: ἦ γὰρ οὕτω σοι τὸ δίκαιον καὶ τὸ ὅσιον πρὸς ἄλληλα ἔχει, ὥστε
ὅμοιόν τι σμικρὸν ἔχειν ἀλλήλοις;
οὐ πάνυ, ἔφη, οὕτως, οὐ μέντοι οὐδὲ αὖ ὡς σύ μοι δοκεῖς οἴεσθαι. (331e-332a).
76
δοκεῖ ἐναντιώτατα εἶναι ἀλλήλοις (331d)
77
ἀφροσύνην τι καλεῖς;
ἔφη.
τούτῳ τῷ πράγματι οὐ πᾶν τοὐναντίον ἐστὶν ἡ σοφία; (332a)
78
καὶ εἴ τι δὴ ὡσαύτως πράττεται, ὑπὸ τοῦ αὐτοῦ πράττεται, καὶ εἴ τι ἐναντίως, ὑπὸ τοῦ ἐναντίου; (332c)
23

Com isso, Sócrates consegue, em abstrato, homologação de Protágoras na afirmação


de que em relação a cada oposto está apenas um oposto e não muitos79.
Como desfecho do trecho, é de se inferir que Protágoras se compromete com a
afirmação de que uma oposição total não é fruto de pequena não-similitude, mas de oposição
dicotômica.
Por fim, Sócrates produz uma longa série de asserções, a fim de ligar a noção adverbial
de sensatez relacionada às práticas sensatas em geral a uma afirmação de natureza genitiva
causal80, retornando à forma nominal, para expressar a contrariedade direta entre sensatez e
insensatez81.
O fim dessa operação, com essa dualidade, conjugada com a anterior de que sabedoria
se opõe a insensatez, resulta na identificação de sensatez com sabedoria82.
Note-se que, embora a seguir a metáfora do rosto retorne como apoio retórico de
Sócrates, a questão tem uma dimensão conceitual e até proto-lógica83. Comentado [GC25]: Porque não simplesmente lógica,
em. sentido mais amplo e menos contemporâneo? Se
Se há apenas um contrário em relação a algo84 e se sabedoria é este contrário85 tanto quiser utilizar proto-lógica, precisará se apoiar em
algum comentador que faça a distinção e utilize este
quanto o é a sensatez86, em relação à insensatez, então ambas são o mesmo. Assim, ou desiste vocábulo.

Protágoras da tese de que há um contrário para cada coisa, ou desiste daquela tese sustentada
anteriormente de que sabedoria difere de sensatez 87.

79
οὐκοῦν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἑνὶ ἑκάστῳ τῶν ἐναντίων ἓν μόνον ἐστὶν ἐναντίον καὶ οὐ πολλά; (332d).
80
O uso do ὑπό com o caso genitivo.
81
ἐναντίον ἄρ᾽ ἐστὶν ἀφροσύνη σωφροσύνης; (332e).
82
Evoque-se que Protágoras recorreu ao conceito de diferença (διάφορον, 331b-c) para evitar
acompanhar Sócrates na conclusão de que justiça e piedade seriam ao menos sumamente similares
(ὁμοιότατον, 331b) e depois se justificou afirmando que pequenas similaridades seriam encontráveis até
mesmo em coisas sumamente opostas entre si (ἐναντιώτατα εἶναι ἀλλήλοις, 331b), como branco-preto
e duro-macio.
Presumimos, pelo contexto dos exemplos, que “sumamente oposto” é tomado como homonímia para
“contrário”, de modo que o conceito de “oposição” simpliciter aceitaria gradações de diferenciação mais
aproximáveis à noção de “diferença” do que de absoluto contrário ou de dicotomicamente contrário.
Mas quando Protágoras se comprometeu com a tese de que sabedoria se opõe totalmente (πᾶν
τοὐναντίον) à insensatez, providenciou valor semântico análogo à forma superlativa “ἐναντιώτατα”,
oposição radical, ou, simplesmente, contrariedade.
83
Chama-se aqui “proto-lógica”, eis que o raciocínio exprime, ainda que sem formalização, a exigência
de se considerar a oposição total como uma dicotomia que confere uma noção, ainda que elementar, de
não-contradição e terceiro excluído, precedendo a formalização em Metafísica Γ, respectivamente 4-5
(1005b-1011b) e 7 (1011b-1012a).
Assim, sabedoria, em razão de ser aceite como negação de insensatez (que, por sua vez, é negação de
sensatez), havendo apenas uma oposição, deve ser necessariamente vista como o mesmo que sensatez.
84
ἓν δὲ ἑνὶ μόνον ἐναντίον (332e)
85
Vide nota 74.
86
Vide nota 78.
87
τὸ ἓν ἑνὶ μόνον ἐναντίον εἶναι, ἢ ἐκεῖνον ἐν ᾧ ἐλέγετο ἕτερον εἶναι σωφροσύνης σοφία (333a).
24

Ao obter consentimento de que está manifesto que sabedoria e sensatez são contrárias
à insensatez, Sócrates coleciona duas afirmações que negam a proposição original de Protágoras
sobre a relação das partes da excelência. Primeiro, que a justiça e a piedade são
aproximadamente o mesmo e agora, mais explicitamente, obtém uma afirmação de identidade,
expressa na unidade entre sensatez e sabedoria88.
Sócrates, agora sem rodeios, retoma a discussão para discutir a incidência una da
justiça e da sensatez, questionando diretamente se parece a Protágoras que o homem cometedor
de injustiças, ao passo que comete injustiça, vem a ser sensato89.
Protágoras responde que para ele seria vergonhoso concordar com isso, ainda que
muitos dentre os homens afirmem tal coisa90.
Sócrates questiona se deveria continuar o discurso com esses homens ou com
Protágoras e Protágoras diz que, se aprouver a Sócrates, o diálogo primeiro se dê a partir do
discurso dos muitos91.
A essa altura do diálogo, chama atenção a opção de Protágoras de falar pela posição
dos muitos e levanta a dúvida sobre o que o autor pretendeu significar por esse lance dramático.
Sócrates aduz que para ele não faz diferença se discutirá a partir da opinião que não a
de Protágoras, desde que Protágoras responda, pois é o discurso que será examinado acima de
tudo, mesmo que ambos –Sócrates, enquanto perguntador, e Protágoras, respondendo – também
sejam levados a exame92.
Um complemento importante desse trecho é que Sócrates, enquanto narrador, afirma
que Protágoras fez-se de modesto (ou tímido) a princípio, acusando que tal discurso não seria
fácil de sustentar, mas então acordou que responderia93.
Pelo teor do discurso, não parece exaustivamente demonstrável a função da cena, caso
analisado o trecho isoladamente. Mas, em uma leitura unitária, talvez Protágoras esteja sendo
representado

88
οὐκοῦν ἓν ἂν εἴη ἡ σωφροσύνη καὶ ἡ σοφία; τὸ δὲ πρότερον αὖ ἐφάνη ἡμῖν ἡ δικαιοσύνη καὶ ἡ
ὁσιότης σχεδόν τι ταὐτὸν ὄν (333b).
89
ἆρά τίς σοι δοκεῖ ἀδικῶν ἄνθρωπος σωφρονεῖν, ὅτι ἀδικεῖ; (333b-c).
90
αἰσχυνοίμην ἂν ἔγωγ᾽, ἔφη, ὦ Σώκρατες, τοῦτο ὁμολογεῖν, ἐπεὶ πολλοί γέ φασιν τῶν ἀνθρώπων.
(333c).
91
εἰ βούλει, ἔφη, πρὸς τοῦτον πρῶτον τὸν λόγον διαλέχθητι τὸν τῶν πολλῶν (333c).
92
ἀλλ᾽ οὐδέν μοι διαφέρει, ἐὰν μόνον σύ γε ἀποκρίνῃ, εἴτ᾽ οὖν δοκεῖ σοι ταῦτα εἴτε μή: τὸν γὰρ λόγον
ἔγωγε μάλιστα ἐξετάζω, συμβαίνει μέντοι ἴσως καὶ ἐμὲ τὸν ἐρωτῶντα καὶ τὸν ἀποκρινόμενον
ἐξετάζεσθαι (333c).
93
τὸ μὲν οὖν πρῶτον ἐκαλλωπίζετο ἡμῖν ὁ Πρωταγόρας—τὸν γὰρ λόγον ᾐτιᾶτο δυσχερῆ εἶναι—ἔπειτα
μέντοι συνεχώρησεν ἀποκρίνεσθαι (333d).
25

Entretanto, é oportuno lembrar que Aristóteles94 descreve que Protágoras, dando


continuidade ao produto da técnica de Corax, foi por muitos homens rejeitado (ἐδυσχέραινον),
em razão de ter sido capaz de produzir a modalidade de argumentos acusatórios que se
manifestam como semelhantes à verdade (φαινόμενον εἰκός), tornando discursos fortes em
fracos (τὸ τὸν ἥττω δὲ λόγον κρείττω ποιεῖν τοῦτ᾽ ἔστιν).
A opção cênica do homônimo nesse trecho pode guardar algum eixo de
intertextualidade com a representação da Retórica sobre como Protágoras teria sido recebido.
Se isso é verdadeiro, estaria em cena então a possibilidade de uma bem articulada
defesa retórica da razoabilidade da ação injusta, ainda que, por hipótese da expressão contida
no próprio diálogo, Protágoras isso não defendesse e nisso não acreditasse.
Ocorre que diálogo sobre o tema será, mais a frente, interrompido. Desse modo, o autor
do homônimo silencia sobre o desfecho do que seria a defesa da sensatez do ato injusto nesse
contexto.
Seja como for, alguns pequenos passos são dados na defesa retórica da sensatez de
atos injustos.
Em curto elencar, se sustenta, a partir das perguntas de Sócrates, que (1) os injustos
agiriam com sensatez95, que (2) ser sensato é ter bom senso96, que (3) ter bom senso seria bem
decidir ao se cometer injustiça97, (4) sendo bem executada a injustiça98, ao passo que (5) o bom
seria o pertinente (ou benéfico), mas não necessariamente aquilo benéfico aos homens99.
A essa etapa o Sócrates narrador faz mais uma consideração, enunciando uma certa
angústia de Protágoras que o estimulou brandura na próxima pergunta.
A questão que Sócrates elabora é sobre a que outras coisas (para além das benéficas
aos homens) se referia Protágoras como coisas boas, se seriam coisas não benéficas aos
homens100.
Protágoras então nega peremptoriamente (οὐδαμῶς) que estaria tratando de coisas não
benéficas aos homens, afirmando que se referiria a coisas benéficas a outras coisas, bem como
às circunstâncias em que determinadas coisas são benéficas aos homens, como, por exemplo,

