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ESTUDOS

O “aluno da escola pública”: o que


dizem as professoras*

Alda Judith Mazzotti

Resumo
Apresenta resultados de uma pesquisa que investigou as representações de “aluno
da escola pública” construídas por professores da rede pública de ensino fundamental do
Rio de Janeiro. Utilizando a abordagem estrutural de Abric, concluiu-se que o núcleo da
representação é constituído pelos elementos pobre e aprende a “se virar” sozinho. Cote-
jando-se estes resultados com os obtidos nas etapas anteriores da pesquisa, observa-se
que, para os professores, o aluno tem que aprender a “se virar” sozinho porque é pobre e
a pobreza implicaria desagregação familiar e luta pela sobrevivência, impedindo os pais
de oferecerem aos filhos a atenção de que necessitam. Dadas todas estas características,
esse aluno representaria um desafio para os professores, desafio este que eles se sentem
impotentes para enfrentar.

Palavras-chave: representações sociais; aluno da escola pública; família e escola;


fracasso escolar.

Abstract The public school student: what teachers say

The article presents a research that investigated the representations of the “public
school student” constructed by public elementary school teachers of Rio de Janeiro. Using
the structural approach proposed by Abric, one concluded that the nucleus of the
representation is constituted by the elements poor and learns to make it on his own.
Comparing these results with those obtained in the previous steps of the research, it can
be observed that, to the teachers, the student has to learn to make it on his own because
he is poor and poverty would imply family desegregation and struggle for survival,
preventing the parents from providing their children with the attention they need. Given
all those characteristics, this student would represent a challenge to the teachers, but this
is a challenge they feel they are impotent to cope with.

Keywords: social representations; public school student; family and school; school failure.

*
Pesquisa apoiada pelo Con-
selho Nacional de Desenvol-
vimento Científico e Tecno-
lógico (CNPq).

R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 217, p. 349-359, set./dez. 2006. 349
Alda Judith Mazzotti

Introdução Penin (1992) assinala a origem histó-


rica dessas representações, construídas
quando a clientela da escola pública era
A discussão sobre o fracasso escolar
constituída basicamente por alunos de
das crianças oriundas das camadas mais
classe média e os pais assessoravam os fi-
pobres da população já tem uma longa his-
lhos em suas tarefas escolares. A autora
tória. Estudos sobre esse “fracasso” se su-
cederam, responsabilizando-se ora a “na- conclui pela necessidade de levar os pro-
tureza” da própria criança, que não teria fessores a refletirem sobre as contradições
as aptidões exigidas pela aprendizagem entre suas representações e a realidade de
escolar, ora seu meio cultural, que não ofe- seus alunos e suas famílias. De fato, al-
receria estímulos e recursos necessários ao guns estudos sugerem que grande parte
seu desenvolvimento, ora o sistema esco- dos professores desconhece ou
lar, que zelaria pela reprodução do siste- desconsidera as condições materiais de
ma social vigente. Tais explicações, porém, existência do aluno pobre e de suas famí-
levavam a um certo imobilismo, pouco ten- lias, bem como os valores e interesses da
do contribuído para uma mudança efetiva classe trabalhadora, o que os leva a preen-
das práticas escolares e dos mecanismos cher esse vazio de informações com con-
de exclusão nelas embutidos. teúdos ideológicos que circulam nas clas-
Mais recentemente, as pesquisas vêm ses médias, construindo imagens
buscando caminhos mais promissores, vol- preconceituosas a respeito desses alunos
tando o foco das atenções para o estudo das e de suas famílias.3
práticas docentes e, em particular, das Considerando que atualmente a imen-
interações professor/aluno. Tais estudos in- sa maioria dos alunos que freqüentam a
dicam consistentemente que: a) o baixo ní- escola pública provém de famílias pobres,
vel socioeconômico do aluno tende a fazer procuramos investigar como professoras
com que o professor desenvolva baixas ex- de escolas públicas de ensino fundamen-
pectativas sobre ele; b) os professores ten- tal representam esse aluno, bem como suas
dem a interagir diferentemente com alunos expectativas com relação a essa clientela.
sobre os quais formaram altas e baixas ex-
pectativas; c) esse comportamento diferen-
ciado freqüentemente resulta em menos Abordagem teórico-
oportunidade para aprender e diminuição metodológica
da auto-estima dos alunos sobre os quais se
formaram baixas expectativas; e d) os pro- Adotamos neste estudo a abordagem
fessores tendem a atribuir o fracasso esco- estrutural da representação social, propos-
lar a traços sociais e psicológicos do aluno ta por Jean Claude Abric e consolidada em
e a condições econômicas de sua família, inúmeras pesquisas ao longo dos últimos
eximindo-se de responsabilidade sobre esse anos. Abric (1996) define a representação
fracasso.1 Tomados em seu conjunto, esses social como um conjunto organizado e
resultados explicam um dos mecanismos hierarquizado de julgamentos, atitudes e
básicos pelos quais se produz o “fracasso informações que um dado grupo social
escolar” das crianças pobres, configurando elabora sobre um objeto, como resultado
a chamada “profecia autoconfirmada”.2 de um processo de apropriação e recons-
Complementando esse quadro, outras trução da realidade em um sistema sim-
pesquisas indicam que os professores ten- bólico. Nesta perspectiva, a representação
dem a ser pouco críticos com relação ao que é vista como um sistema sociocognitivo
esperam de seus alunos pobres e de suas fa- particular composto de dois subsistemas: 1
Ver, por exemplo, Alves, 1983;
mílias, baseando-se numa visão de mundo o núcleo central e o sistema periférico. O Aronson, 2002; Brophy, 1979;
característica da classe média, visão esta con- primeiro, constituído por um número bas- Gama et al., 1991; Weber,
1996; Patto, 2000.
siderada como a única legítima (Dauster, tante reduzido de elementos, é responsá- 2
Grande parte desses estudos
1991; Gama et al., 1991; Mello, 1992; Penin, vel pelo significado e pela organização teve como inspiração o estu-
1992). Em outras palavras, os professores interna da representação e, também, por do seminal sobre expectativas
dos professoras (Rosenthal;
adotam um modelo ideal de aluno que não sua estabilidade, resistindo às mudanças Jacobson, 1968), que demons-
corresponde ao aluno concreto que hoje e assegurando, assim, a permanência da re- trou a importância das expec-
tativas do professor no desem-
constitui a maior parte da clientela da esco- presentação. Constitui a base comum e penho escolar do aluno, fenô-
la pública do ensino fundamental: a criança consensual da representação aquela que re- meno que ficou conhecido
como "efeito de Pigmalião".
pobre, cujos pais têm baixa ou nenhuma es- sulta da memória coletiva e do sistema de 3
Ver, por exemplo, Alves-
colaridade e lutam pela sobrevivência. normas do grupo. Já o sistema periférico, Mazzotti, 2004; Mello, 1992.

