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André Barata
Universidade da Beira Interior
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All content following this page was uploaded by André Barata on 26 July 2017.
André Barata
Instituto de Filosofia Prática
Universidade da Beira Interior
No curso das últimas três décadas assistiu-se à transfiguração radical que a revolução
dos meios informáticos repercutiu sobre a prática do trabalho. As gerações humanas
que transpuseram o milénio têm sido dela, não apenas sujeitos passivos, mas
protagonistas activos, participando num processo cujo resultado mais destacado é a
auto-transformação de todas as dimensões da sociabilidade humana.
Na língua portuguesa, pelo menos como é falada em Portugal, a palavra «Desktop» foi
traduzida, de maneira magnificamente antecipadora, pela expressão «Ambiente de
trabalho». Talvez os tradutores não adivinhassem que o ambiente criado pela
Windows viria a constituir bem mais do que o ambiente da superfície, arrumada ao
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gosto de cada um, de uma secretária virtual, um desktop environment, mas muito
literalmente o ambiente quase universal do trabalho, para trabalhadores ou, ao
menos, para equipas de trabalhadores em todos, ou quase todos, os sectores de
actividade laboral. Seja no supermercado, no escritório de advogados, no hospital, na
repartição de finanças, na padaria, mesmo na fábrica, sempre algures a imagem do
ambiente de trabalho do Windows se mostrou e se fez ouvir.
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desmaterializado, reencontra feição física não em qualquer materialidade, mas na
privacidade do que é materialidade pessoal. Desde logo o «PC», ou seja, o computador
pessoal, que no nome clarifica imediatamente o compromisso da máquina capaz de
computar e tornada disponível a todo o público com um meio de acesso que se
preferiu, contudo, reservado, exclusivamente pessoal. A pessoalidade do PC desktop
teve continuidade depois no laptop, depois ainda nos tablets, dispositivos cada vez
mais pessoais, mais intransmissíveis, mais íntimos. Por outro lado, todas estas
máquinas, através do software que trazem consigo, reservam um ambiente de
trabalho próprio para cada utilizador, apenas acessível, por regra, através de senha
secreta.
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verdade, o que parece pouco duvidoso é uma migração do espaço público para este
universo da omnipresença.
Este quadro riquíssimo é, contudo, um quadro a que não prestaremos, por decisão
metodológica, particular atenção neste ensaio. As implicações que a nova existência
pública traz para o trabalho exigem uma atenção redobrada, não apenas pelo facto,
que acabamos de assinalar, de também haver uma nova existência privada, mas ainda
por ambas as formas de existência terem sensíveis zonas de conivência que devem,
por isso, ser cuidadosamente consideradas. Com efeito, a elucidação do ambiente
universal do trabalho deve ser aprofundada com os traços, aparentemente contrários,
atrás enfatizados, da omnipresença desmaterializada e da omni-ausência
materializada. Esta ausência que apenas encontra solução na privacidade não releva,
porém, da extimidade, entendida como um modo de subsistência externo da
intimidade, «lá fora» portanto, especialmente na «rede», mas de uma tendência, que
cremos de sinal oposto, de subsistência interna, privada, reservada, perto de íntima
portanto, da existência pública. É como se à extimidade, em contraste com a
intimidade, da existência privada se pudesse fazer corresponder uma publintimidade,
em contraste com a publicidade, da existência pública.
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seguinte formulação: trabalhamos muito mais sós, mas muito mais expostos. Muito
mais sós porque tendencialmente nas nossas próprias casas, nos nossos lugares
privados, abrigados, até íntimos, ausentes do mundo dos outros; mas mais expostos
porque tendencialmente, no que respeita às tarefas laborais propriamente ditas, nada
nelas ficará imune à possibilidade de um escrutínio absoluto, na medida em que tudo
nelas deixa rasto, tudo nelas proporciona a recapitulação, até a sua repetição, como
num exercício de demonstração em que qualquer outro tem o legítimo direito da
intromissão e de presença. Os passos materiais sem rasto dentro de nossas casas e os
passos desmaterializados com rasto dentro do ambiente de trabalho, apesar do
carácter privativo deste, radicalizam a contrariedade latente e a tensão recíproca entre
os dois planos da existência – um público, outro privado. Mesmo num grande
escritório, num open space por exemplo, o relacionamento do trabalho tenderá a
seguir os canais abertos pelas ligações em rede, ainda que pudessem estabelecer-se
comunicações e contactos frente-a-frente, que são, porém, preteridos precisamente
porque de outra forma não ficaria garantido o rasto que evidencia o trabalho feito, a
produtividade em curso, e a permanente possibilidade do escrutínio. Estabelecido este
padrão, até os contactos informais de cordialidade, mesmo de amizade, tendem a
fazer-se por estes canais ao ponto, algo anedótico, de as pessoas se esquecerem que
bastaria levantar o olhar do teclado e dirigi-lo à pessoa que logo se avista por detrás do
écran do monitor. A hegemonia do meio pode mesmo conduzir à reclassificação de
todas as interacções que lhe escapem como deliberadamente encobertas,
sobredeterminando o seu valor semântico com uma carga de secretismo
problemático.
