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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm
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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm
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Central e do Caribe e mais ainda com relação às tristes economias de países como
a Jordânia, o Líbano e o Haiti.4 O número de países que permitem dupla
nacionalidade dobrou de 1995 a 2004, quando chegou a 93 Estados. Com efeito, a
emigração já não implica uma escolha duradoura entre os países.
Ainda não é possível julgar os efeitos dessa extraordinária mobilidade
transfronteiriça sobre os conceitos mais antigos de nação e nacionalismo, mas não
há dúvida de que eles serão substanciais. Como Benedict Anderson observou com
acuidade, o documento crucial de identidade do século XXI não é a certidão de
nascimento do Estado nacional, e sim o documento internacional de identidade - o
passaporte. Qual é a profundidade com que a nacionalidade plural, real ou potencial
- por exemplo, a origem americana de políticos de antigos países comunistas, a
identificação de judeus dos Estados Unidos com os governos israelenses - têm
afetado ou pode vir a afetar a lealdade de um cidadão a um Estado nacional?6 Qual
é o significado dos direitos e obrigações de"cidadania" nos Estados em que uma
proporção substancial dos seus habitantes, em qualquer momento que se escolha,
está ausente do território nacional ou em que uma proporção substancial dos
residentes permanentes têm direitos inferiores aos dos cidadãos nacionais? Dada a
escala dos movimentos, legais e clandestinos, qual é o efeito do declínio do poder
do Estado para controlar o que acontece no seu território, ou mesmo - como a
recente falta de confiabilidade dos censos nos Estados Unidos e na Grã- Bretanha
parece indicar-para saber quem nele reside? Essas são perguntas que temos de
formular, mas que ainda não podemos responder.
O terceiro elemento, a xenofobia, não é novo, porém sua escala e suas
implicações foram subestimadas nos meus próprios trabalhos sobre o nacionalismo
moderno. Mesmo na Europa, berço histórico das nações e do nacionalismo, e, em
menor grau, em países como os Estados Unidos, formados em grande parte pela
imigração em massa, a nova globalização de movimentos reforçou a longa tradição
popular de hostilidade econômica à imigração em massa e de resistência ao que se
vê como ameaças à identidade cultural coletiva. A força real da xenofobia é
percebida no fato de que a ideologia do capitalismo globalizado dos mercados
livres, que se implantou nos principais governos nacionais e instituições
internacionais, fracassou redondamente no estabelecimento da livre movimentação
internacional da força de trabalho, ao contrário do que ocorreu com o capital e o
comércio. Não há governo democrático que tenha condições de apoiá-la. Contudo,
esse avanço evidente da xenofobia reflete os cataclismos sociais e a desintegração
moral do final do século XX e da época atual, assim como os grandes movimentos
internacionais de população. A combinação é naturalmente explosiva, em especial
em países e regiões étnica, confessional e culturalmente homogêneos e
desacostumados a grandes influxos de estrangeiros. Por essas razões, propostas
de transformação de capelas protestantes que já não são utilizadas em mesquitas
para uma florescente religião de imigrantes causaram recentemente um rápido
clamor em países tranqüi-los e tolerantes como a Noruega, reação que, ademais,
será com certeza bem compreendida por todos os leitores deste livro nas velhas
pátrias européias do nacionalismo.
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As perspectivas da democracia
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Com efeito, na oratória política do nosso tempo, que em sua quase totalidade
pode ser descrita, nas palavras do grande Leviatã de Thomas Hobbes, como
"discurso insignificante", o termo "democracia" tem como significado esse
modelo-padrão de Estado; e isso significa um Estado constitucional, que oferece a
garantia do império da lei e de vários direitos e liberdades civis e políticas e é
governado por autoridades, que devem necessariamente incluir assembléias
representativas, eleitas por sufrágio universal e por maiorias numéricas entre todos
os cidadãos, em eleições realizadas a intervalos regulares entre candidatos e/ou
organizações que competem entre si. Os historiadores e os cientistas políticos
podem recordar-nos, e com razão, de que esse não é o significado original de
democracia e de que com certeza não é o único. Mas, para meus propósitos aqui,
isso não é relevante. A democracia liberal é o que nos confronta hoje, e suas
perspectivas são o tema da minha exposição.
Será algo mais pertinente lembrar que não há uma conexão necessária ou
lógica entre os vários fatores do conglomerado que compõe a "democracia liberal".