94
Retórica (2.24). Formatado: Grego
95
δοκοῦσί τινές σοι σωφρονεῖν ἀδικοῦντες; (333d).
96
τὸ δὲ σωφρονεῖν λέγεις εὖ φρονεῖν; (333d).
97
τὸ δ᾽ εὖ φρονεῖν εὖ βουλεύεσθαι, ὅτι ἀδικοῦσιν; (333d).
98
πότερον, ἦν δ᾽ ἐγώ, εἰ εὖ πράττουσιν ἀδικοῦντες ἢ εἰ κακῶς; (333d).
99
ἆρ᾽ οὖν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ταῦτ᾽ ἐστὶν ἀγαθὰ ἅ ἐστιν ὠφέλιμα τοῖς ἀνθρώποις;
καὶ ναὶ μὰ Δί᾽, ἔφη, κἂν μὴ τοῖς ἀνθρώποις ὠφέλιμα ᾖ, ἔγωγε καλῶ ἀγαθά. (333d-e).
100
Provavelmente, como no resto do diálogo, como vimos acima, Sócrates está recorrendo a um tema
da discussão passada (no caso a dualidade ser/não-ser) para enredar a fala de Protágoras.
26

determinado óleo é benéfico para uso externo, mas causa mal pela ingestão. O bom seria,
portanto, de várias cores e toda sorte de tipos101.
Sócrates narra ter ocorrido um aplauso acerca desse discurso e então ele intervém
reclamando de isso ser um discurso longo, fugindo à proposta de perguntas e respostas que
serviriam ao método inicialmente articulado pelo narrador.
Apesar de Protágoras afirmar que a muitos homens já respondeu e que, portanto,
aceitaria as exigências de Sócrates, este ainda assim narra que sentiu o descontentamento de
Protágoras com suas próprias respostas e que não desejaria voluntariamente seguir
respondendo. Por essa razão, Sócrates anuncia que tem compromisso e que deixaria o local, já
que Protágoras não desejava fazer a concessão de executar discursos curtos.
Tal fala desencadeia um interlúdio com pigmentações cômicas.
Interlúdio (334c-338e)
(a) Cálias intervém, clamando pela permanência de Sócrates; (b) Sócrates insiste na
necessidade de separar o diálogo do discurso público, ao que (c) Cálias retruca, dizendo que é
justo que Protágoras siga dialogando como quer.
(d) Alcibíades então admoesta Cálias, argumentando que se Protágoras se acha bom
em ambos os tipos de discurso enquanto Sócrates assume ser pior em um deles, ou deve
Protágoras admitir que ruim é no outro ou deve ele se submeter.
A incisividade grosseira de Alcibíades é remediada pela intervenção pretensamente
neutra de (e) Crítias, que, direcionando a palavra a Hípias e Pródico, sugere o abandono da
perspectiva erística em favor da solicitação conjunta para que Sócrates e Protágoras
permaneçam a dialogar.
(f) Pródico, então, concorda com Crítias, reforçando a tese anti-erística e
acrescentando considerações típicas dessa personagem sobre a correção das palavras.
Então, (g) Hípias toma a palavra e sugere o meio termo para ambos, com a seleção de
um juiz para mediar a discussão, o que agrada aos presentes.
Dada a circunstância, (h) Sócrates sugere que a utilização de um juiz seria vergonhosa
e se apoia na alegação de grandiosidade de Protágoras, que não deveria ser mediado.
Alternativamente, Sócrates sugere que todos sigam julgando o diálogo, enquanto se
Protágoras não quiser responder ele pode começar fazendo as perguntas, para que só depois ele
preste contas de seu argumento de maneira semelhante.

101
οὕτω δὲ ποικίλον τί ἐστιν τὸ ἀγαθὸν καὶ παντοδαπόν, ὥστε καὶ ἐνταῦθα τοῖς μὲν ἔξωθεν τοῦ σώματος
ἀγαθόν ἐστιν τῷ ἀνθρώπῳ, τοῖς δ᾽ ἐντὸς ταὐτὸν τοῦτο κάκιστον: (334b-c).
27

A proposta agrada a todos à exceção de Protágoras, segundo narra Sócrates, mas que
não resistiu ao constrangimento dos demais para que ele formulasse as perguntas.
Fiz questão de incluir esse breve resumo do diálogo, para destacar a coerência interna
da estrutura dos discursos até a chegada ao ponto da discussão da Ode a Escopas de Simônides.
O autor do homônimo desenvolve uma narrativa consistente sobre as ocorrências do
dia representado, com uma sucessão de eventos narrativos que se desenrolam desde a pretensão
de Hipócrates em se tornar excelente até a discussão sobre se, em tese, a excelência é ou não
ensinável.
A partir da justificação de Protágoras, dado que este apresenta de forma intercambiável
vários nomes que representam a excelência que ele diz ensinar, passou a ser plausível a questão
sobre como esses entes todos, que se afiguram como “partes da excelência” se relacionam entre
si.
É de se inferir que esse tema guarda relação direta com a alegação de Protágoras, eis
que alguém poderia alegar que ensina justiça, porém não piedade; ou sabedoria, porém não
sensatez; ou sensatez, porém não justiça, e assim por diante.
Portanto, parece coerente e pertinente a curiosidade de Sócrates sobre a relação que
têm, aos pares, aquelas que foram consideradas partes da excelência.
E Sócrates parecia conduzir a respostas pertinentes por parte de Protágoras, que, no
eixo do discurso, se via forçado a admitir algum tipo de relação entre as partes da excelência
por uma discussão conceitual.
Entre outros elementos possíveis, é de se notar que um binômio entre filosofia da
eticidade e da discussão conceitual (talvez lógica e mesmo proto-ontológica) permeia todo
diálogo entre Protágoras e Sócrates.
Contudo, há uma abrupta interrupção de continuidade dessa articulação.
Apesar de um nem tão longo discurso de Protágoras acerca da pluralidade daquilo que
é bom, Sócrates interrompe subitamente o diálogo e ameaça dar-lhe fim.
O homônimo não parece encerrar elementos suficientes para se encerrar uma discussão
sobre os motivos do autor para essa escolha narrativa específica, embora várias hipóteses
possam ser elencadas.
Mas em sua lógica interna, a interrupção opera não uma mudança do centro temático,
que segue sendo a discussão sobre a excelência humana, mas uma mudança no modo da
discussão.
Guiada por Protágoras, a conversa se voltará à exegese de um poema de Simônides
com trechos sobre a moralidade.
28

Conforme se verá abaixo, sustentamos que no trecho que segue a leitura de Sócrates
mantém a dualidade entre discussão ética e proto-lógica.

4. A Ode a Escopas sob uma ótica ética e proto-lógica (338e-348a – PGM 542)
A esta altura, Protágoras, tomando a palavra, afirma que a parte principal da educação
do homem é aquela acerca da poesia102. Então, descreve tal parte como, relativamente aos
discursos poéticos, distinguir o que é produzido corretamente e o que não é, bem como saber
dar a explicação quando indagado103.
A partir daí, Protágoras aduz que perguntará mantendo o tema na discussão sobre a
excelência, acerca do que os dois antes debatiam, mas transferindo para o âmbito da
“poética”104, sendo a diferença apenas essa105.
Protágoras, então, evoca o que ele chama de um dito de Simônides sobre Escopas,
filho de Creonte da Tessália106.
Nesse passo, é oportuno mencionar que a discussão sobre o texto relativo a Escopas
no homônimo tem levantado sistematicamente três questões sobre o poema de Simônides, para
discuti-lo em seus próprios termos.
As questões são sobre o que Simônides desejaria dizer, sobre como deve ser o poema
reconstruído a partir de como é apresentado no homônimo e o motivo pelo qual o autor do
diálogo recorre narrativamente a Simônides.
No presente artigo, deixamos de lado a pretensão de retornar a uma hipotética
reconstrução do texto que inspiraria o autor do homônimo e nos voltamos ao contexto narrativo
onde o texto atribuído a Simônides é exposto, a fim de especular sobre a função que exerce a
discussão no diálogo.
Primeiramente, cabe lembrar que o tema do poético no homônimo está bastante
presente desde a entrada de Sócrates e Hipócrates na casa de Cálias, a partir da relação que o
narrador Sócrates faz entre as figuras dos sofistas e as figuras homéricas pré-troianas que
aparecem no 11 canto da Odisseia107.

102
ἐγὼ ἀνδρὶ παιδείας μέγιστον μέρος εἶναι περὶ ἐπῶν δεινὸν εἶναι (338e-339a).
103
ἔστιν δὲ τοῦτο τὰ ὑπὸ τῶν ποιητῶν λεγόμενα οἷόν τ᾽ εἶναι συνιέναι ἅ τε ὀρθῶς πεποίηται καὶ ἃ μή,
καὶ ἐπίστασθαι διελεῖν τε καὶ ἐρωτώμενον λόγον δοῦναι (339a).
104
καὶ δὴ καὶ νῦν ἔσται τὸ ἐρώτημα περὶ τοῦ αὐτοῦ μὲν περὶ οὗπερ ἐγώ τε καὶ σὺ νῦν διαλεγόμεθα, περὶ
ἀρετῆς, μετενηνεγμένον δ᾽ εἰς ποίησιν (339a).
105
τοσοῦτον μόνον διοίσει (339a).
106
λέγει γάρ που Σιμωνίδης πρὸς Σκόπαν τὸν Κρέοντος ὑὸν τοῦ Θετταλοῦ ὅτι— (339b).
107
Minos (v. 568); Órion (v. 572); Títio (v. 576); Tântalo (v. 582); Sísifo (v. 593); e Héracles (v. 601).
29

Inclusive, Gagarin108 usa tal passagem, em que Protágoras é apresentado como Orfeu,
para sustentar a tese de que Platão, enquanto Odisseu que desce ao Hades, faria um par com o
sofista como um que se distanciaria dos demais espectros, eis que Orfeu e Odisseu –
diferentemente de Sísifo – fazem a katábasis109 ao Hades sem serem maculados pela morte ou
punidos fisicamente de outra forma110.
Sócrates não é a personagem de um autor opositor radical da poesia – como bem
defende Aguirre111 em um contexto mais amplo –, mas como um engendrador de uma nova
forma de fazê-la.
Como tal, ao ser conduzido à exegese de um trecho do texto de Simônides, Sócrates
diz-se não só conhecedor de seu teor, mas afirma tem se dedicado bastante a esse canto112.
Protágoras, então, faz sua questão que será objeto de polêmica113: pareceria a Sócrates
algo belamente e corretamente elaborado?
Quero destacar dois momentos supramencionados da fala de Protágoras.
Primeiramente, Protágoras diz que não mudará o tema do que outrora se debatia, mas
transitará o tema para uma relação com a poesia/construção (μετενηνεγμένον δ᾽ εἰς ποίησιν).
Em segundo lugar, Protágoras afirma que a parte da paideia que operarão é a parte
mais importante (μέγιστον μέρος), questionando à Sócrates se, em específico, o trecho de
Simônides é corretamente e belamente construído (καλῶς πεποιῆσθαι καὶ ὀρθῶς).
O objetivo aqui é sustentar a possibilidade de uma ambiguidade intencional por parte
do autor do homônimo.
Fica evidente que, pelo contexto, o autor do homônimo estabelece uma continuidade
da discussão entre os passos anteriores e o atual. O que queremos defender é que, igualmente
como ocorria nos passos anteriores, há uma continuidade de duas dimensões filosóficas no
diálogo. Por um lado, a abordagem ética (intrínseca ao tema da excelência política) é ressaltada

108
Id. p. 139-140.
109
Para uma análise de outros possíveis ecos redacionais dos cantos 10 e 11 da Odisseia no homônimo,
vide SEGVIC, Heda (2006). Homer in Plato'sProtagoras. Classical Philology, 101(3), 247–262.
110
Para uma visão de que Platão tinha em vistas apresentar a comparação de desperto apenas em relação
a Sócrates, vide FRIEDLÄNDER, Paul. Plato: the dialagues first period. Tr. Hans Meyerhoof. Nova
York: Patheon Books, 1964. p. 8.
111
AGUIRRE, J. Platón y el conflito entre la vieja y la nueva poesía, Convivium, São Paulo, v. 26, p.
5-28, 2013.
112
ἐπίσταμαί τε γάρ, καὶ πάνυ μοι τυγχάνει μεμεληκὸς τοῦ ᾁσματος (339b).
113
ἐπίσταμαί τε γάρ, καὶ πάνυ μοι τυγχάνει μεμεληκὸς τοῦ ᾁσματος (339b).
30

pela personagem Protágoras na ambiguidade dos termos de mesma raiz que ποίησις114, por
outro, permanece a dimensão conceitual (que dissemos acima ter um caráter de proto-lógica).
Se a leitura é verdadeira, ela implica também que as perguntas de Protágoras sobre o
poema de Simônides têm ao menos duas dimensões.
Uma dimensão é se a hipotética tese do poema é algo que se deve dizer sobre os seres
humanos, de um ponto de vista da adequação da lição em termos de “construção-poética”
instrutora para o comportamento do homem; outra dimensão é relativa à consistência interna
do discurso de Simônides, fazendo inferir um uso prático do princípio da não-contradição115.
Protágoras, portanto, emula a estrutura do argumento que foi usada contra ele no que
tange a questão da contrariedade interna em um mesmo discurso.
Na primeira citação, Simônides teria dito o seguinte:
O homem tornar-se verdadeiramente bom é problemático116,
Em mãos, em pés e em mente “tetragonal”
Sem defeito constituído117 (grifo nosso).