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mesmas características de repetitividade e rotina do trabalho do operário fabril, mas
com três importantes diferenças. Em primeiro lugar, deixou de constituir, pelo menos
de maneira tão pronunciada, um tipo de trabalho especializado como o do operário do
capitalismo industrial mais avançado, mas bem pelo contrário um tipo de trabalho que
envolve nenhuma ou incipiente especialização, lembrando as épocas precoces do
capitalismo, que julgaríamos definitivamente ultrapassadas, e que se permitiam, por
exemplo, explorar trabalho infantil em fábricas. Em segundo lugar, apesar de
frequentes vezes implicar operar uma máquina, e sob condições de exploração
crescentes, não se reconhece neste tipo de trabalho um operariado por lhe faltar a
instalação física de produção. Não é só a fábrica, mas também o armazém, a redacção,
até o escritório que se desmaterializam, mantendo os seus empregados e as máquinas
que operam nas suas respectivas casas, em condições de privacidade, e com risco sério
de isolamento público. Ei-las a ubiquidade desmaterializada e a materialidade
reservada a cumprirem as suas funções sistémicas. Por fim, trata-se de um trabalho
radicalmente precarizado. O enorme progresso na intuitividade das máquinas a
operar, e que não consiste em mais do que a capacidade de as operar apesar de uma
enorme incapacidade de as conhecer, permitiu tornar a indiferenciar os seus
operadores, dispensando a figura do especialista conhecedor, guardado apenas para o
“estado de excepção” das máquinas, por exemplo na necessidade de as consertar ou
de nelas produzir alterações de funcionamento para que outrem as venha operar. Com
isto, naturalizou-se a precariedade laboral do operador, facilmente substituído por
qualquer outra pessoa, mediante brevíssima ou mesmo nenhuma formação. É neste
quadro que se percebe como o exército de operários fabris das gerações anteriores
teve de se resignar a observar, nas sociedades com escassa mobilidade social, os seus
descendentes a engrossar um exército de operadores de call centers, caixas de
supermercado, portageiros de Auto-estradas, manipuladores de botões de um forno
de padaria, todos possivelmente a partir de um “ambiente de trabalho” que conhecem
deste tenra infância. Para todos estes trabalhadores suavemente rebaixados o
operariado especializado teria sido mais digno se, entretanto, esse tipo de trabalho
não tivesse sido extinto pela automação do processo industrial e pela terciarização das
economias desenvolvidas, ancoradas nas actividades dos serviços. Condenados aos
defeitos do trabalho repetitivo e isolado, mas sem nenhum dos benefícios da
estabilidade da rotina e de previsibilidade, não são seguramente estes trabalhadores
precários o sinal mais agradável de uma sociedade pós-industrial evidentemente
romantizada por alguma sociologia optimista, onde poderíamos incluir por exemplo
Domenico de Masi (1999) e o seu conceito de ócio criativo.