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O “aluno da escola pública”: o que dizem as professoras

constituído pelos demais elementos da como regente de turma, 53,85% tinham


representação, é dotado de grande flexibi- entre 8 e 15 anos e 23,08% tinham acima
lidade e preenche as seguintes funções: a) de 15 anos. Quanto à formação profissio-
permite que a representação seja formula- nal, 56,67% completaram o curso superi-
da em termos concretos e compreensíveis, or, 26,67% ainda estavam cursando e uma
ancorados na realidade imediata; b) per- completou a pós-graduação. Apenas três
mite a adaptação da representação às mu- professoras (10%) tinham somente o 2º
danças no contexto, integrando elementos grau. Cabe assinalar que a maioria das pro-
novos; c) permite modulações individuais fessoras provém da classe média baixa.
relacionadas à história de vida de cada um;
d) sendo um esquema, permite o funcio-
namento da representação como guia ins- Associação livre
tantâneo de leitura de uma dada situação;
e e) protege o núcleo central, absorvendo A utilização desta técnica teve o obje-
e reinterpretando as mudanças nas situa- tivo não apenas de complementar a inves-
ções concretas (Abric, 1998, 2003). tigação do conteúdo, mas, também, de for-
A análise de uma representação soci- necer o material que serviria de base para a
al tal como definida por Abric exige que pesquisa da estrutura da representação. Essa
sejam conhecidos seus três componentes técnica consiste em, a partir de uma ou mais
essenciais: seu conteúdo, sua estrutura palavras indutoras, pedir ao sujeito que as
interna e seu núcleo central. associe às primeiras palavras ou expressões
que lhe venham à cabeça. A característica
de espontaneidade e a dimensão projetiva
Investigação do conteúdo desse tipo de produção permitem chegar
mais facilmente que na entrevista aos ele-
O levantamento do conteúdo foi feito mentos que constituem o universo semân-
por meio de um teste de associação livre e tico do termo ou do objeto estudado, favo-
de entrevistas individuais. Em se tratan- recendo a emergência de elementos laten-
do de um estudo de natureza essencial- tes que seriam ocultados ou mascarados nas
mente compreensiva, não trabalhamos produções discursivas (Abric, 1994).
com amostras nem pretendemos fazer ge- Duas expressões indutoras foram uti-
neralizações de tipo estatístico; as esco- lizadas: “aluno ideal” e “aluno da escola
las, assim como as professoras, foram pública”. Isto foi feito com o objetivo de
selecionadas de maneira acidental, entre verificar em que medida a representação
aquelas que aceitaram participar. Assim, do aluno “real” se distancia do “ideal”. Para
foram incluídos no estudo 30 professoras evitar possíveis contaminações entre as
regentes de turmas de 1ª a 4ª série do en- diferentes fases da coleta de dados, o teste
sino fundamental, atuando em escolas pú- de associação livre foi feito antes das en-
blicas municipais e estaduais do Estado trevistas, e o estímulo “aluno ideal” foi
do Rio de Janeiro (3 na zona sul, 3 na zona apresentado em primeiro lugar. A compa-
norte, 5 em Niterói e 9 na Baixada ração entre as respostas mais freqüentes
Fluminense). Nenhuma das professoras relacionadas aos estímulos apresentados é
tinha menos de quatro anos de experiência mostrada na Tabela 1.