Estados não-democráticos podem ser construídos com base no princípio do
Rechtsstaat, ou estado de direito, como eram, sem dúvida, a Prússia e a Alemanha
imperial. As constituições, mesmo as que são efetivas e operacionais, não têm de
ser democráticas. Sabemos, desde Tocqueville e John Stuart Mill, que a liberdade e
a tolerância para com as minorias frequentemente são mais ameaçadas do que
protegidas pela democracia. Sabemos também, desde Napoleão , que regimes que
chegam ao poder por meio de golpes de Estado podem continuar a receber apoio
majoritário genuíno mediante o apelo sucessivo ao sufrágio universal (masculino).
E-para escolher apenas alguns exemplos recentes - nem a Coréia do Sul nem o
Chile das décadas de 1970 e 1980 sugerem um vínculo orgânico entre capitalismo e
democracia, ainda que ambos sejam tratados quase como gêmeos siameses na
retórica política dos Estados Unidos. De toda maneira, como aqui estamos lidando
com a prática política e social dos nossos dias, e não com teorias, essas questões
podem ser vistas como nuances acadêmicas, salvo na medida em que sugerem que
grande parte da defesa que se faz da democracia liberal baseia-se mais em seu
componente constitucional liberal do que em seu componente democrático ou, mais
precisamente, eleitoral. A defesa do voto livre não se faz porque ele garante os
direitos, mas porque permite ao povo (em teoria) livrar-se de governos impopulares.
Contudo, há três observações críticas que têm relevância mais imediata.
A primeira é óbvia, mas seu significado não é sempre reconhecido. A
democracia liberal, como qualquer outra forma de regime político, requer uma
entidade política no interior da qual possa ser exercida, normalmente o tipo de
Estado conhecido como "Estado nacional". Não é aplicável a campos em que tal
entidade não exista ou não pareça em processo de vir a existir, o que se observa
principalmente nos assuntos globais, por mais urgentes que sejam nossas
preocupações nesse sentido. Qualquer que seja a maneira pela qual a
descrevemos, a política das Nações Unidas não pode ser inserida no marco da
democracia liberal, exceto como figura de linguagem. E está por ver-se se a da
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União Européia como um todo pode sê-lo. Essa é uma ressalva de grande
substância.
A segunda observação lança dúvidas sobre a proposição amplamente aceita
- e universalmente incorporada ao discurso público americano - de que o governo
liberal-democrático é sempre, ipso facto, superior, ou pelo menos preferível ao
governo não-democrático. Isso é, sem dúvida, verdadeiro, fazendo-se tabula rasa
de todos os demais fatores, mas nem sempre se pode fazer tabula rasa de todos os
demais fatores. Não pedirei que se considere o caso da empobrecida Ucrânia, que
incorporou a política democrática (mais ou menos) ao preço de perder dois terços
do modesto produto nacional bruto que gerava nos tempos soviéticos. Veja antes o
caso da Colômbia, uma república que, para os padrões latino-americanos - o critério
hoje aceito universalmente -, tem um passado quase único de governo democrático,
constitucional e representativo virtualmente contínuo. Dois partidos que rivalizam
nas eleições, o Liberal e o Conservador, têm se mantido em competição, como
requer a teoria. A Colômbia nunca esteve sob o poder de militares ou de caudillos
populistas por mais do que breves momentos. E, no entanto, embora o país não
tenha se envolvido em guerras internacionais, o número de pessoas assassinadas,
mutiladas e expulsas de suas casas nos últimos cinqüenta anos chega a milhões.
Esses números são, por certo, incomparavelmente superiores aos de qualquer outro
país desse continente notoriamente infestado de ditaduras militares. Não estou
sugerindo que os regimes não-democráticos sejam melhores do que os
democráticos. Simplesmente recordo o fato, tantas vezes ignorado, de que o
bem-estar dos países não depende da presença ou da ausência de um tipo de
arranjo institucional, por mais recomendável que este seja, do ponto de vista moral.
A terceira observação foi expressa na frase clássica de Winston Churchill: "A
democracia é o pior de todos os governos, com exceção de todos os demais".
Embora a frase seja normalmente considerada como um argumento a favor da
democracia representativa liberal, ela é, na verdade, a expressão de um profundo
ceticismo. Qualquer que seja a retórica nas campanhas eleitorais, os analistas
políticos e os próprios participantes mantêm-se extremamente céticos a respeito da
democracia representativa de massas como maneira de governar, ou como
qualquer outra coisa. A folha de serviços da democracia é essencialmente negativa.
