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Do austerismo ou do abuso sobre a existência temporal

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André Barata
Universidade da Beira Interior
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DO AUSTERISMO
Ou do abuso sobre a existência temporal

André Barata
Instituto de Filosofia Prática
Universidade da Beira Interior

Mas aquilo que se percebe bem é que todos os costumes,


até os mais austeros, com o tempo se tornam mais
agradáveis e suaves e que até o modo de vida mais severo
se pode tornar um hábito e, portanto, um prazer.

Nietzsche, Humano, demasiado humano, §97.

1. A mutação da existência pública

No curso das últimas três décadas assistiu-se à transfiguração radical que a revolução
dos meios informáticos repercutiu sobre a prática do trabalho. As gerações humanas
que transpuseram o milénio têm sido dela, não apenas sujeitos passivos, mas
protagonistas activos, participando num processo cujo resultado mais destacado é a
auto-transformação de todas as dimensões da sociabilidade humana.

Criado no dealbar da década de 1980, o Microsoft Windows fez a hegemonia, de


upgrade em upgrade, e geração após geração de sistema, do que designou por
Desktop, a ponto de a sua imagem visual porventura ser, ao lado da cruz, a imagem
artificial mais reconhecível da Cristandade, e ao lado do quarto crescente, a imagem
artificial mais reconhecível do Islão. Os seus sons de abertura e encerramento, com o
virar do milénio, já ecoavam dentro das casas de milhares de milhão como, fora delas,
sinos a rebate e chamamentos à oração.

Na língua portuguesa, pelo menos como é falada em Portugal, a palavra «Desktop» foi
traduzida, de maneira magnificamente antecipadora, pela expressão «Ambiente de
trabalho». Talvez os tradutores não adivinhassem que o ambiente criado pela
Windows viria a constituir bem mais do que o ambiente da superfície, arrumada ao

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gosto de cada um, de uma secretária virtual, um desktop environment, mas muito
literalmente o ambiente quase universal do trabalho, para trabalhadores ou, ao
menos, para equipas de trabalhadores em todos, ou quase todos, os sectores de
actividade laboral. Seja no supermercado, no escritório de advogados, no hospital, na
repartição de finanças, na padaria, mesmo na fábrica, sempre algures a imagem do
ambiente de trabalho do Windows se mostrou e se fez ouvir.

Entretanto, outras empresas desenvolverem outros ambientes de trabalho havendo


hoje uma oferta plural de «Offices», alguns até livres de direitos comerciais, ou seja,
disponibilizados de forma gratuita. Esta diversidade fez com que o conceito e a
experiência do «ambiente de trabalho» ficassem libertos de um qualquer sistema
operativo que tivesse começado por o tutelar, em particular o do Windows.
Emancipado de qualquer software em particular, o «ambiente de trabalho» pôde
alçar-se, enfim, à posição de ambiente universal do trabalho.

Este ambiente universal do trabalho transforma progressiva mas irreversivelmente, as


práticas do trabalho humano da última trintena de anos. Imprime-lhes um recorte
hegemónico que direcciona, em seguida, todos os desenvolvimentos tecnológicos no
sentido de acomodarem as necessidades, os desejos e as preferências que essa mesma
hegemonia desperta. É o próprio processo de hegemonização do ambiente universal
de trabalho que se auto-propõe aperfeiçoamentos em vista de uma compactação da
informação, com dispositivos cada vez mais capazes de armazenar quantidades
maciças de informação; assim, sucede uma cada vez menor dependência da
materialidade dos dispositivos mecânicos, miniaturizados, quase desaparecidos do
alcance do olhar nu. Não deixarão de permanecer – mesmo que numa versão
nanotecnológica –, mas libertando em todo o esplendor uma existência
desmaterializada do ambiente de trabalho, pronta a rematerializar-se em cada
personal computer, laptop, smartphone, tablet, etc., quase universalmente, ora na
secretária pessoal no emprego, ora na secretária do colega, ora no escritório de casa,
ora no quarto das crianças.

Esta repetibilidade do ambiente de trabalho em suportes materiais diferentes não


estava, contudo, ainda à altura das potencialidades da sua existência desmaterializada.
A sua ontologia merecia e podia mais do que uma capacidade ilimitada de se repetir,
merecia e podia ser ubiquidade desmaterializada. Toda a informação desmaterializada
desejou dispor de uma forma desmaterializada de existir, a internet, e desejou
concatenar-se em reenvios e links globais, World Wide Web etérea, condensando-se
em formações ao mesmo tempo desmaterializadas e agregadoras, numa topologia ao
mesmo tempo remota e por toda a parte acessível: a “nuvem”.