Depois, há uma segundo categoria de trabalho, aliás cada vez mais ampla, cuja
caracterização é exactamente a inversa. Sendo, como alegam os teóricos da sociedade
pós-industrial, trabalhadores comprometidos na produção de ideias, trabalho criativo
e imaginativo, ou, com forte pendor intelectual, no quadro de uma economia cada vez
mais baseada na informação e no conhecimento, e na produção desmaterializada de
intangíveis, a verdade é que a estes trabalhadores é imposta, no entanto, como
medida de sucesso e de retribuição, uma régua implacável de produtividade. À
imaterialidade cada vez mais etérea da produção cola-se, como se houvesse de
subjugar o que nela há de volátil, uma materialidade cada vez mais áspera da
produtividade exigida ao trabalhador. Estejamos a falar de um corretor da Bolsa de
Valores, de um designer, de um agente publicitário, de um investigador universitário,
de um ficcionista, até mesmo de um poeta, objectivos de produtividade são
estabelecidos como se a criatividade, não podendo ser produzida por uma máquina,
pudesse ser produzida como por uma máquina. É mesmo tomado como
contraproducente, estando em causa objectivos como a maximização da
produtividade, permitir que o criativo-máquina se tranquilize quanto ao seu
rendimento e à sua capacidade de se manter no ramo profissional. Este é o modelo de
todas as avaliações de desempenho em curso, seja qual for o campo de actividade do
intelectual, seja qual for a maneira como se dedica ao espírito da humanidade.
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padeiro que manuseia manípulos diversos num forno industrial com comandos
electrónicos, possivelmente a partir do ambiente de trabalho de um PC, e as velhas
artes de fazer o pão. O trabalhador assim absolutamente transcendido ou o trabalho
absolutamente imanentizado pelo trabalhador resultam identicamente numa mesma
ausência de polarização do trabalho numa relacionalidade humana. A absoluta
heteronomia ou a absoluta autonomia do trabalho são dois caminhos que abandonam
os homens à agrura sobrematerializada da experiência actual do trabalho.
Neste quadro, não sobram razões para grandes optimismos pós-industriais. Pelo
contrário. Quando Domenico de Masi declara que «Estamos habituados a
desempenhar funções repetitivas como se fôssemos máquinas e é necessário um
grande esforço para aprender uma actividade criativa, digna de um ser humano»
(MASI, 1999: 23), seria necessário identificar o que na repetitividade é efectivamente
desumano, mas também o que nela é, ou pode ser, profundamente humano. E seria
necessário, em consequência, acautelar o que de profundamente humano pode estar
ameaçado ao se subtrair a repetição, a rotina, a monotonia e a previsibilidade do
horizonte do trabalho e ao serem postos no seu lugar a imprevisibilidade, o risco, o
frenesim e a instabilidade.
Foi precisamente para esta profunda ambivalência dos juízos que podem ser emitidos
a respeito da repetição que outro grande sociólogo, Richard Sennett, numa obra
intitulada A Corrosão do carácter – As consequências pessoais do trabalho no novo
capitalismo, chamou a atenção. E fê-lo logo opondo, entre os clássicos do século XVIII,
um entendimento benigno a um entendimento maligno do hábito.
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5. Re-industrialização sem indústria
Estas ambivalências disfarçam mal o cavalo de Tróia que nos entrou pelo tempo de
ócio adentro - é muito menos o trabalho ocioso do que o ócio trabalhoso o que se
impõe ao quotidiano contemporâneo de homens e mulheres, mobilizáveis, sem
nenhum freio sólido, e por igual, em todas as horas de vigília dos seus dias. É justo falar
de uma mobilização temporal total das sociedades, sem descontinuidade que resista
ao modelo produtivista de existência.
Podemos dizer mesmo que a ênfase dada, desde há alguns anos para cá, à necessidade
de incrementar a produtividade do trabalho e de diminuir os custos unitários de
trabalho, definidos estes a partir da razão entre a remuneração por trabalhador e a
produtividade, sinalizam uma tendência actual para a re-industrialização das
economias europeias periféricas, particularmente das economias submetidas nos anos
mais recentes a programas de ajustamento financeiro e orçamental conduzidos pelo
FMI, a Comissão Europeia e o BCE. Trata-se de uma re-industrialização sem indústria,
sem fábricas, apenas assente num regime laboral que readquire as características da
exploração da força do trabalho de outros tempos. O que é, a este respeito, notável é
que o mesmo Daniel Bell que antecipou nos anos 1970 os traços gerais de uma
sociedade pós-industrial, havia, ainda mais precocemente (em Automation and Major
Tecnhological Change, 1958, mais de meio século atrás), associado de forma muito
explícita a industrialização, não à existência de fábricas, mas a um regime laboral
particular. Este pormenor não passou despercebido a Herbert Marcuse em O Homem
unidimensional (1964):
Daniel Bell, o autor deste estudo, vai mais longe; associa esta transformação
tecnológica ao próprio sistema histórico da industrialização, dizendo que o
sentido da industrialização não surgiu com a introdução das fábricas.
