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Museus: Dizer o Indizível para quê?

“Rei Amador”, Eduardo Malé Fernandes, Núcleo Museológicco Rota da Escravatura, Foto: MIR, 2016
(foto retirada daqui)

O Conselho Internacional de Museus (ICOM) lançou como tema de reflexão e


celebração (18 de Maio) para 2017: Museums and Contested Histories: Saying the
Unspeakable in Museums. A associação Acesso Cultura elegeu também este tema
para um dos seus debates informais: “Debater o Indizível para quê?”. Estive entre
as convidadas na sessão de Évora no passado dia 18 de Abril. Sistematizo aqui
algumas das ideias que levei para o debate.

Se no inglês a escolha do título recaiu sobre contested histories, no português ficou


“contestadas”, e já para o francês foi histoires douloureuses. Então, de que falamos
quando falamos em histórias controversas, contestadas ou dolorosas? Se olharmos
para a proposta do ICOM sobressaem desde logo diferentes ideias-chave: histórias
controversas; aspectos incompreendidos da História; eventos traumáticos (ex.:
Holocausto, genocídios); assuntos tabu ou não-assuntos da História (ex. nalguns
casos o colonialismo, a escravatura); erros de interpretação de eventos históricos e
de objectos; histórias de reparação ou reconciliação (ex. Apartheid na África do Sul
– o caso do District Six Museum, ou o International Slavery Museum, em Liverpool);
mas também assuntos como a repatriação de objectos culturais (incluindo restos
humanos), o tráfico ilícito de objectos, a representação da deficiência, do género, de
comunidades sub-representadas, e temas ligados aos refugiados e à migração, aos
direitos humanos, entre tantas outras questões.

A quem cabe contar estas histórias controversas, contestadas ou dolorosas?


No geral, o mundo da cultura pode ser um meio onde podemos explorar, testar e
questionar a nossa percepção sobre o mundo e a nossa relação com o Outro, seja o
que for que esse Outro signifique. Através de um livro, de um filme, de uma peça de
teatro ou de um museu podemos ter a oportunidade de nos envolvermos mais
nestas discussões. Por outro lado, parece haver uma predisposição entre os
públicos para o questionamento e, eventualmente, repensar pontos de vista. Nesse
sentido, esta é uma responsabilidade transversal a várias organizações culturais.
Por essa razão não é inusitado vermos um teatro ou um museu a abordar a mesma
problemática actual e fracturante, como é a dos refugiados. Alguns exemplos: O
Migration Museum Project (Reino Unido) organizou em 2016 a exposição temporária
Call Be by My Name: Stories from Calais and Beyond (agora em reposição) sobre o
campo de refugiados de Calais conhecido como a “Selva”, e a companhia de teatro
de Almada que estreou em Abril a peça os “Migrantes”. Ou seja, a problemática dos
refugiados pode ser abordada por diferentes instituições culturais, por via de
diferentes métodos, sendo que o objectivo é o mesmo: chamar a atenção para
problemáticas da sociedade actual. Este é também um papel que cabe às
instituições culturais.
Qual é neste contexto o papel dos museus?
Serão os museus espaços onde se representa apenas o passado? Hoje assistimos
a uma mudança de paradigma. Seja na teoria, seja na prática habituámo-nos a ouvir
afirmações sobre museus como estas: espaços sobre o passado que nos ajudam a
compreender o presente e nos inspiram a pensar o futuro. Frequentemente
associamos aos museus também a ideia de espaços importantes para o diálogo,
para a partilha, para o entendimento e para o enriquecimento de culturas, inclusive
para a reconciliação. Como poderemos falar do presente ignorando as questões
essenciais que fazem esse presente? Reconhecer que há histórias controversas,
controversas ou dolorosas para contar pode ser o primeiro passo para pensar o
presente e o futuro próximo.

Lidar com questões fracturantes ou controversas nos museus: para quê?


A relação com a contemporaneidade também tem a ver com a necessidade dos
museus se tornarem relevantes, enquanto espaços que não estão separados da
sociedade (e da política) e que podem ter um papel a cumprir no presente. Por
exemplo, o relatório e a campanha Museums Change Lives (2013) da Museums
Association (Reino Unido) mostra bem a importância dos museus no sentido de
maximizarem a sua função social na sociedade. Refira-se ainda a Recomendação
da UNESCO Relativa à Protecção e Promoção dos Museus e das Colecções, da
sua Diversidade e do seu Papel da Sociedade (2015) que estabelece orientações
gerais e funcionais sobre o papel dos museus no mundo contemporâneo, colocando
a tónica na sua função social (cf. Camacho, Leite e Carvalho 2016).

Se a pergunta for: podem os museus resolver as questões prementes da


contemporaneidade? A resposta será provavelmente: não. Contudo, podem
reconhecer que estas questões existem. O museu como autoridade cultural também
pode usar esse estatuto para levantar questões, mesmo que permaneçam em
aberto e sem resolução aparente.