Tabela 1 – Associação livre com as expressões


“aluno ideal” e “aluno da escola pública”

Ordem Aluno ideal Aluno da escola pública

1º interessado sem apoio da família


2º participativo apoiado pela família pobre carente de afeto
3º assíduo desinteressado
4º tem um objetivo enfrenta muitas dificuldades
5º com base de conhecimentos sem base de conhecimentos

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Alda Judith Mazzotti

Os resultados da Tabela 1 deixam cla- típico” da escola pública. A seguir, dife-


ro que, para a grande maioria das profes- rentes aspectos desse “perfil” – interesses,
soras, o aluno da escola pública está mui- necessidades, aspirações, conhecimentos
to distante da imagem que elas têm de um e hábitos – foram explorados em detalhe.
aluno ideal, uma vez que as qualidades No perfil traçado livremente, os aspec-
mais freqüentemente atribuídas a este se tos que mais se destacam são a pobreza e
encontram praticamente ausentes na des- a situação de abandono em que se encon-
crição do “aluno real”. As maiores discre- tram os alunos, as quais, por sua vez, re-
pâncias se referem ao interesse do aluno, sultam em inúmeras carências, assim re-
ao apoio da família e à base de conheci- sumidas por uma professora:
mentos com que o aluno ingressa na esco-
la, elementos destacados no aluno ideal e – É desamparado... Não tem o apoio da
explicitamente apontados como ausentes família. A família joga na escola e dele-
no aluno da escola pública. ga tudo para a escola. Você vai alimen-
Outras qualidades do “aluno ideal” tar, educar, orientar. Eu acho que tam-
não citadas com relação ao “aluno da es- bém faz parte do nosso papel, mas em
cola pública” foram: estudioso, discipli- conjunto [com a família]. Eu não acho
nado, crítico, responsável, inteligente, que é minha função…
pontual. As palavras e expressões
evocadas pelas professoras ante o estí- A visão das professoras sobre a famí-
mulo “aluno ideal” parecem, em parte, lia dos alunos é coerente com esse perfil:
confirmar o que diz Penin (1992) quanto uma família pobre e desestruturada, ocu-
à valorização das qualidades encontra- pada demais na luta pela sobrevivência,
das nos alunos da antiga escola pública, que não dá assistência aos filhos e é au-
cuja clientela era constituída basicamen- sente da escola. Os pais são também vis-
te por crianças de classe média. Cabe, en- tos como tendo, eles próprios, muitas ca-
tretanto, assinalar que a falta de apoio rências – analfabetos, ignorantes, violen-
da família parece estar mais relacionada tos – , as quais, ao lado da pouca disponi-
a mudanças sociais e culturais mais am- bilidade de tempo, os impedem de dar aos
plas, como a maior participação da mu- filhos uma formação adequada e os levam
lher no mercado de trabalho, do que sim- a delegar à escola esse papel. A fala que se
plesmente a uma questão de classe soci- segue ilustra essa visão:
al. Mas se vários elementos enfatizados
na representação de “aluno ideal” estão – [Famílias] desestruturadas, muito
ancorados na memória de épocas passa- desestruturadas, muito. É a mãe que sai
das, outros – como participativo, crítico, pra trabalhar, entendeu? É o pai que
consciente – parecem estar ancorados aos tem que sair pra batalhar também, ou
conteúdos veiculados nos cursos de for- é uma mãe solteira ou então é uma cri-
mação e aperfeiçoamento freqüentados ança, um adolescente que vive com a
pelos professores. avó [...] com uma outra família e que a
mãe não tá nem aí, entendeu?

Entrevistas Indagadas sobre como é o cotidiano


desses alunos fora da escola, as profes-
As entrevistas foram de tipo não- soras retratam uma vida com poucos
estruturado, deixando que as professoras se atrativos. Além de eventuais brincadei-
expressassem livremente sobre os temas ras e diversões próprias da idade – jogar
propostos. As opiniões, crenças, informa- futebol, bola de gude, baile funk, pago-
ções, imagens e atitudes contidas nas falas de –, destacam a televisão como a prin-
foram submetidos à análise de conteúdo cipal ou a única fonte de lazer, o que
(Bardin, 1977), procurando-se descrever o freqüentemente ocorre, principalmente
conteúdo das representações de “aluno da com as meninas, em face do meio vio-
escola pública” através da freqüência dos lento em que vivem:
temas e da importância e sentido a eles atri-
buídos pelos respondentes. – Eles passam o dia vendo televisão; na
A entrevista foi iniciada solicitando- maioria dos casos, vendo televisão o
se, de maneira bastante livre, que as pro- dia inteiro, ou então eles vão para a
fessoras nos dessem um perfil do “aluno rua, pra laje soltar pipa. Muitos ficam