(MARCUSE, 1964: 55)
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E logo a seguir cita o próprio Daniel Bell a esclarecer donde resultaria, então, no seu
parecer, o sentido da industrialização:
Por exemplo é o que acontece comigo quando estou dando uma aula. E é o que
eu chamo de «ócio criativo», uma situação que, segundo eu, se tornará cada
vez mais difundida no futuro. Há um pensamento Zen que expressa com
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perfeição essa forma de vida, tanto no seu aspecto prático como no seu estado
de espírito: «Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca distinção entre o
seu trabalho e o seu tempo livre (…)». (MASI, 1999: 179)
Em rigor, o ócio criativo exprime uma indistinção progressiva entre tempo de trabalho
e tempo de lazer, que por si só é neutra. Saber se é o regime temporal do lazer que se
faz cada vez mais semelhante ao do trabalho ou se é o contrário que se tem em mente
aponta, contudo, para duas perspectivas diametralmente opostas. Algum optimismo
provavelmente imaginaria o trabalho repetitivo substituído por uma criatividade e
regime ocioso, como defende Masi. No entanto, há abundante evidência de que o
tempo de lazer ganhou permeabilidade ao tempo de trabalho, tolerando-se aquele,
precisamente em função de uma fusão ilusoriamente agradável entre ambos, ser
detido, interrompido, substituído a qualquer hora, numa demonstração de
disponibilidade sem forma de horário ou calendário. A cúmplice sobreposição que a
máquina proporciona ao realizar nela o trabalho como o lazer só incrementa esta
mobilização total do criativo.
A tecnologia que pôde, nas economias mais desenvolvidas, substituir pessoas, pondo
nos seus postos de trabalho máquinas, mesmo naqueles postos de trabalhos que
exigiriam alguma interacção discursiva, é também a mesma tecnologia que sujeita hoje
cada vez mais as pessoas ao regime da disponibilidade e da competição. A
generalização do uso do telemóvel, e agora dos Ipads e dos Iphones da Apple Inc., bem
como dos artigos congéneres da concorrência, hibrida o lazer e o trabalho nas mesmas
ferramentas tecnológicas, numa falsa síntese que não humaniza o trabalho, mas
desumaniza o lazer e, pior, arrasta a humanidade para um regime existencial de
despotismo da disponibilidade. Como, em tempos industriais, a mão-de-obra era
afeiçoada à máquina, agora, em tempos pós-industriais (pelo menos até certo ponto),
são os nossos cérebros que são afeiçoados à máquina. Decerto, as máquinas são
outras, mas as de hoje não libertam mais as consciências do que as aprisionam a uma
disponibilidade permanente, proto-laboral. O domínio faz-se menos pela força, em
todo o caso a força produtiva já não é feita da força dos braços, mas pela própria
forma das consciências. A disponibilidade laboral é hoje uma disponibilidade moral,
que a delação pública atesta, logo com as convicções de quem nos governa e dos
moralismos de gurus da alta finança.
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É, porém, precisamente esta dimensão ociosa que não mais pôde resistir à hegemonia
totalitária que Marcuse antecipou na década de 1960, mas só hoje se verifica realidade
totalmente incorporada socialmente:
É neste quadro obliterador que faz todo o sentido, na verdade até ganha uma nova luz,
a obliteração complementar, aparentemente benigna, entre as dimensões do lazer e
do trabalho. E não é possível, a este respeito, desvalorizar a forte orientação do
desenvolvimento tecnológico no sentido desta obliteração benigna, mesmo
convidativa como já vimos quer da barreira entre o privado e o público quer da
barreira entre o lazer e o trabalho. Este vínculo entre totalitarismo e empenho
tecnológico é particularmente notado por Marcuse:
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sistema de dominação que opera já ao nível da concepção e da construção das
técnicas. (MARCUSE, 1964: 15)
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perversa do caos do mundo. A sua ideologia só por furto das palavras se confundiria
com as formas de vida austeras.
