Você está na página 1de 4

16. O DOMINANTE JAKOBSON, Romn. O Dominante.

In: LIMA,
L.C. Teoria da Literatura em suas Fontes. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, v. 1, p.
Roman lakobson 485-491.

OS TR~S PRIMEIROS estágios da P~qUi~foram suma-


riamente caracterizados do seguinte -moôo:(1) análise dos aspectos
fônicos do trabalho literário; (2) os problemas deSfgnificado ~no in--
terior da trama da poética; e (3) -mtegração de' som e sentido num
todo ínseparãvel, Neste último estágio, a iaéiã de' áomill~ reve-
lou-se muito útil; foi uma das mais centrais e profícuas noções dentre
as elaboradas pela teoria formalista russa. Pode-se definir o domi- '
nante como sendo o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele
~ulamenta, determina e transforma os seus outros componentes., O
dominante garante a integridade da estrutura. l! ele que torna espe-
cífico o trabalho. O traço típico da linguagem "contida" é obvia-
mente seu padrão prosódico, a escrita em verso. Poderia parecer que
isto é uma simples tautologia: o verso é o verso. No entanto, deve-
mos nos lembrar constantemente de que o elemento que torna espe-
cífica uma determinada variedade de linguagem domina a estrutura
toda e assim sendo atua como seu constituinte obrigatório e inesca-
pável, dominando todos os elementos e exercendo influência direta
sobre cada um deles. Por sua vez, o verso não é apenas um con-

Originalmente escrito em tcheco, como conferência pronunciada


na Universidade Masaryk, em Bmo,:na primavera de 1935. Esta tra-
dução é feita de acordo com a versão em inglês, "The Dominant".
in Readings inrussian poetics, L. Matejka e K. Pomorska (eds.) , The
MIT Press, Cambr., Mass. 1971.
Os direitos da tradução foram graciosamente cedidos pelo autor.