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O “aluno da escola pública”: o que dizem as professoras

olhando os irmãos menores. Alguns Quanto às necessidades percebidas


ficam trancados dentro de casa, por- nesses alunos, as professoras destacam a
que não podem sair por causa do mor- necessidade de atenção, de apoio e afeto
ro. O que eles vêem do mundo é o que da família e, também, de alimentação:
a televisão passa. Eles não têm muita
vivência... – A necessidade principal é a alimenta-
ção, entendeu? Eu posso até florear, fa-
A presença da violência no cotidia- lando de outras coisas, mas a grande
no dos alunos, bem como seus efeitos verdade é essa. Depois da carência ali-
sobre suas vidas, é destacada pelas pro- mentar, vem a carência afetiva.
fessoras de várias outras maneiras. A
maioria faz referência à violência com que Outras apontam necessidades mais
é obrigada a conviver em seus locais de relacionadas à falência dos serviços de saú-
moradia, incluindo tiroteios e assassina- de pública:
tos de parentes e amigos. Algumas pro-
fessoras mencionam também a violência – Essas crianças têm muitos problemas
doméstica, afirmando que a relação dos de fala, muitos problemas neurológi-
pais com os filhos é muito violenta, “só cos, e têm dificuldade de tratar isso
no tapa”. Em decorrência do contato co- porque vão no Posto, não tem
tidiano com essa violência, os alunos se fonoaudióloga, não tem neurologista,
tornariam agressivos, uma agressividade não tem médico, não tem dentista...
que as professoras identificam na fala, nos Quer dizer, não tem nada!
gestos e nas atitudes com os colegas, e
que parece ser parte de um esquema de Indagadas sobre os interesses dos
sobrevivência: alunos e o que mais eles valorizam na
escola, a quase totalidade das professo-
– Eles vivem numa comunidade vio- ras deixa claro que os conteúdos acadê-
lenta. Então, quando a gente ensina micos são o que menos interessa às cri-
que não se trata [o outro] com vio- anças. De fato, os aspectos priorizados
lência, que tem outras formas de vi- são novamente a alimentação, as ativi-
ver, às vezes a gente se sente como dades extraclasse, a atenção e o cari-
se tivesse tirado as armas de sobre- nho das professoras e o convívio com
vivência dele, fazendo com que ele os colegas. Entre as atividades
fique tão manso que não saiba se de- extraclasse destacam recreação, espor-
fender no seu meio. tes, educação física, canto, dança, in-
terpretação, artes, visitas a museus e à
Ao falarem sobre os hábitos que os biblioteca. As afirmações que se se-
alunos trazem para a escola, as professo- guem são ilustrativas:
ras apontam apenas aspectos negativos: a
maioria dos alunos não apresenta os re- – [O que eles mais valorizam] é o conví-
quisitos mínimos de socialização básica, vio e a merenda [...] de estudar eles não
necessários não apenas à aprendizagem gostam muito não...
escolar, mas ao convívio social civilizado.
Não têm hábitos de higiene e limpeza (es- – [Os alunos] não sabem exatamente o
covar os dentes, pentear o cabelo, andar que estão fazendo ali. Parece que vão
com roupas limpas, conservar limpo o para a escola para dizer que vão. [...]
ambiente em que vivem) e desconhecem Aquelas crianças não têm interesse
as regras de polidez (não sabem se sentar, nenhum.
falam gritando, não sabem pedir um favor
nem agradecer): Algumas professoras admitem que
esse desinteresse se deve, pelo menos em
– São uns bichinhos, a gente aqui tem parte, aos conteúdos e métodos tradicio-
que ensinar tudo. [...] Eles sujam os ba- nais utilizados nas escolas, afirmando
nheiros, fazem xixi fora do vaso, mo- que eles não se enquadram naquela
lham tudo [...] estão habituados a fazer aprendizagem tradicional, “de sala de
xixi na rua, normalmente. Eles trazem aula, caderno”.
maus hábitos pra cá e a professora so- Duas professoras associam a questão
zinha não dá conta de tudo... do desinteresse pela escola à violência

