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INSTITUTO DE ESTUDOS SUPERIORES DO MARANHAO

Curso de Teologia

Joel de Matos

O PAPA LEÃO XIII E AS QUESTÕES SOCIAIS

São Luís
2022
Joel de Matos

O PAPA LEÃO XIII E AS QUESTÕES SOCIAIS

Trabalho apresentado a disciplina de História da


Igreja Contemporânea, do Instituto de Estudos
Superiores do Maranhão, no curso de Teologia
como requisito para obtenção de nota.

Prof. Pe. Eliezer Paiva

São Luís
2022
INTRODUÇÃO

A Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra durante a virada do século XVIII


para o século XIX pode ser considerado como um evento histórico motriz a partir do
qual vários outros processos históricos se relacionam. O modo de produção foi
alterado permitindo avanços tecnológicos cada vez mais rápidos e níveis de
produção nunca vistos. A necessidade de matérias-primas e mercados
consumidores impulsionou o neocolonialismo / imperialismo visando os territórios da
África e Ásia. Amplas populações mudavam-se do campo para as cidades à procura
de trabalho e melhores condições de vida. O que encontravam, invariavelmente, por
sua vez, eram jornadas de trabalho extensivas, mal remuneradas e sem quaisquer
direitos trabalhistas.
Nesse contexto despontavam duas ideologias opostas: o socialismo (e sua
forma final: o comunismo) e o liberalismo. Cada qual possuía seu receituário para
resolver os problemas sociais e políticos que se colocavam diante das pessoas:
exploração desumana dos trabalhadores, falta de direitos básicos a saúde e
educação, sucessivas guerras etc.
Foi nesse contexto histórico que o Papa Leão XIII ensaiou, pela primeira vez
na história, não apenas tomar parte dos acontecimentos, mas formular acerca deles
um posicionamento magisterial fundamentado na teologia, na doutrina, nas
Sagradas Escrituras e nas ciências humanas e sociais. A encíclica Rerum Novarum
(1891) foi a primeira sobre questões sociais e políticas e funda – dentro do campo
da moral teológica – o que viria a ser entendido como Doutrina Social da Igreja. O
documento dialoga diretamente com as ideias socialistas e liberais a partir da
lamentável situação social em que se encontrava sobretudo a Europa.
1 ESQUEMA GERAL DA ENCÍCLICA

A Encíclica é dividida em pequenos capítulos subsequentes na ordem que


segue: Introdução; (1) Causa do conflito; (2) A solução socialista; (3) A propriedade
particular; (4) Uso comum dos bens criados e propriedade particular deles; (5) A
propriedade sancionada pelas leis humanas e divinas; (6) A família e o Estado; (7) O
comunismo, princípio de empobrecimento; (8) A Igreja e a questão social; (9) Não
luta, mas concórdia de classes; (10) Obrigação dos operários e dos patrões; (11)
Posse e uso das riquezas; (12) Dignidade do trabalho; (13) Comunhão de bens de
natureza e de graça; (14) Exemplo e magistério da Igreja; (15) A Igreja e a caridade
durante séculos; (16) O concurso do Estado; (17) Origem da prosperidade nacional;
(18) O governo é para os governados e não vice-versa; (19) Obrigações e limites da
intervenção do Estado; (20) O Estado deve proteger a propriedade particular; (21)
Impedir as greves; (22) Proteger os bens da alma; (23) O qualitativo do salário dos
operários; (24) A economia como meio de conciliação das classes; (25) Benefício
das corporações; (26) As associações particulares e o Estado; (27) As associações
operárias católicas; (28) Disciplina e finalidade destas associações; (29) Convite
para os operários católicos se associarem; (30) Salvação definitiva: a caridade.

