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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

As nações e o nacionalismo no novo século

Atualmente existe uma ampla literatura acadêmica a respeito da natureza e


da história das nações e do nacionalismo, produzida sobretudo desde a publicação
de diversos textos seminais, na década de 1980.1 A partir daí, o debate sobre o
tema tem sido contínuo. Contudo, como estamos na entrada do século XXI, uma
breve pausa pode ser útil para considerarmos as notáveis mudanças históricas que
ocorreram nas últimas décadas e que provavelmente o afetarão. A principal delas é
o surgimento de uma era de instabilidade internacional iniciada em 1989, cujo fim
ainda não se pode prever. Esse é o propósito da presente nota.
Hoje é mais fácil avaliar as consequências duradouras do fim da Guerra Fria,
assim como da União Soviética e da sua esfera de influência, ambas as quais
podem ser vistas, retrospectivamente, como forças politicamente estabilizadoras.
Desde 1989, e pela primeira vez na história europeia desde o século XV, deixou de
existir um sistema de poder internacional. As tentativas unilaterais em prol do
estabelecimento de uma ordem global até aqui não tiveram êxito.
Enquanto isso, a década de 1990 viu uma notável balcanização de grandes
regiões do Velho Mundo, sobretudo por meio da desintegração da União Soviética e
dos regimes comunistas nos Bálcãs, o que provocou a maior ampliação no número
de Estados soberanos internacionalmente reconhecidos desde a descolonização
dos impérios europeus entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970.
A composição das Nações Unidas aumentou em 33 países (mais de 20%) desde
1988. Esse período viu também o aumento dos chamados "Estados falidos", onde
ocorre o virtual colapso da efetividade dos governos centrais, ou uma situação
endêmica de conflito armado interno, em diversos Estados nominalmente
independentes em certas regiões, notadamente a África e a região dos Estados
ex-comunistas, mas também em pelo menos uma área da América Latina. Com
efeito, durante alguns anos, depois do fim da União Soviética, mesmo seu principal
Estado sucessor, a Federação Russa, parecia prestes a somar-se ao grupo dos
"Estados falidos", mas os esforços do governo do presidente Putin em favor da
restauração de um poder governamental efetivo sobre todo o território do país
parecem ter tido êxito, exceto no que se refere à Chechênia. Não obstante, grandes
áreas do planeta permanecem instáveis, tanto interna quanto internacionalmente.
Essa instabilidade é dramaticamente acentuada pelo declínio do monopólio
da força armada, que já não está nas mãos dos governos. A Guerra Fria deixou em
todo o mundo um enorme suprimento de armas pequenas, mas muito potentes, e
outros instrumentos de destruição para usos não-governamentais, que podem ser
facilmente adquiridos com os recursos financeiros disponíveis no gigantesco e
incontrolável setor paralegal da economia capitalista global, em fantástica expansão.
A chamada "guerra assimétrica" que aparece nos debates estratégicos atuais dos
Estados Unidos consiste precisamente na capacidade desses grupos armados
não-estatais de sustentarem-se quase que indefinidamente na luta contra o poder
do Estado, nacional ou estrangeiro.

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Um resultado perturbador desses desenvolvimentos foi uma recaída global


em uma das maiores epidemias de massacres, genocídios e "limpeza étnica" desde
os anos que se seguiram imediatamente à Segunda Guerra Mundial. As 800 mil
pessoas mortas em Ruanda, em 1994, constituem apenas o maior de uma série de
assassinatos em massa e de expulsões em massa, estas ainda mais freqüentes, na
década de 1990 - na África ocidental e central, no Sudão, nas ruínas do que antes
fora a Iugoslávia comunista, na Transcaucásia, no Oriente Médio. O número de
mortos e mutilados, inflacionado pela série praticamente ininterrupta de guerras e
guerras civis daquela década, ainda pode ser difícil de estimar, mas o fluxo
decorrente de refugiados e de deslocados certamente teve, nesse período terrível, a
mesma ordem de grandeza, com relação às populações envolvidas, que alcançara
na Segunda Guerra Mundial e no período subseqüente. Em 2005, o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados estimou que a organização
se preocupava com um total de 20,8 milhões de pessoas, fortissimamente
concentradas em certas regiões do Oeste e do Centro-Sul da Ásia, da África e do
Sudeste da Europa, ou provenientes delas; mas a Statistics of Uprooted People
[Estatística de Pessoas Deslocadas], do Church World Service (dezembro de 2005),
registra 33 milhões de pessoas e outras estimativas ainda acrescentam mais 2
milhões.
Durante a Guerra Fria, o duopólio das superpotências havia mantido, como
regra, a integridade das fronteiras nacionais contra ameaças internas e externas.
Desde 1989 essas defesas a priori dissolveram-se com a desintegração do poder
central em muitos dos países nominalmente independentes e soberanos que se
estabeleceram entre 1945 e 2000 e mesmo em outros mais tradicionais, como a
Colômbia, por exemplo. Amplas áreas do mundo viram- se, portanto, revertidas a
uma situação em que, por várias razões ou com vários pretextos, países
efetivamente fortes e estáveis intervêm pela força das armas em regiões que já não
estão devidamente protegidas pela estabilidade internacional nem controladas pelos
seus próprios governos. Em regiões importantes como o mundo islâmico, o
ressentimento contra invasores e ocupantes ocidentais, depois de um período
relativamente breve de emancipação dos controles imperiais, voltou a ser um fator
politicamente poderoso.

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O segundo elemento novo que afeta o problema das nações e do


nacionalismo é a aceleração extraordinária do processo de globalização nas
décadas recentes e seu efeito sobre o movimento e a mobilidade dos seres
humanos. Ela afeta tanto os movimentos transfronteiriços temporários quanto os
duradouros, e a escala em ambos os casos não tem precedentes. Assim, ao findar o
século,cerca de 2,6 bilhões de pessoas foram transportadas anualmente pelas
linhas aéreas de todo o mundo, o que corresponde a uma média de quase uma
viagem de avião por ano para cada dois habitantes do planeta. Quanto à
globalização das migrações internacionais em massa, sobretudo, como é normal,
das economias pobres para as é grande, particularmente em casos como os dos
Estados Unidos, Canadá e Austrália, que não impuseram limites mais estritos à
imigração. Esses três países receberam quase 22 milhões de imigrantes
provenientes de todas as partes do mundo entre 1974 e 1998, total superior ao da
grande era da imigração anterior a 1914 e duas vezes maior do que a taxa de
influxo anual daquele período.2 Nos anos transcorridos entre 1998 e 2001, esses
três países receberam um influxo de 3,6 milhões de pessoas.
Mas mesmo a Europa ocidental, que há muito tempo é uma região de
emigração em massa, recebeu quase 11 milhões de estrangeiros durante esse
período. O influxo acelerou-se na entrada do novo século. De 1999 a 2001, um total
de cerca de 4,5 milhões de pessoas entraram nos quinze países da União Europeia.
Para citarmos apenas um exemplo, o número de estrangeiros que vivem legalmente
na Espanha mais do que triplicou entre 1996 e 2003, passando de meio milhão para
1,6 milhão e dois terços destes provêm de fora da União Europeia, sobretudo da
África e da América do Sul.3 A fantástica cosmopolitização das grandes cidades dos
países ricos é uma conseqüência visível. Em resumo, na Europa, a pátria original do
nacionalismo, as transformações da economia mundial estão desfazendo o que as
guerras do século XX, com seus genocídios e transferências em massa de
populações, pareciam produzir, ou seja, um mosaico de Estados nacionais
etnicamente homogêneos.
Graças à revolução tecnológica no custo e na velocidade dos transportes e
comunicações, os emigrantes de longo prazo do século XXI, ao contrário dos do
século XIX, já não estão efetivamente separados das suas comunidades de origem,
como antes estavam, a não ser por cartas, visitas ocasionais ou, no máximo,
através do "nacionalismo de longa distância" das organizações de imigrantes
que financiavam organismos políticos dos seus países de nascimento. Prósperos
emigrantes hoje circulam entre suas casas, ou mesmo seus trabalhos e negócios,
no país antigo e no novo. Os aeroportos da América do Norte ficam inundados nos
feriados por centro-americanos que se dirigem a alguma cidadezinha de El Salvador
ou da Guatemala, levando presentes eletrônicos. As festas familiares em um país -
o antigo ou o novo - são frequentadas por amigos e parentes de três continentes.
Mesmo os mais pobres podem fazer telefonemas baratos para Bangladesh ou para
o Senegal e enviar remessas regulares, cujo valor duplicou entre 2001 e 2006 e que
hoje sustentam as economias dos seus países, proporcionando algo como 10% do
produto interno bruto do Norte da África e das Filipinas, 10% a 16% da América