Esta distinção vocabular que aqui se propõe, entre austeridade e austerismo, ou entre
austeros e austeristas, embora não seja inteiramente familiar, tem, ainda assim, a sua
origem em usos de alguma maneira consagrados, estando, por exemplo, pelo menos
parcialmente assumida pela Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira, obra de
referência que não apenas apresenta verbetes separados para ambos os vocábulos,
'austerismo' e 'austeridade', como define o primeiro como o abuso do outro. (Cf.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 3: 734)
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“colaborador”, de quem se espera um empenho informal, de quem aceitou o convite
para entrar no barco, de quem manifesta vontade de contribuir e participar na obra
em curso, relação que muito excede, pois, o que pudesse estar em jogo num vulgar
contrato de trabalho. Aliás, uma vez mais, os colaboradores só por necessidade formal
são contratados; o que conta é o convite endereçado sob o pressuposto de uma
comunhão de vontades.
Pela nossa parte, acreditamos que esta “dimensão temporal do novo capitalismo”, que
Sennett enfatiza com toda a razão, não se explicaria sem o recurso à transformação
radical das formas de existência pública produzida pela revolução dos meios
informáticos. Esta é a base de sustentação que propicia efectivamente a desagregação
da massa operária em colaboradores singulares, a incorporação do trabalho pela
existência privada do trabalhador, mesclando tempos de trabalho e de lazer,
prioridades pessoais e de trabalho. A desmaterialização omnipresente que dispersa o
trabalho e a materialidade quasi-ausente que concentra o trabalhador estão aqui
ambas, novamente, muito evidentes. Cada colaborador decide particularmente quais
os seus objectivos, quais as suas metas, estabelece-os fora do quadro de qualquer
negociação colectiva, livre de constrangimentos, na estrita dependência de si próprio,
para o bem e para o mal.
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como o trabalho se apresentava a Enrico, um porteiro, e, uma geração depois, ao seu
filho Rico, engenheiro. Apesar da diferença considerável de rendimentos entre ambos,
o pai nunca ultrapassara o último quartil de rendimentos, enquanto o filho alcançava
valores apenas ao alcance dos 5% maiores rendimentos na sociedade. Há, contudo,
para este sociólogo nesta transformação do regime temporal do trabalho uma
implicação ética significativa. Trabalhar dentro apenas da lógica do «curto prazo» e de
forma adversa a lógicas de «longo prazo» abala, no seu entender, os fundamentos do
carácter humano.
Por válidas que sejam estas observações de Sennett, interessar-nos-á, contudo, ligar a
sua descrição do «capitalismo de curto prazo», designadamente do seu regime
temporal encurtado, enquanto etapa prévia e preparatória, do subsequente regime de
austeridade que, entretanto, se tem vindo a impor nas economias ocidentais. Importa
notar, desde logo, que a opção pelo risco e insegurança acrescidos que, de acordo com
Sennett foi tomando, no intervalo de uma geração, o lugar do paradigma anterior do
emprego para a vida, só pôde ter constituído uma preferência razoável enquanto se
tratou de uma opção que não envolvia uma percepção excessiva de risco. Mau grado
as desvantagens, apontadas por Sennett, de fragmentação e carácter episódico das
vidas profissionais no quadro de uma lógica do «curto prazo», tal lógica, contudo, num
ambiente francamente propício ao empreendedorismo e aos bons negócios, num
clima de crescimento económico, com boas oportunidades de sucesso, autorizava que
se preferisse uma cultura de risco, atendendo às consideráveis perspectivas de ganhos
que se abriam. Naturalmente, mudassem as circunstâncias, e a mesma cultura de risco
suscitaria uma forte reacção de aversão. E, de facto, as circunstâncias mudaram muito;
todavia, longe de cortar raízes ao risco instalado, essa mudança veio, pelo contrário,
exigir um maior enraizamento da cultura de risco. Por que persistiu esta insistência no
risco, na instabilidade e na precariedade num contexto de austeridade se sabemos que
a aversão ao risco teria de crescer na proporção da austeridade? Por que nos
determinámos a uma cultura do desábito e imprevisibilidade quando, como nenhuma
outra, é a cultura do hábito e de previsibilidade que mais naturalmente se esperaria
ter como resposta austera ao risco, à precariedade, à iminência do caos? Explicar estes
contrastes paradoxais é conduzir-nos, então, a um entendimento do cerne do regime
da austeridade e ao paradoxo do austerismo.