1.1 O papel da Igreja na questão social

Os comentadores contemporâneos da Rerum Novarum parecem concordar


com o fato de que as bases teóricas que fundamentam o documento naquilo que
se relaciona com os conceitos próprios do léxico da sociologia e da economia
podem ser considerados ora frágeis e ora datados em nosso tempo. Em outras
palavras, para um leitor contemporâneo da Rerum Novarum, o que menos deveria
importar seria propriamente seu conteúdo social, visto que seria amplamente
aprofundado e qualitativamente desenvolvido em documentos posteriores.
Acrescente-se ainda o fato de que mais de um século nos separa do texto de Leão
XIII.
A principal contribuição do documento é inserir a Igreja como interlocutora na
questão social. O papa considera sua interferência legítima e necessária – e afirma:
“é com toda a confiança que Nós abordamos esse assunto [...] calarmo-nos seria
aos olhos de todos trair o Nosso dever” (8a). Isso se justifica no fato da Igreja ser (a)
reguladora de costumes, (b) de historicamente cuidar da sorte dos mais pobres, (c)
do seu desejo de que a “questão operária” se resolva da melhor maneira possível e
(d) por sua qualidade de mediadora entre o Estado, os patrões e os empregados.
Acrescente-se ainda que, no texto magisterial, destaca-se o fato de que o Evangelho
propiciaria doutrinas “capazes de pôr termo ao conflito ou ao menos de o suavizar”
(8b). Para o Papa a Igreja não só quer como igualmente pode contribuir no que se
refere à questão social.
A contribuição específica que a Igreja oferece na resolução da questão
operária se dá em três campos fundamentais: (a) doutrina; (b) orientações sobre a
vida e costumes; e (c) instituições benéficas. Quando se observa o conteúdo dessa
contribuição logo se poderá notar como parecem caducas, isto é, soluções datadas
e antigas. A doutrina é pré-conciliar, os costumes de um século atrás são muito
diferentes e a força / necessidade das instituições benéficas e caritativas numa
época já ciente do que sejam direitos sociais não são as mesmas. Assim, se o
conteúdo dessa contribuição eclesial para a questão social pode estar
comprometido, sua forma traz um caminho – uma ortopráxis – que pode ser aplicada
a qualquer conteúdo posterior da Doutrina Social: doutrina / ética / caridade. Se, por
exemplo, tomarmos a Laudato Si’ (2015), aí encontraremos uma doutrina, uma ética
e uma ação caritativa concreta proposta pela Igreja para a Igreja.
Isso leva Aquino (2019) a afirmar que “a importância dessa encíclica deve ser
medida tanto pelo impacto que ela produziu no final do século XIX na Igreja e na
sociedade (acontecimento), quanto por suas consequências ou pelo processo que
ela desencadeou (efeitos)” (p. 483). A Rerum Novarum deve ser tomada ora como
ponto de chegada e ora como ponto de partida. Ela é o ponto de chegada do
catolicismo social existente desde o começo do XIX e do projeto restauracionista de
Leão XIII. E é também o ponto de partida da nascente Doutrina Social da Igreja.
Dito de modo eloquente Sardica afirma que “Leão XIII reprometa-a a Igreja,
depois de um eclipse de cem anos, como aquela instância suprema sob cujas
diretrizes o Estado, os patrões e os operários deveriam atuar, com vista a uma
‘economia moral’ que haveria de produzir, com equilíbrio e realismo, uma sociedade
em harmonia e paz e uma ordem material justa” (2004, p. 39). Em outras palavras, a
Leão XIII insere a questão social como questão da moral cristã.
1.2 Confronto temático