485
I
ceito simples nem uma unidade indivisível. Ele é em si Um sistema substancialmente a estrutura do poema no que concerne à tessitura
de valores; e como em todo sistema de valores ele detém uma hierar •. - sonora, à estrutura sintática e elenco de imagens; altera também os
quia própria na qual existem valores superiores e mferiores e um critérios métricos do poema, sua composição e distribuição de suas
valor primeiro entre todos, o dominante, sem o qual (no interior da estrofcg. Na estética realista o dominante era a arte verbal e a hierar-
trama de um dado período literário' e uma determinada vertente quia dos valores poéticos modificou-se em coerência com isto.
artística) o verso nem pode ser concebido nem avaliado como verso. Acrescente-se que na medida em que tomamos o conceito de
dominante como ponto de partida, a definição de um trabalho ar-
Na poesia tcheca do século XIV, por exemplo, a característica maior .. tístico em comparação, com outras séries de valores culturais sofre
do verso não era o esquema silábico, mas a rima, pois havia poemas
com números diferentes de sílabas por versos (os chamados versos modificações substanciais. Por exemplo, a relação entre o trabalho
"desmedidos") que eram, apesar disto, aceitos como versos, ao mes- poético e outras mensagens verbais adquire uma demarcação mais
mo tempo em que os versos não rimados não eram tolerados. Em n,ítida. Considerar o trabalho poético equivalente a uma função esté-
contrapartida, na poesia tcheca realista da segunda metade do sé- tica ou, mais precisamente a uma função poética, enquanto lidamos
culo XIX, a rima se mostrava dispensável, enquanto que o esquema com matéria verbal, é algo que caracteriza as épocas em que se exalta
silábico aparecia como componente obrigatório e sem o qual o verso a "arte pura", a arte auto-suficiente, o princípio da "arte pela arte".
não era verso; para esta escola, o verso livre era algo tão inaceitável Em seus primeiros passos, a escola formalista ainda conservava alguns
quanto a arritmia. Na atualidade nem o padrão silábico nem o padrão traços típicos desta tendência. Mas esta é uma tendência indiscutivel-
de rima são-considerados obrigatórios para o verso; pelo contrário, mente equivocada: o trabalho poético e confina exclusivamente
t , ~ componente obrigatório é uma integridade de entonação: a ento-
à função poética; e e contem muitas outras funções além desta. Com
nação passa a ser o dominante do verso. Se estabelecêssemos compa- efeito, as intenções eu' trabalho poético-ffeqGentementemantêm
....
_.!~ções entre o verso medido e regular da 'antig.!l Alexandríada-fêliecã, uma relação de estreita proximidade para com a filosofia, a didática
.. os versos rimados do período realistaç 0_ verso rimado e medido da
social, etc. Assim como um trabalho poético não se encerra em sua
atuatiôãde, observaríamos que nos três casos os mesmos elementos ... função estética, as funções estéticas não se limitam ao trabalho oé-
-crtma:-esquema métrico e unidade entonacional) estariam Pres~es - ti~o; ~ursode umora or, a conversação co-;riqueira, os artigos
mas que haveria uma diferença na hierarquia de valores, com obriga-- ~ornal, os aniínciQ.s, um livro ciêblífic1l-:::::"tooos poôem conter
toriedades especííicas diversas e mudança -dos elementO"sconsiderados ! C0-E.~l_~açõesestéticªs,-,-expressar_ uma unção estéticã'e-freqtiente-
indispensáveis. A posição destes eleinentos específicos determina o ~_1idam ' com as palavras valorizando-as em si, para=etérrr-de+
sua fu çãa.referencíal. --- -,
papel e a estrutura dos demais componentes.
O dominante pode ser estudado não apenas no trabalho poético Em direta oposição ao ponto de vista monístico rígido, está a
de um artista isolado, de um dado cânone poético ou entre as normas visão mecanicista, que reconhece a multiplicidade das funções de um
de determinada escola poética, mas também na arte de uma época, trabalho poético e o considera (intencionalmente ou não) como um
então encarada como um todo particular. I! evidente, por exemplo,
, l ,
aglomerado mecânico de funções. Uma vez que o trabalho poético
que na arte da Renascença o dominante, o cume dos critérios esté- tem também uma função referencial, alguns defensores do segundo
ticos do tempo, estava nas artes visuais. Outras artes orientavam seus ponto de vista às vezes o consideram como sendo um documento da
próprios caminhos na direção das artes visuais e eram valorizadas história cultural, das relações sociais, da biografia. Contrastando com
de acordo com a proximidade que alcançavam em relação ao objetivo o monismo e o pluralismo unilaterais, há um ponto de vista que
que visavam. Por outro lado, na arte do Romantismo, o valor su- associa uma consciência das múltiplas funções dos trabalhos poéticos
premo esteve no terreno da música. Assim, a poesia romântica tam- com uma compreensão de sua integridade, quer dizer, da função
bém se orientou na' direção da música: a poesia romântica é dirigida que lhe confere unidade e lhe é sobredeterminante. Segundo tal ponto
para a música, seu verso se concentra no musical, com uma entona- de vista, um trabalho poético não pode ser considerado como cum-
ção que procura imitar a melodia musical. O foco sobre o dominante pridor de uma função estética, apenas, ou de uma função estética
- dado que é na realidade externo ao trabalho poético - altera associada a outras funções; o trabalho poético se diria então uma