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Central e do Caribe e mais ainda com relação às tristes economias de países como
a Jordânia, o Líbano e o Haiti.4 O número de países que permitem dupla
nacionalidade dobrou de 1995 a 2004, quando chegou a 93 Estados. Com efeito, a
emigração já não implica uma escolha duradoura entre os países.
Ainda não é possível julgar os efeitos dessa extraordinária mobilidade
transfronteiriça sobre os conceitos mais antigos de nação e nacionalismo, mas não
há dúvida de que eles serão substanciais. Como Benedict Anderson observou com
acuidade, o documento crucial de identidade do século XXI não é a certidão de
nascimento do Estado nacional, e sim o documento internacional de identidade - o
passaporte. Qual é a profundidade com que a nacionalidade plural, real ou potencial
- por exemplo, a origem americana de políticos de antigos países comunistas, a
identificação de judeus dos Estados Unidos com os governos israelenses - têm
afetado ou pode vir a afetar a lealdade de um cidadão a um Estado nacional?6 Qual
é o significado dos direitos e obrigações de"cidadania" nos Estados em que uma
proporção substancial dos seus habitantes, em qualquer momento que se escolha,
está ausente do território nacional ou em que uma proporção substancial dos
residentes permanentes têm direitos inferiores aos dos cidadãos nacionais? Dada a
escala dos movimentos, legais e clandestinos, qual é o efeito do declínio do poder
do Estado para controlar o que acontece no seu território, ou mesmo - como a
recente falta de confiabilidade dos censos nos Estados Unidos e na Grã- Bretanha
parece indicar-para saber quem nele reside? Essas são perguntas que temos de
formular, mas que ainda não podemos responder.
O terceiro elemento, a xenofobia, não é novo, porém sua escala e suas
implicações foram subestimadas nos meus próprios trabalhos sobre o nacionalismo
moderno. Mesmo na Europa, berço histórico das nações e do nacionalismo, e, em
menor grau, em países como os Estados Unidos, formados em grande parte pela
imigração em massa, a nova globalização de movimentos reforçou a longa tradição
popular de hostilidade econômica à imigração em massa e de resistência ao que se
vê como ameaças à identidade cultural coletiva. A força real da xenofobia é
percebida no fato de que a ideologia do capitalismo globalizado dos mercados
livres, que se implantou nos principais governos nacionais e instituições
internacionais, fracassou redondamente no estabelecimento da livre movimentação
internacional da força de trabalho, ao contrário do que ocorreu com o capital e o
comércio. Não há governo democrático que tenha condições de apoiá-la. Contudo,
esse avanço evidente da xenofobia reflete os cataclismos sociais e a desintegração
moral do final do século XX e da época atual, assim como os grandes movimentos
internacionais de população. A combinação é naturalmente explosiva, em especial
em países e regiões étnica, confessional e culturalmente homogêneos e
desacostumados a grandes influxos de estrangeiros. Por essas razões, propostas
de transformação de capelas protestantes que já não são utilizadas em mesquitas
para uma florescente religião de imigrantes causaram recentemente um rápido
clamor em países tranqüi-los e tolerantes como a Noruega, reação que, ademais,
será com certeza bem compreendida por todos os leitores deste livro nas velhas
pátrias européias do nacionalismo.

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A dialética das relações entre a globalização, a identidade nacional e a


xenofobia é enfaticamente demonstrada pela atividade pública que combina esses
três elementos: o futebol. Graças à televisão global, esse esporte universalmente
popular transformou-se em um complexo industrial capitalista de categoria mundial
(embora de tamanho modesto, em comparação com outras atividades de negócios
globais). Como já se disse, e muito bem: "Dessa dicotomia entre, por um lado, o
'nacional', último refúgio das paixões do mundo antigo, e, por outro, o
'transnacional', trampolim do ultraliberalismo do mundo novo, resulta, para os
amantes do futebol, assim como para os meios que gravitam em torno desse
esporte, uma verdadeira esquizofrenia, extremamente complexa [...] que ilustra
perfeitamente o mundo ambivalente no qual todos nós vivemos".
Praticamente desde que adquiriu um público de massa, esse esporte tem
sido o catalisador de duas formas de identificação grupai: a focai (com o clube) e a
nacional (com a seleção nacional, composta com os jogadores dos clubes). No
passado, elas eram complementares, mas a transformação do futebol em um
negócio mundial e sobretudo o surgimento extraordinariamente rápido de um
mercado global de jogadores nas décadas de 1980 e 1990 (especialmente depois
da decisão tomada em decorrência do "caso Bosman", em 1995, pela Corte
Européia de Justiça) criaram uma crescente incompatibilidade entre os interesses
empresariais, políticos e econômicos, nacionais e globalizados, e o sentimento
popular. Essencialmente, o negócio global do futebol é dominado pelo imperialismo
de umas poucas empresas capitalistas com nomes de marcas também globais - um
pequeno número de superclubes baseados em alguns países da Europa, que
competem entre si tanto nas ligas nacionais quanto, preferivelmente, nas
internacionais. Seus jogadores são recrutados em todo o mundo. Com freqüência
apenas uma minoria-e, por vezes, uma pequena minoria - dos jogadores tem a
nacionalidade do país onde se situa o clube. A partir da década de 1980, eles
provêm cada vez mais de países não-europeus, especialmente da África, que tinha
cerca de 3 mil jogadores atuando nas ligas europeias em 2002. Esses
desenvolvimentos tiveram um efeito triplo. Do ponto de vista dos clubes,
provocaram um considerável enfraquecimento da posição de todos aqueles que não
estão no circuito das superligas internacionais e dos super torneios e em especial
nos clubes dos países exportadores de jogadores, notadamente nas Américas e na
África
* Os dezoito clubes que buscaram estabelecer uma "superliga" europeia
constituem-se de três clubes de cada um dos seguintes países: Inglaterra,
Itália, Espanha, Alemanha e França; dois da Holanda; e um de Portugal.
Note-se que houve um movimento similar, feito por clubes das ligas europeias
menores, em favor de uma "Liga Atlântica".
A crise dos outrora altivos clubes de futebol do Brasil e da Argentina o
comprova.9 Na Europa, os clubes menores mantêm-se em competição com os
gigantes em grande medida comprando jogadores baratos (por exemplo, iniciantes
estrangeiros talentosos), na esperança de revendê-los como estrelas já descobertas
aos superclubes. Jovens da Namíbia jogam na Bulgária; da Nigéria, em