Diante da temática específica da Rerum Novarum e partindo-se da realidade


concreta da sociedade brasileira contemporânea surgem algumas questões.
Haveremos de focar especificamente em duas: uma ad extra e outra ad infra. Numa
sociedade tão marcada pelo secularismo poderíamos nos perguntar se a Igreja
ainda possui alguma legitimidade para se posicionar como uma interlocutora na
questão social. Não caberia à religião envolver-se apenas em temas estritamente
religiosos? Bem se sabe como alguns posicionamentos eclesiais incomodam grupos
políticos e sociais ao ponto de, por vezes, estes chegarem a negar à Igreja o direito
de se expressar. O conhecido brado “aborto é questão de saúde pública e não de
Igreja”, por exemplo, explicita exatamente isso. Ou, para invertermos o espectro
político dessas críticas, como se acusa o Papa Francisco ou a CNBB de comunistas
por se posicionarem em favor do meio ambiente ou dos indígenas, por exemplo. E,
se algo ou alguém é comunista, para estes, não deve ser ouvido, mas, ao contrário,
eliminado.
Algumas razões que legitimavam o pronunciamento de Leão XIII em 1891
sobre a questão social podem ter mudado, mas outras foram acrescentadas e outras
ainda permanecem inalteradas. Tal como em 1891 continua sendo válido afirmar
que “a Igreja [...] haure no Evangelho” (8) ensinamentos e fundamentos válidos para
a questão social. Ainda há que se considerar o hercúleo esforço da Igreja em defesa
dos mais pobres por meio da animação política ou da ação caritativa. Ainda
acreditamos numa ética que não seja aquela distorcida pela sociedade de mercado,
mas que “reduz o desejo excessivo das riquezas e a sede dos prazeres, esses dois
flagelos que frequentes vezes lançam a amargura e o desgosto” (15). Acrescente-se
ainda que negar à Igreja o direito de se posicionar quanto à questão social é atentar
contra o próprio estado democrático que pretendemos ser e construir.
Outra reflexão que a leitura historicidade da encíclica deve nos motivar se
refere especificamente ao papel da Igreja em nossa sociedade. O Papa Leão XIII
pronuncia-se em 1891 num contexto de profunda polarização sócio-político entre
liberais e socialistas. Seu documento, com elementos antissocialistas e antiliberais
(cf. AQUINO, 2019, p. 484), foi acusado de socialista pelos liberais e de liberal pelos
socialistas. O documento sofreu críticas já em seu tempo e pode-se dizer que Leão
XIII não viveu para testemunhar a resolução da questão operária a que se destinava
primeiramente sua encíclica. Ainda assim foi escrito, publicado, divulgado e
ensinado. E, apesar de tudo isso, colaborou, no horizonte da história, na construção
de uma sociedade mais justa a partir – também – da ação da Igreja e de seus
membros. “Calarmo-nos seria aos olhos de todos trair o Nosso dever” (8). O
propósito dessa reflexão seria contrapor à ação da Igreja no Brasil que, por meio de
seus bispos, padres e leigos por vezes se omitem receosa de críticas e desanimada
quanto ao seu próprio potencial. Que a coragem, a ousadia e o exemplo de Leão XIII
sirvam como advertência e fonte de ânimo evangélico.
CONCLUSÃO

O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são


inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os
pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma
aberração tal, que é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente
oposta, porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua
diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam
um todo exatamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim
também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se
harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio.
Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital
sem trabalho, nem trabalho sem capital. (PAPA LEÃO XIII, 1891) . Bem claro fica o
caminho indicado pela igreja para coibir a opressão aos trabalhadores: a lei. Aponta
a encíclica alguns dos principais problemas e condutas patronais a serem
combatidas, e também que, é a desproporção entre o rigor do trabalho e o salário a
principal causa das greves, que ameaçam a tranquilidade pública, sendo portanto
dever do Estado intervir prevenindo o “mal” fazendo uso da autoridade das leis.
REFERÊNCIAS

AQUINO JÚNIOR, Francisco. Rerum Novarum: um guia de leitura. REB,


Petrópolis, volume 79, número 313, p. 468-489, Maio/Ago. 2019.

LEÃO XIII. Rerum Novarum. Carta Encíclica sobre a condição dos operários. São
Paulo: Paulinas, 2009.

SARDICA, José Miguel. O legado histórico de Leão XIII e da encíclica Rerum


Novarum. Didaskalia, Lisboa, volume 34, p. 3-55, 2004.

PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da doutrina social da


igreja. São Paulo: Paulinas, 2011.

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