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A DIALÉTICA ENTRE A CULTURA DO CANCELAMENTO, O CLIMA

ESCOLAR E A RESILIÊNCIA

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos


(PRISMAS, Brasil)
clgmattos@gmail.com
Vera Lucia Anselmi Melis Paolillo
(World Forum Foundation,Brasil Representative)
veramelis@uol.com.br

Resumo
Este capítulo trata das dificuldades escolares que ‘impedem’, ‘limitam’ e ‘inviabilizam’
a escolarização de crianças e jovens nas escolas brasileiras tornando o sistema escolar do
país um dos mais injustos do planeta. Apresenta, sem desconsiderar as teorias da
reprodução social e da meritocracia que tentam explicar a natureza excludente das
escolas, novas categorias de análises como – cancelamento, clima escolar e resiliência –
elementos essenciais das práticas que levam à repetência escolar. Aponta instâncias da
organização curricular e práticas pedagógicas como os conselhos de classe como locus
de produção das dificuldades e das desigualdades praticadas nas escolas para ‘anular’ a
individualidade e identidade própria de cada estudante. Teoriza que existe uma dialética
entre as três categorias analisadas que cria possibilidades de melhor entendimento de
como enfrentar a questão da inclusão/exclusão escolar. Sinaliza através dessa dialética
que é possível informar processos que levem a eliminação das injustiças e desigualdades
na escola condutoras das práticas de educação para todos.
Palavras-chaves: Repetência, Cultura do cancelamento, Clima escolar, Resiliência.
Introdução
A maior parte das dificuldades escolares aparecem no domínio da escola porque
se referem a habilidades especificas, frequente ao serem detectadas tender a ser vistas
como “criação da professora”; “má vontade do aluno”, “exigência desmedida da escola”
entre outras atribuições. Mas na seara das dificuldades é necessário distinguir aquelas que
dizem respeito à capacidade intelectual, a linguagem, atividades motora,
desenvolvimento neurológico e outros, daqueles referentes a atitudes e comportamentos,
(MACEDO, 2015)
Qualquer ‘diagnóstico’ irá afetar sempre a criança e a família. Por esta razão, é
preciso reconsiderar o processo todo do envolvimento da escola e da família na
escolarização, evitando a estigmatização ou criar “uma falsa culpabilização” da criança e
do jovem em desenvolvimento e no processo de ensino- aprendizagem.

1
Apontar dificuldades das crianças para a família é sempre um momento tenso pois
é difícil o entendimento acerca da atitude ou do desinteresse do filho/ filha nos estudos.
Dessa forma a família pode ou não aceitar a existência das dificuldades apontadas ou uma
afirmação usada para justificar uma dificuldade ou atitude específica. Nesta perspectiva
podemos constatar que o estudante como um ser único e dotado de uma identidade
própria, nem sempre é considerado e pode atrasar uma possível intervenção pela escola
ou pela família.
Hoje, há uma busca incessante de entender os problemas de aprendizagem.
Entretanto, a identificação das dificuldades devem ser estudadas por profissionais
qualificados como psicopedagogo, psicólogo, fonoaudiólogo ou terapeuta psicomotor.
Esta é a atitude mais apropriada e que pode auxiliar a criança no enfrentamento dos
desafios escolares que a colocam em uma situação de baixa estima e insegurança.
Infelizmente muitas famílias não aceitam ou não tem recursos para essas
interversões. Na prática pedagógica, as atividades em pequenos grupos, proposta de
projetos individuais e outras técnicas de ensino, podem identificar as dificuldades como
também apoiar a criança em seu plano individual de estudo e aprendizagem.