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Luxemburgo e na Polônia; do Sudão, na Hungria; do Zimbábue, na Polônia etc. O


segundo efeito está em que a lógica transnacional da empresa de negócios entrou
em conflito com o futebol como expressão de identidade nacional, tanto pela
tendência a favorecer torneios internacionais entre superclubes, em detrimento dos
torneios tradicionais das copas e dos campeonatos nacionais, quanto porque os
interesses dos superclubes competem com os das seleções nacionais, que são as
portadoras de toda a carga política e emocional da identidade nacional e que têm de
ser formadas por jogadores que tenham o passaporte do país. Ao contrário dos
superclubes, que, na verdade, podem por vezes ser mais fortes do que as próprias
seleções dos seus países, estas não são permanentes. Hoje elas tendem a ser
conjuntos de jogadores, muitos dos quais - a maioria, em casos extremos como o do
Brasil-jogam em clubes estrangeiros, que perdem dinheiro a cada dia em que eles
se ausentam, durante os períodos mínimos necessários para que treinem e joguem
com suas seleções. Do ponto de vista dos superclubes e dos super jogadores, o
clube tende a ser mais importante do que o país. No entanto, os imperativos
não-econômicos da identidade nacional têm tido força suficiente para afirmar-se no
contexto do jogo e mesmo para impor o torneio internacional de seleções, a Copa
do Mundo, como o elemento principal e mais poderoso da presença econômica
global do futebol. Com efeito, para muitos dos países africanos e para alguns dos
países asiáticos cujos jogadores se tornaram famosos (e ricos) na economia dos
grandes clubes, a existência da seleção nacional de futebol estabeleceu, em alguns
casos pela primeira vez, uma identidade nacional independente das identidades
locais, tribais ou religiosas. Pois "a comunidade abstrata de milhões aparece com
mais realismo em um grupo de onze pessoas do mesmo país". Na verdade, até o
nacionalismo inglês, recentemente revivido, encontrou sua primeira expressão
pública com a exibição da bandeira da Inglaterra (diferente das da Escócia, do País
de Gales e da Irlanda do Norte) nos jogos da seleção inglesa de futebol.
O terceiro efeito pode ser visto na crescente proeminência do
comportamento xenofóbico e racista entre os torcedores (esmagadoramente
masculinos), sobretudo os dos países imperiais. Eles ficam divididos entre o orgulho
que sentem pelos superclubes e pelas seleções nacionais (o que inclui seus
jogadores estrangeiros ou negros) e a crescente importância que competidores
provenientes de povos há tanto tempo considerados inferiores alcançam nos seus
cenários nacionais. Os periódicos surtos racistas que acometem os estádios de
países sem história anterior de racismo - Espanha, Holanda - e a associação do
"hooliganismo" com a extrema direita política são expressões dessas tensões.
Não obstante, como já observamos, a xenofobia também reflete a crise de
uma identidade nacional culturalmente definida no contexto dos Estados nacionais,
nas condições de acesso universal à educação e à informação e em uma época em
que a política das identidades coletivas exclusivas, sejam étnicas, religiosas ou de
gênero e estilo de vida, busca expressamente a regeneração de uma Gemeinschaft
[comunidade] em uma Gesellschaft [sociedade] cada vez mais remota. O processo
que transformou camponeses em franceses e imigrantes em cidadãos americanos
está sendo revertido e dissolve as grandes identidades, como a do Estado nacional,

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convertendo-as em identidades grupais auto-referentes, ou mesmo em identidades


particulares não-nacionais, sob o lema ubi bene ibi pátria [onde existe o bem, aí está
a pátria]. E isso, por sua vez, reflete, em grande medida, a diminuição da
legitimidade do Estado nacional para os que vivem no seu território, assim como das
exigências que esse Estado pode fazer aos seus cidadãos. Se os Estados do século
XXI agora preferem fazer suas guerras com exércitos profissionais, ou mesmo
através da terceirização de serviços bélicos, não é apenas por razões técnicas, mas
porque já não se pode confiar em que os cidadãos se deixem ser recrutados, aos
milhões, para morrer no campo de batalha em nome dos seus países. Homens e
mulheres podem estar preparados para morrer (mais provavelmente para matar) por
dinheiro, ou por algo menor, ou por algo maior, mas, nos lugares onde se originou o
conceito de nação, não mais pelo Estado nacional.
Qual será seu substituto, se é que haverá algum, como modelo geral de
governo popular no século XXI? Não sabemos.

As perspectivas da democracia

Há palavras com as quais ninguém gosta de se ver associado em público,


como racismo e imperialismo. Há outras, por outro lado, pelas quais todos anseiam
por demonstrar entusiasmo, como mãe e meio ambiente. Democracia é uma delas.
Você se lembrará de que, nos dias do que normalmente se conhecia como
"socialismo real", mesmo os regimes mais implausíveis ostentavam-na em seus
títulos oficiais, como a Coréia do Norte, o Camboja de Pol Pot e o Iêmen. Hoje, é
claro, é impossível encontrar, com a exclusão de algumas teocracias islâmicas e
monarquias hereditárias asiáticas, qualquer regime que não renda homenagens
oficiais, constitucionais e editoriais a assembléias e presidentes pluralmente eleitos.
Qualquer Estado que possua esses atributos é oficialmente considerado superior a
qualquer outro que não os possua, como, por exemplo, a Geórgia pós-soviética com
relação à Geórgia soviética e um regime civil corrupto no Paquistão com relação ao
regime militar. Independentemente da história e da cultura, os aspectos
constitucionais comuns à Suécia, Papua-Nova Guiné e Serra Leoa (quando aí exista
algum presidente eleito) colocam oficialmente 97 esses países em uma classe e o
Paquistão e Cuba na outra. Por isso, a discussão pública e racional da democracia
é necessária e singularmente difícil.
Além disso, desprezando toda retórica, como hoje assinala o professor John
Dunn, ainda que de maneira breve, "pela primeira vez na história humana há uma
única forma de Estado claramente dominante - a república democrática,
constitucional, representativa e moderna",1 embora também seja necessário
assinalar que a maior proporção de sistemas políticos estáveis que seriam vistos
como democráticos por observadores imparciais está hoje em monarquias, as quais
parecem ter sobrevivido melhor nesse ambiente político, ou seja, na União Européia
e no Japão.

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Com efeito, na oratória política do nosso tempo, que em sua quase totalidade
pode ser descrita, nas palavras do grande Leviatã de Thomas Hobbes, como
"discurso insignificante", o termo "democracia" tem como significado esse
modelo-padrão de Estado; e isso significa um Estado constitucional, que oferece a
garantia do império da lei e de vários direitos e liberdades civis e políticas e é
governado por autoridades, que devem necessariamente incluir assembléias
representativas, eleitas por sufrágio universal e por maiorias numéricas entre todos
os cidadãos, em eleições realizadas a intervalos regulares entre candidatos e/ou
organizações que competem entre si. Os historiadores e os cientistas políticos
podem recordar-nos, e com razão, de que esse não é o significado original de
democracia e de que com certeza não é o único. Mas, para meus propósitos aqui,
isso não é relevante. A democracia liberal é o que nos confronta hoje, e suas
perspectivas são o tema da minha exposição.
Será algo mais pertinente lembrar que não há uma conexão necessária ou
lógica entre os vários fatores do conglomerado que compõe a "democracia liberal".
Estados não-democráticos podem ser construídos com base no princípio do
Rechtsstaat, ou estado de direito, como eram, sem dúvida, a Prússia e a Alemanha
imperial. As constituições, mesmo as que são efetivas e operacionais, não têm de
ser democráticas. Sabemos, desde Tocqueville e John Stuart Mill, que a liberdade e
a tolerância para com as minorias frequentemente são mais ameaçadas do que
protegidas pela democracia. Sabemos também, desde Napoleão , que regimes que
chegam ao poder por meio de golpes de Estado podem continuar a receber apoio
majoritário genuíno mediante o apelo sucessivo ao sufrágio universal (masculino).
E-para escolher apenas alguns exemplos recentes - nem a Coréia do Sul nem o
Chile das décadas de 1970 e 1980 sugerem um vínculo orgânico entre capitalismo e
democracia, ainda que ambos sejam tratados quase como gêmeos siameses na
retórica política dos Estados Unidos. De toda maneira, como aqui estamos lidando
com a prática política e social dos nossos dias, e não com teorias, essas questões
podem ser vistas como nuances acadêmicas, salvo na medida em que sugerem que
grande parte da defesa que se faz da democracia liberal baseia-se mais em seu
componente constitucional liberal do que em seu componente democrático ou, mais
precisamente, eleitoral. A defesa do voto livre não se faz porque ele garante os
direitos, mas porque permite ao povo (em teoria) livrar-se de governos impopulares.
Contudo, há três observações críticas que têm relevância mais imediata.
A primeira é óbvia, mas seu significado não é sempre reconhecido. A
democracia liberal, como qualquer outra forma de regime político, requer uma
entidade política no interior da qual possa ser exercida, normalmente o tipo de
Estado conhecido como "Estado nacional". Não é aplicável a campos em que tal
entidade não exista ou não pareça em processo de vir a existir, o que se observa
principalmente nos assuntos globais, por mais urgentes que sejam nossas
preocupações nesse sentido. Qualquer que seja a maneira pela qual a
descrevemos, a política das Nações Unidas não pode ser inserida no marco da
democracia liberal, exceto como figura de linguagem. E está por ver-se se a da