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8. O regime temporal dos austeros
Para quem vê este filme de Bela Tarr, a contrariedade crescente em assistir à repetição
é bem, por detrás da superfície dos juízos de tédio e de ausência, a resistência das
consciências a que sejam levadas para o lugar inóspito daquele hábito. Perseverarem
as consciências no espectáculo da repetição é permitirem-se serem arrastadas, com a
violência de uma mulher que resiste à dureza dos dias, para esse lugar conhecido dela,
a austeridade. Eu, espectador, não sei apenas que aquela mulher acorda, se veste e vai
buscar água ao poço todas as manhãs; eu, presente, também assisto e participo na
cena, pelo movimento do meu hábito de o assistir. O hábito testemunhado encontra a
sua possibilidade de me tornar seu habitante, ainda que estrangeiro, no hábito de o
testemunhar. É o meu hábito que me torna íntimo do hábito daquela mulher.
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Reconheço-a como se a conhecesse familiarmente. E quando a fome, a sede e o vazio
forem o estertor do seu hábito eu, como estrangeiro, estarei nesse lugar horrível com
o meu hábito, ela contra o vento, eu a dar corpo àquele estertor. Faz-nos falta quem
nos olhe, feito um deus, absolutamente de fora; fazemos falta, feito deuses, a quem
consigamos olhar de fora, absolutamente de fora. A este olhar absoluto que urge pode
chamar-se verdade.
O que tem de inumana esta moral de hábitos? Se o hábito nos liberta da animalidade
e, ainda assim, precisamos tanto de nos libertar humanamente do hábito é porque ele
nos liberta apenas pela mobilização de meios animais. A necessidade do hábito é
outra, mas é ainda necessidade; mesmo se não imposta, auto-impõe-se: esse é mesmo
o seu traço mais distinto.
Afinal, o que é habituar-se se não a constituição natural dos homens prolongar-se por
meios não naturais? O corpo acostuma-se, apanha-lhes o jeito; e, então, aperfeiçoa o
gesto com que tem de continuar a sua vida, seja como a personagem feminina do filme
de Bela Tarr, a vestir-se e a carregar, todas as manhãs, baldes à água de um poço, seja
ainda, como sucede com os milhões anónimos das sociedades contemporâneas, a
levar as crianças à escola, alimentá-las e deitá-las, seja, enfim, a fazer o trabalho nas
máquinas, até o amor nalgumas vidas. O hábito é o benefício de uma lembrança que
não lembra, de um esquecimento que não se esquece, como quem se desprende do
fardo de respirar e, ainda assim, respira.
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na exclusiva proporção da fadiga da sua vontade. Este prazer infantil da repetição é
prazer do poder infindável da vontade sobre a realidade. E é um prazer de origem
remota ou, como notou Freud em Para além do Princípio de Prazer, em que «estamos
no encalço do carácter geral dos instintos, ou talvez mesmo da própria vida orgânica».
(FREUD, 1955: 35).
A moral cuja genealogia Nietzsche traça é uma moral de hábitos esquecidos e assim
tornados veneráveis, chamem-lhe tradição, «continuamente mais venerável, quanto
mais remota for a sua origem», ou chamem-lhe «moral da devoção» – «uma moral
muito mais antiga do que a que exige acções não-egoístas» (NIETZSCHE, 1997: §96). E
tem origem no prazer da repetição – «Uma importante variedade do prazer e, com
isso, fonte da moralidade, provém do hábito» (NIETZSCHE, 1997: §97). Este é, em
suma, o trabalho moral do hábito. Não podia ser mais justificada a epígrafe
nietzschiana de O Cavalo de Turim de Bela Tar.
Por outro lado, este vínculo entre regra e austeridade, por extraordinário que seja o
seu impacto mundano, não se funda em nenhuma razão mundana. Pelo contrário, a
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mundaneidade da regra e da austeridade – trata-se sempre de uma forma de vida
seguida commumente pelos membros da ordem – desloca, como uma imensa
metonímia, motivos existenciais profundos para a superfície sensibilizada do
quotidiano, partilhado ou não. Não se escolhe a austeridade para fazer face à pobreza,
escolhe-se a pobreza para fazer da austeridade o hábito de vida. A exigência é
resultado de uma necessidade interior.