Sobre o objeto de estudo


Os processos de aprendizagem e os comportamentos de crianças e jovens são
determinantes da inclusão ou exclusão deles em sala de aula, na escola e na vida social.
As diversas formas de aprender e ensinar a que estão expostos ampliam ou diminuem as
chances de sucesso em suas trajetórias escolares. Fatores como a repetência na série e
exclusão escolar são facilmente encontrados nas histórias de vidas de crianças e jovens
que não se submetem com facilidade às complicadas manobras da escola em controlar
esses processos.
Neste capítulo apresentar-se-á alguns fatos, situações, eventos, categorias e teorias
da área da educação que esperamos possam auxiliar os próprios jovens, seus pais,
professores, gestores escolares e pesquisadores a entenderem esses dois fatores: a
repetência e a exclusão no contexto do ensino e da aprendizagem.
Os dados que se apresenta são, não somente, derivados da vasta literatura sobre o
tema, assim como da experiência, dê mais de 50 anos, das autoras com ensino, pesquisa
e extensão.

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Os casos apresentados foram obtidos com o livre consentimento dos envolvidos,
entretanto, mudou-se os nomes dos locais e das pessoas citadas de acordo com os
procedimentos éticos para pesquisas com seres humanos (BRASIL, 2012).
Pesquisas realizadas pelas autoras e seus orientandos demarcam a categoria
repetência como um dos principais temas de estudo a saber: Multiplicidades da Avaliação
Escolar: um estudo etnográfico sobre a repetência (VASCONCELLOS, 2016); A Classe
de Repetentes: um estudo etnográfico (VASCONCELLOS, 2010); Entre Ruas e Escolas:
uma investigação sobre jovens e seu caminho para a inclusão educacional no Brasil
(PUGGIAN, 2009, original em inglês); diferentes publicações de Mattos e Castro (2005,
2010) e Mattos (2002, 1992).
A abundância de exemplos nessas pesquisas e na literatura nelas citadas, sobre
como são construídos os processos de reprovação escolar apontam, em especial para três
categorias: gênero, cor da pele (raça) e nível socioeconômico para justificar essas
dificuldades.
Silva, Halpern e Silva,1999, apud Vasconcellos, 2010) afirmam que;

As justificativas da diferença de desempenho expressam a percepção de que ‘os meninos


são mais inteligentes, porém, indisciplinados; enquanto as meninas são atentas e
aplicadas, mas menos inteligentes’. Tratam, portanto, um perfil dos alunos e das alunas,
delineando as características que enxergam e ressaltam. [...] Outras caracterizações dos
comportamentos indicam ‘as meninas como mais responsáveis, dedicadas, estudiosas,
interessadas, sensíveis, atentas’. Enquanto ‘os meninos são malandros, não tem hábitos
de estudo, não ficam em casa para estudar, saem para jogar bola, faltam as aulas, são
dispersivos, tem interesses fora da escola, são agitados, não prestam atenção, ainda que
mais inteligentes’ (p. 215).
...as meninas negras têm muitas dificuldades; mas são mais lutadoras e conseguem bom
rendimento no esporte. As crianças negras são menos motivadas por seus pais e os
meninos são encaminhados para trabalhar... São mais revoltados, estudam menos, têm
problemas na família... Da 6ª série em diante têm poucos negros porque já caíram fora (p.
216).
As autoras apontam duas crenças fortemente utilizadas pelos próprios estudantes,
seus professores e familiares, em consonância com as escolas e as políticas de avaliação
que fragilizam os estudantes.
Outra crença corrente na literatura é de que as crianças pobres não observam o
trabalho pedagógico da mesma forma que àquelas em melhores condições econômicas.
Yannoulas (2013) analisa a relação entre política educacional e pobreza e descreve:

Os alunos muito pobres constituem um desafio para as professoras que trabalham em


inacreditáveis condições de precariedade na maioria das escolas públicas periféricas,
muitas vezes sendo “tolerados”, porém não verdadeiramente incluídos, por falta de
opções para desenvolver outro tipo de trabalho pedagógico (SILVA, 2006, 2009, apud
YANNOULAS, 2013, p. 52).