Ao encontro desta tendência ubiquista, como se duas rectas paralelas se encontrassem


antes do infinito, vem uma outra tendência, de sinal quase oposto, mas,
surpreendentemente complementar. O ambiente de trabalho, ubiquamente

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desmaterializado, reencontra feição física não em qualquer materialidade, mas na
privacidade do que é materialidade pessoal. Desde logo o «PC», ou seja, o computador
pessoal, que no nome clarifica imediatamente o compromisso da máquina capaz de
computar e tornada disponível a todo o público com um meio de acesso que se
preferiu, contudo, reservado, exclusivamente pessoal. A pessoalidade do PC desktop
teve continuidade depois no laptop, depois ainda nos tablets, dispositivos cada vez
mais pessoais, mais intransmissíveis, mais íntimos. Por outro lado, todas estas
máquinas, através do software que trazem consigo, reservam um ambiente de
trabalho próprio para cada utilizador, apenas acessível, por regra, através de senha
secreta.

Desta maneira, podemos dizer que, ao lado da desmaterialização ubíqua, quase


omnipresença desmaterializada, constitui-se uma preferência pela materialidade mais
íntima, menos presente, com localização singular e possivelmente incerta, quase omni-
ausência materializada. Este extraordinário contraste não significa que haja uma
preferência no sentido da inexistência pública dos utilizadores ou usuários. Pelo
contrário, o mesmo contraste deve ser interpretado como promovendo uma existência
pública diversa – a pessoa não comparecer publicamente na sua materialidade para
poder comparecer publicamente no universo da omnipresença. Joga-se, assim, inteira
nesse universo, e, também por isso, não sem antes se ter constituído aí como pessoa
ou, ao menos, como simulacro eficaz da sua unidade pessoal.

A materialização reservada, mesmo íntima, que recata a pessoa da comparência


pública, transferindo-a para esse universo da omnipresença, tem assim de se fazer
acompanhar por novas formas de pessoalidade adequadas à imaterialidade do meio.
Essas são as necessidades e desejos que a composição de si mesmo como um avatar,
ou a sua proposta de reconhecimento global, o gravatar, ou uma personalidade das
redes sociais, ou um alter num jogo social online, ou um blogger, etc. procura
satisfazer. O resultado, hoje já muito consolidado nas vidas de centenas de milhões de
pessoas, é a constituição de uma existência pessoal densificada no que poderemos
chamar «Universo da omnipresença». De acordo com números de 2011, há registo de
2 mil e 100 milhões de utilizadores de internet, perto de metade deles na Ásia, um
quarto na Europa e outro quarto no continente americano, e apenas pouco mais de
100 milhões em toda a África. Mas, dentro destes números, um imenso número de
800 milhões é utilizador da rede social Facebook, e 225 milhões têm contas de twitter.
Mais difícil de determinar é a quantidade existente de blogues pessoais, mas vários
indicadores bastante prudentes dão como razoável uma estimativa de meio milhar de
milhões de bloggers. Nas regiões do mundo com condições de desenvolvimento
tecnológico suficiente, a comparência pública acontece já, em parte muito
significativa, neste universo da omnipresença. É mesmo duvidoso que seja maior o
número de pessoas com existência pública saliente que não o façam desta maneira. Na

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verdade, o que parece pouco duvidoso é uma migração do espaço público para este
universo da omnipresença.

2. A mutação da existência privada

Esta transformação profunda da existência pública das pessoas é ainda acompanhada


por uma transformação da existência privada das pessoas, dos seus relacionamentos
pessoais, mesmo íntimos. Sinal disso é, por exemplo, a mutação das formas de
intimidade relacional envolvendo cada vez mais a intermediação de meios
informáticos, não raro tornados o próprio meio da intimidade, apesar dos hiatos
espaciais que fazem distar os que se tornam íntimos e dos hiatos materiais que os
isolam corporalmente. A mutação da intimidade é tão profunda que não dispensou
uma inovação vocabular, que o psicólogo Serge Tisseron (2001), retomando um
conceito anteriormente proposto por Jacques Lacan (1959-60), fixou na palavra
extimité, como intimidade sobreexposta, na sequência, em especial, do surgimento de
programas de diversão com enorme impacto nas audiências televisivas, como o Big
Brother. De maneiras menos intensas, mas maciçamente generalizadas, as redes
sociais, os canais de chat e todos os meios online de convivialidade e relacionamento
social dão hoje cada vez mais corpo a esta extimidade.

