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Resumo
Apresenta resultados de uma pesquisa que investigou as representações de “aluno
da escola pública” construídas por professores da rede pública de ensino fundamental do
Rio de Janeiro. Utilizando a abordagem estrutural de Abric, concluiu-se que o núcleo da
representação é constituído pelos elementos pobre e aprende a “se virar” sozinho. Cote-
jando-se estes resultados com os obtidos nas etapas anteriores da pesquisa, observa-se
que, para os professores, o aluno tem que aprender a “se virar” sozinho porque é pobre e
a pobreza implicaria desagregação familiar e luta pela sobrevivência, impedindo os pais
de oferecerem aos filhos a atenção de que necessitam. Dadas todas estas características,
esse aluno representaria um desafio para os professores, desafio este que eles se sentem
impotentes para enfrentar.
The article presents a research that investigated the representations of the “public
school student” constructed by public elementary school teachers of Rio de Janeiro. Using
the structural approach proposed by Abric, one concluded that the nucleus of the
representation is constituted by the elements poor and learns to make it on his own.
Comparing these results with those obtained in the previous steps of the research, it can
be observed that, to the teachers, the student has to learn to make it on his own because
he is poor and poverty would imply family desegregation and struggle for survival,
preventing the parents from providing their children with the attention they need. Given
all those characteristics, this student would represent a challenge to the teachers, but this
is a challenge they feel they are impotent to cope with.
Keywords: social representations; public school student; family and school; school failure.
*
Pesquisa apoiada pelo Con-
selho Nacional de Desenvol-
vimento Científico e Tecno-
lógico (CNPq).
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do meio em que vivem. A primeira atri- – Eles dizem: ah, eu quero ser fazer me-
bui a esta o desinteresse dos alunos pelo dicina, ser médico. Eu fico com von-
estudo; a segunda a relaciona ao valor tade assim de rir e de chorar ao mes-
que as crianças atribuem ao espaço da mo tempo quando eu escuto um ne-
escola: gócio desses... [...] Eu me sinto meio
num filme de Fellini quando eu escu-
– Se ele vai morrer daqui a pouco com to um negócio desses na periferia...
um tiro, vai ser um empacotador de co- Juro por Deus!
caína.… então não vale a pena estudar...
– O horizonte deles é bem pequeno; tipo
– Eu acho que [o que eles valorizam] é o assim, se o pai é mecânico, eles acham
espaço e a tranqüilidade da escola. Eles que o máximo que eles podem ser é
buscam na escola uma tranqüilidade mecânico. O horizonte deles é bem
que eles não têm nos lugares onde eles restrito.
moram, por causa da violência. [...] Eu
acho que, na cabecinha deles passa que Quanto às expectativas das própri-
aqui a bala não vem, aqui o assaltante as professoras com relação aos seus alu-
não entra, a polícia não entra [...] é o nos, elas são, em sua maioria, extrema-
espaço que eles precisam pra correr, mente pessimistas, indicando que a
pra brincar, é o espaço dele, que ele lá perpetuação da situação de pobreza lhes
fora não está tendo. parece um destino inexorável. A frustra-
ção e a impotência das professoras di-
Quanto aos conhecimentos que os ante das dificuldades da tarefa que lhes
alunos trazem para a escola, as profes- cabe estão expressas nas falas que se
soras se referem de maneira vaga a “co- seguem: 4
nhecimentos da própria comunidade” –
que geralmente se resumem a música, – Olha, eu não vejo um horizonte [...].