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Essas três categorias são fortemente associadas a crenças que, de modo subjetivo,
influenciam e determinam as práticas escolares de avaliação e exclusão de estudantes.
Elas nos permitiram afirmar em diferentes ocasiões que “o fracasso escolar mata!”1 Essa
premissa orienta os argumentos a seguir. Sem deixar de consideram as categorias sócio
reprodutivistas anteriormente citadas, este texto aponta para outras nuances sobre a
questão da reprovação como: “cultura do cancelamento”, “clima escolar” e “resiliência”
como categorias que podem nos auxiliam a compreender a reprovação.
Earp 2009 afirma que,

a “pedagogia da repetência” é parte integral da própria filosofia de ensino, aceita por


todos os agentes como “natural”. A repetência no Brasil não é um fenômeno
exclusivamente de classe. As teorias produtivistas podem explicar a natureza do
fenômeno, mas não sua ordem de grandeza. Esse fato pode indicar um importante traço
da nossa cultura pedagógica (2009, p. 619):
Ao mesmo tempo Earp criar a teoria “centro-periferia” e explica que,

Tudo se passa como se o professor dirigisse o ensino a alguns alunos e não a todos os
estudantes da classe. Alguns estudantes parecem ser o “centro”, enquanto outros parecem
ficar na “periferia” da aula. O professor separa os alunos em dois grupos em termos da
quantidade e da qualidade do ensino: os do “centro” e os da “periferia” [...] O modelo
“centro-periferia” é descrito pelos modos de agir dos professores na interação com os
alunos na sala de aula. As maneiras como o professor faz perguntas aos alunos, os modos
de responder às questões dos alunos, as formas de “corrigir” respostas, os modos de o
professor chamar os estudantes, isso tudo varia segundo a “posição” em que o professor
coloca os alunos: no “centro” ou na “periferia”. Mais ou menos conscientemente, os
professores têm padrões de interação diversos com os estudantes na mesma aula (2009,
p. 621).
Os estudos de Earp são de natureza etnográfica, e dão pistar de como as três
categorias acima mencionadas agem de modo imbricado e indicam novas formas de
construção da reprovação, do fracasso escolar e da exclusão escolar. Enquanto, ao mesmo
tempo apontam para os comportamentos dos estudantes como: distúrbios, bagunça,
transtornos, balburdia etc., que ‘são considerados’ como inapropriados e que os
conduzem, dentre outros, às desigualdades de permanência nas escolas.
Desvelando novos argumentos sobre o fracasso escolar

Exemplificar-se-á esses argumentos tomando inicialmente, a categoria


“cancelamento”. De acordo com Dershowitz (2020) “a cultura do cancelamento busca
desmantelar toda a estrutura da meritocracia, de julgamento das pessoas na totalidade de
suas realizações e substituí-la por uma hierarquia baseada em identidade" (p. 66). O autor

1
Essa expressão foi utilizada pela primeira vez por Mattos (2009, p.14) quando a autora constatou que os
49 jovens sujeitos de sua pesquisa de campo realizada em1988, todos, foram assassinos de forma trágica
antes de completarem 20 anos.

