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TEORIAS DE INCAPACITAÇÃO BALÍSTICA

O estudo do resultado do tiro sob o ponto de vista da incapacitação e dos


resultados dos ferimentos dos tiros não é recente. Desde o advento das armas
de fogo os fenômenos e ferimentos dos tiros são estudados. Ambroise Paré
(1510-1590) foi um dos primeiros médicos a estudar os efeitos dos tiros e o
tratamento dos ferimentos produzidos por projéteis propelidos por armas de
fogo, publicando em 1545 a obra “La Méthode de traicter lês playes faites par
les arquebuses et autres bastons à feu” (Método de tratar ferimentos feitos por
arcabuzes e outras armas de fogo).

Os estudos de Thompson-LaGarde

Com a grande evolução nos projetos de armas de fogo ocorridos no final do


século XIX e início do século XX, o governo americano encomendou e
financiou diversos estudos a respeito da incapacitação balística. Um dos
primeiros estudos do século XX foi conduzido pelo à época Capitão de
Artilharia John Taliaferro Thompson e pelo à época Major Cirurgião Médico
Louis Anatole La Garde, que desenvolveram estudos utilizando primeiramente
cadáveres humanos e em seguida bovinos e equinos vivos para testes práticos
de tiro (THOMPSON e LA GARDE, 1904).

Segundo o próprio relatório de Thompson-La Garde, o objetivo era determinar


qual seria o “efeito de choque” (shock effect), também definido por eles como
“poder de parada” (stopping power) dos projéteis dos calibres testados. Para
isso foram utilizados cadáveres pendurados pela cabeça, que eram alvejados
nos membros e avaliada a movimentação decorrente do tiro, considerando o
projétil atingindo apenas partes moles e atingindo o osso na sua parte extrema
e mediana. A movimentação foi medida em uma escala de 0 a 100, porém tal
“medição” era na verdade subjetiva, pois se baseava na observação dos
autores. Depois de alvejados, os cadáveres eram radiografados e examinados
para verificar as características dos ferimentos. Em seguida, os testes foram
realizados em bovinos (bois, vacas e touros de diferentes idades) vivos, sendo
alvejados em três partes: partes vitais, partes não-vitais e anatomia relativa à
locomoção. Eram verificados os efeitos tanto nas reações do animal como
sinais externos, por exemplo o sangramento pelas narinas, bem como o tempo
que os animais demoravam para tombar e agonizar até a morte. Aqueles que
agonizavam por mais de seis minutos eram executados com marteladas na
cabeça. Finalmente foram feitos testes em cavalos, que eram alvejados na
cabeça e depois esquartejados, sendo cada parte novamente alvejada,
verificando os efeitos dos tiros.

As conclusões dos testes mostraram que os projéteis que apresentavam o


“efeito de choque” e “poder de parada” a curtas distâncias para pistolas ou
revólveres militares teriam que apresentar calibre igual ou maior que 0,45”.
Recomendavam ainda que os projéteis empregados fossem encamisados, com
as pontas feitas de liga mais macia para garantir o “efeito de cogumelo” que,
segundo os autores, aumentaria o “poder de parada”.

Apesar dos esforços de Thompson-LaGarde em determinar de maneira mais


científica o desempenho de cada calibre na incapacitação, a metodologia e os
resultados foram muito questionados. Um dos argumentos empregados foi o
número reduzido de ensaios, que era insuficiente para uma análise estatística
minimamente decente. Outra acusação procurava mostrar que os autores
tentaram polarizar os resultados de maneira a favorecer calibres maiores. Mas
a história das tentativas de tratar objetivamente o poder de incapacitação de
cada calibre estava só começando...

1 O Fator de nocaute de Taylor e a fórmula de “poder de parada” de


Thorniley

A busca por um mecanismo de avaliação objetiva da incapacitação alcançada


por cada calibre levou a diversas propostas para uma fórmula que pudesse
sozinha classificar o poder de cada calibre. Na primeira metade do século XX
alguns caçadores tentaram empregar fórmulas para estabelecer os calibres
mais adequados para cada tipo de caça. Assim surgiram, dentre outras, duas
fórmulas para determinar o potencial de incapacitação para projéteis propelidos
por armas de fogo: o fator de nocaute de Taylor (The Taylor Knoch Out Factor,
ou simplesmente TKOF) e a fórmula de poder de parada de Thorniley.
John Howard "Pondoro" Taylor era um caçador de caças grandes e marfim que
nas suas caçadas percebeu que alguns calibres eram mais adequados para
derrubar elefantes do que outros. Ele percebeu que diversos calibres eram
capazes de matar um elefante se atingisse o cérebro do animal, porém estava
mais preocupado em situações em que por erro o cérebro não fosse atingido,
fazendo com que o animal atacasse o caçador. Se dedicou então a estudar e
desenvolver calibres que pudessem atordoar os elefantes, mesmo que
atingidos em uma região não vital, por tempo suficiente para que o atirador
remuniciasse a arma e pudesse efetuar um tiro mais preciso. Baseado nisso
propôs a fórmula:

A fórmula de Taylor privilegiava calibres mais lentos e pesados em detrimento


de calibres mais rápidos e leves. Assim como outros estudos sobre o tema, a
forma de Taylor sofreu muitas críticas e elogios.

Já a fórmula de “poder de parada”de Thorniley foi desenvolvida por outro


caçador, Peter Thorniley, e utilizava as mesmas variáveis em relação à fórmula
de Taylor, com a diferença da contribuição do diâmetro do projétil ser reduzido
em escala quadrática:

A fóruma de Thorniley era aplicada por ele e sua experiência em suas caçadas
lhe permitiu estabelecer a seguinte tabela, de acordo com o resultado
encontrado:
Thorniley Stopping Power Adequado para

45 Antílope

50 Cervo do rabo branco, Cervo Mula etc.

100 Urso negro

120 Alce, Kudu, Zebra etc.

150 Leão, Leopardo, Urso Pardo, Urso Marrom

250 Hipopótamo, Rinoceronte, Búfalo, Elefante

2 A Fórmula de Hatcher ou Poder de Parada Relativo

Desenvolvida e proposta pelo General do Exército Julian Hatcher, autor do


conhecido Hatcher`s Notebook, a Fórmula de Hatcher apresenta algumas
variáveis semelhantes às fórmulas de Taylor e Thorniley, tais como a massa e
a velocidade (momento linear), entretanto ao invés do diâmetro emprega a
área da seção transversal do projétil e um fator de forma que está associado
ao formato do projétil:
Figura 1 - Mostra o fator de forma do projétil desenvolvido por Hatcher
(Hatcher, 1947).

O fator de forma fazia com que cartuchos de mesmo caliber carregados com
projéteis de formatos diferentes apresentassem valores diferentes para o poder
de parada relativo. Para propósitos de defesa, a escala de Hatcher
recomendava que o valor de poder de parada relativo do calibre empregado se
situasse entre 50 e 55. Fatores superiores a 55, segundo ele, dificultariam a
recomposição de visada em virtude do forte recuo apresentado. Ainda segundo
Hatcher, valores abaixo de 30 significariam uma chance menor que 30% de
parar o alvo com um único tiro. Para valores entre 30 e 49, as chances subiam
para 50% e para valores acima a chance de parar o alvo com um único tiro era
de 90%. A maioria dos cartuchos de calibre .45ACP apresentavam valores
acima de 50 enquanto a maioria dos cartuchos de calibre 9mmLuger
apresentavam valores entre 30 e 40, de forma que a fórmula de Hatcher
também privilegiava calibres mais pesados e mais lentos, como por exemplo o
.45ACP e .44Magnum, em detrimento de calibres mais leves e rápidos, como
por exemplo o calibre 9mmLuger.
Por ser a primeira fórmula a descrever o desempenho balístico de maneira
minimamente decente, o poder de parada relativo de Hatcher foi usado durante
muitos anos como referencial para a medição de desempenho balístico dos
diversos calibres de arma de fogo.

Os estudos de Marshall e Sanow

Uma das obras mais famosas relacionadas à incapacitação de ferimentos de


tiro foi desenvolvida ao longo de quinze anos por Evan P. Marshall e Edwin J.
Sanow, intitulada The Handgun Stopping Power. Diferente dos autores citados
anteriormente, Marshall e Sanow não procuraram estabelecer uma fórmula
como critério para definir o poder de incapacitação de um determinado calibre.
Ao contrário, recorreram a diversos relatórios médicos e policiais e
desenvolveram uma extensa pesquisa ao longo de quinze anos, publicando
seus resultados na obra supracitada.