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Alda Judith Mazzotti

do meio em que vivem. A primeira atri- – Eles dizem: ah, eu quero ser fazer me-
bui a esta o desinteresse dos alunos pelo dicina, ser médico. Eu fico com von-
estudo; a segunda a relaciona ao valor tade assim de rir e de chorar ao mes-
que as crianças atribuem ao espaço da mo tempo quando eu escuto um ne-
escola: gócio desses... [...] Eu me sinto meio
num filme de Fellini quando eu escu-
– Se ele vai morrer daqui a pouco com to um negócio desses na periferia...
um tiro, vai ser um empacotador de co- Juro por Deus!
caína.… então não vale a pena estudar...
– O horizonte deles é bem pequeno; tipo
– Eu acho que [o que eles valorizam] é o assim, se o pai é mecânico, eles acham
espaço e a tranqüilidade da escola. Eles que o máximo que eles podem ser é
buscam na escola uma tranqüilidade mecânico. O horizonte deles é bem
que eles não têm nos lugares onde eles restrito.
moram, por causa da violência. [...] Eu
acho que, na cabecinha deles passa que Quanto às expectativas das própri-
aqui a bala não vem, aqui o assaltante as professoras com relação aos seus alu-
não entra, a polícia não entra [...] é o nos, elas são, em sua maioria, extrema-
espaço que eles precisam pra correr, mente pessimistas, indicando que a
pra brincar, é o espaço dele, que ele lá perpetuação da situação de pobreza lhes
fora não está tendo. parece um destino inexorável. A frustra-
ção e a impotência das professoras di-
Quanto aos conhecimentos que os ante das dificuldades da tarefa que lhes
alunos trazem para a escola, as profes- cabe estão expressas nas falas que se
soras se referem de maneira vaga a “co- seguem: 4
nhecimentos da própria comunidade” –
que geralmente se resumem a música, – Olha, eu não vejo um horizonte [...].
dança (samba, capoeira), religião e, no O número de alunos que passaram
caso das escolas rurais, conhecimentos pelas minhas mãos, o futuro de mui-
relativos a plantas e animais – e, tam- tos que eu vi, [...] ao abrir o jornal e
bém, a experiências adquiridas no tra- ver lá [como vítima ou agente da vio-
balho e na vida cotidiana (fazer troco) e lência]. Eu falo que eles têm capaci-
a informações veiculadas pela televisão. dade, conto casos de pessoas pobres
Estas últimas, porém, são bastante que venceram na vida, que a gente tem
criticadas: que ter determinação, garra! [...] Todo
dia eu falo a mesma coisa pra ver se,
– A escrita é péssima, mesmo porque o de repente, eu consigo lançar alguma
vocabulário não é bom. Eles vêem tele- coisa pra ficar…
visão, todos têm televisão, mas vêem é
Ratinho Livre, Gugu, Faustão. [...] Então – Sou até muito nova no magistério pra
isso é a bagagem deles. estar assim tão desanimada, né? Mas
eu vejo muito pouco, muito pouco, a
Indagados sobre as aspirações dos perspectiva é mínima. Porque eu vejo
alunos, as professoras indicam priorita- que, a cada ano, o número de repeten-
riamente questões ligadas a uma futura tes aumenta, o número de alunos den-
profissão e a continuidade dos estudos. tro da sala aumenta... Eu estou muito
Entre as profissões destacam as opções desgastada [...] Não é nem o esgotamen- 4
As descrições feitas pelos
professoras sobre como se
por profissões liberais (médico, profes- to físico, nem o esgotamento mental, sentem atualmente em seu
sor, veterinário) e glamurosas (atriz, can- mas o esgotamento emocional, a carga trabalho são muito seme-
lhantes aos sintomas do "de-
tora, jogador de futebol, piloto de Fór- emocional... samparo adquirido" (learned
mula 1), ou então dizem que eles falam helplessness) descritos por
em seguir a profissão dos pais (pedrei- As falas que procuram ser otimistas Seligman (1977). Segundo
esse autor, o desamparo é um
ro, carpinteiro, etc.). As professoras pa- parecem revelar mais um desejo do que estado psicológico que se ca-
recem confusas com relação a essas as- propriamente uma expectativa: racteriza por depressão, an-
siedade, sentimento de im-
pirações, uma vez que as primeiras são potência e passividade e que
consideradas pouco realistas e as últi- – Eu gostaria de poder oferecer a essas se manifesta em decorrência
de situações problemáticas
mas, falta de ambição, como indicam as crianças o melhor, eu gostaria que eles que afetam o sujeito mas es-
falas que se seguem: aprendessem assim... a se virar no tão fora do seu controle.

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O “aluno da escola pública”: o que dizem as professoras