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argumenta que para os opositores da meritocracia, a inteligência, a educação, a realização
e até mesmo a ética no trabalho são funções de "privilégio", e o privilégio é
recompensador o suficiente, sem, necessariamente, tornar-se a base para mais
recompensas. Dershowitz descreve que para os adeptos da meritocracia os bens da
sociedade devem ser distribuídos com base na crença de que "cada um de acordo com
suas habilidades e necessidades" tem o que merece. Esses, afirmam que “o trabalho duro
não precisa de incentivos materiais em uma sociedade verdadeiramente igualitária e que
o trabalho duro é sua própria recompensa e não precisa de mais incentivo” (p. 69).
Finalmente, o autor considera que o efeito da cultura do cancelamento e seu esforço para
anular os legados daqueles que alcançaram sucesso pela meritocracia é um ataque aos
valores constitucionais [referindo-se à constituição dos Estados Unidos da América].
Alerta ainda que “existe um perigoso esforço em substituir a meritocracia pela
identidade” (pp. 71-72, tradução nossa).
O argumento da cultura do cancelamento apresentada por Dershowitz é
problemático porque essa cultura se instituiu nas escolas muito antes de existir enquanto
conceito, hoje largamente utilizado pelas mídias sócio interativas. Quanto a e escola ‘com
razão’ rejeitou a meritocracia (VALE, 2013), o fez com os argumentos convincentes
como: a escola para todos; a democratização de acesso das classes sociais menos
favorecidas à escola, justiça escolar etc. Mas, o que ela implantou na realidade foi o
“mérito” por aspectos pouco claros da identidade individual dos alunos (Idem).
O segundo argumento é oferecido pela categoria “clima escolar”. De acordo com
Silva, at. al, (2021) o termo refere-se às expectativas e percepções de cada indivíduo de
acordo com o contexto comum. Também está relacionado à qualidade das relações e
conhecimentos adquiridos ali, bem como ao comportamento, atitudes, sentimentos e
sensações. No caso, nas escolas.
Como demonstra Earp (2021) aspectos do “clima escolar”, em especial nas salas
de aula, orientam as práticas de avaliação e manipulam “subjetivamente ou não” de modo
“peculiar” os estudantes, através de julgamento que os professores e a equipe escolar
emitem em instância interativas sobre eles e seus familiares.
O terceiro argumento vem da categoria “resiliência”, esta palavra tem sido
amplamente usada para descrever o comportamento humano (CASTRO, at. al. 2014).
Uma pessoa é resiliente quando é capaz de retornar ao seu estado habitual de saúde (física
e mental) depois de passar por uma experiência difícil. Resiliência é a capacidade de

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sofrer as ações de um contexto específico, mas permanecer intacta (BOTTRELL, 2007).
Uma analogia é feita a bambus centenários que podem suportar a força do vento para sua
flexibilidade. Assim, podemos definir a resiliência como a capacidade de enfrentar e
superar adversidades. Dois fatores devem ser levados em conta quando se estuda a
resiliência: crise e superação. A pessoa resiliente é quem entende o problema que está
enfrentando e mobiliza recursos para superá-lo. Isso não significa que o indivíduo
resiliente seja invulnerável ou blindado.
No contexto escolar partir de práticas pedagógicas “aceitas os não” pelos
estudantes, estes insistem em obedecerem às regras de organização da sala de aula
“centro-periferia” (EARP, 2021) e se submetem aos currículos e normas “de cima para
baixo” (MATTOS, 1992).
Questionamentos complexos e respostas possíveis

Portanto, alguns questionamentos são necessários para dar continuidade a essas


argumentações, são eles: Onde, como pesquisador, se pode captar dados que corroborem
com os pressupostos das categorias: cancelamento, clima escolar e resiliência? É a
reprovação escolar uma forma de cancelamento? É o clima escolar favorável à
reprovação? São as políticas compensatórias e de reformulação curricular fortalecedora
da meritocracia e fomentadoras da resiliência entre os estudantes? O que pensam os
sujeitos que promovem a reprovação de alunos e alunas nas escolas? Quais as instâncias
escolares que, de modo mais frequente, oportunizam as práticas da repetência dos
estudantes?
Neste capítulo, não será possível dar respostas a todos esses questionamentos, mas
borcar-se-á responder alguns, na tentativa de iluminar o entendimento da maioria deles.
Iniciaremos pelo último - Quais as instâncias escolares que, de modo mais frequente,
oportunizam as práticas de a repetência dos estudantes? – a saber, trataremos dos
conselhos de classes.
Estabelecido no Brasil em 1959, os conselhos de classes são parte constitutiva das
rotinas avaliativas nas escolas, permanecem “intocáveis” “impiedosamente” penalizando
alunos e alunas em desvantagem socioeducacionais. Sua natureza, tem sido questionada
por essas características (MATTOS, at. al., 2015). Mattos (2005) afirmou que nele os
professores se sentem à vontade para “orquestrarem” suas falas de modo a facilitar a
reprovação e exclusão dos estudantes.
Um dos relatórios de pesquisa descreve:

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Tínhamos por objetivo que ela [a professora] formulasse algumas perguntas sobre o que
estava acontecendo na sala de aula, alguma coisa que ela não compreendesse bem na sua
relação com os alunos e alunas e que explicasse o fracasso daqueles alunos, especialmente
“os mais problemáticos”. Mas a professora parecia não ter dúvidas, ao contrário, falava
com certeza que as causas para o fracasso tinham a ver com o passado deles em outras
turmas, outras professoras, escolas “diferentes”, com a origem pobre de suas famílias
faveladas, com o desinteresse “vagabundo” deles e dos pais pelas questões da educação,
e especialmente com a falta de “educação doméstica” que se contrapunha aos valores que
a escola passava (aluna de iniciação científica do curso de pedagogia em relatório de
campo, outubro, 1992) (MATTOS, 1994, p.68)
O relato acima resume as expectativas dos pesquisadores que assistiram a esses
conselhos de classe e ouviram professoras culparem seus alunos e alunos pelos seus
fracassos e exclusão nas escolas, sem assumirem quaisquer responsabilidades pelos seus
próprios fracassos em não promoverem esses estudantes após meses de trabalho.
Após revisitarem imagens e compararem mais de 50 conselhos de classes de
escolas de ensino fundamental registrados durante quatro décadas de pesquisa, Mattos e
Costa (2015) transcrevem algumas falas que sintetizam as formas como pensam os
sujeitos que praticam a repetência de estudantes nas escolas.
O conselho citado ocorreu no dia seis de outubro de 2008, praticamente ao final
do ano escolar, ouve-se justificativas que ‘deslocam’ o eixo ensino-aprendizagem da
discussão das atividades e tarefas de sala de aula que compõem o conteúdo e as interações
entre professores e alunos para outras que culpabilizavam os estudantes pelos seus
problemas escolares. A citação é um recorte da transcrição de quatro horas de um
conselho de classe de uma escola pública na zona sul do Rio de Janeiro e expõem como
essa instância interativa acontece espelhando outros conselhos de classes revisitados. O
trecho é mantido na integra e, portanto, pode parecer um pouco confuso, àqueles não
familiarizados com o ‘clima’ dos conselhos de classe:

Professora da 302 – Ele [Jonathan] está cheio de faltas! Oh! eu não tiro esse aluno esse ano ainda
pois eu já tirei o Alan, eu só tiro, assim, no último caso mesmo!
Professora da 301- O Iago eu vou tentar encaminhar para o psicólogo também, porque assim como
o pai, o problema dele eu acho que é psicológico. Ele [Jonathan] já está indo.... mas o pai dele me
contou anteontem parece... Parece que foi depois da doença da mãe que ele ficou assim, mas eu
estava tentando resolver.
Professora da 302 – Eu chamo a mãe dele [Jonathan] mas também não adianta nada, parece que
passa a mão na cabeça dele.
Professora da 301- não... não passa não, é porque ela [mãe de Jonathan] está muito doente mesmo,
estava com aquela doença que o coração vai crescendo, meio mal mesmo...
Professora da 302 – na questão do conteúdo, eu acho assim, a turma é muito heterogênea tem uns
que sabem, mas tem outros que não sabem nada, a Carol, a Diana, não sabem nada, o caso do Alan,
do Cristian não sabem nem ler direito... tens uns que falam o tempo todo, tem uns que tem
problema e dá para gente acompanhar assim, mais de pertinho, tem uns que você sabe..., não
adianta....