Mesmo como alternativa a outros sistemas, ela só pode ser defendida com um
suspiro de resignação. Isso não importou muito durante a maior parte do século XX,
uma vez que os sistemas políticos que a desafiaram - tanto a direita como a
esquerda autoritárias até o fim da Segunda Guerra Mundial e principalmente a
esquerda autoritária até o fim da guerra fria - eram patentemente horríveis, ou pelo
menos assim pareciam à maioria dos liberais. Antes que a democracia
representativa liberal passasse a sofrer esses desafios, seus defeitos intrínsecos
como sistema de governo eram evidentes para a maior parte dos pensadores
sérios, assim como para os que se dedicavam à sátira. Com efeito, isso era
discutido ampla e francamente mesmo entre os políticos, até que se tornou
desaconselhável para eles dizer em público o que realmente pensavam a respeito
da massa de votantes de quem dependia sua própria eleição. Nos países onde a
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tradição dos governos representativos estava estabelecida havia muito tempo, ela
era aceita não só porque os sistemas alternativos pareciam ser piores, mas também
porque, ao contrário do que ocorrera na terrível era das guerras e das catástrofes
econômicas mundiais, muito poucas pessoas sentiam a necessidade de um sistema
alternativo - particularmente em uma era de prosperidade geral, que melhorou as
condições de vida até dos pobres, e de sistemas robustos de bem-estar social. Não
é de modo algum certo que muitas partes do planeta que hoje têm governos
nominalmente representativos desfrutem efetivamente desse estado de felicidade.
É e sempre foi muito fácil criticar a retórica de campanha da democracia
liberal como maneira de governar. No entanto, uma coisa é inegável: "o povo"
(qualquer que seja o grupo humano definido como tal) é hoje a base e o ponto
comum de referência de todos os governos nacionais, exceto os teocráticos. E isso
não só é inevitável como está certo, pois, se o governo tem algum propósito, este
tem de ser o de falar em nome de todos os cidadãos e zelar pelo bem-estar deles.
Na era do homem comum, todos os governos são do povo e para o povo, embora
seja evidente que, do ponto de vista operacional, eles não podem ser governos
feitos pelo povo. Esse era um terreno comum a democratas liberais, comunistas,
fascistas e nacionalistas de todos os tipos, ainda que suas ideias diferissem quanto
à maneira de formular, expressar e influenciar a "vontade do povo". É a herança
comum que o século XX, o século das guerras totais e das economias coordenadas,
deixou para o século XXI. Tem por base não só o igualitarismo de povos, que já não
querem aceitar uma posição de inferioridade em uma escala social governada por
"superiores", mas também o fato de que até aqui as economias, os sistemas sociais
e os Estados nacionais modernos não conseguem funcionar sem o apoio passivo e
mesmo a mobilização e a participação ativa de muitos de seus cidadãos. A
propaganda de massas foi um elemento essencial mesmo em regimes que estavam
prontos para aplicar coerção ilimitada sobre seus povos. Nem as ditaduras
conseguem sobreviver por muito tempo quando seus súditos perdem a disposição
de aceitar o regime. Essa foi a razão pela qual, quando chegou o momento, os
regimes chamados "totalitários" da Europa oriental, juntamente com os que lhe
permaneciam fiéis no aparelho estatal e com seus mecanismos de repressão, que
mantinham boas condições de organização, desapareceram rapidamente e em
silêncio.
É a herança do século XX. Continuará ela a ser a base do governo popular,
inclusive da democracia liberal, no século XXI? O argumento desta palestra é que a
fase atual do desenvolvimento capitalista globalizado a está afetando e que isso terá
e já está tendo sérias implicações para a democracia liberal, tal como é atualmente
entendida. A política democrática baseia-se em duas premissas, uma moral, ou, se
você preferir, teórica, e outra de ordem prática. Moralmente falando, ela requer que
a maior parte dos cidadãos, o que se presume ser a maior parte dos habitantes do
país, apoie expressamente o regime. Apesar de sua natureza internamente
democrática, os arranjos adotados pelos brancos da África do Sul no tempo do
apartheid, regime que excluiu permanentemente da política a maior parte da
população, não podem ser considerados democráticos. O ato de expressar
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políticos e ideólogos, a um laissez faire ultra- radical, que critica o Estado e sustenta
que seu papel tem de ser reduzido a qualquer preço. Essa linha argumenta, mais
por convicção teórica do que por evidência histórica, que todo e qualquer serviço
que as autoridades públicas podem proporcionar ou são indesejáveis ou podem ser
fornecidos pelo "mercado" de maneira melhor, mais eficiente e mais barata. Desde
então, a substituição dos serviços públicos (e, aliás, também os serviços
cooperativos) por serviços privados ou privatizados tem sido maciça. Atividades
características dos governos nacionais ou locais, como as dos correios, prisões,
escolas, fornecimento de água e mesmo serviços sociais, têm sido transformadas
em empresas de negócios ou entregues a elas; e os funcionários públicos,
transferidos para agências independentes ou substituídos por contratistas
comerciais. Até segmentos da atividade bélica têm sido terceirizados. E,
evidentemente, o modus operandi da empresa privada com fim lucrativo tornou-se o
modelo ao qual até o governo aspira. Na medida em que isso acontece, o Estado
tende a confiar nos mecanismos econômicos privados para substituir a mobilização
ativa e passiva dos seus cidadãos. Ao mesmo tempo, não se pode negar que, nos
países ricos do mundo, os triunfos extraordinários da economia põem à disposição
da maioria dos consumidores mais do que o governo ou qualquer ação coletiva
jamais prometeu ou propiciou em tempos menos ricos.