Este quadro riquíssimo é, contudo, um quadro a que não prestaremos, por decisão
metodológica, particular atenção neste ensaio. As implicações que a nova existência
pública traz para o trabalho exigem uma atenção redobrada, não apenas pelo facto,
que acabamos de assinalar, de também haver uma nova existência privada, mas ainda
por ambas as formas de existência terem sensíveis zonas de conivência que devem,
por isso, ser cuidadosamente consideradas. Com efeito, a elucidação do ambiente
universal do trabalho deve ser aprofundada com os traços, aparentemente contrários,
atrás enfatizados, da omnipresença desmaterializada e da omni-ausência
materializada. Esta ausência que apenas encontra solução na privacidade não releva,
porém, da extimidade, entendida como um modo de subsistência externo da
intimidade, «lá fora» portanto, especialmente na «rede», mas de uma tendência, que
cremos de sinal oposto, de subsistência interna, privada, reservada, perto de íntima
portanto, da existência pública. É como se à extimidade, em contraste com a
intimidade, da existência privada se pudesse fazer corresponder uma publintimidade,
em contraste com a publicidade, da existência pública.

3. Muito mais sós, muito mais expostos

A transformação que a ubiquidade desmaterializadada e a materialidade reservada


imprimem nos relacionamentos laborais é muito clara e poderia ser sintetizada pela

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seguinte formulação: trabalhamos muito mais sós, mas muito mais expostos. Muito
mais sós porque tendencialmente nas nossas próprias casas, nos nossos lugares
privados, abrigados, até íntimos, ausentes do mundo dos outros; mas mais expostos
porque tendencialmente, no que respeita às tarefas laborais propriamente ditas, nada
nelas ficará imune à possibilidade de um escrutínio absoluto, na medida em que tudo
nelas deixa rasto, tudo nelas proporciona a recapitulação, até a sua repetição, como
num exercício de demonstração em que qualquer outro tem o legítimo direito da
intromissão e de presença. Os passos materiais sem rasto dentro de nossas casas e os
passos desmaterializados com rasto dentro do ambiente de trabalho, apesar do
carácter privativo deste, radicalizam a contrariedade latente e a tensão recíproca entre
os dois planos da existência – um público, outro privado. Mesmo num grande
escritório, num open space por exemplo, o relacionamento do trabalho tenderá a
seguir os canais abertos pelas ligações em rede, ainda que pudessem estabelecer-se
comunicações e contactos frente-a-frente, que são, porém, preteridos precisamente
porque de outra forma não ficaria garantido o rasto que evidencia o trabalho feito, a
produtividade em curso, e a permanente possibilidade do escrutínio. Estabelecido este
padrão, até os contactos informais de cordialidade, mesmo de amizade, tendem a
fazer-se por estes canais ao ponto, algo anedótico, de as pessoas se esquecerem que
bastaria levantar o olhar do teclado e dirigi-lo à pessoa que logo se avista por detrás do
écran do monitor. A hegemonia do meio pode mesmo conduzir à reclassificação de
todas as interacções que lhe escapem como deliberadamente encobertas,
sobredeterminando o seu valor semântico com uma carga de secretismo
problemático.

Esta exclusão do face-a-face e do contacto directo - a aquaintance de que falava


Bertrand Russell –, sem os mediadores das redes sociais, das comunicações
electrónicas, das teleconferências e das videoconferências, vai muito além das
relações concretas entre pessoas no contexto da actividade do trabalho. Por exemplo,
esta exclusão determina logo nos modos de educação das crianças uma radical
transformação das preferências dos seus pais e tutores - dissuadidas de ir brincar para
a rua, vadiar até o sol posto pelas esquinas, pracetas e recantos do bairro, como se
assim ficassem sumamente expostas; em vez desse risco de abismo, acantonam-se as
suas energias num outro "frente-a-frente", adentro de portas, com uma consola ou
outro dispositivo análogo. Ironicamente, é muito razoável contrapor que este reduto
intramuros securitário impõe às crianças uma exposição maior do que a da rua. É, de
facto, uma exposição que deixa todo o rasto, que, contrariamente ao carácter mais
próprio dos acontecimento naturais, pode ser reversível, repetível e, pior mesmo,
revisível. O carácter acontecimental do acontecimento tende a dissolver-se assim e
deixar-se suplantar pela vigilância das mediações. De modo completamente oposto, a
imediação do encontro com o mundo, ao implicar a contingência do acontecimento –
pois nele algo permanece sempre irreversível, irrepetível, irrevisível – desliga o antes e
o depois do acontecimento, reconhece ao tempo a realidade genuína de uma seta
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temporal incontível, infiltra-lhe a experiência de liberdade nos interstícios sem
mediação do encontro com o mundo. E, por outro lado, a força do acontecimento traz
ainda uma recusa implícita e incorporada de diirigismo, paternalismo, subordinação,
no fundo, tudo designações diversas para uma existência que se conforma à condição
subsidiária, seja relativamente à História, ou ao género humano, ou à consciências
colectiva de um povo, seja, enfim, à inumanidade dos dispositivos técnicos,
tecnológicos, ou simplesmente à própria potência dos dispositivos, não importando
qual a natureza da sua montagem.