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A diretora Demilda: Mas a mãe passa a mão na cabeça sim [voltando ao caso do Jonathan]. A mãe
falou que ele é muito injustiçado em casa também. Pois, tudo que acontece de ruim os irmãos
acham que foi ele.
Professora da 302: é isso que eu estou falando... a mãe, eu acho passa a mão na cabeça dele
Coordenadora Suely: ele estava nervoso, eu falei que ele estava rondando por aí, o Vanderlei falou
- nada disso, ele não está não. Ele disse que a mãe dele está de licença, ela enfartou a pouco tempo
A diretora Demilda: não ela não está licenciada,
Coordenadora Suely: pois é, ela falou, mas era mentira, depois chora né... se desculpando.
Professora da 302: Por que outros [estudantes] estão piores...
Diretora Demilda: porque a irmã [de Jonathan] também é meio questionável, porque teve um dia
aí que aconteceu uma coisa com o Lucas ou Leonan eu não me lembro bem com quem! Quem foi
Suely? (A diretora se perde no objeto da discussão, e cria um clima onde todos os estudantes são
suspeitos de algum problema familiar, todas as professoras passam a se defender de alguma coisa
que fizeram com seus alunos e alunas)
Suely: Foi o Lucas lembra que vocês chamaram a irmã dele porque ele estava faltando à beça ou
porque ela não estava trazendo Lucas para a escola, não me lembro bem o porquê! O que que foi...
Professora da 302: Ela estava trazendo o Lucas fora do horário...
Coordenadora Suely: Sim, ela estava trazendo o Lucas fora do horário.
Demilda: ih!!! minha filha!!!! Olha!!! a garota é tão desaforadinha!!!, eu tive que dizer umas
verdades para ela se acalmar...
Coordenadora Suely: Ela estava cheia de atitude!!!
Professora da 302: Calma, não é o Lucas!!!, era aquela garota que estava na secretária e pedia para
ir ao banheiro toda hora.
Coordenadora Suely: é irmã do Lucas sim...
Professora da 302: É a mãe dele [Lucas], eu pensei que fosse irmã, essa aí! Tão novinha já com
filho no 3º ano, é triste né!!!
Professora da 302: é né, porque tem várias [mães] que fazem isso com a gente, já vem com
atitude...
Coordenadora Suely: O Rafael estava faltando desesperadamente, a gente manda bilhete, elas
assinam e pronto... nem ligam...
Professora da 301 - eu peguei o pai dele [Rafael] essa semana, e falei com ele, e me olhou de cara
feia... eu só estou te falando que o Rafael era bastante forte e que agora ele está mais fraco....
Professora da 302: Sugestão para o caso do Rafael, sem muitas faltas ele vai completar as 60 faltas.
Coordenadora Suely: elimina ele e pronto....
Professora da 302: pega o livro e chama o pai para assinar, assim você já tem a assinatura dele,
né? Você segurou o bilhete que ele assinou!!! Assim você se protege ...
Professora da 301 - (com um ritmo na fala como se estivesse recitando) o Josué olha só! O Josué
está com R, mas o Josué é questionável. Porque Ele está com R, ele teve R no primeiro [bimestre]
ele está com R de novo no segundo, eu acho que foi R no primeiro, no segundo e R agora. Eu não
tenho certeza! mas ele... todas as crianças estão progredindo, mas o Josué o progresso dele é
muitooo lenttoo (fala vagarosamente). Eu não sei o conteúdo vai aumento, e ele se perdendo,
porque eu não estou trabalhando com eles só essa coisa da leitura, o pessoal mais forte trabalha
outras coisas: antônimos, plural das palavras, frases – negativas e afirmativas, tudo isso eles estão
fazendo né. Agora o Josué está muito lento, ele está no grupo dos mais fracos, está, mas ainda
assim ele é lento. Ele é meio sabe?! (fazendo um gesto com a mão ao lado da cabeça, como se ele
fosse “ruim” da cabeça). O Jefferson é bom, mas falta demais tem 30 faltas então tem coisas que
ele não consegue ler, porque no dia que eu trabalhei ele não veio. A Juliana está com 21 faltas!
agora detalhe, ontem a Juliana veio com um bilhete, eu até te mostrei (Professora Gisele fala: foi),
a mãe pedindo para liberar ela as11h. Por quê? Aí eu comecei a juntar as coisas, porque