Antes de Protágoras perguntar o que Sócrates pensa da afirmação ele questiona se


Sócrates conhece o canto ou se é necessário discorrer sobre ele completo118.
A enunciação de Sócrates de que o conhece por ter se dedicado a ele recentemente
provoca um efeito na exposição do homônimo ao leitor.
A possível contradição do texto atribuído a Simônides não fica visível ao leitor, no
exato momento em Protágoras propõe um problema em Sócrates, pois a segunda proposição
ainda não apareceu.

114
Ao mesmo tempo que o termo está bem fixamente vinculado à realização de poesia, ποίησις também
se relaciona semanticamente à noção de produção de resultados. Interpretar e julgar poetas, tal qual é
feito na República e nas Leis, em especial com o foco da tragédia ateniense, implica em julgar os
produtores de educação que alimenta as almas dos cidadãos. Protágoras, portanto, é coerente em
apresentar o “poetar” como a parte mais importante da educação, pelo seu conteúdo de “alimento que
nutre” a alma. Portanto, o projeto das representações de Sócrates nos diálogos platônicos, sejam
considerados socráticos ou de fase média, executam, como bem sustenta Aguirre, uma “nueva poesia”
que visa superar não só a tragédia ateniense, mas também o que o autor advoga serem os limites da
sofística.
115
Mesmo, repise-se, sem que uma formalização precise ser formalizada.
116
Opto pela tradução de “χαλεπόν” por “problemático”, derivado da opção do dicionário LSJ de
tradução por “troublesome”, na tentativa de mimetizar a ambiguidade que será explorada por Sócrates
no grego.
117
ἄνδρ᾽ ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι χαλεπόν,
χερσίν τε καὶ ποσὶ καὶ νόῳ τετράγωνον, ἄνευ ψόγου
τετυγμένον (339b)
118
τοῦτο ἐπίστασαι τὸ ᾆσμα, ἢ πᾶν σοι διεξέλθω; (339b).
31

Quando Sócrates – que disse conhecer o canto – afirma a grandiosa beleza e correção
119
dele , Protágoras pergunta se seria de fato a Sócrates pareceria belamente composto se o poeta
diz, ele próprio, discursos contrários120.
Com a negativa de Sócrates, Protágoras sugere que observe melhor, enquanto que
Sócrates insiste que já examinou o suficiente121.
Nesse trecho, então, Protágoras apresenta o trecho do canto em que, de forma
hipoteticamente contraditória, Simônides teria criticado Pítaco, um dos sete sábios122:
A mim não (parece) a (fala) pitaqueia harmonicamente manejada,
Pois, apesar de certamente (ser) sábio homem, ao se pronunciar, ele diz:
é problemático ser qualificado123 (grifo nosso).

Sócrates reforça que sabia que a mesma pessoa havia dito as coisas anteriormente
mencionadas. Protágoras, então, pergunta se estas e aquelas palavras apresentam
concordância124.
Embora Sócrates diga que lhe é manifesto que sim, ele, enquanto narrador, alude a um
medo de que de fato não fosse o caso125.
Sócrates passa a questão para Protágoras, perguntando-lhe se não lhe é manifesto o
mesmo.
É nesse momento que Protágoras expõe onde ele observa estar a contradição126.
Primeiro o poeta sustenta “ser problemático ao homem se tornar em verdade um homem
bom”127. Logo depois, no poema, esquecendo o que disse antes, avança contra Pítaco, que diz
as mesmas coisas ao dizer “é problemático ser qualificado”128.
Colocando as proposições uma sobre a outra, é de notar que Protágoras está tomando
duas proposições como sinonímias e aplicando noções de princípio da não-contradição pela
necessidade de homologia interna, ou concordância dentro de um mesmo discurso.

119
πάνυ, ἔφην ἐγώ, καλῶς τε καὶ ὀρθῶς. (339b).
120
δοκεῖ δέ σοι καλῶς πεποιῆσθαι, εἰ ἐναντία λέγει αὐτὸς αὑτῷ ὁ ποιητής; (339b).
121
ἀλλ᾽, ὠγαθέ, ἔσκεμμαι ἱκανῶς (339c).
122
Que serão inclusive mencionados em (343a)
123
οὐδέ μοι ἐμμελέως τὸ Πιττάκειον νέμεται,
καίτοι σοφοῦ παρὰ φωτὸς εἰρημένον:
χαλεπὸν φάτ᾽ ἐσθλὸν ἔμμεναι. (339c).
124
δοκεῖ οὖν σοι, ἔφη, ταῦτα ἐκείνοις ὁμολογεῖσθαι; (339c).
125
φαίνεται ἔμοιγε (καὶ ἅμα μέντοι ἐφοβούμην μὴ τὶ λέγοι) (339c).
126
A parte por nós negritada nas duas passagens cima.
127
χαλεπὸν εἶναι ἄνδρα ἀγαθὸν γενέσθαι ἀλαθείᾳ (339d).
128
“χαλεπὸν ἐσθλὸν ἔμμεναι” (339d).
32

Nesse caso, se “ἄνδρ᾽ ἀγαθὸν μὲν ἀλαθέως γενέσθαι” é predicado como “χαλεπόν”, então
“ἐσθλὸν ἔμμεναι” também precisa ser predicado como “χαλεπόν”, já que “o homem se tornar
verdadeiramente bom” e “ser qualificado” seriam duas formas de expressar a mesma ideia.
Assim, sintetiza Protágoras, mimetizando o que disse Sócrates nos passos anteriores: “quando
ele censura alguém com os mesmos dizeres que ele, está claro que censura também a si mesmo, de modo
a ser certo que ou a primeira ou a última fala não expressam algo corretamente”129.
A essa altura, o narrador Sócrates toma a palavra para mencionar que dito isso muitos
aprovaram e apoiaram o que ouviam, enquanto que ele, em primeiro momento, ficara como que
abatido por um bom pugilista, com visão turvada e zonzo diante daqueles discursos e dos brados
dos demais130.
Em seguida, Sócrates ainda como narrador, diz expressamente que recorre a Pródico,
“para dizer a verdade”, só para ganhar tempo no exame do poeta131.
O invocar de Pródico à conversa claramente se faz por causa da tendência deste de
reforçar diferenças semânticas.
Socrátes fará três argumentos semânticos.
Primeiramente ele argumenta que a diferença das proposições se daria em razão da
diferença entre das formas verbais “γενέσθαι” e “ἔμμεναι”, pois Pítaco não dizia que difícil é se
tornar qualificado – como dizia Simônides – mas ser132 (qualificado).
Pródico, convocado para a conversa, o elogia. Entretanto, Protágoras afirma que esse
não pode ser o sentido pretendido por Simônides. Isso porque seria muita ignorância do poeta,
caso ele dissesse ser a busca pela excelência algo trivial, eis que isso é de tudo o mais
dificultoso, como parece a todos os homens133.
Sócrates, então, enuncia que a expertise de Pródico na matéria (do significado das
palavras) deve ser respeitada, dizendo que mesmo que Protágoras saiba de muitas outras
matérias, nessa ele deve ter experiência por ser aluno de Pródico134.

129
καίτοι ὁπότε τὸν ταὐτὰ λέγοντα αὑτῷ μέμφεται, δῆλον ὅτι καὶ ἑαυτὸν μέμφεται, ὥστε ἤτοι τὸ
πρότερον ἢ ὕστερον οὐκ ὀρθῶς λέγει. (339d).
130
εἰπὼν οὖν ταῦτα πολλοῖς θόρυβον παρέσχεν καὶ ἔπαινον τῶν ἀκουόντων: καὶ ἐγὼ τὸ μὲν πρῶτον,
ὡσπερεὶ ὑπὸ ἀγαθοῦ πύκτου πληγείς, ἐσκοτώθην τε καὶ ἰλιγγίασα εἰπόντος αὐτοῦ ταῦτα καὶ τῶν ἄλλων
ἐπιθορυβησάντων (339d-e).
131
ἔπειτα—ὥς γε πρὸς σὲ εἰρῆσθαι τἀληθῆ, ἵνα μοι χρόνος ἐγγένηται τῇ σκέψει τί λέγοι ὁ ποιητής—
τρέπομαι πρὸς τὸν πρόδικον (339e).
132
οὐ γὰρ τοῦτο ὁ Πιττακὸς ἔλεγεν τὸ χαλεπόν, γενέσθαι ἐσθλόν, ὥσπερ ὁ Σιμωνίδης, ἀλλὰ τὸ ἔμμεναι
(340c).
133
πολλὴ ἄν, ἔφη, ἀμαθία εἴη τοῦ ποιητοῦ, εἰ οὕτω φαῦλόν τί φησιν εἶναι τὴν ἀρετὴν ἐκτῆσθαι, ὅ ἐστιν
πάντων χαλεπώτατον, ὡς ἅπασιν δοκεῖ ἀνθρώποις. (340e).
134
σὺ δὲ ἄλλων πολλῶν ἔμπειρος ὢν ταύτης ἄπειρος εἶναι φαίνῃ, οὐχ ὥσπερ ἐγὼ ἔμπειρος διὰ τὸ
μαθητὴς εἶναι Προδίκου τουτουΐ (341a).
33

Então Sócrates avança a segunda hipótese semântica.


A argumentação se refere à ambiguidade possível do termo “χαλεπόν”, recorrendo ao
exemplo da ambiguidade do adjetivo “δεινός” como modelo para o raciocínio.
Se “χαλεπόν” se pode significar, de fato, “problemático”, no sentido de “ser difícil”, mas
“χαλεπόν” também pode significar “problemático”, no sentido de “ser ruim”135, no trecho interpretado,
haveria uma possibilidade de interpretar o texto escapando da contradição. Interpretar com o sentido de
“ser ruim” é o que Sócrates nesse momento defende.
Em seguida se dá o que parece uma consideração vacilante do próprio Pródico, que questiona
a Sócrates se ele entende que a crítica de Simônides a Pítaco é algo relativo à distinção dos nomes, por
causa de sua origem bárbara em Lesbos136.
Dada a palavra a Protágoras, ele é incisivo em dizer que não, pois ele sabe muito bem que
Simônides, por “problemático”, quer dizer algo diferente, não “o que é ruim”, mas algo “que não é fácil”
e que “vem a ser através de muito trabalho”137.
Sócrates então acompanha o entendimento de Protágoras e diz que o acerto da tal visão
se dá pela análise do verso subsequente, em que Simônides afirma que “apenas o divino
ocasionalmente tem esse privilégio”138.
Então Sócrates enuncia seu terceiro argumento semântico, que envolve duas questões
de estrutura sintática do texto de Simônides: a função do termo “ἀλαθέως” em hipérbato e o
uso das partículas “μέν” e “δὲ” entre as duas estrofes, que operam o hipérbato.
Primeiro, Sócrates faz longa exposição contextual sobre a intenção de Simônides, que
situa Pítaco como um dos sete sábios, sob influência lacônica, admirador do conhecimento, mas
produtor de curtos discursos, muitas vezes a uma moda elíptica que emularia uma prática
espartana de esconder seu próprio conhecimento.
No âmbito da elaboração sintática, Sócrates sugere que o “μέν” da primeira estrofe
tem a função de coordená-la com a segunda estrofe, fazendo que o termo “ἀλαθέως” não seja
um advérbio que se ligue sintaticamente a “γενέσθαι” e “ἀγαθόν” de forma isolada, mas
expresse a veracidade de “γενέσθαι μὲν χαλεπὸν”, como um todo, em oposição a “χαλεπὸν
ἐσθλὸν ἔμμεναι”.
Em síntese, tal operação sintática implica em uma alteração semântica.