mundo, entendeu? Sozinhos, já que reformular continuamente métodos e con-


eles têm pouca assistência de pai, de teúdos, adaptar livros e outros materiais
família, [...] se defender sozinhos, pro- didáticos, usar recursos auxiliares atraen-
curar trabalhar sozinhos, conseguir tes (música, histórias), mas o que se ob-
seu sustento sozinhos. serva é que a maioria delas parece sentir
que esse esforço solitário é estressante e
– Eu queria tudo de bom, eu queria que insuficiente. As falas que se seguem ex-
eles saíssem dessa, que tivessem uma pressam esses sentimentos:
visão melhor do futuro... É horrível fi-
car sem visão, né? – É uma angústia muito grande porque,
as soluções, nós não podemos arcar com
Quanto à escola, as professoras são elas porque estão numa esfera muito
unânimes em afirmar que ela precisa mu- maior. A gente já se desdobra em sala
dar para se adaptar aos novos tempos. de aula para tentar fazer o máximo, mas
Entre as medidas mais necessárias e ur- muita coisa… a gente esbarra, vê que
gentes citam a capacitação e reciclagem não depende mais de nós.
dos professores, a contratação de profes-
sores para atividades extraclasse e para – A gente não pára um minuto, então é
outras atividades que exigem formação um stress muito grande. Muitas profes-
específica (como educação física, recrea- soras pedem licença, ficam doentes.
ção, música, teatro, artes plásticas, Não é decorrência de doenças do orga-
informática) e o oferecimento de tempo e nismo, são doenças psicossomáticas [...]
espaço no horário escolar para atualiza- Eu agora estou perdendo a voz...
ção e discussão de problemas. Outras me-
didas citadas foram apoio psicopedagógico – Eu vim com uma série de idéias de pes-
(orientadores, supervisores), recursos soas críticas... Paulo Freire… pessoas
materiais suficientes e atualizados, turmas que estão avançadas na visão crítica da
menores e maior segurança nas escolas. sociedade. Mas pra gente colocar na prá-
As falas que se seguem ilustram as princi- tica, muita coisa não funciona, você tem
pais reivindicações: que estar toda hora reavaliando, toda
hora tentando se reformular [...] Eu não
– A gente antigamente tinha tempo para posso desanimar ...
se reciclar, a gente tinha por direito.
Agora para a gente se encontrar para
fazer alguma coisa ou tem que ser meio Investigação da estrutura
que nos corredores, ou meio que extra-
oficial. É um espaço que a gente tinha Segundo Moliner (1994), as cognições
antigamente que o Governo de certa centrais de uma representação apresen-
forma está tirando... tam quatro características básicas: valor
simbólico, poder associativo, saliência e
– Olha, o que nós temos aqui de mate- conexidade. A primeira se refere ao fato
rial é nada. É o que você está vendo de que as cognições centrais mantêm
aqui, é giz, quadro e um mimeógrafo com o objeto uma relação necessária,
a álcool. E você não pode pedir mate- “não negociável”. Isto quer dizer que, na
rial para o aluno. [...]. Estamos na era visão do grupo considerado, elas não
do computador e nós trabalhando podem ser dissociadas do objeto da re-
com mimeógrafo a álcool. [...]. Nós presentação, sob pena de este perder
precisaríamos de professoras toda a significação. Poder associativo diz
extraclasse para trabalhar esse outro respeito à polissemia das noções cen-
lado do aluno. Só eu dentro de sala. trais e à sua capacidade de se associar
Eu dou a recreação, eu dou música, aos outros elementos da representação,
eu dou artes, eu dou tudo... E tomo uma vez que elas condensam o conjun-
conta da merenda, do recreio... to de significações. A saliência está di-
retamente relacionada às duas caracte-
Quanto às mudanças que procuram rísticas anteriores: graças ao seu valor
imprimir em sua própria prática para simbólico e à sua polissemia, as
adequá-la às características dos alunos, cognições centrais ocupam um lugar pri-
as professoras dizem que tentam vilegiado no discurso, sendo evocadas

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Alda Judith Mazzotti

mais freqüentemente que as demais. Fi- evocadas na associação livre – , pedimos


nalmente, a conexidade é decorrente do aos sujeitos que formassem duplas com
poder associativo: em função dessa ca- aquelas que lhes parecessem “andar jun-
pacidade, as cognições centrais são tas”. Para isso, foram preparadas 16 fi-
aquelas que apresentam maior número chas de cartolina, cada uma correspon-
de relações com os demais elementos da dendo a um elemento daquele conjunto.
representação. Depois de realizados os pareamentos,
A saliência foi verificada através da perguntava-se ao sujeito porque ele ha-
freqüência de ocorrência do elemento nas via associado os elementos de cada par,
falas e associações livres feitas pelos su- para identificar o tipo de relação feita
jeitos. Entretanto, para completar a identi- (semelhança de sentidos, implicação,
ficação dos possíveis elementos do núcleo contraste, etc.). Participaram desta fase
central, foram investigadas as relações 15 professoras.5
estabelecidas entre eles (poder associativo A apuração dos resultados foi reali-
e conexidade), bem como a hierarquia en- zada estabelecendo-se a freqüência de
tre esses elementos (valor simbólico e tam- cada elemento. A análise desses
bém saliência). Para isto, duas técnicas pareamentos, uma vez que um mesmo
propostas por Abric (1994) foram utiliza- elemento pode ser escolhido várias ve-
das: constituição de duplas de palavras e zes, permitiu conhecer os termos
escolhas hierarquizadas sucessivas. polarizadores, isto é, aqueles que são
mais freqüentemente associados a outros
elementos da representação e que, por-
Constituição de duplas tanto, têm maior poder associativo e
de palavras maior conexidade, o que lhes confere
alta probabilidade de constituir o núcleo
Esta técnica teve por objetivo inves- central. Além disso, a análise permitiu
tigar as relações entre os elementos da conhecer o sentido dos termos utiliza-
representação. A partir de um conjunto dos pelos sujeitos, reduzindo a
de 16 palavras ou expressões – as 16 que polissemia. A Tabela 2 apresenta os ter-
alcançaram maior freqüência entre as mos polarizadores identificados.