A quase aniquilação do acontecimento na sua irredutibilidade é a formulação mais


abstracta da tendência para uma racionalidade da mediação ilimitada, talhada na
perfeição para uma circulação irrestrita, dos afectos e dos gestos, tal como os capitais
num mercado, onde a moeda, para poder ser moeda eficaz de troca, não pode guardar
nela as marcas da troca. No que respeita à vida, vive-se, então, sem se conservar o
vivido.

Esta lógica da intermediação sem marca do tempo, ou da vida, encontra no mundo


contemporâneo do trabalho uma feição muito concreta nas transformações a que
chamámos atrás ubiquidade desmaterializada e materialidade reservada. Ora,
particularmente estas duas condições são condições de uma existência social dos
humanos cada vez mais sós, cercados dos seus dispositivos de atenção, a potenciar
contactos sim, mas na verdade, a interporem-se e a subjugá-los à forma de uma
exposição radical ao ponto de uma dissolução dos acontecimentos. Nada aconteceria
num acontecimento se nele não houvesse algo que não soubéssemos haver. Por isso,
não são inteiramente estranhas as razões por que somos persuadidos a vedar
securitamente as ruas públicas às nossas crianças e as razões por que são essas
mesmas ruas públicas o território urbano mais resistente ao capital financeiro. É que a
cidade só acontece, irredutível, nas suas ruas públicas.

4. Razões para menos optimismo pós-industrial

É hoje patente o equívoco daqueles que julgaram que a categoria da produtividade


constituiria o anacronismo por excelência numa sociedade pós-industrial. São já muito
claros os sinais de que a precarização do trabalho não significou uma substituição do
trabalho repetitivo – exemplarmente retratado pelo operariado fabril, feito de rotinas,
acoplado a uma máquina – por um outro tipo de trabalho, eminentemente criativo,
imaginativo, até mesmo lúdico. Esta descrição, em boa verdade, até no que tem de
acertada se mostrará, como veremos em seguida, particularmente perversa.

Se pretendermos pensar as formas gerais como se organiza o trabalho na sociedade


pós-industrial que, até certo ponto, é a nossa, devemos começar por distinguir duas
categorias amplas de formas de trabalho. Numa delas, preservam-se exactamente as

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mesmas características de repetitividade e rotina do trabalho do operário fabril, mas
com três importantes diferenças. Em primeiro lugar, deixou de constituir, pelo menos
de maneira tão pronunciada, um tipo de trabalho especializado como o do operário do
capitalismo industrial mais avançado, mas bem pelo contrário um tipo de trabalho que
envolve nenhuma ou incipiente especialização, lembrando as épocas precoces do
capitalismo, que julgaríamos definitivamente ultrapassadas, e que se permitiam, por
exemplo, explorar trabalho infantil em fábricas. Em segundo lugar, apesar de
frequentes vezes implicar operar uma máquina, e sob condições de exploração
crescentes, não se reconhece neste tipo de trabalho um operariado por lhe faltar a
instalação física de produção. Não é só a fábrica, mas também o armazém, a redacção,
até o escritório que se desmaterializam, mantendo os seus empregados e as máquinas
que operam nas suas respectivas casas, em condições de privacidade, e com risco sério
de isolamento público. Ei-las a ubiquidade desmaterializada e a materialidade
reservada a cumprirem as suas funções sistémicas. Por fim, trata-se de um trabalho
radicalmente precarizado. O enorme progresso na intuitividade das máquinas a
operar, e que não consiste em mais do que a capacidade de as operar apesar de uma
enorme incapacidade de as conhecer, permitiu tornar a indiferenciar os seus
operadores, dispensando a figura do especialista conhecedor, guardado apenas para o
“estado de excepção” das máquinas, por exemplo na necessidade de as consertar ou
de nelas produzir alterações de funcionamento para que outrem as venha operar. Com
isto, naturalizou-se a precariedade laboral do operador, facilmente substituído por
qualquer outra pessoa, mediante brevíssima ou mesmo nenhuma formação. É neste
quadro que se percebe como o exército de operários fabris das gerações anteriores
teve de se resignar a observar, nas sociedades com escassa mobilidade social, os seus
descendentes a engrossar um exército de operadores de call centers, caixas de
supermercado, portageiros de Auto-estradas, manipuladores de botões de um forno
de padaria, todos possivelmente a partir de um “ambiente de trabalho” que conhecem
deste tenra infância. Para todos estes trabalhadores suavemente rebaixados o
operariado especializado teria sido mais digno se, entretanto, esse tipo de trabalho
não tivesse sido extinto pela automação do processo industrial e pela terciarização das
economias desenvolvidas, ancoradas nas actividades dos serviços. Condenados aos
defeitos do trabalho repetitivo e isolado, mas sem nenhum dos benefícios da
estabilidade da rotina e de previsibilidade, não são seguramente estes trabalhadores
precários o sinal mais agradável de uma sociedade pós-industrial evidentemente
romantizada por alguma sociologia optimista, onde poderíamos incluir por exemplo
Domenico de Masi (1999) e o seu conceito de ócio criativo.