A força do hábito não tem mais do habituar-se exterior dos gestos do que do habitar-
se interior do repouso. Na verdade, interioridade e exterioridade implicam-se aqui
reciprocamente. Porque são como moradas aonde se volta sempre, os hábitos são
lugares que habitamos. E o notável é os habitantes dessas habitações serem tão
variáveis. Há hábitos que apenas eu habito; há hábitos com dois habitantes, como
entre mim e o cão que levo sempre a fazer o mesmo caminho; com três, quatro, cinco
membros de uma família que se encontram à mesma mesa sempre; há hábitos que
sacralizam a amizade; e há-os tão povoados que nos vemos diante do paradoxo de
reconhecermos as pessoas desconhecidas com que partilhamos o tédio do comboio
diário, a aflição das contas por pagar nos últimos dias do mês, cúmplices até no que
juntos poderíamos fazer se não nos faltasse coragem ou nos sobrassem desculpas.
Quantas vezes, também por hábito, não nos olhamos um olhar falsamente vazio que,
pelo contrário, se enche de consolo com o vazio pleno de todos os outros olhares
entreolhados? O olhar do hábito consola-se, e talvez se iluda em demasia, no hábito
do olhar. Ou talvez não, talvez se trate de genuína confissão, resignação que não se
resigna tanto que não possa ser compartilhada. Até a incompreensão é compreendida.
9. O método austerista
No entanto, se a escolha pelo regime de vida austero devia significar a escolha por
incarnar uma regra humana que resistisse ao caos do mundo, já esta forma particular
de "austeridade" que tem assolado as sociedades ocidentais nos últimos anos tem
muito menos de escolha e de auto-determinação do que de rendição. Há nesta palavra
uma grave ambiguidade, que também palavras devem esclarecer.
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A "austeridade" que nos aflige agora só se assemelha à austeridade dos austeros em
ambas nos confrontarem com a escassez e a agressão do mundo para com os nossos
desejos e necessidades. Além disto, nada mais as liga e mesmo nisto apenas se
exprime uma enorme distorção. Os austeros respondem com austeridade à
confrontação que o caos do mundo produz nas nossas vidas; os outros, chamemos-
lhes "austeristas", exacerbam a confrontação justamente fazendo tudo por erodir as
defesas que um modo de ser austero escolheria.
Mas seria outro considerável engano pensar que, por esta razão, o austerismo
coincidiria com a cultura liberal do risco. O apreço pelo longo prazo que conduz o
austero a reter o fluxo temporal, a poupá-lo, conservando e acumulando bens que lhe
ajudem a enfrentar as dificuldades dos tempos, não dá lugar, no espírito do austerista,
a uma preferência pelo curto prazo, como se estivesse convencido de que o risco das
oportunidades compensaria, com proveito, a maneira retida como o austero leva a
vida. Na verdade, esse que seria o ponto de vista do liberal, não é, com toda a certeza,
o do austerista. A ideologia deste ambiciona, com apetite, tomar para si as
possibilidades que os austeros, por uma retenção autodeterminada, conseguem
alcançar, mesmo em tempos de dificuldades. O que interessa aos austeristas não é
serem austeros, mas o espólio do que o sacrifício autodeterminado concedera aos
austeros. O austerismo é simplesmente um método de espoliação dessa fonte de
riqueza que reside na escolha pelo modo de vida austero. O seu método é simples e
até certo ponto muito eficaz: basta trazer o caos do mundo para o lugar da
autodeterminação humana, impô-lo, na forma de uma existência incerta, onde a
semente da razão de ser humana procurasse fazer alguma raiz, se fosse a tempo disso.
Nesse sentido, o austerista manda destruir toda a previsibilidade que permitia alguma
perspectiva sobre o futuro, e manda transformar, pelas leis que tem o poder de criar, o
trabalho em desábito, a existência em risco, o sentido em caos. O austerista coarcta às
pessoas o modo de vida austero, como quem faz da denegação do sentido da
autodeterminação humana uma determinação humana.