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União Européia como um todo pode sê-lo. Essa é uma ressalva de grande
substância.
A segunda observação lança dúvidas sobre a proposição amplamente aceita
- e universalmente incorporada ao discurso público americano - de que o governo
liberal-democrático é sempre, ipso facto, superior, ou pelo menos preferível ao
governo não-democrático. Isso é, sem dúvida, verdadeiro, fazendo-se tabula rasa
de todos os demais fatores, mas nem sempre se pode fazer tabula rasa de todos os
demais fatores. Não pedirei que se considere o caso da empobrecida Ucrânia, que
incorporou a política democrática (mais ou menos) ao preço de perder dois terços
do modesto produto nacional bruto que gerava nos tempos soviéticos. Veja antes o
caso da Colômbia, uma república que, para os padrões latino-americanos - o critério
hoje aceito universalmente -, tem um passado quase único de governo democrático,
constitucional e representativo virtualmente contínuo. Dois partidos que rivalizam
nas eleições, o Liberal e o Conservador, têm se mantido em competição, como
requer a teoria. A Colômbia nunca esteve sob o poder de militares ou de caudillos
populistas por mais do que breves momentos. E, no entanto, embora o país não
tenha se envolvido em guerras internacionais, o número de pessoas assassinadas,
mutiladas e expulsas de suas casas nos últimos cinqüenta anos chega a milhões.
Esses números são, por certo, incomparavelmente superiores aos de qualquer outro
país desse continente notoriamente infestado de ditaduras militares. Não estou
sugerindo que os regimes não-democráticos sejam melhores do que os
democráticos. Simplesmente recordo o fato, tantas vezes ignorado, de que o
bem-estar dos países não depende da presença ou da ausência de um tipo de
arranjo institucional, por mais recomendável que este seja, do ponto de vista moral.
A terceira observação foi expressa na frase clássica de Winston Churchill: "A
democracia é o pior de todos os governos, com exceção de todos os demais".
Embora a frase seja normalmente considerada como um argumento a favor da
democracia representativa liberal, ela é, na verdade, a expressão de um profundo
ceticismo. Qualquer que seja a retórica nas campanhas eleitorais, os analistas
políticos e os próprios participantes mantêm-se extremamente céticos a respeito da
democracia representativa de massas como maneira de governar, ou como
qualquer outra coisa. A folha de serviços da democracia é essencialmente negativa.
Mesmo como alternativa a outros sistemas, ela só pode ser defendida com um
suspiro de resignação. Isso não importou muito durante a maior parte do século XX,
uma vez que os sistemas políticos que a desafiaram - tanto a direita como a
esquerda autoritárias até o fim da Segunda Guerra Mundial e principalmente a
esquerda autoritária até o fim da guerra fria - eram patentemente horríveis, ou pelo
menos assim pareciam à maioria dos liberais. Antes que a democracia
representativa liberal passasse a sofrer esses desafios, seus defeitos intrínsecos
como sistema de governo eram evidentes para a maior parte dos pensadores
sérios, assim como para os que se dedicavam à sátira. Com efeito, isso era
discutido ampla e francamente mesmo entre os políticos, até que se tornou
desaconselhável para eles dizer em público o que realmente pensavam a respeito
da massa de votantes de quem dependia sua própria eleição. Nos países onde a

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tradição dos governos representativos estava estabelecida havia muito tempo, ela
era aceita não só porque os sistemas alternativos pareciam ser piores, mas também
porque, ao contrário do que ocorrera na terrível era das guerras e das catástrofes
econômicas mundiais, muito poucas pessoas sentiam a necessidade de um sistema
alternativo - particularmente em uma era de prosperidade geral, que melhorou as
condições de vida até dos pobres, e de sistemas robustos de bem-estar social. Não
é de modo algum certo que muitas partes do planeta que hoje têm governos
nominalmente representativos desfrutem efetivamente desse estado de felicidade.
É e sempre foi muito fácil criticar a retórica de campanha da democracia
liberal como maneira de governar. No entanto, uma coisa é inegável: "o povo"
(qualquer que seja o grupo humano definido como tal) é hoje a base e o ponto
comum de referência de todos os governos nacionais, exceto os teocráticos. E isso
não só é inevitável como está certo, pois, se o governo tem algum propósito, este
tem de ser o de falar em nome de todos os cidadãos e zelar pelo bem-estar deles.
Na era do homem comum, todos os governos são do povo e para o povo, embora
seja evidente que, do ponto de vista operacional, eles não podem ser governos
feitos pelo povo. Esse era um terreno comum a democratas liberais, comunistas,
fascistas e nacionalistas de todos os tipos, ainda que suas ideias diferissem quanto
à maneira de formular, expressar e influenciar a "vontade do povo". É a herança
comum que o século XX, o século das guerras totais e das economias coordenadas,
deixou para o século XXI. Tem por base não só o igualitarismo de povos, que já não
querem aceitar uma posição de inferioridade em uma escala social governada por
"superiores", mas também o fato de que até aqui as economias, os sistemas sociais
e os Estados nacionais modernos não conseguem funcionar sem o apoio passivo e
mesmo a mobilização e a participação ativa de muitos de seus cidadãos. A
propaganda de massas foi um elemento essencial mesmo em regimes que estavam
prontos para aplicar coerção ilimitada sobre seus povos. Nem as ditaduras
conseguem sobreviver por muito tempo quando seus súditos perdem a disposição
de aceitar o regime. Essa foi a razão pela qual, quando chegou o momento, os
regimes chamados "totalitários" da Europa oriental, juntamente com os que lhe
permaneciam fiéis no aparelho estatal e com seus mecanismos de repressão, que
mantinham boas condições de organização, desapareceram rapidamente e em
silêncio.
É a herança do século XX. Continuará ela a ser a base do governo popular,
inclusive da democracia liberal, no século XXI? O argumento desta palestra é que a
fase atual do desenvolvimento capitalista globalizado a está afetando e que isso terá
e já está tendo sérias implicações para a democracia liberal, tal como é atualmente
entendida. A política democrática baseia-se em duas premissas, uma moral, ou, se
você preferir, teórica, e outra de ordem prática. Moralmente falando, ela requer que
a maior parte dos cidadãos, o que se presume ser a maior parte dos habitantes do
país, apoie expressamente o regime. Apesar de sua natureza internamente
democrática, os arranjos adotados pelos brancos da África do Sul no tempo do
apartheid, regime que excluiu permanentemente da política a maior parte da
população, não podem ser considerados democráticos. O ato de expressar