486 487
vv~'" - 'f
\ mensagem verb~l ~ue ~,:m _na estética a sua função dorninnnt . Evi- ma de um gênero poético determinado; mais: a modificação altera a
. entem~nte os smais que-ªpo~tam para a intrumentalizaçã da fuiição hierarquia dos gêneros poéticos e simultaneamente a distribuição cios
~~são imutáveis nem_se.!l.!p.!'~_uniformes. Cada cânone recursos artísticos entre gêneros. Gêneros que apareciam inicialmente
poético concreto, cada série temporal de normas poéticas - por sua como vias secundárias, variantes subsidiárias, aparecem agora na li-
~-=-Compreende elementos específicos e indispensáveis s m os nha de frente, enquanto gêneros tidos como canônicos passam para
:- quais o trabalho não pode ser identificado como poético. a retaguarda. Vários trabalhos da escola formalista tratam períodos
~ A definição da função estética como sendo o dominante num da história da literatura russa sob este ponto de vista. Gukovskij
trabalho poético nos permite determinar a hierarquia das diversas analisa a evolução da poesia no século XVIII; Tynjanov e Ejxen-
funções lingüísticas que ocorrem no trabalho poético. Na função baum, juntamente com alguns discípulos estudam a evolução da prosa
referencial o signo tem uma conexão interna mínimá com o objeto e da poesia russas na primeira metade do século XIX; Viktor
....:.aesignado.!-,pelo que- o signõ como tal se fêVesteâc importância mí- Vinogradov estuda a evolução da prosa russa a partir de Gogol:
nima; por seu turno, a função expressiva exige uma relação mais Ejxenbaum estudo a evolução da prosa de' Tolstoj em comparação
íntima e direta entre signo e objeto e, portãnto, requer maior atenção com a prosa russa e européia moderna. A imagem da história da
"'}Yafãêom a estrutura interna do signo. Em comparação com a lin- literatura russa se modifica substancialmente; torna-se incompara-
guagem referencial, a linguagem emotiva - que desempenha pri- velmente mais rica e mais monolítica, mais sintética e ordenada do
mariamente uma função expressiva - costuma estar mais próxima que o eram os membra disjecta do círculo erudito literário de antes.
da linguagem poética (que visa precisamente ao signo como tal). As Mas os problemas da eV<::JJução~ª-~ljmi.!.al.:n à história literária.
linguagens poética e emotiva freqüentemente s~ superpõem, razão Surgem também qY.e_stões relativas a alterações das relações entre
pela qual são também freqüentemente tomadas uma pela outra. Se --;rte;--individ.1!ai~~ neste aspecto ~ ~xame ~cu~ado de regiões de tran~-
numa mensagem verbal a função dominante é a estética, tal men-
sição é 2articularn~~ f'érttl;Por exemplo, urna análise da região
sagem pode, com certeza, utilizar muitos instrumentos da linguagem
expressiva; mas todos estarão submissos à função decisiva do tra-
-Te trãll';lção entreplntura e poesia - como é õC;-;o d~ilustração -- -
-OU--Uma análise dã regfãoÍrnítrôfe e~tre músic~ e poesia, como na
balho, isto é: deixam-se transformar pelo dominante.
As pesquisas referentes ao dominante tiveram resultados im- romança.
portantes para a visão formalista da evolução da literatura. No caso Finalmente, o problema das modificações nas alterações mú-
da evolução da forma poética, não se trata apenas do aparecimento ,----- - --
tuas entre as artes e outros domínios culturais próximos entre si apa-
-.
e da extinção de determinados elementos, mas também de desvios nas
relações mútuas entre os diversos componentes do sistema; em outras ~
/""
rece especialmente
v e outros
------- ----
no. que concerne às relações entre a literatura
tipos de mensagens verbais. Aqui, a instabilidade dos limi- J

