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ISSN 2318-8014
Cristina Gazzana * a
Beatriz Schmidt b
a
Graduação em Psicologia pela Faculdade da Serra Gaúcha (FSG).
b
Psicóloga, Especialista em Saúde da Família e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Professora no Curso de Graduação em Psicologia da FSG. Endereço eletrônico:
beatriz.schmidt@fsg.br.
1 INTRODUÇÃO
limitar a relações terapêuticas. Portanto, o presente artigo almeja lançar luz a novas
compreensões sobre a relação humano-animal de estimação, bem como sobre as
características dessa nova configuração familiar, em que os animais podem ser inseridos, por
exemplo, para lidar com o “ninho vazio”1, bem como com o sentimento de solidão
experienciado por pessoas idosas ou solteiras.
Nesse contexto, o presente trabalho tem como tema central as novas configurações
familiares e a relação com animais de estimação em famílias multiespécie. Em particular,
busca-se investigar o vínculo afetivo entre homem e animal de estimação no ambiente
familiar, assim como a importância dessa relação segundo as percepções dos humanos que a
vivenciam. Com o intento de melhor compreender o contexto de inserção dos participantes,
serão analisadas também variáveis biosociodemográficas.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Freud, Klein e Baranger referiram em seus estudos a importância que atribuíam aos
vínculos afetivos, contudo, sem fazer uso da terminologia atual. Dentre tantas contribuições,
destaca-se Bion, o qual sistematizou e aprofundou o conceito, definindo vínculo como sendo
“elos de ligação – emocional e relacional – que unem duas ou mais pessoas, ou duas ou mais
partes dentro de uma mesma pessoa” (apud ZIMERMAN, 2010, p. 23).
A partir da classificação de vínculos e dos estudos realizados por Bion, Zimmermann
(2010) elencou quatro tipos fundamentais que estarão presentes concomitantemente ou não
em toda e qualquer relação: vínculo do amor (demanda por amor, diferentes formas de amar e
1
Expressão utilizada por diversos autores para definir o desconforto emocional e/ou sofrimento dos pais com a
saída do último filho de casa.
2
Pet: substantivo da língua inglesa traduzido para o português como “animal de estimação”.
Estados Unidos (224,3 mi) e Reino Unido (148,3 mi). No entanto, está em segundo
lugar quando se trata de cães e gatos (37,1 milhões e 21,3 milhões respectivamente),
somente atrás dos Estados Unidos (ABINPET, 2013).
destaca-se que, muitas vezes, “animais de estimação são vistos como tão próximos quanto „o
próprio filho‟ pelos humanos” (SANTOS, 2008, p. 23).
Archer (apud CANANI; FARACO, 2010), em estudo no qual aplicou um questionário
para verificar a possível ocorrência de relações de apego com um cachorro de estimação,
constatou que há um nível de apego elevado entre os donos e seus animais de companhia,
salientando que a maioria das pessoas entrevistadas os considerava parte importante em sua
vida, pois esta convivência era responsável por promover uma sensação de conforto. Esse
mesmo autor identificou que a morte do animal de estimação por pessoas que já haviam
perdido familiares próximos se caracterizou pela dor do luto e por níveis de sofrimento
semelhantes. Outros estudos demonstram como é forte o vínculo criado nessa interação.
Santos (2008, p. 24) acrescenta que angústias, pensamentos e sentimentos estão envolvidos no
processo de luto e acompanham a despedida de uma relação estabelecida.
Ariès (1981) mencionou processo semelhante, porém fazendo referência ao papel da
criança frente à família na sociedade medieval, em que o sentimento de infância não tinha
significado expressivo. O luto pela perda de um filho pequeno, por exemplo, era sentido tão
somente como algo a lamentar, ou seja, as crianças em idades iniciais “não contavam”. Assim
que a criança adquirisse autonomia da mãe ou de sua ama ela seria vista socialmente como
adulta e tratada dessa forma. Apenas em meados do século XVI passou a ser expresso algum
tipo de afeição pela criança, que assume seu papel como tal e ganha espaço em novos
contextos e na família.
Da maneira relativamente semelhante, a “transformação” da representação do animal
para o papel de estimação parece também alterar a sua relação com o ser humano e com a
família a que passa a pertencer. Desse modo, ao longo do tempo, essa também vem se
constituindo como uma relação que ganha novas formas e valores, gerando ainda novos
sentimentos e vínculos, o que sugere a necessidade de estudos que favoreçam a sua
compreensão, tal como o ora apresentado.
3 METODOLOGIA
3.2 Participantes
A amostra foi composta por 40 (quarenta) adultos (isto é, pessoas maiores de 18 anos
de idade), de ambos os sexos, que possuíam cachorros ou gatos e que fizeram uso, na
condição de clientes, de três pet shops que comercializavam produtos e serviços destinados a
animais de pequeno porte, localizadas em uma cidade da Serra Gaúcha com aproximadamente
500 mil habitantes, durante o mês de outubro de 2014. Tal amostra se caracterizou como não
probabilística, composta por conveniência (Malhotra, 2001).
Por se tratar de uma pesquisa de levantamento, com análise quantitativa dos dados,
foram utilizados dois questionários compostos por perguntas objetivas. A aplicação ocorreu
de forma individual, garantindo o anonimato do participante. Segundo Oppenheim (apud
ROESCH, 1999), o uso de escalas apresenta a vantagem de medir várias dimensões de uma
questão, quando essa possui um caráter complexo ou multifacetado.