O método austerista tem tão pouco de liberal como de austero. Para os seus
pregoeiros, não se trata de preferir o curto ou o longo prazo, avaliar um ou outro
destes regimes temporais a partir das condições existentes de riqueza, sua distribuição
mais ou menos equitativa, e as perspectivas de crescimento. O austerista não faz essas
contas, porque, no essencial, a sua perspectiva é diametralmente oposta àquilo que,
além do muito que os divide, acaba ainda assim por unir liberais e austeros: o
objectivo de tornar o mundo humanamente menos inóspito. A aposta do austerista é
só uma miserável e declarada degradação do mundo que as pessoas têm de enfrentar.
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Por que razão o austerismo se empenha nesta vertiginosa desolação, como se, no
âmago da sua convicção, nada importasse mais do que deixar às gerações vindouras,
como herança sua, um mal irreversível? Que sentido retirar desta glória que, acima de
tudo, não se quer vã? O sentido mais claro que disto se consegue extrair é a residual
relevância para as motivações do austerismo de quaisquer aspectos materiais fácticos
relacionados com a descrição do mundo que os humanos habitam - designadamente a
"saúde" da economia, e a promoção de condições menos inóspitas para a sociedade
humana. A realidade que motiva verdadeiramente o austerismo não é fáctica, mas
prescritiva - o que quer mesmo é regular os comportamentos das pessoas, mudá-los, e
assim adequá-los à sua própria e particular visão de como deviam ser. Os austeristas
pouco querem saber de como as coisas são, foram, ou venham a ser; só lhes importa
como devem ser. Daí a urgência como encaram a necessidade de deixar uma marca
irreversível que atinja todos, nas suas vidas como nas suas consciências. A missão
austerista quase chega a comparar-se com uma anedótica condução das almas - não
sejam piegas, saiam da zona de conforto, venham cá para fora e exponham-se…
O austerismo tem razões fundas portanto, que transcendem a ordem das razões do
cálculo. Com razão se tem referido uma deriva moralista do debate político em geral,
mas também, já na esfera do exercício dos poderes legislativo e executivo, das
próprias políticas económicas sob o credo austerista. Contudo, não basta identificar
este moralismo como uma deriva ou defeito acidental que, de alguma maneira,
permanecesse corrigível. A relação entre economia e moral ganhou uma saliência
crucial no austerismo, e, na verdade, também uma feição muito distintiva, que não
pode ser escamoteada. Relações de moralidade sempre estiveram em jogo no debate
da economia política, pelo menos no sentido em que um desígnio de maior justiça
social implicava uma atenta consideração moral das consequências deste ou daquele
sistema económico, refreando o seu impacto negativo na vida das pessoas e das
sociedades em geral. Especialmente no quadro do sistema capitalista, com a geração
de desigualdades sociais, impunham-se constrangimentos morais à economia. A
revolução por que pugnam os austeristas inverte as relações entre economia e moral -
já não se trata de moralizar a economia, tornando-a compatível com os modos de
existência tidos por comunitariamente aceitáveis, mas, tudo ao contrário, de fazer da
própria economia um dispositivo moralizador que dita o único modo de existência
aceitável. Para o austerista, a economia não é nada que se deva compreender,
explicar, nem sequer respeitar; é apenas o instrumento banalizado da sua moral.
Pior do que vivermos tempos austeros é vivermos depois de tempos em que nos
desfizemos dos meios mais básicos que a humanidade conheceu para enfrentar o caos
do mundo. Pior do que o termos feito, é prosseguirmos no mesmo caminho, como se
uma vertigem nos conduzisse, num delírio obstinado, ao mal irreversível sobre as vidas
comuns.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRANCO, José Eduardo (Dir.). O Esplendor da Austeridade - Mil anos de empreendedorismo das ordens e
congregações em Portugal: Arte, Cultura e Solidariedade. Lisboa: INCM, 2011.
FREUD, Sigmund, Beyond the Pleasure Principle (The Complete Psychological Works, Volume XVIII –
1920-22). Trad.: James Strachey. London: The Hogarth Press, 1955.
LACAN, Jacques, Le séminaire, Livre VII: L'Ethique de la psychanalyse. 1959-1960. Paris : Seuil, 1986.
NIETZSCHE, Friedrich, Humano, Demasiado Humano. Trad.: Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio
d’Água, 1997.
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