A repetitividade intrínseca da actividade neste tipo de trabalho indiferenciado é


violentada pela impossibilidade de esperar a estabilidade e a rotina que,
anteriormente, um capitalismo especializado, aliado à força dos colectivos
organizados, proporcionara. Não bastasse a indiferenciação da actividade do trabalho
– diminuindo a esmagadora maioria dos trabalhadores à condição de utilizadores de
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software –, nem a desarticulação da força agregada dos trabalhadores, acontece que
esta precariedade é ainda gravemente acentuada pelo risco elevado de extinção ou
forte compressão da actividade por substituição mais ou menos completa da função
pelo desenvolvimento imparável de meios automáticos – como por exemplo tem
sucedido com o desaparecimento dos postos de trabalho dos portageiros nas auto-
estradas ou dos revisores nos transportes públicos.

Depois, há uma segundo categoria de trabalho, aliás cada vez mais ampla, cuja
caracterização é exactamente a inversa. Sendo, como alegam os teóricos da sociedade
pós-industrial, trabalhadores comprometidos na produção de ideias, trabalho criativo
e imaginativo, ou, com forte pendor intelectual, no quadro de uma economia cada vez
mais baseada na informação e no conhecimento, e na produção desmaterializada de
intangíveis, a verdade é que a estes trabalhadores é imposta, no entanto, como
medida de sucesso e de retribuição, uma régua implacável de produtividade. À
imaterialidade cada vez mais etérea da produção cola-se, como se houvesse de
subjugar o que nela há de volátil, uma materialidade cada vez mais áspera da
produtividade exigida ao trabalhador. Estejamos a falar de um corretor da Bolsa de
Valores, de um designer, de um agente publicitário, de um investigador universitário,
de um ficcionista, até mesmo de um poeta, objectivos de produtividade são
estabelecidos como se a criatividade, não podendo ser produzida por uma máquina,
pudesse ser produzida como por uma máquina. É mesmo tomado como
contraproducente, estando em causa objectivos como a maximização da
produtividade, permitir que o criativo-máquina se tranquilize quanto ao seu
rendimento e à sua capacidade de se manter no ramo profissional. Este é o modelo de
todas as avaliações de desempenho em curso, seja qual for o campo de actividade do
intelectual, seja qual for a maneira como se dedica ao espírito da humanidade.

Ambas, a repetição maquinal humanamente sobressaltada do precário indiferenciado,


ou o sobressalto criador maquinalmente repetido pelo criativo singularizado,
desumanizam o trabalho, implicando nele uma violência. A forma desta violência está
no sobressalto humano, o instrumento da violência está no tempo que passa
ameaçadoramente e inquire pelos resultados esperados de produção. E ambas estas
categorias de trabalho não teriam podido ancorar-se na profundidade socioeconómica
dos nossos tempos fora das condições da existência pública que sobrevieram à
revolução dos meios informáticos. O universo da omnipresença desmaterializada e da
materialidade quasi-ausente, reservada, tornou sustentável uma dispersão do trabalho
além de qualquer localização, ao mesmo tempo que o concentrou no trabalhador sob
duas formas que, de tão contraditórias, se aproximam: ou como se o corpo e a mente
do trabalhador fossem toda a unidade fabril, como é o caso do trabalho criativo, ou,
pelo contrário, divorciando absolutamente o trabalhador do produto, como sempre foi
característica do capitalismo, mas também do próprio processo da produção, cavando
uma incompreensão absoluta relativamente aos ofícios, por exemplo entre o novo