135
ἴσως οὖν καὶ τὸ ‘χαλεπὸν’ αὖ οἱ Κεῖοι καὶ ὁ Σιμωνίδης ἢ κακὸν ὑπολαμβάνουσι ἢ ἄλλο τι ὃ σὺ οὐ
μανθάνεις: (341b).
136
ἀλλὰ τί οἴει, ἔφη, λέγειν, ὦ Σώκρατες, Σιμωνίδην ἄλλο ἢ τοῦτο, καὶ ὀνειδίζειν τῷ Πιττακῷ ὅτι τὰ
ὀνόματα οὐκ ἠπίστατο ὀρθῶς διαιρεῖν ἅτε Λέσβιος ὢν καὶ ἐν φωνῇ βαρβάρῳ τεθραμμένος; (340c).
137
ἀλλ᾽ ἐγὼ εὖ οἶδ᾽ ὅτι καὶ Σιμωνίδης τὸ ‘χαλεπὸν’ ἔλεγεν ὅπερ ἡμεῖς οἱ ἄλλοι, οὐ τὸ κακόν, ἀλλ᾽ ὃ ἂν
μὴ ῥᾴδιον ᾖ ἀλλὰ διὰ πολλῶν πραγμάτων γίγνηται (341d).
138
θεὸς ἂν μόνος τοῦτ᾽ ἔχοι γέρας (341e).
34

Por um lado, a leitura da primeira estrofe proposta por Protágoras implicava na


afirmação de que “é difícil se tornar verdadeiramente bom”.
Por outro, na leitura de Sócrates, a frase implicaria na afirmação de que
“verdadeiramente”, “tornar-se bom é difícil”, e que Simônides pretendia dizer que é falsa, por
oposição, a afirmação de que “ser qualificado é difícil”, já que “ser” (contendo o sentido de
permanência) qualificado” seria algo exclusivo ao divino.
Para Sócrates, seria loucura de Simônides se ele quisesse afirmar no início do canto
tão simplesmente que “é difícil tornar-se bom”, então por isso ele colocou a partícula “μέν”139.
Diz Sócrates que Simônides fez isso não por outro motivo além de coordenar a frase
de Pítaco como em disputa ao dizer de Simônides140.
Isso porque, ao discurso de Pítaco de que “é problemático ser qualificado”, Simônides,
opondo-se, diz que não, mas que “o que, verdadeiramente, é difícil, Pítaco, é tornar-se homem
bom” (grifo nosso)141.
Sócrates sustenta que o texto não fala em “de verdade” bom, não sendo a esta palavra
(bom) que se refere “a verdade”, como se dentre os homens alguns fossem bons
verdadeiramente, enquanto que outros o fossem, só que não verdadeiramente142.
Portanto, a conclusão da alteração sintática do vocábulo “ἀλαθέως” no contexto é de
que ele dá valor de “verdade” para a frase de Simônides em oposição àquela que ele replica, a
frase de Pítaco.
Sócrates então interpreta que o canto inteiro tem por função refutar a frase de Pítaco143.
O seguinte trecho citado por Sócrates implicaria na confirmação de que Simônides
entende que nenhum homem permanece sempre bom:
Homem não há
nenhum que permaneça sem ser ruim,
caso seja abatido por irrecorrível adversidade144.

139
εὐθὺς γὰρ τὸ πρῶτον τοῦ ᾁσματος μανικὸν ἂν φανείη, εἰ βουλόμενος λέγειν ὅτι ἄνδρα ἀγαθὸν
γενέσθαι χαλεπόν, ἔπειτα ἐνέβαλε τὸ μέν (343c-d).
140
τοῦτο γὰρ οὐδὲ πρὸς ἕνα λόγον φαίνεται ἐμβεβλῆσθαι, ἐὰν μή τις ὑπολάβῃ πρὸς τὸ τοῦ Πιττακοῦ
ῥῆμα ὥσπερ ἐρίζοντα λέγειν τὸν Σιμωνίδην (343d).
141
λέγοντος τοῦ Πιττακοῦ ὅτι “χαλεπὸν ἐσθλὸν ἔμμεναι”, ἀμφισβητοῦντα εἰπεῖν ὅτι οὔκ, ἀλλὰ
“γενέσθαι μὲν χαλεπὸν” ἄνδρα ἀγαθόν ἐστιν, ὦ Πιττακέ, ὡς ἀληθῶς (343d)
142
οὐκ ἀληθείᾳ ἀγαθόν, οὐκ ἐπὶ τούτῳ λέγει τὴν ἀλήθειαν, ὡς ἄρα ὄντων τινῶν τῶν μὲν ὡς ἀληθῶς
ἀγαθῶν, τῶν δὲ ἀγαθῶν μέν, οὐ μέντοι ἀληθῶς (343d-e).
143
ὅτι παντὸς μᾶλλον ἔλεγχός ἐστιν τοῦ Πιττακείου ῥήματος διὰ παντὸς τοῦ ᾁσματος (344b).
144
ἄνδρα δ᾽ οὐκ
ἔστι μὴ οὐ κακὸν ἔμμεναι,
ὃν ἂν ἀμήχανος συμφορὰ καθέλῃ (344c).
35

Sócrates explica o raciocínio por metáfora, afirmando que homens deitados não se
145
deitam . E, assim, sintetiza dizendo que a adversidade irrecorrível eventualmente derruba os
homens com recursos, mas não aquele que sempre é desprovido de recursos146.
Com isso, um polo das possibilidades seria considerar que alguns homens agem de
modo ruim, alguns agem de modo bom, mas, quando abatidos por irrecorrível adversidade,
agem de modo ruim, enquanto, no outro polo, apenas o divino permanece sempre bom.
Sócrates menciona que isso se expressaria por outro poema, em que se diz que “mesmo
um homem bom, às vezes, é ruim, outras, é qualificado”147, ao passo que para um homem ruim
não lhe ocorre a sorte de alternar, mas sempre é necessariamente148 (desqualificado).
Sócrates retoma sua leitura de que Simônides quereria criticar Pítaco em sua tese de
que ser (contendo sentido de permanência) qualificado é difícil, pois, para Simônides, seria
impossível, já que em outros de seus versos Simônides diz:
Por um lado, quando bem age, todo homem é bom,
Por outro, é ruim se (pratica) mal149.
Portanto, Sócrates argumenta, “quem seria bom no que toca à prática das letras e o que
torna um homem bom no que toca às letras? Claro que é a educação nesse tema”150. Continua
ele: “Qual boa prática cria um bom médico? Claro que é a educação acerca das práticas de
tratamento e ‘é ruim se (pratica) mal’ ”151.
O sentido da fala de Sócrates é metafórico. (1) O que criar um bom médico é educação
em medicina. (2) Só do bom médico (educado em medicina) é possível vir boa-prática médica,
não do não-versado. (3) O bom médico (sempre) eventualmente tem práticas ruins, por motivos
que o escapam, como fatiga, doença, ou qualquer incidente.
Vis-à-vis, Simônides estaria dizendo que dá trabalho tornar-se bom, mas, mesmo
tornando-se bom, ainda assim haveria de se portar mal eventualmente em razão de irrecorrível
adversidade.

145
ὥσπερ οὖν οὐ τὸν κείμενόν τις ἂν καταβάλοι, ἀλλὰ τὸν μὲν ἑστῶτά ποτε καταβάλοι ἄν τις ὥστε
κείμενον ποιῆσαι, τὸν δὲ κείμενον οὔ (344c-d).
146
οὕτω καὶ τὸν εὐμήχανον ὄντα ποτὲ ἀμήχανος ἂν συμφορὰ καθέλοι, τὸν δὲ ἀεὶ ἀμήχανον ὄντα οὔ
(334d)
147
αὐτὰρ ἀνὴρ ἀγαθὸς τοτὲ μὲν κακός, ἄλλοτε δ᾽ ἐσθλός (344d).
148
τῷ δὲ κακῷ οὐκ ἐγχωρεῖ γενέσθαι, ἀλλ᾽ ἀεὶ εἶναι ἀνάγκη (344e).
149
πράξας μὲν γὰρ εὖ πᾶς ἀνὴρ ἀγαθός,
κακὸς δ᾽ εἰ κακῶς (344e)
150
τίς οὖν εἰς γράμματα ἀγαθὴ πρᾶξίς ἐστιν, καὶ τίς ἄνδρα ἀγαθὸν ποιεῖ εἰς γράμματα; δῆλον ὅτι ἡ
τούτων μάθησις (345a).
151
τίς δὲ εὐπραγία ἀγαθὸν ἰατρὸν ποιεῖ; δῆλον ὅτι ἡ τῶν καμνόντων τῆς θεραπείας μάθησις. “κακὸς δὲ
κακῶς” (345a).
36

Portanto, não seria (apenas) problemático “ser” (contendo o sentido de permanência)


qualificado, mas impossível. Algo reservado à esfera do divino e não dos homens.
Para infirmar essa opção de leitura, Sócrates recorre a dois pares de trechos em que
Simônides assumiria como pressuposto a impossibilidade da perfeição em âmbito humano.
Primeiro uma citação sobre o ceticismo quanto à empreitada de busca pelo homem imaculado:
Por isso, eu nunca - ao tornar
dinâmico o vazio, buscando por objeto de expectativa
impraticável - laçaria fora parte do meu tempo,
(atrás d)o totalmente-inocente homem entre nós, (os quais desfrutam) do fruto
que da imensidão terra retiramos.
Para vocês, assim que encontrar, o trarei152.
E depois, Sócrates subverte a interpretação de que haveria uma intenção de Simônides
de fazer um elogio daquele que não faz nada de vergonhoso voluntariamente como algo
suficiente para se fazer amar:
Todos aprovo e por eles tenho afinidade
intencionado tenha agido
Sem nenhum ato vergonhoso, pois contra a necessidade nem deuses lutam 153.
A partir da interpretação desse trecho, Sócrates dá a interpretação de que esse trecho
também é um ataque à frase de Pítaco, porque Simônides não seria tão apedeuto a ponto de
afirmar que elogia aqueles que não tenham agido “intencionados” (ἑκὼν) a nenhum ato
vergonhoso, como se dentre os que comeram atos vergonhosos houvesse os intencionados a
fazer coisas ruins154.
Aí, Sócrates finalmente avança o que pode ser chamado esboço da “tese
intelectualista”, segundo a qual nenhum dos homens sábios sustentaria que ninguém da
humanidade falharia em propósito intencionados a isso, nem se envergonharia e faria coisas