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assentimento à legitimidade do sistema político, por meio do voto periódico nas


eleições, por exemplo, pode ter importância pouco mais do que simbólica, e, com
efeito, é um lugar-comum entre os cientistas políticos reconhecer que, em países
com cidadania de massas, apenas uma minoria modesta participa constante e
ativamente dos assuntos do Estado ou das suas organizações de massas. Isso é
útil para os dirigentes e, na verdade, políticos e pensadores moderados há muito
tempo mostram preferência por certo grau de apatia política.2 Mas esses atos são
importantes. Hoje nos defrontamos com um divórcio bastante óbvio dos cidadãos
com relação à esfera da política. A participação nas eleições parece estar caindo na
maior parte dos países de democracia liberal. Se a eleição popular é o critério
principal da democracia representativa, até que ponto se pode falar da legitimidade
democrática de uma autoridade eleita pela terça parte do eleitorado potencial, como
é o caso do Congresso dos Estados Unidos, ou, como no caso de governos locais
na Grã-Bretanha ou do Parlamento europeu, por algo como 10% ou 20% do
eleitorado? Ou até de um presidente dos Estados Unidos eleito por pouco mais da
metade dos 50% dos americanos com direito a voto?
Do lado prático, os governos dos Estados-nações, ou dos Estados territoriais
modernos - quaisquer governos -, apóiam-se em três presunções: primeiro, que eles
têm mais poder do que qualquer outra unidade que opere em seus territórios;
segundo, que os habitantes dos seus territórios aceitam mais ou menos de bom
grado sua autoridade; e terceiro, que eles podem proporcionar aos habitantes
serviços que de outra maneira não poderiam ser prestados com efetividade, como é
o caso da manutenção da lei e da ordem. Nos últimos trinta ou quarenta anos,
essas presunções têm perdido cada vez mais a validade.
Em primeiro lugar, mesmo sendo consideravelmente mais fortes do que
quaisquer rivais internos, como os últimos trinta anos na Irlanda do Norte bem
revelam, até os Estados mais fortes, estáveis e efetivos perderam o monopólio
absoluto da força coercitiva. Isso é facilitado em grande parte pela inundação de
instrumentos de destruição novos e portáteis, agora facilmente acessíveis a
pequenos grupos dissidentes, e pela extrema vulnerabilidade da vida moderna a
atos de desorganização súbita, embora tênue. Em segundo lugar, os dois pilares
mais fortes do governo estável começaram a fragilizar-se, notadamente (nos países
com legitimidade popular) a lealdade voluntária e a prestação de serviços dos
cidadãos ao Estado, e (nos países que não a têm) à disposição de obedecer ao
poder estatal estabelecido e esmagador. Sem o primeiro pilar, as guerras totais
baseadas no serviço militar obrigatório e na mobilização nacional teriam sido tão
impossíveis quanto aumentar a renda do Estado até seu nível atual, que,
permita-me lembrar, ultrapassa 40% do produto interno bruto em alguns países e
chega a algo como 20% mesmo nos Estados Unidos e na Suíça. Sem o segundo,
como revela a história da África e de grandes regiões da Ásia, pequenos grupos de
europeus não teriam conseguido manter o domínio colonial por gerações e a um
custo relativamente modesto.
A terceira presunção vem sendo afetada não só pelo enfraquecimento do
poder do Estado, mas também, desde a década de 1970, pelo retorno, por parte de

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

políticos e ideólogos, a um laissez faire ultra- radical, que critica o Estado e sustenta
que seu papel tem de ser reduzido a qualquer preço. Essa linha argumenta, mais
por convicção teórica do que por evidência histórica, que todo e qualquer serviço
que as autoridades públicas podem proporcionar ou são indesejáveis ou podem ser
fornecidos pelo "mercado" de maneira melhor, mais eficiente e mais barata. Desde
então, a substituição dos serviços públicos (e, aliás, também os serviços
cooperativos) por serviços privados ou privatizados tem sido maciça. Atividades
características dos governos nacionais ou locais, como as dos correios, prisões,
escolas, fornecimento de água e mesmo serviços sociais, têm sido transformadas
em empresas de negócios ou entregues a elas; e os funcionários públicos,
transferidos para agências independentes ou substituídos por contratistas
comerciais. Até segmentos da atividade bélica têm sido terceirizados. E,
evidentemente, o modus operandi da empresa privada com fim lucrativo tornou-se o
modelo ao qual até o governo aspira. Na medida em que isso acontece, o Estado
tende a confiar nos mecanismos econômicos privados para substituir a mobilização
ativa e passiva dos seus cidadãos. Ao mesmo tempo, não se pode negar que, nos
países ricos do mundo, os triunfos extraordinários da economia põem à disposição
da maioria dos consumidores mais do que o governo ou qualquer ação coletiva
jamais prometeu ou propiciou em tempos menos ricos.
Mas aí está precisamente o problema. O ideal da soberania do mercado não
é um complemento à democracia liberal, e sim uma alternativa a ela. É, na verdade,
uma alternativa a todos os tipos de política, pois nega a necessidade de decisões
políticas, que são justamente aquelas relativas aos interesses comuns ou grupais
que se distinguem da soma das escolhas, racionais ou não, dos indivíduos que
buscam suas preferências pessoais. Em todos os casos, ela sustenta que o
processo seletivo contínuo de descobrir o que as pessoas desejam, que o mercado
(e as pesquisas de mercado) proporciona, é necessariamente mais eficiente do que
o recurso ocasional ao método tosco de contar votos em eleições. A participação no
mercado substitui a participação na política. O consumidor toma o lugar do cidadão.
Francis Fukuyama chega a argumentar que a escolha de não votar, assim como a
escolha de ir a um supermercado e não à lojinha da esquina, "reflete uma escolha
democrática que as populações fazem. Elas querem a soberania do consumidor".
Sem dúvida, querem. Mas essa escolha é compatível com o que tem sido visto
como um sistema político liberal-democrático?
Assim, o Estado territorial soberano, que é o elemento essencial da política,
democrática ou qualquer outra, está hoje mais fraco do que nos períodos anteriores.
O alcance e a efetividade das suas atividades são menores do que nos períodos
anteriores. Seu controle sobre a obediência passiva e sobre os serviços ativos dos
seus súditos ou cidadãos é declinante. Os dois séculos e meio de crescimento
ininterrupto do poder, do alcance, das ambições e da capacidade de mobilizar os
habitantes dos Estados territoriais modernos, qualquer que seja a natureza ou a
ideologia dos seus regimes, parecem ter chegado ao fim. A integridade territorial
dos Estados modernos (o que os franceses chamam de "República una e
indivisível") já não é tida como inquestionável. Dentro de trinta anos haverá uma