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padeiro que manuseia manípulos diversos num forno industrial com comandos
electrónicos, possivelmente a partir do ambiente de trabalho de um PC, e as velhas
artes de fazer o pão. O trabalhador assim absolutamente transcendido ou o trabalho
absolutamente imanentizado pelo trabalhador resultam identicamente numa mesma
ausência de polarização do trabalho numa relacionalidade humana. A absoluta
heteronomia ou a absoluta autonomia do trabalho são dois caminhos que abandonam
os homens à agrura sobrematerializada da experiência actual do trabalho.

Neste quadro, não sobram razões para grandes optimismos pós-industriais. Pelo
contrário. Quando Domenico de Masi declara que «Estamos habituados a
desempenhar funções repetitivas como se fôssemos máquinas e é necessário um
grande esforço para aprender uma actividade criativa, digna de um ser humano»
(MASI, 1999: 23), seria necessário identificar o que na repetitividade é efectivamente
desumano, mas também o que nela é, ou pode ser, profundamente humano. E seria
necessário, em consequência, acautelar o que de profundamente humano pode estar
ameaçado ao se subtrair a repetição, a rotina, a monotonia e a previsibilidade do
horizonte do trabalho e ao serem postos no seu lugar a imprevisibilidade, o risco, o
frenesim e a instabilidade.

Foi precisamente para esta profunda ambivalência dos juízos que podem ser emitidos
a respeito da repetição que outro grande sociólogo, Richard Sennett, numa obra
intitulada A Corrosão do carácter – As consequências pessoais do trabalho no novo
capitalismo, chamou a atenção. E fê-lo logo opondo, entre os clássicos do século XVIII,
um entendimento benigno a um entendimento maligno do hábito.

Na aurora do capitalismo industrial, não era evidente que a rotina fosse um


mal. Em meados do século XVIII, parecia que o trabalho repetitivo podia levar a
duas direcções bastante diferentes, uma positiva e frutífera, a outra destrutiva.
O lado positivo da rotina está representado a grande Enciclopédia de Diderot,
publicada entre 1751 e 1772; o lado negativo do tempo de trabalho regular foi
retratado mais dramaticamente em A Riqueza das Nações de Adam Smith,
publicado em 1776. Diderot acreditava que a rotina de trabalho podia ser um
professor necessário; Smith achava que a rotina anestesiava a mente. Hoje, a
sociedade alinha com Smith. Diderot sugere o que poderíamos perder tomando
o lado do seu opositor. (SENNETT, 1998: 51)

Não está em causa nisto contestar o potencial humanamente realizador do «ócio


criativo», como não teve de estar em causa para Paul Lafargue contestar o seu sogro
Marx pelo facto de, ao defender um «direito à preguiça», com isso pretender conferir
mais sentido ao «direito ao trabalho». O que está em causa é que se possa esperar,
como aparenta acontecer com Domenico de Masi, que uma sociedade pós-industrial, e
culturalmente pós-moderna, tenda a gravitar economicamente em torno da actividade
de um «ócio criativo», depois de ter sido rompido um paradigma de relações de
trabalho que tendiam fortemente para a estabilidade no emprego.

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5. Re-industrialização sem indústria

Estas ambivalências disfarçam mal o cavalo de Tróia que nos entrou pelo tempo de
ócio adentro - é muito menos o trabalho ocioso do que o ócio trabalhoso o que se
impõe ao quotidiano contemporâneo de homens e mulheres, mobilizáveis, sem
nenhum freio sólido, e por igual, em todas as horas de vigília dos seus dias. É justo falar
de uma mobilização temporal total das sociedades, sem descontinuidade que resista
ao modelo produtivista de existência.

Há circunstâncias particulares a que importa atender neste processo. Em primeiro


lugar, como já notava o sociólogo português João Freire há duas décadas atrás – «(…) a
«pós-modernização» de algumas sociedades estaria sobretudo dependente da
modernização de um enorme grupo de outros países» (FREIRE, 1993: 334), assimetria
que só pôde permanecer até que as condições competitivas alastradas ao mundo
inteiro pela globalização exigissem uma re-modernização da sociedade pós-moderna.
Certamente não são indiferentes a este acerto de contas globais, a desaceleração do
crescimento económico das sociedades ocidentais, as crises de dívida soberana que
assolaram as suas periferias mais expostas na Europa, as políticas de austeridade
financeira e precarização do trabalho.