A pesquisadora (primeira autora do presente artigo) abordou os clientes de cada pet
shop por um dia inteiro, informando os objetivos da pesquisa, bem como questionando se
havia interesse por parte dos sujeitos em participar da mesma. Mediante o aceite e a assinatura
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foi entregue em um primeiro
3
“Relação de convivência estabelecida entre duas pessoas que se unem com o objetivo comum de constituir uma
família, podendo ocorrer formalmente (por meio do casamento civil e/ou religioso) ou de maneira informal
(mediante o que se denomina juridicamente no Brasil por „união estável‟)” (SCHMIDT, 2012, p. 24).
4.2 Caracterização das percepções dos participantes sobre o vínculo afetivo com os
animais de estimação
dos Namorados. No que tange aos resultados desse estudo, apesar de o número de
participantes que afirmou que trocaria a companhia ser menor em comparação ao número que
referiu que não trocaria, a autora questionou se o carinho e a atenção do pet poderiam
substituir o afeto vindo de um relacionamento com outra pessoa. Em seu ponto de vista,
controlar o animal de estimação é mais fácil e confortável, vez que ele não discute e
possivelmente não trocará seu dono por outro, “mas isso basta?”4 (p. 25).
Ao questionar se o animal de estimação recebe o participante quando esse retorna ao
domicílio familiar, 87,5% informaram que quase sempre. Ademais, 62,5% dos respondentes
cumprimentam primeiramente o pet nessas situações, antes mesmo de se aproximar de
qualquer outro membro da família. Com relação ao animal de estimação prestar atenção e
obedecer rapidamente, 50% afirmou que quase sempre e apenas um (2,5%) assinalou que
quase nunca.
Dos 40 participantes, 77,5% referiram falar com seu animal de estimação, 52,5%
afirmaram quase sempre mostrar fotos do animal de estimação para amigos e 40%
mencionaram fazer confidências ao pet. Chama a atenção que de oito respondentes do sexo
masculino, seis (75%) foram os que assinalaram quase nunca trocar confidências, ao passo
que das trinta e duas mulheres foram apenas sete participantes (21%) que pontuaram nunca
trocar confidências. Para Prato-Previde et. al. (2006), as mulheres se utilizam da linguagem
como ferramenta relacional, apresentando maior interação verbal também com os animais de
estimação. Sendo assim, essa diferença encontrada entre pessoas do sexo masculino e
feminino no estudo ora apresentado parece encontrar amparo na literatura sobre a temática.
No tocante aos sentimentos despertados nessa relação, 45% dos respondentes se
sentem tristes quando separados ou distantes fisicamente de seu animal de estimação. Do
mesmo modo, 40% procura o animal para se sentir melhor nas ocasiões em que se encontram
abatidos. Esse resultado parece coadunar com o fato de 57,5% dos participantes acreditarem
que o animal de estimação é sensível as suas variações emocionais.
Com base nesses resultados, é possível refletir que estabelecer uma relação
interpessoal atualmente não se constitui em tarefa fácil, uma vez que requer investimento e
compreensão mútua das partes envolvidas, podendo gerar benefícios, mas também dor e
sofrimento. Tais sofrimentos podem ser causados por várias circunstâncias, como os términos
dos relacionamentos, a rejeição, a traição e, ainda, a dor ou a ansiedade frente à mudança, ou
seja, frente ao desenvolvimento e às transformações associadas a um relacionamento
4
Esse questionamento será retomado posteriormente no presente estudo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diferentes autores pontuam que os animais de estimação ganham cada vez mais
espaço e importância nas famílias contemporaneamente. Nesse sentido, indicativos apontam
para o fortalecimento de uma relação em que o animal se torna um membro familiar
(FARACO, 2008). Os resultados obtidos por meio da pesquisa ora apresentada corroboram
achados de estudos anteriores, uma vez que 80% dos participantes afirmaram que consideram
o animal de estimação como um membro de sua família.
Dotti (2005) menciona a relevância de pesquisas a fim de mensurar os níveis de
vinculação entre casais sem filhos e seus animais de estimação, possibilitando uma descrição
das mudanças percebidas no mundo contemporâneo. Porém, nesse estudo não prevaleceu a
contextualização específica de casais que não possuam filhos, uma vez que na
contemporaneidade não é possível afirmar que exista um modelo dominante ou padronizado
de família. Dessa forma, torna-se importante refletir acerca do que pontuam Rios e Gomes
(2009) quanto aos novos arranjos familiares e a constituição da conjugalidade, independente
de gênero, em que pode ou não existir a parentalidade.
Segundo Faraco (2008), pesquisadores que também analisam a família multiespécie
assinalam a importância de revisar o conceito de família, uma vez que os animais demonstram
a capacidade de vivenciar emoções, de perceber e de sentir, assim como os humanos.
Considera-se importante salientar que os respondentes, de forma geral, aceitaram prontamente
e de modo bastante entusiasmado participar da presente pesquisa. Constatou-se que os
participantes se demonstraram motivados a poder expressar seu vínculo afetivo na relação
com o animal de estimação. Não houve qualquer contraponto ou questionamento negativo no
momento da coleta de dados, ou mesmo após a aplicação dos questionários.
Nesta pesquisa foi possível perceber que os animais ofertam amor e companhia sem as
mesmas exigências dos seres humanos, aceitam sem julgar; despertando características como
instinto e lealdade. Diferentes autores já apontaram para os benefícios desta relação, que vão
desde a saúde física à mental e emocional, conforme descrito anteriormente (ALMEIDA et
al., 2009; SANTOS, 2008; CAETANO, 2010; HEIDEN; SANTOS, 2009).
No atinente às limitações do presente estudo, ressalta-se dificuldade para obtenção de
produções científicas brasileiras, pois há escassez de publicações – notadamente na área da
psicologia – concernentes à família e as suas relações com os animais de estimação.
Constatou-se, por exemplo, maior quantidade de publicações em periódicos da medicina
veterinária, da antropologia e da sociologia, abordando os efeitos que o convívio com o
6 REFERÊNCIAS
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