Mas aí está precisamente o problema. O ideal da soberania do mercado não
é um complemento à democracia liberal, e sim uma alternativa a ela. É, na verdade,
uma alternativa a todos os tipos de política, pois nega a necessidade de decisões
políticas, que são justamente aquelas relativas aos interesses comuns ou grupais
que se distinguem da soma das escolhas, racionais ou não, dos indivíduos que
buscam suas preferências pessoais. Em todos os casos, ela sustenta que o
processo seletivo contínuo de descobrir o que as pessoas desejam, que o mercado
(e as pesquisas de mercado) proporciona, é necessariamente mais eficiente do que
o recurso ocasional ao método tosco de contar votos em eleições. A participação no
mercado substitui a participação na política. O consumidor toma o lugar do cidadão.
Francis Fukuyama chega a argumentar que a escolha de não votar, assim como a
escolha de ir a um supermercado e não à lojinha da esquina, "reflete uma escolha
democrática que as populações fazem. Elas querem a soberania do consumidor".
Sem dúvida, querem. Mas essa escolha é compatível com o que tem sido visto
como um sistema político liberal-democrático?
Assim, o Estado territorial soberano, que é o elemento essencial da política,
democrática ou qualquer outra, está hoje mais fraco do que nos períodos anteriores.
O alcance e a efetividade das suas atividades são menores do que nos períodos
anteriores. Seu controle sobre a obediência passiva e sobre os serviços ativos dos
seus súditos ou cidadãos é declinante. Os dois séculos e meio de crescimento
ininterrupto do poder, do alcance, das ambições e da capacidade de mobilizar os
habitantes dos Estados territoriais modernos, qualquer que seja a natureza ou a
ideologia dos seus regimes, parecem ter chegado ao fim. A integridade territorial
dos Estados modernos (o que os franceses chamam de "República una e
indivisível") já não é tida como inquestionável. Dentro de trinta anos haverá uma
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eleitorais do Ocidente e das ex-colônias, uma ameaça muito mais forte do que o
comunismo. O século não parece tão favorável a elas-nenhum dos numerosos
Estados ex-comunistas escolheu esse caminho - e, de qualquer maneira,
praticamente todos esses regimes carecem da coragem das convicções
antidemocráticas e se proclamam simplesmente defensores da Constituição até a
data (não especificada) do retorno ao regime civil. Isso não quer dizer que
estejamos testemunhando o fim dos governos instalados por soldados e tanques
nas esquinas das cidades, sobretudo nas muitas regiões em que prevalecem a
pobreza e a inquietação social.
Enfim, quaisquer que fossem as expectativas antes dos terremotos
econômicos de 1997-98, já está claro, agora, que a utopia de um mercado de tipo
laissez-faire, global e anárquico não acontecerá. A maior parte da população
mundial, e com certeza os que vivem em regimes de democracia liberal que
merecem o nome, continuará, portanto, a viver em Estados operacionalmente
efetivos, embora, ao mesmo tempo, em algumas regiões menos felizes, o poder e a
capacidade administrativa do Estado tenham virtualmente se desintegrado. A maior
parte dos membros das Nações Unidas tratará de tirar o melhor proveito possível de
um sistema político novo, ou (como em grandes áreas da América Latina) de um
sistema que lhes é, ainda que intermitentemente, familiar. Não dará certo sempre,
mas algumas vezes pode ser que sim. A política, por conseguinte, continuará. Como
continuaremos a viver em um mundo populista, em que os governos têm de levar
em conta "o povo", e o povo não pode viver sem os governos, as eleições
democráticas também continuarão. Hoje existe um reconhecimento praticamente
universal de que elas dão legitimidade e proporcionam aos governos,
paralelamente, um modo conveniente de consultar "o povo" sem necessariamente
assumir qualquer compromisso muito concreto.