Podemos dizer mesmo que a ênfase dada, desde há alguns anos para cá, à necessidade
de incrementar a produtividade do trabalho e de diminuir os custos unitários de
trabalho, definidos estes a partir da razão entre a remuneração por trabalhador e a
produtividade, sinalizam uma tendência actual para a re-industrialização das
economias europeias periféricas, particularmente das economias submetidas nos anos
mais recentes a programas de ajustamento financeiro e orçamental conduzidos pelo
FMI, a Comissão Europeia e o BCE. Trata-se de uma re-industrialização sem indústria,
sem fábricas, apenas assente num regime laboral que readquire as características da
exploração da força do trabalho de outros tempos. O que é, a este respeito, notável é
que o mesmo Daniel Bell que antecipou nos anos 1970 os traços gerais de uma
sociedade pós-industrial, havia, ainda mais precocemente (em Automation and Major
Tecnhological Change, 1958, mais de meio século atrás), associado de forma muito
explícita a industrialização, não à existência de fábricas, mas a um regime laboral
particular. Este pormenor não passou despercebido a Herbert Marcuse em O Homem
unidimensional (1964):

Daniel Bell, o autor deste estudo, vai mais longe; associa esta transformação
tecnológica ao próprio sistema histórico da industrialização, dizendo que o
sentido da industrialização não surgiu com a introdução das fábricas.
(MARCUSE, 1964: 55)

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E logo a seguir cita o próprio Daniel Bell a esclarecer donde resultaria, então, no seu
parecer, o sentido da industrialização:

Surgiu a partir da medição do trabalho. Só quando um trabalho pode ser


medido, quando passa a ser possível vincular um homem ao seu trabalho,
exercer uma pressão sobre ele, medir o seu rendimento, em termos de peças
isoladas e pagá-lo à peça ou à hora, só então se entra na moderna
industrialização. (BELL, 1958 Apud MARCUSE, 1964: 55)

Subscrevendo esta interpretação de Daniel Bell do que deva significar o sentido da


industrialização, então a tendência actual do trabalho que temos descrito corresponde
a um quadro notório de re-industrialização da economia humana.

6. Obliterações patentes, totalitarismos latentes

Por outro lado, algo há a contestar na aparente evidência de um «ócio criativo»


quando, neste quadro de re-industrialização do regime de trabalho, as actividades
ligadas à produção criativa com expressão económica dificilmente podem ser
interpretadas como ociosas. Que margem se tem, com efeito, para falar de ócio
perante o trabalho de desgaste, tensão, instabilidade e risco de um criativo, hoje tão
subjugado pelo ditame da produtividade como um operário no seu posto de trabalho,
ou um operador em teletrabalho?

E se não restam dúvidas do alcance e extensão crescentes das actividades criativas na


vida económica das sociedades pós-industriais, justamente o seu carácter nada ocioso,
mas, bem pelo contrário, competitivo e desgastante, encontra algum alívio na
cedência de tempo de lazer e de descanso ao tempo de trabalho. Pode isto, em rigor,
querer dizer que ócio e criatividade de facto tendem a convergir, mas não porque se
proporcione um desejável ócio criativo. A produtividade criativa, até em virtude de
uma aparente benignidade que lhe seria inerente, encontra, na realidade, nas
projecções que faz a partir do ócio criativo justificação terrena para dessacralizar as
fronteiras entre os tempos de trabalho e de lazer, tornando-os indiferenciados, com
evidente prejuízo para o lazer. É o caso que o regular professor de escola, com muitos
alunos, e exercícios por corrigir, facilmente exemplifica. Acaba a levar o trabalho para
casa, para as suas noites, para os seus dias de férias, para o seu descanso, e assim a
levar igualmente o seu lazer e dos seus familiares a um ponto crítico. Contudo, a
separação entre o tempo de ócio e o tempo de trabalho que nós acharíamos
absolutamente recomendável, Domenico de Masi considera prescindível, mesmo
indesejável:

Por exemplo é o que acontece comigo quando estou dando uma aula. E é o que
eu chamo de «ócio criativo», uma situação que, segundo eu, se tornará cada
vez mais difundida no futuro. Há um pensamento Zen que expressa com