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coincidentemente, a mãe estava na direção na hora que eu ia falar sobre isso. O irmão dela queria
ir embora para casa porque ele tinha vindo de manhã, eu achei muita coincidência. O menino vinha
de manhã e depois tinha que ir embora para casa e a Juliana tinha que ir embora junto.
Professora Gisele: Não, não ele é da Professora Rita. Ele [irmão de Juliana] estava ficando o dia
inteiro, ele estava vindo de manhã ficando o dia inteiro.
Professora Rita: Ele [irmão de Juliana] faltou, ele está faltando.
Coordenadora Suely: olha ai está vendo?!
Professora da 302: Mas ele vem de manhã gente!
Coordenadora Suely: Mas não vem a tarde!?
Professora Rita: mas nem de manhã ele está vindo
Professora da 302: está vindo sim!
Professora Rita: Tem dia que ele vem de tarde! Tem dia que vem pela manhã!
Professora da 302: Ontem ele estava aí, eu estou falando de ontem! Ontem ele estava aí
Professora Rita: mas ele não foi para sala de aula! Mas à tarde ele é comigo!
Coordenadora Suely: não, ele não é, por isso que ele foi buscar a mãe, a Diretora Demilda mandou
buscar a mãe, para resolver isso. Essa bagunça...
Diretora Demilda: Eu queria mandar a mãe levar ele para casa, mas a mãe veio no horário da
irmã... Eu acho que é melhor eliminar ele logo e ele volta no ano que vem... Assim não dá mais
trabalho (Conselho de classe do dia 06/10/2010).
Conselho de Classe do CIEP – Zona Sul

Fonte: Mattos, 2008


Análises e possíveis interpretações e resultados

Um olhar atento para as cenas e um ouvir ampliado das falas sobre os estudantes
evidencia um ‘clima’, descontraído ou pouco formal. Mostra ainda o “fraco
comprometimento dos participantes com as questões escolares” e a “pouca consideração”
com a situação dos pais dos estudantes mencionados, assim como com a forma como
esses pais lidam com os seus filhos e filhas.
O foco principal das justificativas se localiza no número de faltas que os
estudantes apresentam. Visto que um dos critérios mais utilizados para a reprovação pelas
escolas de modo geral, e que é previsto no regimento escolar e nas normas gerais do
sistema de ensino é de que se os alunos que ultrapassam 25% de faltas (50 dias dos 200

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previstos) são automaticamente excluídos do sistema. As faltas também constam como
um dos condicionantes para que as mães dos estudantes em idade escolar possam receber
o auxílio da “bolsa família”2.
Nota-se a direta associação entre o comportamento dos estudantes e a percepção
que as professoras têm sobre o comportamento dos familiares expressos por termos como:
“desaforandinha”; “com muita atitude”; “passa a mão na cabeça”; “não adianta”; “gestos
que indica que o aluno “é ruim da cabeça”; “me olhou de cara feia”; “assim ele não dá
mais trabalho”; “elimina logo” e outros... Eles fazem parte do repertório das falas para
descreverem como os estudantes – individualmente – são portadores de ‘distúrbios’ que
os levam a problemas não somente acadêmicos, mas de confronto com as normas de sala
de aula e da escola.
O ‘clima escolar’ nessas cenas se caracteriza pela desorganização e caos em
relação aos modos de interação ‘que se espera’ de profissionais responsáveis pelas vidas
acadêmicas e pela formação socioeducacional de jovens em idade escolar. Caracteriza
ainda a ‘cultura de cancelamento’: eles são ‘anulados’, ‘invisibilizados’ e ‘excluídos’ em
suas identidades como alunos e alunas. São também nomeados e julgados como
estudantes com comportamentos ‘impróprios’ ao contexto escolar. Assim como os seus
familiares são vistos como pessoas “sem preparo”, ou “sem educação doméstica” para
lidar com as professoras e com a escola.