Como?
Hoje o museu é entendido como multivocal, chamando a atenção para vários pontos
de vista sobre uma determinada temática e estimular o pensamento crítico dos
visitantes, colocar interrogações e muitas vezes assumi-las em aberto. Reside aqui
também a ideia de que os museus têm uma função pedagógica, no sentido de
colocar os visitantes diante de diferentes perspectivas, do reconhecimento de não
se repetirem os mesmos erros do passado, que o conhecimento sobre a história
pode evidenciar. Esta ideia vem contrariar, em larga medida, o que se entendia
como a narrativa construída a partir dos museus: a uma só voz, anónima e
monolítica, ideia que parece estar ultrapassada.

Por outro lado, não devemos menosprezar o interesse dos visitantes em se


envolverem mais com as questões do seu tempo. Os museus podem fazê-lo através
da mediação dos objectos. Alguns estudos têm mostrado o potencial dos museus
recorrendo à empatia, ou seja a possibilidade de envolver os visitantes em
conversas sobre diferentes formas de olhar o mundo e a possibilidade se colocarem
no lugar do Outro. Por exemplo, o livro “Fostering Empathy Through Museums”
(2016) apresenta 15 estudos de caso que evidenciam esta abordagem.

Significa que todas estas questões podem ter uma perspectiva renovada através de
novas interpretações de objectos e colecções, em estreita ligação com a
contemporaneidade, e podem levar também a uma reinterpretação, correcção ou
reparação, reflectindo sobre as práticas museológicas do passado.

Terão todos os museus histórias controversas, difíceis ou conflituosas para


contar?
Cada museu é diferente e é condicionado pelo seu projecto cultural específico
(colecções, entorno, grupos e comunidades envolventes, etc.). Não devemos
assumir à partida que todos têm as mesmas histórias controversas para contar ou
reflectir. Mas se entendermos as colecções dos museus como representação de
memórias e da História – o que está longe de ser uma leitura fechada e limpa da
realidade, mas sim plena de tensões, conflitos e dificuldades – então certamente
haverão objectos que nos poderão contar histórias controversas ou aspectos mais
difíceis. A questão que podemos colocar à partida é se todos os objectos serão
efectivamente pacíficos? Para isso temos de olhar para as colecções e fazer essas
interrogações, procurando encontrar formas de maximizar as histórias que os
objectos têm para contar.

Porque não abraçam (mais) os museus estas questões?


Sabemos que nem todos os museus quererão fazê-lo e não encontram neste
contexto um argumento para reflectir sobre questões controversas da actualidade,
usando as colecções para esse efeito. Esta resistência pode ter também a ver a
ideia de que o museu na sua perspectiva mais tradicional não assumia esta função,
centrando o seu trabalho na recolha, preservação, protecção e interpretação de
vestígios materiais do passado. Sobre este aspecto, são vários os museus e
profissionais que reivindicam o argumento de que se devem manter neutrais em
relação ao presente. Mas terão sido alguma vez neutrais? Efectivamente, a
omissão, os silêncios e as ausências nas narrativas museológicas também são uma
escolha, e comportam uma dimensão política. E neste ponto, “política” é diferente
de “partidarismo”. Por outro lado, não se esconde que esta não é uma abordagem
fácil e em muitos casos os profissionais não estão preparados para responder à
crítica e à controvérsia que as suas práticas ou narrativas possam levantar. Mas
argumentar de que se trata de uma abordagem difícil e problemática é justificação
suficiente para a ignorarmos? Os riscos de não abraçar a contemporaneidade
também são tangíveis, nomeadamente o de se tornarem irrelevantes, de serem
espaços apartados da realidade, veiculando um olhar fechado sobre o passado e
separado do presente.

Em última instância, esta abordagem pressupõe que façamos necessariamente um


exercício de reflexão e isso tem a ver com uma mudança de atitude e,
provavelmente, com lideranças mais visionárias. Neste campo, haverão sempre
museus ditos mais “classicistas”, no sentido de persistirem na ideia de neutralidade
e de separação das dinâmicas societais – reivindicando a ideia de museu enquanto
espaço de contemplação e de refúgio. Enquanto que outros museus, mais
“inclusionistas” (para usar a distinção proposta pela museóloga americana Elaine
Gurian), claramente em minoria, estarão dispostos a abraçar as questões da
acessibilidade numa perspectiva mais alargada e da incorporação de temáticas
contemporâneas, através da mediação com os objectos, sejam estes históricos ou
contemporâneos.

Alguns exemplos
O facto é que há vários exemplos de museus que têm abraçado estas questões.
Entre nós começam a ganhar expressão temas como escravatura, como revela a
criação do Núcleo Museológico Rota da Escravatura (2016), em Lagos, ou o
projecto em curso “Testemunhos da Escravatura – Memória Africana” que junta 42
museus, arquivos e bibliotecas de Lisboa, reunindo mais de 200 objectos e
documentos para representar esta história.