152
τοὔνεκεν οὔ ποτ᾽ ἐγὼ τὸ μὴ γενέσθαι
δυνατὸν διζήμενος κενεὰν ἐς ἄ-
πρακτον ἐλπίδα μοῖραν αἰῶνος βαλέω,
πανάμωμον ἄνθρωπον, εὐρυεδοῦς ὅσοι
καρπὸν αἰνύμεθα χθονός (345c).
ἐπί θ᾽ ὑμῖν εὑρὼν ἀπαγγελέω
153
πάντας δ᾽ ἐπαίνημι καὶ φιλέω
ἑκὼν ὅστις ἕρδῃ
μηδὲν αἰσχρόν: ἀνάγκῃ δ᾽ οὐδὲ θεοὶ μάχονται (345c).
154
οὐ γὰρ οὕτως ἀπαίδευτος ἦν Σιμωνίδης, ὥστε τούτους φάναι ἐπαινεῖν, ὃς ἂν ἑκὼν μηδὲν κακὸν ποιῇ,
ὡς ὄντων τινῶν οἳ ἑκόντες κακὰ ποιοῦσιν (345d).
37

ruins intencionados a esse fim, mas sim tais sábios bem sabem que todas as coisas vergonhosas
e feitos ruins são feitos por pessoas não intencionadas a isso155.
Assim, Simônides, não se refere aos feitos ruins executados por aqueles intencionados
a isso, mas por “intencionado” (ἑκών) ele se referiria a si mesmo156.
Simônides estaria, portanto, por um lado, explicando que caso tenha feito elogios a
tiranos não o fez voluntariamente, mas constrangido, enquanto, por outro, justifica a Pítaco que
não o censura por ser um amante de censuras. Sócrates baseia essa leitura em mais três pequenos
trechos do texto atribuído a Simônides.
Finalmente, Sócrates conclui que Simônides quer dizer: “todos eu aprovo e por eles
tenho afinidade, (estando eu) intencionado a isso”157, devendo-se fazer a pausa no discurso ali
no vocábulo “ἑκών” para conduzir ao sentido que ele pretende correto do texto.
Em que pese que a leitura de Sócrates nesse trecho seja particularmente difícil de
aceitar como suposta intenção do criador de uma hipotética Ode a Escopas original, deve-se
retornar à proposta inicial de Protágoras para compreender o que Sócrates está, de fato,
maquinando.
Como dito no início do capítulo, Protágoras afirma que a parte principal da educação
do homem é aquela acerca da poesia, no que toca distinguir aquilo que é produzido bela e
corretamente daquilo que não é, bem como saber dar a explicação quando se é indagado.
Se é correto afirmar que o fio condutor de todo diálogo mescla a abordagem ética à
lógica – como aqui se defende –, devemos verificar que a fala de Sócrates também opera sob a
mesma toada.
Quando, portanto, Protágoras apontou que Sócrates fez o elogio de um discurso
internamente contraditório, poderia Sócrates ou admitir o erro de elogiar Simônides ou
precisaria apresentar uma leitura do texto de Simônides que evitasse a hipotética contradição,
ao mesmo tempo que expressasse algo sobre o bom humano que reafirmasse sua convicção.
Embora haja um recurso explicitamente narrado como retórico no convite a Pródico
para participar da discussão, em razão de seu preciosismo com as palavras, em especial com
relação à ambiguidade de “χαλεπόν”, Sócrates jamais abdica da distinção conceitual entre
“γενέσθαι” e “ἔμμεναι”.

155
ὅτι οὐδεὶς τῶν σοφῶν ἀνδρῶν ἡγεῖται οὐδένα ἀνθρώπων ἑκόντα ἐξαμαρτάνειν οὐδὲ αἰσχρά τε καὶ
κακὰ ἑκόντα ἐργάζεσθαι, ἀλλ᾽ εὖ ἴσασιν ὅτι πάντες οἱ τὰ αἰσχρὰ καὶ τὰ κακὰ ποιοῦντες ἄκοντες
ποιοῦσιν: (345d-e).
156
καὶ δὴ καὶ ὁ Σιμωνίδης οὐχ ὃς ἂν μὴ κακὰ ποιῇ ἑκών, τούτων φησὶν ἐπαινέτης εἶναι, ἀλλὰ περὶ
ἑαυτοῦ λέγει τοῦτο τὸ ἑκών (345e).
157
“πάντας δὲ ἐπαίνημι καὶ φιλέω ἑκών” (346e).
38

Defendemos que, se é verdadeira a afirmação de Kahn sobre haver uma remissão da


questão “o-que-é-X” nos diálogos ditos socráticos para o tema das Formas nos diálogos ditos
de fase média, sob o mesmo princípio exegético há de se inferir que a necessidade de distinção
conceitual sustentada por Sócrates no homônimo remete a um aprofundamento da temática em
outros diálogos, ditos estes de fase tardia158.
Por fim, o recurso à reconstrução sintática serve simultaneamente para reforçar o
argumento em favor da não contradição interna do discurso, mas também para introduzir o tema
da inexistência da atuação ruim intencional, que será parte considerável da discussão final entre
Sócrates e Protágoras.
Antes disso ocorrer, Hípias toma a palavra, elogiando a interpretação de Sócrates e
nutrindo a esperança de apresentar a sua própria, mas é abruptamente interrompido por
Alcibíades, interessado em manter a discussão conforme o acordo de Protágoras e Sócrates159.
Sócrates faz longo discurso para evitar a discussão pela poesia (desvalorizada por ele
como um mero dizer a partir da fala de outros) e – após narrada hesitação de Protágoras em
tomar a palavra – Alcibíades novamente incita por vitupérios, provocando – ao que parece ao
narrador Sócrates – Protágoras a ser constrangido160 a participar.
Seguido de um convite parcimonioso de Sócrates à continuidade da discussão como
um auxílio mútuo, Sócrates, então, retoma a posição de questionador e, mais uma vez, elenca a
questão da incidência una das partes da excelência, tratadas por Protágoras como dissimilares,
a partir da metáfora do rosto.
Com o retorno a este contexto, Protágoras afirma que quatro partes são de fato
razoavelmente parecidas, enquanto a coragem seria completamente diferente.
A partir daí começa a etapa final do diálogo.

158
Vide, por exemplo, no Timeu (27d-28a), a exigência de diferir entre “aquilo que é sempre, não tendo
processo de devir” (τί τὸ ὂν ἀεί, γένεσιν δὲ οὐκ ἔχον) e “aquilo que sempre se torna, nunca sendo” (τί
τὸ γιγνόμενον μὲν ἀεί, ὂν δὲ οὐδέποτε), o primeiro apreensível no pensamento pelo discurso e outro na
opinião pelos sentidos não-fixáveis-em-discurso (τὸ μὲν δὴ νοήσει μετὰ λόγου περιληπτόν, ἀεὶ κατὰ
ταὐτὰ ὄν, τὸ δ᾽ αὖ δόξῃ μετ᾽ αἰσθήσεως ἀλόγου δοξαστόν). No Teeteto (152e), a conhecida dicotomia
radical criada por Sócrates entre os que pensam que “nada nunca é, sempre tornando-se” (ἔστι μὲν γὰρ
οὐδέποτ᾽ οὐδέν, ἀεὶ δὲ γίγνεται), sustentamos ser um desdobramento da exigência da dicotomia
conceitual apresentada como já identificada por Sócrates no homônimo e que atravessa
“ingressivamente” diversos outros diálogos, como a República (477b), que revisita a dicotomia para
tratar da separação dos objetos da opinião e do conhecimento.
159
καὶ ὁ Ἀλκιβιάδης, ναί, ἔφη, ὦ Ἱππία, εἰς αὖθίς γε: νῦν δὲ δίκαιόν ἐστιν ἃ ὡμολογησάτην πρὸς ἀλλήλω
Πρωταγόρας καὶ Σωκράτης (347b).
160
É de se destacar a ligação entre o vocábulo “constrangido” (αἰσχυνθείς) relacionado a Protágoras por
ação de Alcibíades e a temática deixada em suspenso sobre só se praticar mal algo por constrangimento
externo.
39

5. Coragem, contrária à unidade da excelência (virada ao tema do hedonismo)


Sócrates inicia esse trecho da discussão recapitulando as teses antes expostas por
Protágoras, das quais destacamos as que nos interessa para nossa exposição.
Primeiro, Sócrates aponta a posição de Protágoras como alguém que, além de bom, faz
os outros bons161.
No mérito do assunto, Sócrates recapitula a questão a respeito de sabedoria, sensatez,
coragem, justiça e piedade, serem cinco nomes de uma única coisa, ou se para cada um dos
nomes subsiste um ser e uma coisa com dinâmica própria, não sendo uma delas como as
demais162.
Recapitula-se o que Protágoras disse que sobre elas serem parte da excelência163, como
as partes do rosto, em que a parte é dissimilar entre as outras e em relação ao todo164.
Ao abrir oportunidade para Protágoras se manifestar acerca da manutenção ou não da
posição, Protágoras admite que elas todas são partes da excelência, mas diz que quatro delas
aproximam-se entre si, enquanto a coragem difere muito de todas as outras165.
Desejamos destacar que, pelo contexto completo da obra, o vocábulo “παραπλήσια”
parece indicar não só similitude, mas uma característica de acompanhamento predicativo.
Isso porque a justificativa para afirmar verdadeira a dissimilitude entre coragem e os
demais se baseia na alegação de que seria possível ao interlocutor encontrar muitos homens que
são extremamente injustos; ímpios; insensatos; e ignorantes, mas excepcionalmente
corajosos166.
Sócrates então foca na conceptualização de coragem para verificar se, de fato, há
tamanho distanciamento entre essa parte da excelência e as demais, como sustentara Protágoras.
Sócrates pergunta a Protágoras se os corajosos são audaciosos (θαρραλέους) ou outra
coisa. Protágoras responde que são também precipitados (ἴτας) perante o que a maioria teme167.

161
σὺ δὲ καὶ αὐτὸς ἀγαθὸς εἶ καὶ ἄλλους οἷός τ᾽ εἶ ποιεῖν ἀγαθούς (348e).
162
σοφία καὶ σωφροσύνη καὶ ἀνδρεία καὶ δικαιοσύνη καὶ ὁσιότης, πότερον ταῦτα, πέντε ὄντα ὀνόματα,
ἐπὶ ἑνὶ πράγματί ἐστιν, ἢ ἑκάστῳ τῶν ὀνομάτων τούτων ὑπόκειταί τις ἴδιος οὐσία καὶ πρᾶγμα ἔχον
ἑαυτοῦ δύναμιν ἕκαστον, οὐκ ὂν οἷον τὸ ἕτερον αὐτῶν τὸ ἕτερον; (349b)
163
πάντα δὲ ταῦτα μόρια εἶναι ἀρετῆς (439c)
164
ὡς τὰ τοῦ προσώπου μόρια καὶ τῷ ὅλῳ οὗ μόριά ἐστιν καὶ ἀλλήλοις ἀνόμοια, ἰδίαν ἕκαστα δύναμιν
ἔχοντα (349c).
165
ὅτι ταῦτα πάντα μόρια μέν ἐστιν ἀρετῆς, καὶ τὰ μὲν τέτταρα αὐτῶν ἐπιεικῶς παραπλήσια ἀλλήλοις
ἐστίν, ἡ δὲ ἀνδρεία πάνυ πολὺ διαφέρον πάντων τούτων (349e).
166
ὧδε δὲ γνώσῃ ὅτι ἐγὼ ἀληθῆ λέγω: εὑρήσεις γὰρ πολλοὺς τῶν ἀνθρώπων ἀδικωτάτους μὲν ὄντας
καὶ ἀνοσιωτάτους καὶ ἀκολαστοτάτους καὶ ἀμαθεστάτους, ἀνδρειοτάτους δὲ διαφερόντως.
167
(349e)
40

Diante dessa resposta, Sócrates pergunta se a excelência é bela; e, caso seja, se é


inteiramente bela ou se parte dela é vergonhosa168.
Essa questão antecipa uma futura proposição de que uma postura audaciosa e
vergonhosa não pode ser reconhecida como a parte da excelência que é a coragem, porque
nenhuma parte da excelência pode ser vergonhosa.
Assim, o pressuposto nessa discussão é a pretensão de afastar a afirmação da
personagem Protágoras de que a coragem, se considerada de fato parte da excelência, diferiria
tanto assim das demais; e se predicaria pessoas que não tem as demais partes.
A preocupação (ou método) da personagem Sócrates, porém, é insistentemente voltada
às questões conceituais. Deste modo, as perguntas de Sócrates se direcionam à possibilidade de
equalizar conceitualmente coragem e sabedoria.
A maneira de executar essa operação é trazer à baila da discussão a concordância de
Protágoras com a afirmação de que a audácia não vergonhosa (digna de ser chamada coragem)
é aquela acompanhada de conhecimento, de modo que de certa maneira coragem é
conhecimento.
Assim Sócrates evoca exemplos de mergulhadores, cavaleiros e peltastas que são
audaciosos em função de possuírem conhecimento acerca do que fazem. Na linha dessa
discussão, os audaciosos sem conhecimento próprio da prática audaz não são considerados, nem
por Protágoras, corajosos.
Diante disso, Sócrates diz que os audaciosos deste tipo169 não são corajosos, mas sim
aqueles que lhe parecem loucos170.
Ou seja, haveria dois tipos de audácias, uma positiva, baseada no conhecimento, uma
negativa, baseada na ignorância. A positiva será objeto da continuidade do diálogo.
Sócrates elucubra a questão: “Os mais sábios são mais audaciosos e se os mais
audaciosos são os mais corajosos? Por base nesse discurso a sabedoria seria coragem?”171.
Protágoras, porém, discorda e apresenta um argumento que pode ser facilmente
representado com formulações básicas de lógica dos conjuntos.