Em resumo, enfrentaremos os problemas do século XXI com um conjunto de
mecanismos políticos flagrantemente inadequados para resolvê-los. Esses
mecanismos estão efetivamente confinados no interior das fronteiras dos Estados
nacionais, cujo número está em crescimento, e se defrontam com um mundo global
que está fora do seu alcance operacional. Nem sequer está claro até que ponto eles
podem ser aplicados em territórios vastos e heterogêneos que têm esquemas
políticos comuns, como a União Européia. Eles se defrontam e competem com uma
economia mundial que opera efetivamente por meio de instâncias bem distintas,
para as quais considerações de legitimidade política e de comunidade de interesses
não são aplicáveis - às empresas transnacionais. Essas empresas contornam a
política na medida das possibilidades, que são muitas. Acima de tudo, os
mecanismos políticos enfrentam os problemas fundamentais do futuro do mundo em
uma era em que o impacto das ações humanas sobre a natureza e o próprio planeta
como um todo tornou-se uma força de proporções geológicas. A solução, ou a
mitigação, desses problemas requererá - tem de requerer - medidas que, com
quase toda a certeza, não encontrarão apoio na contagem de votos nem na
determinação das preferências dos consumidores. Esta não é uma perspectiva
encorajadora, seja para a democracia a longo prazo, seja para o planeta.
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A disseminação da democracia
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e, desde 1989, carentes de uma percepção concreta-que nunca faltou nem mesmo
aos grandes impérios conquistadores - de que seu poder material tem limites. Tal
como o presidente Woodrow Wilson, um caso espetacular de fracasso internacional
à sua época, os ideólogos de hoje vêem nos Estados Unidos o funcionamento 117
de uma sociedade-modelo: uma combinação de estado de direito, liberdade,
empresas privadas competitivas e eleições regulares e disputadas em sufrágio
universal. Só falta refazer o mundo à imagem e semelhança dessa "sociedade livre".
Essa ideia está sendo perigosamente subestimada. Embora a ação das grandes
potências possa ter consequências moral ou politicamente desejáveis, uma
identificação com ela é perigosa porque a lógica e os métodos da ação do Estado
não são iguais aos dos direitos universais. Todos os países existentes põem seus
próprios interesses em primeiro lugar. Se eles têm o poder necessário e se o
objetivo é considerado suficientemente importante, os países encontram maneiras
de justificá-lo e os meios para alcançá-lo ( embora raramente em público) - em
particular quando crêem que Deus está do seu lado. Tanto os impérios bons quanto
os maus produziram os aspectos bárbaros da nossa época, aos quais agora se
soma a "guerra contra o terrorismo".
Além de ameaçar a integridade dos valores universais, a campanha para
disseminar a democracia não terá êxito. O século XX demonstrou que os países não
conseguem simplesmente refazer o mundo ou abreviar as transformações
históricas. Tampouco podem produzir mudanças sociais com o simples transplante
de instituições através das fronteiras. Mesmo no interior dos Estados nacionais
territoriais, as condições para um governo efetivamente democrático são raras: um
país real, que goze de legitimidade, assentimento e capacidade de mediar conflitos
entre grupos internos.
Sem esse consenso, não há um povo que seja o soberano único e, por conseguinte,
não há legitimidade para as maiorias aritméticas. Quando falta esse consenso-seja
religioso, étnico ou ambas as coisas -, a democracia fica suspensa (como no caso
das instituições democráticas da Irlanda do Norte), o país se divide (como na
Tchecoslováquia), ou a sociedade cai em guerra civil permanente (como no Sri
Lanka). A "disseminação da democracia" agravou conflitos 118 étnicos e produziu a
desintegração de países em regiões multinacionais multicomunitárias, tanto depois
de 1918 quanto depois de 1989, o que nos dá uma perspectiva desanimadora.
Além de ter possibilidades muito baixas de êxito, o esforço de disseminar a
democracia ocidental padronizada sofre também de um paradoxo fundamental. Em
grande medida, ela é concebida como solução para os perigosos problemas
transnacionais dos nossos dias. Uma parcela crescente da vida humana ocorre
atualmente fora do âmbito de influência dos eleitores - em entidades transnacionais
públicas e privadas que não têm eleitorados, ou pelo menos eleitorados
democráticos. Uma democracia eleitoral não pode funcionar efetivamente fora de
unidades políticas como os Estados nacionais. Os países poderosos estão,
portanto, tratando de disseminar um sistema que até eles próprios consideram
inadequado para enfrentar os desafios da nossa época. A Europa o comprova. Um
organismo como a União Européia pôde evoluir no rumo de uma estrutura poderosa
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