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

Espanha, ou uma Itália, ou uma Grã-Bretanha una e indivisível, como fulcro


primordial da lealdade dos seus cidadãos? Pela primeira vez em um século e meio,
essa pergunta pode ser realisticamente formulada. E todas essas coisas não podem
deixar de afetar as perspectivas da democracia.
Em primeiro lugar, a relação entre os cidadãos e as autoridades públicas
torna-se mais remota e seus vínculos, mais atenuados. Houve um declínio
acentuado daquele "caráter divino que destaca" não só os reis shakespearianos,
mas também os símbolos públicos de coesão nacional e de lealdade do cidadão em
qualquer sistema político legítimo, especialmente o democrático: a presidência, a
monarquia e, talvez de maneira mais intensa na Grã-Bretanha, o Parlamento. O que
reflete melhor esse declínio do que o simples fato de que a imagem oficial do
Parlamento britânico que aparece nas nossas telas de televisão mal tenta disfarçar
o grande número de cadeiras verdes vazias entre as poucas figuras humanas
presentes? Seus anais já não são publicados, nem mesmo em folhas soltas, exceto
para servir como confrontações teatrais ou anedotas. Houve um declínio acentuado
dos movimentos ou mecanismos políticos que mobilizam os pobres coletivamente e
que davam algum significado real à palavra "democracia".
Em conseqüência, houve um declínio na vontade dos cidadãos de participar
da política, assim como na efetividade da maneira clássica - a única legítima,
segundo a teoria convencional - de exercer a cidadania, ou seja, a eleição, por
sufrágio universal, dos que representam "o povo" e estão por isso mesmo
autorizados a governar em seu nome. Entre as eleições - ou seja, por vários anos,
normalmente -, a democracia existe apenas como ameaça potencial à sua reeleição
ou à dos seus partidos. Mas isso é claramente irrealista, tanto do ponto de vista dos
cidadãos quanto do dos governos. Daí a crescente vulgaridade intelectual da
retórica pública dos políticos democráticos, especialmente em confronto com dois
elementos do processo real da política democrática que se vêm tornando cada vez
mais cruciais: o papel da imprensa moderna e a expressão da opinião pública por
ação (ou inação) direta.
Pois esses são os meios através dos quais algum controle é 107 exercido
sobre as ações dos governos entre as eleições. Seu desenvolvimento também
compensa o declínio na participação cidadã e na efetividade do processo tradicional
do governo representativo. As manchetes e, mais ainda, as irresistíveis imagens de
televisão são o objetivo imediato de todas as campanhas políticas, porque são muito
mais efetivas do que a mobilização de dezenas de milhares de pessoas. E
evidentemente muito mais fáceis de obter. Já vão longe os dias em que todo o
trabalho do gabinete de um ministro se paralisava para que se desse resposta a um
questionamento crítico do Parlamento. É a perspectiva da publicação das
investigações nos jornais que consome as atenções nas salas dos políticos e até
dos chefes de governo. E não são os debates parlamentares nem mesmo as
políticas editoriais que provocam as expressões de descontentamento público, tão
patentes que até os governos que contam com as mais seguras maiorias têm de
dar-lhes atenção nos períodos não eleitorais - como as que se referem ao imposto
de renda, aos impostos sobre os combustíveis e aos alimentos transgênicos. (Não

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

estou discutindo aqui se esses descontentamentos são justificados.) E, quando


essas questões surgem, não adianta minimizá-las como manifestações de minorias
atípicas e não-eleitas, embora muitas vezes seja esse o caso.
O papel central da grande imprensa na política moderna é flagrante. Graças
a ela, a opinião pública é mais poderosa do que em qualquer período anterior, o que
explica a ascensão ininterrupta das profissões que se especializam em influenciá-la.
Menos compreendido é o vínculo crucial que existe entre a política de imprensa e a
ação direta, ou seja, a ação vinda de baixo e que influencia diretamente os
principais tomadores de decisões, ignorando os níveis intermediários da
representação governamental oficial. Isso é particularmente óbvio quando tais níveis
intermediários não existem, isto é, nos assuntos transnacionais. Estamos todos
familiarizados com o chamado efeito CNN: O sentimento politicamente poderoso,
mas totalmente desestruturado, de que "algo precisa ser feito" em função das
imagens televisivas de terríveis atrocidades cometidas - no Curdistão, no Timor ou
onde quer que seja -, cuja força é tão grande que gera em resposta ações
governamentais mais ou menos improvisadas. Mais recentemente, as
demonstrações em Seattle e em Praga mostraram a efetividade que têm as ações
diretas bem enfocadas, realizadas por pequenos grupos atentos às câmeras,
mesmo sobre organizações construídas para serem imunes aos processos políticos
democráticos, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Se hoje
aparecem editoriais como "Líderes financeiros do mundo escutam advertências",
isso se deve, pelo menos em parte, aos fotogênicos combates havidos entre grupos
violentos de manifestantes com balaclavas negras e policiais antidistúrbio armados
com capacetes e escudos, como nas batalhas medievais, que apareceram na maior
parte das manchetes e destaques da imprensa.
Tudo isso revela o que talvez seja o problema mais imediato e sério para a
democracia liberal. Em um mundo transnacional e cada vez mais globalizado, os
governos nacionais coexistem com forças que têm pelo menos o mesmo impacto
sobre a vida diária dos cidadãos e que estão, em diferentes graus, fora do seu
controle. E, no entanto, eles não têm a opção política de abdicar ante as forças que
lhe escapam ao controle, ainda que quisessem fazê-lo. Declarações de impotência
a respeito das tendências históricas dos preços do petróleo não são tema de política
porque, quando algo não sai bem, os cidadãos, inclusive executivos de empresas,
têm a convicção, não destituída de fundamento, de que o governo pode e deve
fazer algo a respeito, mesmo em países como a Itália, onde praticamente nada se
espera do Estado, ou os Estados Unidos, onde grande parte do eleitorado não
acredita no Estado. Afinal, é para essas coisas que o governo existe.
Mas o que é que o governo pode e deve fazer? Mais do que no passado, ele
vive sob uma incessante pressão da opinião pública e é sensível a ela - e por isso a
monitora continuamente. Isso restringe suas escolhas. Não obstante, os governos
não podem parar de governar. Na verdade, seus peritos em relações públicas
insistem em que eles têm de aparecer constantemente aos olhos do público como
entidades que estão governando, o que, como bem reflete a história britânica
recente, significa uma multiplicação de gestos, anúncios e, por vezes, projetos de lei

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

desnecessários. Contudo, mesmo sem o imperativo das relações públicas e ao


contrário dos sonhos dos que desejariam ver um mundo inteiramente (e
benignamente) governado pela "mão invisível" de Adam Smith, as autoridades
públicas de hoje vêem-se constantemente às voltas com a tomada de decisões a
respeito de interesses comuns que são ao mesmo tempo técnicos e políticos. E,
nesses casos, os votos democráticos (assim como as escolhas dos consumidores
no mercado) não oferecem nenhuma orientação. No máximo, eles serão um freio ou
um acelerador. As consequências ambientais do crescimento ilimitado dos meios de
transporte e as melhores maneiras de tratar dessa questão não se descobrem
simplesmente fazendo um plebiscito. Além disso, tais maneiras podem ser
impopulares. E em uma democracia não é bom dizer ao eleitorado o que ele não
quer ouvir. Como se podem organizar racionalmente as finanças do Estado, se os
governos estão convencidos de que qualquer proposta de aumento da carga
tributária em qualquer parte significa um suicídio eleitoral? Ou se as campanhas
eleitorais se tornam, por isso mesmo, concursos de perjúrios fiscais e se os
orçamentos governamentais são exercícios de encobrimento? Em síntese, a
"vontade do povo", ainda que expressa, não pode determinar as tarefas efetivas e
específicas do governo. Tal como observado pelos pouco lembrados teóricos da
democracia Sidney e Beatrice Webb, a propósito dos sindicatos, ela, a "vontade do
povo", não julga os projetos, e sim o resultado deles. E as consequências são
imensuravelmente superiores quando ela se expressa contra, e não a favor. E,
quando alcança vitórias negativas maiúsculas, como o fim de cinqüenta anos de
governos corruptos na Itália e no Japão, não é capaz de discernir por si mesma uma
alternativa. Vejamos se conseguirá fazê-lo na Sérvia.
No entanto, o governo é para o povo. Seus efeitos devem ser julgados em
função do que ele faz para o povo. Ainda que desinformada, ignorante ou mesmo
estúpida, a "vontade do povo" é indispensável, por mais que sejam inadequados os
métodos para revelá-la. De que outro modo poderíamos avaliar a maneira pela qual
as soluções técnico-políticas para os problemas da humanidade, mesmo aquelas
que são tecnicamente corretas e satisfatórias de outros pontos de vista, afetam a
vida de seres humanos reais? Os sistemas soviéticos fracassaram porque não havia
trânsito de mão dupla entre os que tomavam as decisões "no interesse do povo" e
os que as recebiam como imposição. A globalização de estilo laissez faire dos
últimos vinte anos cometeu o mesmo erro. Ela foi obra de governos que
sistematicamente removeram todos os obstáculos que se lhe antepunha, seguindo
os conselhos dos economistas mais influentes, autorizados e tecnicamente
competentes. Depois de vinte anos sem prestar atenção nas conseqüências sociais
e humanas de um capitalismo global incontido, o presidente do Banco Mundial
chegou à conclusão de que, para a maior parte da população mundial, a palavra
"globalização" sugere "medo e insegurança" em vez de "oportunidade e inclusão".5
Até Alan Greenspan e o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Larry Summers,
concordam em que "a antipatia à globalização é tão profunda" que o recuo das
políticas de mercado e o retorno ao protecionismo "são possibilidades reais".