168
(349e).
169
Ou seja, aqueles audaciosos em práticas que desconhecem.
170
οἱ οὕτω θαρραλέοι ὄντες οὐκ ἀνδρεῖοι ἀλλὰ μαινόμενοι φαίνονται (350c).
171
καὶ ἐκεῖ αὖ οἱ σοφώτατοι οὗτοι καὶ θαρραλεώτατοί εἰσιν, θαρραλεώτατοι δὲ ὄντες ἀνδρειότατοι; καὶ
κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἡ σοφία ἂν ἀνδρεία εἴη; (350c)
41

Protágoras sustenta que corajosos seriam audaciosos, mas não que (todos) os
audaciosos seriam corajosos172.
A asserção aceita por Protágoras de que o conhecimento aumenta a audácia não
implica em só o conhecimento aumentar a audácia (θάρσος), pois a audácia advém aos homens
tanto em função da técnica quanto em função da raiva e da loucura, enquanto a coragem torna-
se presente em função da natureza173 e da nutrição da alma174.
A partir dessa fala, Sócrates faz uma virada abrupta para o tema do viver bem e dos
prazeres. Mas essa virada não pode ser entendida como descontextualizada, pois o texto faz
menção expressa às razões de sua ocorrência.
Quando Protágoras pergunta mais à frente sobre o motivo pelo qual deveriam examinar
a opinião dos muitos homens sobre o tema em que se colocaram, Sócrates responde literalmente
que isso, de algum modo, diria respeito à investigação sobre a coragem e a como ela se relaciona
com as demais partes da excelência175.
Quero argumentar que, se não ignorarmos essa justificativa expressa da personagem
Sócrates para a virada, encerra-se qualquer necessidade176 de supor que a opinião “dos muitos”
sobre o hedonismo se refere a uma opinião hipoteticamente oculta de Protágoras, já que tal
virada exerce uma função argumentativa bem identificável no fio condutor do diálogo
independente dessa outra função hipotética. Far-se-á a exposição do problema a seguir.

6. Hedonismo ad argumentandum tantum: a unidade da Coragem


Caso se adote o entendimento de que a explicação expressa de Sócrates para debater a
convicção dos muitos sobre o hedonismo exprime, sem ironia, o motivo sincero177 para o
incurso naquele debate, torna-se necessário ler o debate sobre o hedonismo à luz do tema
anterior.
Protágoras insistiu na tese de que coragem é radicalmente diferente das demais partes
da excelência, sendo predicável em sujeitos que não são predicados pelas outras partes da
excelência.

172
ἔγωγε ἐρωτηθεὶς ὑπὸ σοῦ εἰ οἱ ἀνδρεῖοι θαρραλέοι εἰσίν, ὡμολόγησα: εἰ δὲ καὶ οἱ θαρραλέοι
ἀνδρεῖοι, οὐκ ἠρωτήθην—εἰ γάρ με τότε ἤρου, εἶπον ἂν ὅτι οὐ πάντες (350c-d).
173
Talvez se deva ler “ἀπὸ φύσεως” como “pela disposição natural”.
174
θάρσος μὲν γὰρ καὶ ἀπὸ τέχνης γίγνεται ἀνθρώποις καὶ ἀπὸ θυμοῦ γε καὶ ἀπὸ μανίας (...) ἀνδρεία δὲ
ἀπὸ φύσεως καὶ εὐτροφίας τῶν ψυχῶν γίγνεται (351a-b).
175
οἶμαι, ἦν δ᾽ ἐγώ, εἶναί τι ἡμῖν τοῦτο πρὸς τὸ ἐξευρεῖν περὶ ἀνδρείας, πρὸς τἆλλα μόρια τὰ τῆς ἀρετῆς
πῶς ποτ᾽ ἔχει. (353b).
176
Não se encerra a possibilidade dessa especulação, mas exclui uma hipotética necessidade de
encontrar qualquer intenção implícita na abordagem sobre a opinião “dos muitos”.
177
Tanto da personagem quanto do autor do texto.
42

Sócrates, então, vai retomar a já esboçada tese nomeada “intelectualista”, segundo a


qual ninguém age de forma ruim, senão sem intenção.
Só que, ao invés de abordar o tema diretamente, através da discussão da coragem,
Sócrates vai tangenciar o problema utilizando-se ad argumentandum tandum178 da tese
hedonista; para fazer Protágoras concordar com certo pressuposto na temática do hedonismo179,
posteriormente forçando-o a chegar à mesma conclusão no tema da coragem.
Nessa toada, Sócrates questiona se certos homens vivem bem e outros mal. Com a
resposta afirmativa de Protágoras, Sócrates associa uma vida aflitiva e dolorosa à
impossibilidade de viver bem, também obtendo aval.
Sócrates aí questiona sobre a identidade entre vida aprazível e o bom, obtendo, dessa
vez, objeção de Protágoras.
Protágoras diz que é boa a vida aprazível apenas se ela se der por comprazimento com
coisas belas.
Sócrates insiste na hipótese de considerar que coisas aprazíveis, enquanto aprazíveis,
seriam boas, enquanto coisas dolorosas, na medida que são dolorosas, seriam ruins, literalmente
falando: a pergunta de Sócrates é se o bom é o próprio prazer180.
Protágoras novamente nega, dizendo que lhe parece seguro responder a Sócrates, em
relação à vida que lhe resta, que há coisas aprazíveis que não são boas; dolorosas que são boas
e, ainda, uma terceira classe de coisas que não são nem boas nem más.
Sócrates persiste no tema e pergunta se, sobre o conhecimento, a posição de Protágoras
é como a da maioria dos homens ou diferente.
Eles dizem que ele (o conhecimento) não é forte, nem hegemônico, nem soberano,
nem pensam que através dele o homem é comandado, mas que mesmo tendo na consciência
dado conhecimento, não é o conhecimento que impera, mas outra coisa. Ora a ira, ora o prazer,
ora a dor, às vezes o amor, muitas vezes o medo. Eles praticamente consideram o conhecimento
como se fosse um escravo, arrastado por aí por tudo o mais181.

178
O “Só por argumentar”, ou ad argumentandum tantum, é um recurso de retórica no qual se reconhece
hipoteticamente a posição de outrem (geralmente reconhecida pelo retor que a utiliza como falsa) para
extrair ainda assim as conclusões que se deseja. No caso, Sócrates extrairá a conclusão de que mesmo
quem advoga a posição hedonista não poderia escapar ao domínio da razão no processo decisório.
179
Não só Protágoras, mas na narrativa Sócrates atrai Pródico e Hípias para homologarem a tese.
180
Trata-se da tese hedonista, sintetizada logo após nessa pergunta: τὴν ἡδονὴν αὐτὴν ἐρωτῶν εἰ οὐκ
ἀγαθόν ἐστιν (351e).
181
πῶς ἔχεις πρὸς ἐπιστήμην; πότερον καὶ τοῦτό σοι δοκεῖ ὥσπερ τοῖς πολλοῖς ἀνθρώποις, ἢ ἄλλως;
δοκεῖ δὲ τοῖς πολλοῖς περὶ ἐπιστήμης τοιοῦτόν τι, οὐκ ἰσχυρὸν οὐδ᾽ ἡγεμονικὸν οὐδ᾽ ἀρχικὸν εἶναι: οὐδὲ
ὡς περὶ τοιούτου αὐτοῦ ὄντος διανοοῦνται, ἀλλ᾽ ἐνούσης πολλάκις ἀνθρώπῳ ἐπιστήμης οὐ τὴν
ἐπιστήμην αὐτοῦ ἄρχειν ἀλλ᾽ ἄλλο τι, τοτὲ μὲν θυμόν, τοτὲ δὲ ἡδονήν, τοτὲ δὲ λύπην, ἐνίοτε δὲ ἔρωτα,
43

Essa longa exposição de Sócrates da posição dos chamados “muitos” não é


acompanhada por Protágoras.
Protágoras diz – e isso precisa ser destacado – concordar com a leitura crítica de
Sócrates sobre essa visão e afirma que lhe seria vergonhoso, mais do que para qualquer outro,
afirmar que sabedoria e conhecimento não são, entre as outras coisas, aquelas mais fortes182.
Sócrates diz que muitos homens, por outro lado, não acreditariam neles dois e dizem
ser dominados pela dor ou pelo prazer, lançando Protágoras a afirmação complementar de que
sabe que os muitos dizem muitas outras coisas sem correção183.
Sócrates, então, propõe que os dois têm que persuadir os homens ensinando-lhes o que
é isso pelo que passam, que chamam “ser mais fraco que os prazeres” e em razão de não
praticarem o melhor, mesmo quando têm conhecimento184.
Quando Sócrates faz essa sustentação, Protágoras pergunta por que teriam que
examinar a opinião dos muitos, aqueles que fazem discursos a esmo185.
Sócrates faz, então, a afirmação acima referida, de que se trata de algo relacionado ao
tema da coragem antes debatido e enuncia que ir por esse caminho seria escolha de Protágoras.
Protágoras aceita a ponderação e passa a responder as perguntas do interlocutor fictício de
Sócrates, de modo que a discussão passa a ser sobre o que os muitos diriam ou não.
Se considerarmos sinceridade na palavra da personagem Protágoras, resta ainda
compreender por qual motivo o autor do homônimo evocou a chamada “opinião dos muitos”.
Nossa sugestão de leitura implica em insistente retorno para dualidade lógico-ética no corpo do
homônimo.
A dimensão “lógica” do texto nos parece emergir de uma leitura literal do embate e
das formas de argumentar pelo tema da contrariedade.
Assim, ao conduzir o concordante Protágoras por longo discurso contra a posição dos
muitos, de que haveria a possibilidade de “ser vencido pelos prazeres”, Sócrates o forçará
adiante, para evitar a contradição, a um raciocínio análogo no que toca a coragem.