2
O Bolsa Família é um programa da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (Senarc), que contribui para o combate
à pobreza e à desigualdade no Brasil. Ele foi criado em outubro de 2003 e possui três eixos principais: complemento
da renda; acesso a direitos; e articulação com outras ações a fim de estimular o desenvolvimento das famílias. Tem
como condicionalidades, o acompanhamento das informações das crianças e dos adolescentes de 6 a 17 anos que
deverão ter a frequência escolar verificada, informações das crianças de 0 a 6 anos que deverão ter o calendário vacinal,
o peso e a altura acompanhados, além de dados das mulheres em idade fértil para identificação das gestantes e
acompanhamento do pré-natal (BRASIL, 2022)

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O ‘clima escolar’ e a ‘cultura do
cancelamento’, formam uma dialética com a
‘resiliência’ dos estudantes e seus pais.
Poder-se-á tomar como exemplo o
caso do irmão da Juliana que insiste em
comparecer à escola em horários duplos,
numa tentativa de compensar suas faltas, mas
o fato é interpretado como uma ‘bagunça’ e
impertinência, levando-o a ser considerado
como um ‘caso para eliminação’.

Considerações finais
Infelizmente ainda vivemos a cultura da reprovação e contribuindo para a evasão
escolar, aumento das dificuldades de aprendizagem que podem derivar dos aspectos
emocionais como também cognitivos. Precisamos urgente substitui este cenário pela
cultura da recomposição da aprendizagem para que nenhum aluno ou aluna fique para
trás. Ao retomarmos a leitura acerca da Declaração Mundial sobre Educação para Todos
(UNICEF, 1990) verifica-se que a educação é um direito fundamental de todos, mulheres
e homens, de todas as idades, no mundo inteiro e embora a educação não seja condição
suficiente, é de importância fundamental para o progresso pessoal e social. A educação
básica se torne equitativa, é mister oferecer a todas as crianças, jovens e adultos, a
oportunidade de alcançar e manter um padrão mínimo de qualidade da aprendizagem.

Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as


oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de
aprendizagem. Essas necessidades compreendem tanto os instrumentos essenciais para a
aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de
problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos,
habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos possam
sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com
dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida,
tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo. A amplitude das necessidades
básicas de aprendizagem e a maneira de satisfazê-las variam segundo cada país e cada
cultura, e, inevitavelmente, mudam com o decorrer do tempo (UNICEF, 1990).
Este artigo apresentou cenários pesquisados e que apontam a realidade que
meninas e meninos enfrentam na jornada de uma aprendizagem ou diploma que auxilie
na ruptura do ciclo da pobreza. O direito a educação e uma educação para todos não deve
ser entendido como retórica e nem desejo, mas sim um cenário que torne o continente
Brasil em situação de crescimento social e de educação inclusiva. Concluirmos com duas

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questões para reflexão e ação: O que você pode fazer hoje para seus alunos e alunas? O
que você pode fazer hoje para sua escola se tornar inclusiva?

Referências
BONAMINO, A.; FRANCO, C.; ALVES, F. The color of educational inequalities. In:
Global Conference on Education Research for Developing Countries, 2005, Prague.
Proceedings, 2005.
BOTTRELL, D. Resistance, resilience and social identities: reframing ‘problem youth’
and the problem of schooling. Journal of Youth Studies, v. 10, n. 5, p. 597-616, nov.
2007.
BRASIL. Bolsa Família. Brasília: Ministério da Cidadania, 2022. Acesso em
https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/outros/bolsa-familia, acessado
em 09/04/2022
BRASIL. Resolução Nº 466 do CNS, de 12 de dezembro de 2012. Conselho Nacional
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https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
acessado em 29/03/2022. Acessado em 10/04/2022
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