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

E, no entanto, é inegável que na democracia liberal dar atenção à vontade


do povo torna mais difícil o ato de governar. As soluções ideais praticamente já não
estão à disposição dos governos. Soft aquelas nas quais os médicos e os pilotos de
avião confiavam no passado e ainda tentam confiar hoje, em um mundo cada vez
mais desconfiado. Elas tinham por base a convicção popular de que nós e eles
compartilhamos os mesmos interesses. Não dizíamos a eles como servir-nos, pois
como não somos peritos não poderíamos fazê-lo, mas, até que algo de errado
acontecesse, nós lhes dávamos nossa confiança. Poucos governos - o que não se
aplica aos regimes políticos - gozam hoje dessa fundamental confiança antecipada.
Nas democracias liberais, isto é, multipartidárias, eles raramente contam com a
maioria real dos votos, para não dizer do eleitorado. (No Reino Unido, desde 1931
nenhum partido obteve mais de 50% dos votos; e, desde a coalizão do tempo da
guerra, nenhum governo representou uma maioria clara.) As velhas escolas e os
velhos dínamos da democracia, os partidos e organizações de massas, que no
passado proporcionaram aos "seus" governos essa confiança apriorística e apoio
constante, esfacelaram-se. Na imprensa, onipresente e todo-poderosa, co-pilotos
sem volante nas mãos proclamam uma competência rival à do governo e comentam
ininterruptamente seu desempenho.
Nessas circunstâncias, para os governos democráticos a solução mais
conveniente, e em muitos casos a única, é manter a tomada das decisões o mais
afastada possível do alcance da publicidade e da própria política, ou pelo menos
contornar o processo da governança representativa, o que significa, em última
análise, o eleitorado e as atividades das assembléias e outras agências eleitas por
ele. (Os Estados Unidos - reconhecidamente um caso extremo - só conseguem
funcionar como um Estado governado com coerência porque os presidentes por
vezes encontram maneiras de contornar os rituais do Congresso democraticamente
eleito.) Mesmo na Grã-Bretanha, a notável centralização de um poder decisório que
já era forte veio acompanhada da diminuição das atribuições da Câmara dos
Comuns e de uma transferência maciça de funções para instituições não-eleitas,
públicas e privadas, tanto durante os governos conservadores quanto durante os
trabalhistas. Boa parte das decisões políticas é negociada nos bastidores. Isso
aumentará a desconfiança dos cidadãos com relação aos governos e o mau
conceito que eles têm dos políticos. Os governos se empenharão em uma guerra de
guerrilha permanente contra a coalizão formada entre a imprensa e os interesses de
campanha, minoritários e bem organizados. A imprensa verá cada vez mais como
sua função a publicação daquilo que os governos prefeririam manter em silêncio, ao
mesmo tempo em que depende dos propagandistas das instituições que ela deve
criticar para preencher suas telas e páginas. Aí está a ironia de uma sociedade
baseada em um fluxo ilimitado de informações e lazer.
Qual é, então, o futuro da democracia liberal nesta situação? No papel, ele
não parece muito desanimador. Exceto a teocracia islâmica, já não há movimentos
políticos poderosos que desafiem, em princípio, essa forma de governo e nada
indica que isso venha a ocorrer no futuro imediato. A segunda metade do século XX
foi a idade do ouro das ditaduras militares, que constituíram, para os regimes

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

eleitorais do Ocidente e das ex-colônias, uma ameaça muito mais forte do que o
comunismo. O século não parece tão favorável a elas-nenhum dos numerosos
Estados ex-comunistas escolheu esse caminho - e, de qualquer maneira,
praticamente todos esses regimes carecem da coragem das convicções
antidemocráticas e se proclamam simplesmente defensores da Constituição até a
data (não especificada) do retorno ao regime civil. Isso não quer dizer que
estejamos testemunhando o fim dos governos instalados por soldados e tanques
nas esquinas das cidades, sobretudo nas muitas regiões em que prevalecem a
pobreza e a inquietação social.
Enfim, quaisquer que fossem as expectativas antes dos terremotos
econômicos de 1997-98, já está claro, agora, que a utopia de um mercado de tipo
laissez-faire, global e anárquico não acontecerá. A maior parte da população
mundial, e com certeza os que vivem em regimes de democracia liberal que
merecem o nome, continuará, portanto, a viver em Estados operacionalmente
efetivos, embora, ao mesmo tempo, em algumas regiões menos felizes, o poder e a
capacidade administrativa do Estado tenham virtualmente se desintegrado. A maior
parte dos membros das Nações Unidas tratará de tirar o melhor proveito possível de
um sistema político novo, ou (como em grandes áreas da América Latina) de um
sistema que lhes é, ainda que intermitentemente, familiar. Não dará certo sempre,
mas algumas vezes pode ser que sim. A política, por conseguinte, continuará. Como
continuaremos a viver em um mundo populista, em que os governos têm de levar
em conta "o povo", e o povo não pode viver sem os governos, as eleições
democráticas também continuarão. Hoje existe um reconhecimento praticamente
universal de que elas dão legitimidade e proporcionam aos governos,
paralelamente, um modo conveniente de consultar "o povo" sem necessariamente
assumir qualquer compromisso muito concreto.
Em resumo, enfrentaremos os problemas do século XXI com um conjunto de
mecanismos políticos flagrantemente inadequados para resolvê-los. Esses
mecanismos estão efetivamente confinados no interior das fronteiras dos Estados
nacionais, cujo número está em crescimento, e se defrontam com um mundo global
que está fora do seu alcance operacional. Nem sequer está claro até que ponto eles
podem ser aplicados em territórios vastos e heterogêneos que têm esquemas
políticos comuns, como a União Européia. Eles se defrontam e competem com uma
economia mundial que opera efetivamente por meio de instâncias bem distintas,
para as quais considerações de legitimidade política e de comunidade de interesses
não são aplicáveis - às empresas transnacionais. Essas empresas contornam a
política na medida das possibilidades, que são muitas. Acima de tudo, os
mecanismos políticos enfrentam os problemas fundamentais do futuro do mundo em
uma era em que o impacto das ações humanas sobre a natureza e o próprio planeta
como um todo tornou-se uma força de proporções geológicas. A solução, ou a
mitigação, desses problemas requererá - tem de requerer - medidas que, com
quase toda a certeza, não encontrarão apoio na contagem de votos nem na
determinação das preferências dos consumidores. Esta não é uma perspectiva
encorajadora, seja para a democracia a longo prazo, seja para o planeta.

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

Enfrentamos o terceiro milênio como o irlandês anônimo que, perguntado


sobre o caminho para Ballynahinch, refletiu e disse: "Se eu fosse você, não
começaria por aqui". Mas é por aqui que temos de começar.