Tabela 2 – Expressões escolhidas com maior freqüência nos pareamentos

Ordem Elementos

1º sem apoio da família


2º um desafio para o professor
3º enfrenta muitas dificuldades sem apoio
da escola aprende a se virar sozinho

Uma outra possibilidade de analisar que eles atribuem as dificuldades enfren-


os dados provenientes da constituição de tadas pelas crianças à pobreza, e a carên-
duplas é verificar a quantos elementos di- cia afetiva à falta de amparo de família.
ferentes os termos polarizadores foram as-
sociados. Assim, os termos um desafio
para o professor e aprende a se virar sozi- Escolhas hierarquizadas
nho foram associados, respectivamente, a sucessivas
10 e 9 elementos diferentes. As duplas
mais freqüentes foram pobre e enfrenta Esta técnica foi utilizada com o obje-
muitas dificuldades e sem amparo da fa- tivo de identificar a hierarquia entre os ele-
mília e carente de afeto. Essas duplas aju- mentos da representação. Com os mesmos 5
Na análise da estrutura não
dam a esclarecer o sentido atribuído pe- sujeitos que participaram da etapa anteri- houve necessidade de in-
los professores às expressões por eles or e tomando por base o mesmo conjunto cluir mais de 15 professoras,
graças ao alto grau de redun-
evocadas nas etapas anteriores, sugerindo de 16 elementos usado nos pareamentos, dância obtido nas respostas.

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O “aluno da escola pública”: o que dizem as professoras

solicitou-se a cada professor que separas- pesos crescentes aos itens em cada uma
se os 8 que considerava mais caracterís- das quatro etapas de escolhas, de modo
ticos do objeto. Tomando-se apenas os 8 que estes correspondessem à importância
elementos selecionados, recomeçou-se a atribuída ao item pelo sujeito. Assim, se
operação, pedindo-lhe que escolhesse os o item que figurava entre os 8 elementos
4 mais representativos, e assim sucessi- selecionados como os mais significativos
vamente, até se chegar àquele considera- entre os 16 apresentados recebia peso 1;
do o mais representativo do objeto. Obte- se permanecia entre os 4 últimos, recebia
ve-se, então, uma classificação, por ordem peso 2; e assim por diante. A partir do
de importância, do conjunto de elemen- cálculo da freqüência ponderada, foi pos-
tos apresentado. sível estabelecer a classificação dos itens
Para analisar esses resultados, apurou- segundo a importância atribuída pelos
se, primeiramente, a freqüência de cada grupos. Os elementos que obtiveram va-
elemento nas quatro escolhas sucessivas, lores mais altos na hierarquia são aque-
isto é: os 8 elementos mais significativos; les que têm maiores probabilidades de
destes, os 4 mais significativos; destes, constituir o núcleo central da representa-
os 2; até se chegar ao mais significativo ção. Os elementos mais destacados são
dos elementos apresentados. Atribuiu-se apresentados na Tabela 3.

Tabela 3 – Escolhas hierarquizadas

Ordem Elementos

1º enfrenta muitas dificuldades


2º um desafio para o professor
3º precisa de afeto
4º aprende a se virar sozinho
5º sem apoio da família

Conforme indicam os dados da Tabe- dizer se ele: a) provavelmente é um alu-


la 3, os elementos que ocupam as posições no da escola pública; b) provavelmente
mais altas na hierarquização feita pelos não é um aluno da escola pública; ou se
professores são praticamente os mesmos c) não sabe responder. Colocando-se em
que foram destacados nos pareamentos. questão, sucessivamente, todos os ele-
mentos destacados, é possível identificar
aqueles cuja ausência implica em não re-
Teste do núcleo central conhecimento da representação. Estes
são os elementos do núcleo central; os
A última etapa da pesquisa demais são periféricos.
correspondeu ao teste da centralidade Os resultados deste teste evidencia-
dos elementos postos em evidência pe- ram que os elementos que constituem o
las análises anteriores, recorrendo-se, núcleo central da representação de “alu-
para isto, a uma adaptação da técnica no da escola pública” são pobre e apren-
de questionamento ou mise en cause de a se virar sozinho. Relacionando estes
(Campos, 1998). A técnica utilizada resultados aos obtidos nas etapas anteri-
consistiu em apresentar aos sujeitos um ores, parece válido afirmar que, para os
conjunto de frases com os elementos professores, os alunos enfrentam muitas
mais destacados nas etapas anteriores, dificuldades porque são pobres (dupla
solicitando-lhes que respondessem se a mais freqüente). Além disso, a pobreza
afirmação contida em cada uma das fra- está relacionada à desagregação familiar
ses é ou não pertinente ao objeto focali- e à luta pela sobrevivência, impedindo
zado. Em nosso caso, elas descreviam um os pais de oferecerem aos filhos o apoio
personagem, e os professores deveriam e a atenção de que necessitam, o que faz