palavras, desvios do dominante. Considerada uma série de normas r t;S,' a alteracão de contexto e de extensão erTiSefOres inâividuais,
poéticas - ou, mais especificamente - uma série de normas poéticas r parece especi~lmente elucídativa. OS-.$êner~cionais mostram um
válidas para determinado gênero poético, vemos que elementos que interesse especial para os pesquisadores. Em certos períodos eles Io-
inicialmente apareciam como secundários passam a essenciais e pri- -;;; considerados extraliterários e extrapoéticos enquanto em outros
mários. Por outro lado, elementos que apareciam como dominantes podem preencher importantes funções literárias, por conterem ele-
passam a subsidiários e opcionais. Nos primeiros trabalhos de Sklo- mentos que logo virão a ser exaltados pelas "belas letras", ao mes-
vskij, definia-se o trabalho poético como simples soma de recursos
mo tempo em que as formas literárias canonizadas não contam com
artísticos e o evoluir do poético aparecia como sendo apenas a subs-
tituição de alguns desses recursos. Com o ulterior desenvolvimento
•. eles. Esses gêneros transicionais são, por exemplo, as várias formas
de littérature intime - cartas, diários, anotações, narrativas de via-
~o formalismQ,~giu a conce ção recisa do trabalho p.QélIco corr1o
gens, etc. - que em certas fases (como na literatura russa da pri-
slstema estruturado, uma série regular e hierarquicamente ordenada>
e recursos artístif..os. A evolução poéticã-é um desvio nesta hierar- • meira metade do século XIX) cumprem papel de destaque entre
quia. A hierarquia dos recursos artísticos se modifica d.entro da tra- os valores literários.
C 11.. <Ã.. / .' (.-llr) : l,,';\.' , \;9-,) 489
488 v '112r"- {}
Em outras palavras, desvios contínuos no sistema de valores ar-
cebe a renovação. Os estudos formalistas trouxeram à luz o fato de
tísticos levam a desvios contínuos na avaliação de diferentes fenô-
que este simultâneo manter a tradição e fugir dela compõem a essên-
menos artísticos. Valores que segundo o ponto de vista de um sistema
cia de todo novo trabalho artístico.
"velho eram tidos como desprezíveis ou considerados imperfeitos, ma-
téria de diletantes, aberrações ou pura e simplesmente erros, heresias
Tradução
ou sinal de decadência podem aparecer, à luz de um sistema novo,
Jorge Wanderley
como valores totalmente positivos. Os versos dos poetas (líricos do
romantismo russo tardio) Tjutcev e Fet foram criticados pelos crí-
ticos realistas que neles viram erros, descuido, etc. Turgenev, que
publicara esses versos, corrigiu seu ritmo e estilo para melhorá-Ios e
ajustá-Ias à norma vigente. A edição que daí resultou passou a ser a
versão. canônica e somente na modernidade os textos originais foram
reabilitados e reconhecidos como um passo inicial na direção de uma
nova forma poética. O filólogo tcheco J. Král rejeitou os versos de
Erben e Celakovsky, considerando-os errados e ultrapassados - se-
gundo o ponto de vista da escola realista - enquanto a modernidade
exalta esses mesmos versos precisamente por causa daquelas carac-
terísticas em nome das quais haviam sido condenados pelo cânone
realista. O trabalho do grande compositor russo Musorgskij não cor-
respondia às exigências da instrumentalidade musical vigente no final
do século XIX e Rimskij-Korsakov, mestre contemporâneo da
técnica de composição, remodelou-os segundo o gosto que à época
prevalecia; a nova geração, no entanto, recuperou os valores rebeldes
decorrentes da ausência de sofisticação de Musorgskij suprimindo os
retoques de Rimskij-Korsakov de composições como o "Boris Go-
dunov", por exemplo.
---- O desvio e a transformação das relações entre componentes ar-
tísticos individuais passou a ocupar um lugar central nas. investiga-
ções formalístas, No campo da linguagem poética essas investigações
demonstraram uma importância que se estCtldeU à pesquisa lingüís-
tica em geral por haver introduzido maneiras de superar e resolver
os hiatos entre o método histórico diacrônico e a Si.nclilliTil do cóifê "
ansversal no temJ)o. A pesquisa formalista demonstrou claramênte
que o esvio e as modificações não são meramente dados históricos
(primeiro havia A, depois AI apareceu em seu lugar), mas sim que Io
desvio é também um fenômeno sincrônico de experiência direta, um
..
valor artístico altamente relevante. O leitor de um poema ou quem
contempla um quadro tem vividamente em seu espírito a presença
de duas ordens: o cânone tradicional e a novidade artística que é um
desvio em relação a ele. h contra a base de tal tradição que se con-

490
491

Você também pode gostar