A disseminação da democracia

Estamos atualmente engajados no que pretende ser um reordenamento


planejado do mundo, protagonizado pelos países poderosos. As guerras do Iraque e
do Afeganistão são apenas uma parte de um esforço supostamente universal de
criação de uma nova ordem mundial por meio da "disseminação da democracia".
Essa idéia não é apenas quixotesca: é perigosa. A retórica que envolve essa
cruzada implica que tal sistema é aplicável de forma padronizada (ocidental), que
pode ter êxito em todos os lugares, que pode remediar os dilemas transnacionais do
presente e que pode trazer a paz, em vez de semear a desordem. Não é verdade.
Com justiça, a democracia é popular. Em 1647, os Levellers divulgaram, na
Inglaterra, a poderosa ideia de que "todo governo depende do livre assentimento do
povo". Eles se referiam ao voto para todos. Evidentemente, o sufrágio universal não
assegura nenhum resultado político particular, e as eleições não podem nem sequer
assegurar sua própria perpetuação - do que dá testemunho a República de Weimar.
Tampouco é provável que a democracia eleitoral produza resultados convenientes
às potências hegemônicas ou imperiais. (Se a Guerra do Iraque dependesse da livre
expressão do assentimento da "comunidade internacional", ela não teria ocorrido.)
Mas essas incertezas não diminuem a atração exercida pelas eleições
democráticas.
Além dessa popularidade da democracia, vários outros fatores explicam a
crença, ilusória e perigosa, de que sua propagação por parte de exércitos
estrangeiros é factível. A globalização sugere que os assuntos de interesse humano
geral estão se encaminhando para um patamar universal. Se os postos de gasolina,
os iPods e os fanáticos da informática são iguais em todo o mundo, por que as
instituições políticas não podem sê-lo? Essa visão subestima a complexidade do
mundo. A recaída na carnificina e na anarquia que ocorreu de maneira tão visível
em boa parte do planeta também contribuiu para tornar mais atraente a ideia da
disseminação de uma nova ordem. Os Bálcãs pareceram demonstrar que áreas de
conflitos e catástrofes humanas requerem, se necessário, a intervenção militar de
países fortes e estáveis. Na ausência de uma governança internacional efetiva,
alguns interesses humanitários continuam dispostos a apoiar uma ordem mundial
imposta pelo poder dos Estados Unidos. Contudo, é sempre bom suspeitar quando
as potências militares afirmam estar fazendo favores às suas vítimas e ao mundo ao
derrotar e ocupar países mais fracos.
Mas pode ser que outro fator seja o mais importante: os Estados Unidos
mantêm-se prontos, com a necessária combinação de megalomania e messianismo
derivada das suas origens revolucionárias. Hoje, eles são inexpugnáveis em sua
supremacia tecno militar, estão convencidos da superioridade do seu sistema social

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

e, desde 1989, carentes de uma percepção concreta-que nunca faltou nem mesmo
aos grandes impérios conquistadores - de que seu poder material tem limites. Tal
como o presidente Woodrow Wilson, um caso espetacular de fracasso internacional
à sua época, os ideólogos de hoje vêem nos Estados Unidos o funcionamento 117
de uma sociedade-modelo: uma combinação de estado de direito, liberdade,
empresas privadas competitivas e eleições regulares e disputadas em sufrágio
universal. Só falta refazer o mundo à imagem e semelhança dessa "sociedade livre".
Essa ideia está sendo perigosamente subestimada. Embora a ação das grandes
potências possa ter consequências moral ou politicamente desejáveis, uma
identificação com ela é perigosa porque a lógica e os métodos da ação do Estado
não são iguais aos dos direitos universais. Todos os países existentes põem seus
próprios interesses em primeiro lugar. Se eles têm o poder necessário e se o
objetivo é considerado suficientemente importante, os países encontram maneiras
de justificá-lo e os meios para alcançá-lo ( embora raramente em público) - em
particular quando crêem que Deus está do seu lado. Tanto os impérios bons quanto
os maus produziram os aspectos bárbaros da nossa época, aos quais agora se
soma a "guerra contra o terrorismo".
Além de ameaçar a integridade dos valores universais, a campanha para
disseminar a democracia não terá êxito. O século XX demonstrou que os países não
conseguem simplesmente refazer o mundo ou abreviar as transformações
históricas. Tampouco podem produzir mudanças sociais com o simples transplante
de instituições através das fronteiras. Mesmo no interior dos Estados nacionais
territoriais, as condições para um governo efetivamente democrático são raras: um
país real, que goze de legitimidade, assentimento e capacidade de mediar conflitos
entre grupos internos.
Sem esse consenso, não há um povo que seja o soberano único e, por conseguinte,
não há legitimidade para as maiorias aritméticas. Quando falta esse consenso-seja
religioso, étnico ou ambas as coisas -, a democracia fica suspensa (como no caso
das instituições democráticas da Irlanda do Norte), o país se divide (como na
Tchecoslováquia), ou a sociedade cai em guerra civil permanente (como no Sri
Lanka). A "disseminação da democracia" agravou conflitos 118 étnicos e produziu a
desintegração de países em regiões multinacionais multicomunitárias, tanto depois
de 1918 quanto depois de 1989, o que nos dá uma perspectiva desanimadora.
Além de ter possibilidades muito baixas de êxito, o esforço de disseminar a
democracia ocidental padronizada sofre também de um paradoxo fundamental. Em
grande medida, ela é concebida como solução para os perigosos problemas
transnacionais dos nossos dias. Uma parcela crescente da vida humana ocorre
atualmente fora do âmbito de influência dos eleitores - em entidades transnacionais
públicas e privadas que não têm eleitorados, ou pelo menos eleitorados
democráticos. Uma democracia eleitoral não pode funcionar efetivamente fora de
unidades políticas como os Estados nacionais. Os países poderosos estão,
portanto, tratando de disseminar um sistema que até eles próprios consideram
inadequado para enfrentar os desafios da nossa época. A Europa o comprova. Um
organismo como a União Européia pôde evoluir no rumo de uma estrutura poderosa

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Globalização, Democracia e Terrorismo - Eric Hobsbawm

e efetiva precisamente porque não tem um eleitorado maior do que o reduzido


número (ainda que crescente) de Estados-membros. Não fosse pelo seu "déficit
democrático", a União Européia não iria para nenhum lugar, e não pode haver
nenhum futuro para seu Parlamento porque não existe um "povo europeu", e sim
um conjunto de"povos-membros", dos quais menos da metade se deu ao trabalho
de votar nas eleições parlamentares da União Européia em 2004. A Europa é, hoje,
uma entidade que funciona, mas, ao contrário dos Estados-membros, ela não goza
de legitimidade popular nem de autoridade eleitoral. Não surpreende, assim, que os
problemas tenham surgido logo que a União Européia foi além das negociações
entre os governos e se tornou tema de campanha eleitoral nos Estados-membros.
Por mais desejável que seja, a democracia não é um instrumento eficaz para
resolver os problemas globais ou transnacionais.
O esforço de disseminar a democracia também é perigoso por um motivo
mais indireto: dá às pessoas que não usufruem dessa forma de governo a ilusão de
que ela realmente governa os que vivem sob sua vigência. Mas será verdade? Hoje
sabemos algo a respeito da maneira pela qual foram tomadas as decisões de ir à
guerra contra o Iraque em pelo menos dois países de inquestionáveis credenciais
de boa-fé democrática: os Estados Unidos e o Reino Unido. Sem mencionar seu
envolvimento com problemas complexos de ocultamentos e enganos, a democracia
eleitoral e as assembleias participativas tiveram pouco a ver com esse processo. As
decisões foram tomadas em privado por pequenos grupos de pessoas, de um modo
que não é muito diferente do que teria ocorrido em países não-democráticos. Por
sorte, a autonomia da imprensa não pôde ser tão facilmente posta de lado no Reino
Unido. Mas não é a democracia eleitoral que necessariamente assegura a liberdade
de imprensa, os direitos dos cidadãos e um poder judiciário independente.

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