πολλάκις δὲ φόβον, ἀτεχνῶς διανοούμενοι περὶ τῆς ἐπιστήμης ὥσπερ περὶ ἀνδραπόδου, περιελκομένης
ὑπὸ τῶν ἄλλων ἁπάντων (352b-c).
182
καὶ δοκεῖ, ἔφη, ὥσπερ σὺ λέγεις, ὦ Σώκρατες, καὶ ἅμα, εἴπερ τῳ ἄλλῳ, αἰσχρόν ἐστι καὶ ἐμοὶ σοφίαν
καὶ ἐπιστήμην μὴ οὐχὶ πάντων κράτιστον φάναι εἶναι τῶν ἀνθρωπείων πραγμάτων (352c-d).
183
πολλὰ γὰρ οἶμαι, ἔφη, ὦ Σώκρατες, καὶ ἄλλα οὐκ ὀρθῶς λέγουσιν οἱ ἄνθρωποι (352e).
184
ἴθι δὴ μετ᾽ ἐμοῦ ἐπιχείρησον πείθειν τοὺς ἀνθρώπους καὶ διδάσκειν ὅ ἐστιν αὐτοῖς τοῦτο τὸ πάθος,
ὅ φασιν ὑπὸ τῶν ἡδονῶν ἡττᾶσθαι καὶ οὐ πράττειν διὰ ταῦτα τὰ βέλτιστα, ἐπεὶ γιγνώσκειν γε αὐτά
(352e-353a).
185
τί δέ, ὦ Σώκρατες, δεῖ ἡμᾶς σκοπεῖσθαι τὴν τῶν πολλῶν δόξαν ἀνθρώπων, οἳ ὅτι ἂν τύχωσι τοῦτο
λέγουσιν; (353a).
44

Mas se ambivalência lógico-ética de fato se verifica, podemos inferir que o argumento


de Sócrates não só explicitamente serve à reavaliação da relação entre coragem e
conhecimento/sabedoria, mas também serve para advertir, implicitamente, sobre o limite
teórico do projeto educacional de Protágoras.
A Protágoras Faltaria o que a personagem Sócrates provoca na cena: uma discussão
conceitual mais insistente, em busca do que de fato define a excelência, em termos absolutos e
não relativos, antes de advogar ensiná-la.
Não é possível ser bom sem conhecer, se, por definição, o conhecimento é relativo aos
homens, não há como “ser bom” em um sentido senão relativo ao que a maioria pensa. Esse,
sustentamos é um elemento ético implícito da discussão da posição dos muitos.
Nessa parte da exposição, Protágoras se limitará a anuir186 sobre qual seria a posição
dos assim chamados muitos.
É oportuno sintetizar o trecho sobre o hedonismo, abreviável a quatorze afirmações
acerca da opinião dos “muitos”, retiradas das questões de Sócrates:
a) Coisas são ruins não em razão do prazer do que provocam ser ruim, mas devido ao
que trazem de posterior, entre doenças e outras coisas187.
b) Portanto, são ressentidos os praticantes por criarem doenças e por criarem
sofrimentos188.
c) Então, algo é considerado ruim não por outra coisa senão pelos seres ruins ou pelos
sofrimentos e pelo resultante de diminuir dos prazeres189.
d) Quando se referem às coisas que são “boas sofríveis”, eles se referem a coisas
como as ginásticas as relativas à guerra, os tratamentos médicos por cauterização;
amputação; remédios e jejuns que, ao passo que são boas, são também sofríveis190.
e) Mas estas coisas são consideradas boas porque delas advém posterior saúde e delas
emerge boa forma dos corpos, salvações das cidades, domínio e riqueza191.

186
Entre 353b e 357b, Protágoras é representado concordando com longas afirmações de Sócrates por
14 vezes.
187
ἆρ᾽ οἰόμεθ᾽ ἂν αὐτούς, ὦ Πρωταγόρα, ἄλλο τι ἀποκρίνασθαι ἢ ὅτι οὐ κατὰ τὴν αὐτῆς τῆς ἡδονῆς
τῆς παραχρῆμα ἐργασίαν κακά ἐστιν, ἀλλὰ διὰ τὰ ὕστερον γιγνόμενα, νόσους τε καὶ τἆλλα. (353d-e).
188
οὐκοῦν νόσους ποιοῦντα ἀνίας ποιεῖ, καὶ πενίας ποιοῦντα ἀνίας ποιεῖ (353e).
189
δι᾽ οὐδὲν ἄλλο ταῦτα κακὰ ὄντα ἢ διότι εἰς ἀνίας τε ἀποτελευτᾷ καὶ ἄλλων ἡδονῶν ἀποστερεῖ (353e).
190
οἱ λέγοντες αὖ ἀγαθὰ ἀνιαρὰ εἶναι, ἆρα οὐ τὰ τοιάδε λέγετε, οἷον τά τε γυμνάσια καὶ τὰς στρατείας
καὶ τὰς ὑπὸ τῶν ἰατρῶν θεραπείας τὰς διὰ καύσεών τε καὶ τομῶν καὶ φαρμακειῶν καὶ λιμοκτονιῶν
γιγνομένας, ὅτι ταῦτα ἀγαθὰ μέν ἐστιν, ἀνιαρὰ δέ (354a).
191
εἰς τὸν ὕστερον χρόνον ὑγίειαί τε ἀπ᾽ αὐτῶν γίγνονται καὶ εὐεξίαι τῶν σωμάτων καὶ τῶν πόλεων
σωτηρίαι καὶ ἄλλων ἀρχαὶ καὶ πλοῦτοι (354b).
45

f) Dessa forma, os muitos as consideram ser boas não por outro motivo a não ser os
prazeres trazidos e por trazerem também a libertação das dores192.
g) E, portanto, perseguem o prazer como sendo bom e fogem da dor como mau193.
h) Os muitos só chamam o deleite de mau por isso, não por outro motivo a não ser
essas consequências, não podendo eles enunciar uma alternativa ao exposto194.
i) Como o homem é bom em estabelecer o peso das coisas, agrupem-se as coisas
aprazíveis e as sofríveis195. Então, na visão dos muitos, caso as coisas aprazíveis
sejam superadas pelas sofríveis, não se deve praticar196, e vice-versa.
j) Assim, dado que as mesmas grandezas aparecem ora maiores, vistas de perto, ora
menores, vistas de longe197 e que o mesmo ocorre com a espessura e com tudo
mais198, então, a (verdadeira técnica) da medida faria a aparência sem autoridade
e, ao aclarar o verdadeiro, faria a alma tranquila, assentada no verdadeiro, bem
como salvando-lhe a vida199.
k) Se a salvação dependesse da escolha relativa ao excesso e a falta, o que salvaria
nossas vidas seria o conhecimento, no que toca a medida200.
l) No caso específico, a salvação consistiria no exame do excesso, da falta e da
equivalência201 entre prazer e dor.
m) Se é métrica, necessário que seja técnica e conhecimento202.
Sócrates finaliza essa exposição com auxílio exclusivo de Protágoras dizendo que em
outra oportunidade investigação o que é essa arte e conhecimento203.
A associação temática do trecho com o tema do Teeteto se faz notória.

192
ταῦτα δὲ ἀγαθά ἐστι δι᾽ ἄλλο τι ἢ ὅτι εἰς ἡδονὰς ἀποτελευτᾷ καὶ λυπῶν ἀπαλλαγάς τε καὶ ἀποτροπάς
(354c).
193
οὐκοῦν τὴν μὲν ἡδονὴν διώκετε ὡς ἀγαθὸν ὄν, τὴν δὲ λύπην φεύγετε ὡς κακόν (354c).
194
ἐπεὶ εἰ κατ᾽ ἄλλο τι αὐτὸ τὸ χαίρειν κακὸν καλεῖτε καὶ εἰς ἄλλο τι τέλος ἀποβλέψαντες, ἔχοιτε ἂν
καὶ ἡμῖν εἰπεῖν: ἀλλ᾽ οὐχ ἕξετε (354d).
195
ἀλλ᾽ ὥσπερ ἀγαθὸς ἱστάναι ἄνθρωπος, συνθεὶς τὰ ἡδέα καὶ συνθεὶς τὰ λυπηρά (356a-b).
196
ἐὰν δὲ τὰ ἡδέα ὑπὸ τῶν ἀνιαρῶν, οὐ πρακτέα (356b-c).
197
ὅτε δὴ τοῦτο οὕτως ἔχει, τόδε μοι ἀποκρίνασθε, φήσω. φαίνεται ὑμῖν τῇ ὄψει τὰ αὐτὰ μεγέθη ἐγγύθεν
μὲν μείζω, πόρρωθεν δὲ ἐλάττω (356c).
198
καὶ τὰ παχέα καὶ τὰ πολλὰ ὡσαύτως (356c).
199
ἡ δὲ μετρητικὴ ἄκυρον μὲν ἂν ἐποίησε τοῦτο τὸ φάντασμα, δηλώσασα δὲ τὸ ἀληθὲς ἡσυχίαν ἂν
ἐποίησεν ἔχειν τὴν ψυχὴν μένουσαν ἐπὶ τῷ ἀληθεῖ καὶ ἔσωσεν ἂν τὸν βίον (356d-e).
200
τί ἂν ἔσῳζεν ἡμῖν τὸν βίον; ἆρ᾽ ἂν οὐκ ἐπιστήμη; καὶ ἆρ᾽ ἂν οὐ μετρητική τις, ἐπειδήπερ ὑπερβολῆς
τε καὶ ἐνδείας ἐστὶν ἡ τέχνη; (356e-357a).
201
ὑπερβολῆς τε καὶ ἐνδείας οὖσα καὶ ἰσότητος πρὸς ἀλλήλας σκέψις (357b).
202
ἐπεὶ δὲ μετρητική, ἀνάγκῃ δήπου τέχνη καὶ ἐπιστήμη (357b).
203
ἥτις μὲν τοίνυν τέχνη καὶ ἐπιστήμη ἐστὶν αὕτη, εἰς αὖθις σκεψόμεθα: (357b).
46

Se o autor do homônimo tinha consciência da tese do homem medida atribuída a


Protágoras, a exposição da reconhecidamente204 “fraca” posição dos muitos quanto ao
hedonismo colocaria em questão o próprio projeto educacional de Protágoras, por uma
limitação teórica: a vinculação da medida às opiniões dos homens.
No contexto do homônimo, a questão se limita ao debate conceitual e sobre os
resultantes de manter a coerência frente à posição hedonista. Mesmo os hedonistas seriam
obrigados a admitir o papel da episteme. Porém a discussão sobre a episteme é expressamente
autolimitada no homônimo.
Se arrastarmos, como suposição, a consciência do problema da justificação da verdade
que existe no contexto específico do Teeteto para um contexto do diálogo homônimo, podemos
supor que no homônimo há uma crítica implícita ao projeto educacional de Protágoras pela
simples elaboração de que “os muitos” pensam aquilo que Protágoras não pensar ser o caso.
Assim, Protágoras concordaria que eles – e suas percepções – não podem ser a medida do que
é bom, mas a discussão no homônimo não é avançada para esse tema.
Já no passo seguinte, após longo discurso crítico sobre a posição “dos muitos” de que
“seriam vencidos pelos prazeres” ou pelo que quer que seja, mesmo conscientes da medida do
que é bom, Sócrates convoca Hípias e Pródico para a conversa na defesa de que seus serviços,
bem como o serviço de Protágoras.
Eles sustentam juntos que “os muitos” se equivocariam em não entender que as
experiências que nomeiam de “ser vencido pelos interesses” não passa de ignorância. Trata-se
exatamente de não ter o domínio verdadeiro na consciência do que é melhor. Isso antecipa, ao
nível da narrativa, as falas de Sócrates, em especial no Górgias e no Fédon, sobre não fugir da
morte exatamente por saber que ela não é ruim como outros pensam.
Ou seja, mesmo que, ad argumentandum tantum, o aprazível fosse o bom, a questão
seria questão de conhecimento e “ser mais fraco que si mesmo” não seria outra coisa senão
ignorância e “ser mais forte que si mesmo”, sabedoria205.
Nesse contexto, Sócrates arremata conduzindo todos a afirmarem que a ignorância é
ter uma falsa opinião e falsear acerca de coisas de grande valor206.