Um aspecto muito interessante da obra é o trecho em que os autores inciam a


explicação sobre o mecanismo de colapso (incapacitação):

“O poder de parada é uma ilusão. É importante


começar um livro sobre o poder de parada de armas
portáteis com isso em mente. Não existem projéteis
mágicos. Não existem calibres ‘paradores de
homens’. Não existe essa coisa de poder de parada
com um tiro.” (MARSHALL e SANOW, 1992)

Apesar de bastante extensa e com excelentes observações do ponto de vista


técnico, a obra de Marshall e Sanow foi severamente criticada em virtude da
metodologia empregada para avaliar a eficiência das diversas configurações de
calibres. No capítulo “Actual Bullet Effectiveness” a obra apresenta uma
extensa lista de calibres, relacionando o número total de confrontos em que
foram empregados, o número de situações em que um único tiro resultou na
incapacitação e qual o percentual entre esses dois dados. Ora! Se a introdução
do capítulo sobre incapacitação já fala que a incapacitação com um único tiro é
um mito, qual é a lógica de se fazer uma análise estatística justamente com
este dado?!

Apesar desse deslize homérico, o trabalho de Marshall e Sanow merece ser


lido e estudado pelos interessados no assunto.

O confronto conhecido como Miami Shootout, ocorrido em 1.986 em Miami


motivou estudos do FBI para determinar qual seria a nova arma de dotação
tanto dos policiais regulares quanto dos integrantes das unidades de
Operações Especiais. Logo no início dos estudos se percebeu que antes
mesmo de definir o modelo da arma seria necessário optar pelo calibre mais
adequado para emprego. Na época havia duas linhas distintas de calibres
comumente empregados: calibres mais lentos e mais pesados, representados
pelo calibre .45ACP, e calibres mais leves e mais rápidos, cujo mais comum
era o calibre 9mmLuger.

Visando esclarecer qual seria a melhor opção para as armas a serem


desenvolvidas, o FBI realizou um seminário reunindo diversos especialistas na
Academia do FBI para discutirem sobre os aspectos relativos à incapacitação
balística e aos desempenhos balísticos dos calibres .45ACP e 9mmLuger.
Seguem algumas conclusões do estudo:

Sobre os ferimentos:

 Exceto para os casos em que o tiro atinge o Sistema Nervoso Central


(SNC), NENHUM dos calibres era capaz de resultar em incapacitação
imediata de maneira confiável e reprodutível;
 A incapacitação depende totalmente do estado físico, psicológico do
indivíduo, incluindo o efeito ou não de narcóticos, álcool ou adrenalina;
 Mesmo que o coração fosse destruído, o cérebro ainda possui oxigênio
suficiente para ações completamente voluntárias durante 10 a 15
segundos;
 A cavidade temporária não produzia ferimentos consideráveis, ou seja,
os órgãos somente eram danificados se atingidos diretamente pelo
projétil;
 O fator mais importante para garantir a efetividade de um calibre é a
capacidade de penetração;
 Considerando a mesma penetração, projéteis maiores destroem mais
tecidos e causam maior sangramento;
 Exceto nos casos em que se atinge o SNC, a incapacitação somente
pode ser forçada por uma perda considerável de sangue, cujo tempo
depende da penetração suficiente para alcançar vasos sanguíneos mais
volumosos, passando através de roupas, gordura, músculos, membros,
etc;
 Qualquer projétil que não consiga penetração de no mínimo 30 a 45
centímetros é inadequada;
 A penetração depende da massa e desenho do projétil, não da
velocidade;

Sobre a escolha entre os calibres 9mmLuger e .45ACP

 Considerando o projétil padrão em ambos os calibres, não existe opções


do calibre 9mmLuger que se equiparem ao calibre .45ACP, nem mesmo
os projéteis expansivos
 Se o projétil de calibre 9mmLuger expande, ele não penetra o suficiente.
Se não expande, atravessa sem entregar toda a energia ao alvo
 Três dos especialistas recomendaram o calibre .45ACP em detrimento
ao calibre 9mmLuger
 Cinco disseram que o calibre não faz diferença
 Apenas um recomendou o calibre 9mmLuger ao invés do .45ACP

Conclusões gerais do estudo:

 Como a incapacitação imediata não pode ser prevista, o policial deve


continuar atirando ATÉ ENQUANTO O ALVO REPRESENTE UMA
AMEAÇA
 Apesar da expansão ser desejável, não se deve confiar nesta expansão
para que o projétil funcione adequadamente
 Se o policial confia na efetividade da combinação arma/munição, então
ele tende a atirar melhor com aquela arma

Este breve texto não tem a pretensão de esgotar o tema das teorias de
incapacitação balística e dos mecanismos de incapacitação, pelo contrário! O
objetivo é despertar no aluno a curiosidade sobre o tema e a percepção que,
apesar de ser objeto de estudo de mais de um século, ainda não há um
consenso entre os especialistas sobre como se dá o mecanismo de
incapacitação balística e, afinal, qual é o melhor calibre de armas de fogo para
a defesa e uso policial.

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