dança (samba, capoeira), religião e, no O número de alunos que passaram
caso das escolas rurais, conhecimentos pelas minhas mãos, o futuro de mui-
relativos a plantas e animais – e, tam- tos que eu vi, [...] ao abrir o jornal e
bém, a experiências adquiridas no tra- ver lá [como vítima ou agente da vio-
balho e na vida cotidiana (fazer troco) e lência]. Eu falo que eles têm capaci-
a informações veiculadas pela televisão. dade, conto casos de pessoas pobres
Estas últimas, porém, são bastante que venceram na vida, que a gente tem
criticadas: que ter determinação, garra! [...] Todo
dia eu falo a mesma coisa pra ver se,
– A escrita é péssima, mesmo porque o de repente, eu consigo lançar alguma
vocabulário não é bom. Eles vêem tele- coisa pra ficar…
visão, todos têm televisão, mas vêem é
Ratinho Livre, Gugu, Faustão. [...] Então – Sou até muito nova no magistério pra
isso é a bagagem deles. estar assim tão desanimada, né? Mas
eu vejo muito pouco, muito pouco, a
Indagados sobre as aspirações dos perspectiva é mínima. Porque eu vejo
alunos, as professoras indicam priorita- que, a cada ano, o número de repeten-
riamente questões ligadas a uma futura tes aumenta, o número de alunos den-
profissão e a continuidade dos estudos. tro da sala aumenta... Eu estou muito
Entre as profissões destacam as opções desgastada [...] Não é nem o esgotamen- 4
As descrições feitas pelos
professoras sobre como se
por profissões liberais (médico, profes- to físico, nem o esgotamento mental, sentem atualmente em seu
sor, veterinário) e glamurosas (atriz, can- mas o esgotamento emocional, a carga trabalho são muito seme-
lhantes aos sintomas do "de-
tora, jogador de futebol, piloto de Fór- emocional... samparo adquirido" (learned
mula 1), ou então dizem que eles falam helplessness) descritos por
em seguir a profissão dos pais (pedrei- As falas que procuram ser otimistas Seligman (1977). Segundo
esse autor, o desamparo é um
ro, carpinteiro, etc.). As professoras pa- parecem revelar mais um desejo do que estado psicológico que se ca-
recem confusas com relação a essas as- propriamente uma expectativa: racteriza por depressão, an-
siedade, sentimento de im-
pirações, uma vez que as primeiras são potência e passividade e que
consideradas pouco realistas e as últi- – Eu gostaria de poder oferecer a essas se manifesta em decorrência
de situações problemáticas
mas, falta de ambição, como indicam as crianças o melhor, eu gostaria que eles que afetam o sujeito mas es-
falas que se seguem: aprendessem assim... a se virar no tão fora do seu controle.
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solicitou-se a cada professor que separas- pesos crescentes aos itens em cada uma
se os 8 que considerava mais caracterís- das quatro etapas de escolhas, de modo
ticos do objeto. Tomando-se apenas os 8 que estes correspondessem à importância
elementos selecionados, recomeçou-se a atribuída ao item pelo sujeito. Assim, se
operação, pedindo-lhe que escolhesse os o item que figurava entre os 8 elementos
4 mais representativos, e assim sucessi- selecionados como os mais significativos
vamente, até se chegar àquele considera- entre os 16 apresentados recebia peso 1;
do o mais representativo do objeto. Obte- se permanecia entre os 4 últimos, recebia
ve-se, então, uma classificação, por ordem peso 2; e assim por diante. A partir do
de importância, do conjunto de elemen- cálculo da freqüência ponderada, foi pos-
tos apresentado. sível estabelecer a classificação dos itens
Para analisar esses resultados, apurou- segundo a importância atribuída pelos
se, primeiramente, a freqüência de cada grupos. Os elementos que obtiveram va-
elemento nas quatro escolhas sucessivas, lores mais altos na hierarquia são aque-
isto é: os 8 elementos mais significativos; les que têm maiores probabilidades de
destes, os 4 mais significativos; destes, constituir o núcleo central da representa-
os 2; até se chegar ao mais significativo ção. Os elementos mais destacados são
dos elementos apresentados. Atribuiu-se apresentados na Tabela 3.
Ordem Elementos
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com que eles sejam carentes de afeto e suprir as carências e despertar o inte-
que tenham que aprender a “se virar” resse dos alunos pelos conteúdos que
sozinhos (conforme indicado nas entre- julgam essenciais à superação de sua
vistas e nos pareamentos). Dadas todas situação atual, esse esforço nunca é su-
estas características, esse aluno repre- ficiente, porque grande parte do pro-
senta um desafio para o professor (ele- blema está em outras esferas que fogem
mento destacado na hierarquização). En- ao seu controle. Como disse uma pro-
tretanto, segundo o que foi evidenciado fessora, “o mundo aí fora é muito mais
nas entrevistas, este é um desafio que forte”. Tais resultados confirmam a
os professores se sentem impotentes conclusão de estudo realizado por Melo
para enfrentar. (1998), segundo a qual o aluno pobre é
percebido como não tendo condições
de competir com alunos de origem so-
Conclusões cial superior.