Mas vêm-me de imediato à memória alguns museus que estudei durante a minha
investigação de doutoramento (veja-se Carvalho 2016). É o caso do International
Slavery Museum, criado em 2007 em Liverpool, com o objectivo de reparação e
conciliação sobre a escravatura, no qual o Reino Unido foi um dos principais
promotores. Este museu faz uma abordagem histórica da escravatura, mas também
assume um olhar sobre a contemporaneidade.

International Slavery Museum, 2011. Foto de Ana Carvalho


International Slavery Museum, 2011. Foto de Ana Carvalho

No Museum of World Culture (Gotemburgo, Suécia) destaco duas exposições em


particular: A Stolen World/Un Mundo Profanado (2008−2011) e Site Unseen:
Dwellings of the Demons (2005) do artista Fred Wilson. A Stolen World/Un Mundo
Profanado contava a história de como um conjunto de têxteis funerários com cerca
de 2000 anos foi saqueado de sepulturas no Peru e trazido para a Suécia no início
do século XX. Apesar da importância e do valor histórico e artístico da colecção, o
objectivo principal da exposição não foi o estudo dos objectos per se, mas sim a
problemática acerca do tráfico ilícito de património, sublinhando a forma pouco clara
como chegou ao museu (com a anuência dos profissionais à época). A narrativa
realçou a actualidade do problema do tráfico de património e um discurso delator e
pedagógico que pretendeu reconhecer os erros do passado e um olhar reflexivo,
mostrando a actualidade destas questões no presente, já que o tráfico ilícito
continua a ser uma realidade a combater (Carvalho 2016).

A exposição Site Unseen: Dwellings of the Demons pretendeu reflectir sobre as


omissões e os silêncios das narrativas convencionais deste museu ao longo da sua
história. Fê-lo justapondo objectos etnográficos e ao acrescentar-lhes novas tabelas
– em tom crítico e provocador –, introduzindo novas leituras a partir de uma
interpretação artística. Tratou-se de uma crítica explícita com o objectivo de expor
os sistemas de exclusão das práticas museológicas no passado e trazer a
problemática para o presente (Carvalho 2016). Este exemplo mostra a possibilidade
de encetar novos olhares, contemporâneos (através da arte, por exemplo) sobre
objectos históricos, através de uma terceira voz. É o que o antropólogo Anthony
Shelton (2001) defende como “Museologia Praxiológica”, ou seja, a introdução de
olhares críticos, desconstrutores e provocadores sobre as colecções e as práticas
museológicas per se.

Mais leituras:
Acesso Cultura. 2017. Resumo do debate ‘Dizer o Indizível para Quê?’ (Évora,
Lisboa, Portimão, Porto), 18 de Abril de 2017.
https://acessoculturapt.files.wordpress.com/2014/01/20170418_debate_resumo.pdf
Blogue Musing on Culture de Maria Vlachou, em particular os textos organizados de
acordo com as seguintes etiquetas: “Direitos Humanos”, “Democracia” e “Política”.
http://musingonculture-pt.blogspot.pt

Referências
Camacho, Clara Frayão, Pedro Pereira Leite, e Ana Carvalho. 2016. “Contextos e
Desafios da Nova Recomendação Da UNESCO para Museus e Colecções:
Entrevista com Clara Frayão Camacho e Pedro Pereira Leite.” Boletim ICOM
Portugal 7 (Set.): 10-19. http://hdl.handle.net/10174/19118
Carvalho, Ana. 2016. Museus e Diversidade Cultural: Da Representação aos
Públicos. Vol. IV. Colecção Estudos de Museus. Casal de Cambra: Caleidoscópio e
Direção-Geral do Património Cultural. http://hdl.handle.net/10174/19109
Gokcigdem, Elif M, ed. 2016. Fostering Empathy Through Museums. Blue Ridge
Summit: Rowman & Littlefield Publ.
Gurian, Elaine Heumann. 2010. “Foreword: Celebrating Those Who Create Change.”
In Hot Topics, Public Culture, Museums, editado por Fiona Cameron and Lynda
Kelly, xi–xv. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing.
Museums Association. 2013. Museums Change Lives: The MAS’s Vision for the
Impact of Museums. [S.l.]: Museums Association.
https://www.museumsassociation.org/download?id=1001738
Shelton, Anthony. 2001. “Unstettling the Meaning: Critical Museology, Art and
Anthropological Discourses.” In Academic Anthropology and the Museum: Back to
the Future, editado por Mary Bouquet, 142–61. New York, Oxford: Berghahn books.

****
Carvalho, Ana. 2017. “Museus: Dizer o Indizível para quê?” Blogue No Mundo dos
Museus, Maio 10. https://nomundodosmuseus.hypotheses.org/7494

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