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Alda Judith Mazzotti

com que eles sejam carentes de afeto e suprir as carências e despertar o inte-
que tenham que aprender a “se virar” resse dos alunos pelos conteúdos que
sozinhos (conforme indicado nas entre- julgam essenciais à superação de sua
vistas e nos pareamentos). Dadas todas situação atual, esse esforço nunca é su-
estas características, esse aluno repre- ficiente, porque grande parte do pro-
senta um desafio para o professor (ele- blema está em outras esferas que fogem
mento destacado na hierarquização). En- ao seu controle. Como disse uma pro-
tretanto, segundo o que foi evidenciado fessora, “o mundo aí fora é muito mais
nas entrevistas, este é um desafio que forte”. Tais resultados confirmam a
os professores se sentem impotentes conclusão de estudo realizado por Melo
para enfrentar. (1998), segundo a qual o aluno pobre é
percebido como não tendo condições
de competir com alunos de origem so-
Conclusões cial superior.
O quadro aqui descrito parece expli-
Considerando os resultados obtidos car por que os professores se mostraram
nas diferentes etapas deste estudo, somos tão ambíguos quanto às aspirações dos
levados a concluir que, para os professo- alunos, tão pessimistas quanto ao futuro
res que participaram do nosso estudo, o deles e tão evasivos quanto às suas pró-
aluno típico da escola pública é hoje a cri- prias expectativas com relação a esses
ança de família pobre que luta pela so- alunos. Como vimos, as falas oscilam
brevivência e dá pouca ou nenhuma as- entre expectativas extremamente pessi-
sistência aos filhos, delegando à escola mistas e vagos desejos, “sonhos”, sem
funções que tradicionalmente cabem à muita esperança de concretização, o que
família. Esta imagem, como vimos, está é denunciado pelo uso do imperfeito (“eu
muito distante daquelas que os professo- queria”, “eu gostaria”).
res concebem como ideal. As baixíssimas expectativas das pro-
Tal situação, aliada à crescente ca- fessoras sobre o “aluno da escola públi-
rência de recursos materiais e humanos ca” constituem um dado preocupante.
existente nas escolas, faz com que esses Como foi anteriormente mencionado, a
profissionais vivenciem uma situação de vasta literatura de pesquisa sobre
desamparo, por ter que assumir respon- interações em sala de aula indica, de
sabilidades cada vez maiores, contando modo consistente, que as baixas expec-
com apoio cada vez menor. Além das fun- tativas dos professores freqüentemente
ções que cabiam à família, tarefas que resultam em menores oportunidades
eram desempenhadas por inspetores, para aprender e diminuição da auto-es-
pessoal de secretaria e mesmo por ser- tima dos alunos sobre os quais se for-
ventes foram sendo transferidas aos pro- maram essas expectativas, depreciando
fessores, à medida que aqueles profissi- ainda mais o desempenho desses alu-
onais foram escasseando nas escolas. nos, configurando uma “profecia
Também os especialistas, que ofereciam autoconfirmada”. Considerando-se que
apoio psicopedagógico, e os professores o conteúdo da representação de “aluno
de música, artes e educação física, que da escola pública” indica uma forte as-
enriqueciam e amenizavam seu trabalho, sociação com pobreza familiar, tais ex-
desapareceram das escolas. Os espaços pectativas passam a constituir um obs-
de discussão, que permitiriam a reflexão táculo adicional ao sucesso escolar das
conjunta e a troca de experiências, tam- crianças pobres.
bém lhes foram tomados. Este é um dado que não pode dei-
A sensação de desamparo tem, por- xar de ser considerado nos cursos de for-
tanto, bases muito concretas. E a angús- mação de professores, principalmente
tia, o estresse, a frustração, o esgotamen- pelo fato de que o comportamento dife-
to emocional, o cansaço e o desânimo – renciado do professor nas interações
termos que perpassam o discurso de com os alunos sobre os quais mantém
grande parte dos professores – são indi- baixas expectativas tende a ser incons-
cadores eloqüentes desse desamparo. ciente,6 podendo ser revertido por meio
Outro importante indicador é o sentimen- da reflexão sobre esse comportamento
to, expresso pelos professores, de que por e suas conseqüências sobre o desempe- 6
Ver, por exemplo, Brophy,
mais que façam, que se desdobrem para nho daqueles alunos. 1979; Aronson, 2002.

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Alda Judith Mazzotti, Ph.D em Psicologia da Educação pela New York University, é
Coodenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de
Sá (Unesa).
aldamazzotti@estacio.br

Recebido em 18 de julho de 2006.


Aprovado em 22 de setembro de 2005.

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