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Poções

Havia crianças e poços. As crianças se enfileiravam, uma atrás da outra, na frente


destes poços. Dois deles estavam mais visíveis às crianças, que se acomodavam, um
após o outro, à frente dos misteriosos abismos. Cada criança tinha a sua vez de olhar
para o poço e ter pequenas visões de uma possível vida, algumas ao verem uma vida
que as agradava, se jogavam de primeira, sem medo algum do que viam. Outras, por
outro lado, negavam o primeiro poço, pois a vida que viam não era para elas, entravam
na outra fila, e logo se jogavam no segundo. Assim, era o ritmo dessa realidade.
Entretanto, um fenômeno muito raro acontecia nesse lugar, a cada mil anos. Uma
dessas crianças era escolhida. Ela se colocava numa dessas fileiras, andava, andava e
andava, até chegar sua vez de olhar para um dos poços, ao olhar o um vislumbre de
uma possível vida, se apavorava. Dava um grito. Todas as outras crianças olhavam
para ela, mas o susto era algo normal ao se olhar na água. Algumas das visões eram
muito dolorosas. Depois do susto, ela se colocava na segunda fileira, andava, andava e
andava mais um pouco. Olhava para o segundo poço. Via na água o reflexo de uma
vida e novamente se apavorava. Gritava, rugia, urrava estremecendo o chão com sua
voz.
As outras ao verem tal acontecimento, realmente se assustavam, pois uma delas havia
negado os poços, seus sagrados e profundos reservatórios. Todas olhavam,
apreensivas, sem saber o que fazer. Assim, uma divindade que só os visitava num
desses momentos raros, guiava essa criança para outro lugar, um terceiro poço. O
caminho para esse lugar não era nada convidativo, era muito apertado, muito difícil de
se passar. Era um poço entre os poços, um espaço entre os espaços, mas era o
caminho a seguir, era o lugar daquele ser.
Com seus pequenos pés, ela passa a tão estreita brecha. Quando olha para trás, vê as
outras crianças curiosas e a divindade com um olhar acolhedor, que a faz continuar.
Chegando à beira do tanque, vê uma vida. Um bebê que nasce e já tem suas roupas
azuis, com um quarto branco e verde. Ao crescer, seus familiares compram uma
bicicleta preta e baixa, seus cabelos são sempre aparados, sempre usa shorts ou calça
e camiseta. Crescendo mais um pouco se vê negando tudo isso, dizendo que suas
roupas são vestidos, saias e blusas bufantes. Sua bicicleta tem que ser rosa, com
cestinha e banquinho atrás. A visão acaba. A criança não se assusta.

E ela se joga.

R.D.
Mas o que acontecia ao se jogarem no poço? Entravam em nosso mundo, como
bebês,

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