O quadro aqui descrito parece expli-
Considerando os resultados obtidos car por que os professores se mostraram
nas diferentes etapas deste estudo, somos tão ambíguos quanto às aspirações dos
levados a concluir que, para os professo- alunos, tão pessimistas quanto ao futuro
res que participaram do nosso estudo, o deles e tão evasivos quanto às suas pró-
aluno típico da escola pública é hoje a cri- prias expectativas com relação a esses
ança de família pobre que luta pela so- alunos. Como vimos, as falas oscilam
brevivência e dá pouca ou nenhuma as- entre expectativas extremamente pessi-
sistência aos filhos, delegando à escola mistas e vagos desejos, “sonhos”, sem
funções que tradicionalmente cabem à muita esperança de concretização, o que
família. Esta imagem, como vimos, está é denunciado pelo uso do imperfeito (“eu
muito distante daquelas que os professo- queria”, “eu gostaria”).
res concebem como ideal. As baixíssimas expectativas das pro-
Tal situação, aliada à crescente ca- fessoras sobre o “aluno da escola públi-
rência de recursos materiais e humanos ca” constituem um dado preocupante.
existente nas escolas, faz com que esses Como foi anteriormente mencionado, a
profissionais vivenciem uma situação de vasta literatura de pesquisa sobre
desamparo, por ter que assumir respon- interações em sala de aula indica, de
sabilidades cada vez maiores, contando modo consistente, que as baixas expec-
com apoio cada vez menor. Além das fun- tativas dos professores freqüentemente
ções que cabiam à família, tarefas que resultam em menores oportunidades
eram desempenhadas por inspetores, para aprender e diminuição da auto-es-
pessoal de secretaria e mesmo por ser- tima dos alunos sobre os quais se for-
ventes foram sendo transferidas aos pro- maram essas expectativas, depreciando
fessores, à medida que aqueles profissi- ainda mais o desempenho desses alu-
onais foram escasseando nas escolas. nos, configurando uma “profecia
Também os especialistas, que ofereciam autoconfirmada”. Considerando-se que
apoio psicopedagógico, e os professores o conteúdo da representação de “aluno
de música, artes e educação física, que da escola pública” indica uma forte as-
enriqueciam e amenizavam seu trabalho, sociação com pobreza familiar, tais ex-
desapareceram das escolas. Os espaços pectativas passam a constituir um obs-
de discussão, que permitiriam a reflexão táculo adicional ao sucesso escolar das
conjunta e a troca de experiências, tam- crianças pobres.
bém lhes foram tomados. Este é um dado que não pode dei-
A sensação de desamparo tem, por- xar de ser considerado nos cursos de for-
tanto, bases muito concretas. E a angús- mação de professores, principalmente
tia, o estresse, a frustração, o esgotamen- pelo fato de que o comportamento dife-
to emocional, o cansaço e o desânimo – renciado do professor nas interações
termos que perpassam o discurso de com os alunos sobre os quais mantém
grande parte dos professores – são indi- baixas expectativas tende a ser incons-
cadores eloqüentes desse desamparo. ciente,6 podendo ser revertido por meio
Outro importante indicador é o sentimen- da reflexão sobre esse comportamento
to, expresso pelos professores, de que por e suas conseqüências sobre o desempe- 6
Ver, por exemplo, Brophy,
mais que façam, que se desdobrem para nho daqueles alunos. 1979; Aronson, 2002.
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O “aluno da escola pública”: o que dizem as professoras
Referências bibliográficas
ABRIC, J. C. Méthodologie de recueil des répresentations sociales. In: ABRIC, J. C. (Ed.).
Pratiques sociales et répresentations. Paris: Presses Universitaires de France, 1994.
______. Exclusion sociale, insertion et prevention. Saint Agne: Editions Erès, 1996.
BROPHY, J. Teacher behavior and its effects. Journal of Educational Psychology, n. 71, p.
733-750, 1979.
Alda Judith Mazzotti, Ph.D em Psicologia da Educação pela New York University, é
Coodenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de
Sá (Unesa).
aldamazzotti@estacio.br
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