204
Por Protágoras e Sócrates, como visto acima.
205
οὐδὲ τὸ ἥττω εἶναι αὑτοῦ ἄλλο τι τοῦτ᾽ ἐστὶν ἢ ἀμαθία, οὐδὲ κρείττω ἑαυτοῦ ἄλλο τι ἢ σοφία (358b).
Vale lembrar que a noção de “ser vencido por si mesmo” expressamente presente aqui reaparece em
República (430e) e em Leis (626e).
206
ἀμαθίαν ἆρα τὸ τοιόνδε λέγετε, τὸ ψευδῆ ἔχειν δόξαν καὶ ἐψεῦσθαι περὶ τῶν πραγμάτων τῶν πολλοῦ
ἀξίων (358c).
47

Note-se que, se destacarmos sabedoria como literalmente está descrito: “ser mais forte
que si mesmo”, a diferença entre o que aqui pode ser chamado de “força de espírito” e a longa
elaboração de “tripartição da alma”, que remete à República, se mostra bastante atenuada.
O autor do homônimo já enuncia pela boca de Sócrates que, de alguma forma, uma
pessoa excelente – mesmo no contexto dos pressupostos do hedonismo – precisaria ser
considerada alguém com uma espécie de domínio epistêmico da sua prática.
Seja como for, no contexto do homônimo, com a anuência geral sobre a tese da
prevalência da sabedoria e episteme, Sócrates finalmente retoma a discussão com Protágoras a
respeito da coragem.
Sob esse paradigma, munido dessas concordâncias, Sócrates parte para a definição de
temor como a expectativa de um mau207, enquanto que a coragem não poderia ser um homem
se dirigir a algo que teme208, mas exatamente um homem ser capaz de exercer os cálculos
necessários para compreender em que coisas ruins deve se arriscar lançar, tendo em vista coisas
boas.
Conceitualmente, isso significa que os corajosos são precipitados (ἴτας) em relação a
algo, enquanto que os aterrorizados o são em relação a outra coisa209.
Mas os covardes seriam precipitados (ἴτας) para as coisas audaciosas (τὰ θαρραλέα),
enquanto os corajosos seriam precipitados para as coisas terríveis (τὰ δεινά)210, apenas se fosse
concebível que as pessoas se dirigissem ao ruim, mas isso não ocorre, segundo o argumento
anterior211.
Com esse cabedal conceitual, Sócrates está apto a defender que tanto corajosos quanto
covardes pretendem se dirigir às mesmas coisas, o que pensam ser belo, bom e aprazível (ao
fim de um cálculo de razoabilidade sobre o que é bom).
Por isso, os corajosos são audaciosos em busca daquilo que reconhecem –
corretamente – como mais belo, melhor e, por consequência, mais (verdadeiramente)
aprazível212 e, por isso, não devem se envergonhar os corajosos nem do que temem (coisas
verdadeiramente ruins), nem de sua audácia (na direção de coisas verdadeiramente boas)213.

207
προσδοκίαν τινὰ λέγω κακοῦ τοῦτο (358d).
208
Pois ninguém se dirigia voluntariamente a um resultado total em que prevalecem os males, conforme
fora assentido antes por todos (358e).
209
ἐπὶ τί λέγεις ἴτας εἶναι τοὺς ἀνδρείους; ἦ ἐφ᾽ ἅπερ οἱ δειλοί; (...) οὐκοῦν ἐφ᾽ ἕτερα. (359c).
210
πότερον οἱ μὲν δειλοὶ ἐπὶ τὰ θαρραλέα ἔρχονται, οἱ δὲ ἀνδρεῖοι ἐπὶ τὰ δεινά (359a).
211
ὥστ᾽ εἰ τοῦτο ὀρθῶς ἀπεδείχθη, ἐπὶ μὲν ἃ δεινὰ ἡγεῖται εἶναι οὐδεὶς ἔρχεται (359d).
212
τί δ᾽ ὁ ἀνδρεῖος; οὐκ ἐπὶ τὸ κάλλιόν τε καὶ ἄμεινον καὶ ἥδιον ἔρχεται; (360a). O pressuposto de que
há prazeres ruins foi assentido anteriormente pelo próprio Protágoras.
213
οὐκοῦν ὅλως οἱ ἀνδρεῖοι οὐκ αἰσχροὺς φόβους φοβοῦνται, ὅταν φοβῶνται, οὐδὲ αἰσχρὰ θάρρη
θαρροῦσιν; (360a-b).
48

Por outro lado, os covardes, os temerários e os loucos, ao contrário, devem se


envergonhar tanto do que temem quanto do que se sentem audazes214.
E a audácia deles se dirige às coisas vergonhosas e coisas ruins não por outra coisa
além dela se basear em ignorância e deseducação215.
Portanto, coragem, ao fim e ao cabo, seria o mesmo que sabedoria relativa às coisas
(verdadeiramente) temíveis, o contrário, deseducação216.
Ao conduzir o diálogo assim217 Sócrates faz Protágoras, com resistência, admitir que
não existem os homens mais ignorantes que são os mais corajosos.
O diálogo se encerra com uma consideração de Sócrates de que a excelência só seria
ensinável se fosse considerada, in totum, conhecimento, sendo curioso que Protágoras tivesse
se posto no discurso contra a relação entre conhecimento e todas as partes da excelência. No
tema, Sócrates enuncia que faltou debater exatamente o que é a excelência, para dar conta do
assunto.
Protágoras, a quem o autor do homólogo concede uma última palavra, encerra fazendo
contundente elogio a Sócrates, o que não pode ser ignorado.
Protágoras diz que não se surpreenderia se Sócrates viesse a ser um dos mais bem
reputados em sabedoria218.

CONCLUSÃO: Unidade da excelência e tema do devir: hipótese ingressiva


Caso tomemos por metáfora que a estrutura do homônimo opera como uma espinha
dorsal, podemos dizer que, sob nossa leitura, o cérebro, restrito, porém vital, equivaleria à
temática da ensinabilidade da excelência.
Por sua vez, o encorpado sistema nervoso, assim considerado de maneira mais ampla,
seria composto pela discussão sobre o que seria a excelência política, a partir de considerações
lógicas e éticas.
Sócrates, em todas as secções em que aparece questionando, concentra-se na questão
da definição das chamadas partes da excelência e das suas relações entre si.

214
οὐκοῦν καὶ οἱ δειλοὶ καὶ οἱ θρασεῖς καὶ οἱ μαινόμενοι τοὐναντίον αἰσχρούς τε φόβους φοβοῦνται καὶ
αἰσχρὰ θάρρη θαρροῦσιν (360b).
215
θαρροῦσιν δὲ τὰ αἰσχρὰ καὶ κακὰ δι᾽ ἄλλο τι ἢ δι᾽ ἄγνοιαν καὶ ἀμαθίαν (360b).
216
ἡ σοφία ἄρα τῶν δεινῶν καὶ μὴ δεινῶν ἀνδρεία ἐστίν, ἐναντία οὖσα τῇ τούτων ἀμαθίᾳ (360d).
217
ἕν γ᾽, ἔφην ἐγώ, μόνον ἐρόμενος ἔτι σέ, εἴ σοι ὥσπερ τὸ πρῶτον ἔτι δοκοῦσιν εἶναί τινες ἄνθρωποι
ἀμαθέστατοι μέν, ἀνδρειότατοι δέ (360d-e).
218
καὶ λέγω γε ὅτι οὐκ ἂν θαυμάζοιμι εἰ τῶν ἐλλογίμων γένοιο ἀνδρῶν ἐπὶ σοφίᾳ. (361e).
49

Quando Protágoras toma a palavra, ele faz considerações lógicas análogas contra a
leitura de Sócrates sobre o poema de Simônides, imputando-lhe contradição.
Nesse trecho, Sócrates, conduz a leitura do poema para a afirmação de que se
Simônides for sábio, então no bojo de seu texto deve haver a diferenciação entre ser (em sentido
de permanência) e tornar-se/vir-a-ser, bem como não deve haver a afirmação de que os homens
fazem o ruim intencionalmente.
A fala socrática é consistente com o desenrolar do texto, em que, retomando a
discussão conforme aprovem a ele – tocando o tema das definições e suas relações –, Sócrates
reinsere a tese da impossibilidade do fazer ruim voluntário, por meio do qual fará Protágoras
admitir que não há corajosos – no sentido de pessoas que compartem de uma parte da excelência
humana – ignorantes.
No que tange a lógica interna da oposição entre Sócrates e Protágoras, parece que
Sócrates é representado como um pretenso seguidor do objetivo enunciado por Protágoras, que
é se tornar um propagador de excelência política.
O diálogo se conclui com uma expressão de Sócrates relevante de que ele, que entrou
questionando a ensinabilidade da excelência, agora encerrava a discussão parecendo próxima
de defendê-la, face a sua abordagem da relação entre excelência e episteme.
Nesse sentido, parece bastante atual a tese de Gagarin de que o texto mais aproxima
Sócrates e Protágoras do que normalmente se imagina.
Entretanto, o próprio diálogo parece jogar luzes numa pretensa diferença fundamental
entre Sócrates e Protágoras, no que parece uma intencional atitude do autor do homônimo em
poetar o que ele quer destacar como tal diferença.
O Sócrates personagem do homônimo – assim como diz Aristóteles no Metafísica Α,
acerca do Sócrates histórico – tem um penetrante interesse acerca das definições, que, se Kahn
está correto, guarda relação direta com a elaboração platônica das Ideias.
O homônimo, portanto, parece representar em narrativa que a tendência pelo
esclarecimento das definições direciona para uma pretensão de verdade objetiva que provoca
uma ruptura com Protágoras, não de finalidade (educação em vistas à excelência), mas de
pressuposto ontológico, para poder viabilizar a pretensão piadética.
Essa ruptura teórica é intensamente manifesta na discussão do Teeteto e, sobretudo, do
Sofista. O autor desses dois diálogos se vê na necessidade de justificar a possibilidade de um
factível conhecimento objetivo, contra o implícito “ceticismo avant la letre” (que provocaria a
impossibilidade de distinção de discursos falsos e verdadeiros).
Isso nos leva ao âmbito das relações do homônimo com o corpus.
50

A posição de Sócrates no homônimo apresenta, em alguma medida, compatibilidade


com questões da República, eis que no homônimo é tratada exatamente a necessidade de
considerar o comando da razão como inescapável da constituição de um homem politicamente
excelente.
Não só isso, mas também várias passagens do homônimo, especialmente nas partes
finais, são, no mínimo, enunciações de temáticas que permearão outros diálogos, inclusive os
que são regularmente entendidos como os de uma hipotética fase tardia.
Nomeadamente, podemos mencionar que a temática da distinção entre ser e dever-ser
é objetivamente enunciada no homônimo, ainda que isso não precise ser considerado uma
antecipação intencional de temáticas de outros diálogos do corpus, não se pode negar que no
homônimo há uma percepção do problema conceitual.
Por fim, o tema da falsa opinião a provocar todos os equívocos quanto à excelência
também remete, tematicamente, ao foco contido no Eutidemo e no Sofista sobre a possibilidade
do falso.
Além disso, o trato ad argumentandum tantum da tese dos hedonistas faz
considerações sobre a necessidade de uma “medida absoluta” oposta às aparências, que muito
longe de se prender a uma temática de diálogos considerados de fase média, é visível tanto no
óbvio tema central do Teeteto, quanto na oposição entre medida humana e divina apresentada
nas Leis.
Concluímos, portanto, que, se assiste razão em Kahn ao afirmar que o homônimo, entre
outros, guarda partilha temática, como texto de alguma forma “preparatório” para os diálogos
considerados de fase média, pela leitura unitária do homônimo há de se concluir que o mesmo
ocorre entre ele e diálogos considerados de fase madura.
Sem precisar que essa leitura implique em uma necessidade de abandono de qualquer
importância do estudo estilométrico, ela parece pôr à prova hipóteses de leitura do corpus que
destacam sobremaneira hipotéticas rupturas entre os diálogos, que podem distorcer
demasiadamente o conteúdo e possíveis ricas relações entre os textos.

BIBLIOGRAFIA:
FONTES PRIMÁRIAS
__________

FONTES SECUNDÁRIAS
__________

Você também pode gostar