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perfeição essa forma de vida, tanto no seu aspecto prático como no seu estado
de espírito: «Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca distinção entre o
seu trabalho e o seu tempo livre (…)». (MASI, 1999: 179)

Em rigor, o ócio criativo exprime uma indistinção progressiva entre tempo de trabalho
e tempo de lazer, que por si só é neutra. Saber se é o regime temporal do lazer que se
faz cada vez mais semelhante ao do trabalho ou se é o contrário que se tem em mente
aponta, contudo, para duas perspectivas diametralmente opostas. Algum optimismo
provavelmente imaginaria o trabalho repetitivo substituído por uma criatividade e
regime ocioso, como defende Masi. No entanto, há abundante evidência de que o
tempo de lazer ganhou permeabilidade ao tempo de trabalho, tolerando-se aquele,
precisamente em função de uma fusão ilusoriamente agradável entre ambos, ser
detido, interrompido, substituído a qualquer hora, numa demonstração de
disponibilidade sem forma de horário ou calendário. A cúmplice sobreposição que a
máquina proporciona ao realizar nela o trabalho como o lazer só incrementa esta
mobilização total do criativo.

A tecnologia que pôde, nas economias mais desenvolvidas, substituir pessoas, pondo
nos seus postos de trabalho máquinas, mesmo naqueles postos de trabalhos que
exigiriam alguma interacção discursiva, é também a mesma tecnologia que sujeita hoje
cada vez mais as pessoas ao regime da disponibilidade e da competição. A
generalização do uso do telemóvel, e agora dos Ipads e dos Iphones da Apple Inc., bem
como dos artigos congéneres da concorrência, hibrida o lazer e o trabalho nas mesmas
ferramentas tecnológicas, numa falsa síntese que não humaniza o trabalho, mas
desumaniza o lazer e, pior, arrasta a humanidade para um regime existencial de
despotismo da disponibilidade. Como, em tempos industriais, a mão-de-obra era
afeiçoada à máquina, agora, em tempos pós-industriais (pelo menos até certo ponto),
são os nossos cérebros que são afeiçoados à máquina. Decerto, as máquinas são
outras, mas as de hoje não libertam mais as consciências do que as aprisionam a uma
disponibilidade permanente, proto-laboral. O domínio faz-se menos pela força, em
todo o caso a força produtiva já não é feita da força dos braços, mas pela própria
forma das consciências. A disponibilidade laboral é hoje uma disponibilidade moral,
que a delação pública atesta, logo com as convicções de quem nos governa e dos
moralismos de gurus da alta finança.

A tentativa de dissolver as barreiras que diferenciam o lazer e o ócio do trabalho é


consistente com um desenvolvimento unidimensional da humanidade, que destroça as
suas possibilidades de emancipação. E, a este propósito, é especialmente pertinente o
exemplo que o filósofo Jacques Rancière dá ao identificar na noite dos proletários do
século XIX, enquanto tempo de lazer que pôde permanecer imune à mastigação
capitalista, a ocasião para um impulso emancipador cultivar as consciências da classe
operária. O ócio não só prevenia a unidimensionalidade como nutria, através da
actividade criativa e, por isso, irredutível à uniformidade, uma contestação igualitária.

12
É, porém, precisamente esta dimensão ociosa que não mais pôde resistir à hegemonia
totalitária que Marcuse antecipou na década de 1960, mas só hoje se verifica realidade
totalmente incorporada socialmente:

Na sociedade industrial avançada, o aparelho produtivo tende a tornar-se


totalitário, sendo que determina não só as tarefas, as competências e as
atitudes socialmente necessárias, mas também as necessidades e as aspirações
individuais. Oblitera assim a oposição entre o carácter privado e público da
existência, entre as necessidades individuais e sociais. A tecnologia funciona de
modo a instaurar novas formas, mais eficazes e mais agradáveis, de controlo e
consolidação social. (MARCUSE, 1964: 14-15)

Esta obliteração da oposição entre o carácter privado e o carácter público da


existência não reveste a forma de um totalitarismo agressivo, pelo menos
directamente ofensivo, mas nem por isso, na sua expressão latente, é menos
esmagador. Uma distinção mínima pode ser esclarecedora. À violência, oferecem-se
sempre duas tendências alternativas. Ou a repressão, com o seu poder de
contundência intencionalmente dirigida. Com efeito, a repressão não dispensa um
sujeito da violência e um “tema” por ele visado. Ou, alternativamente, a opressão, que
pelo seu carácter amplo e difuso, mais latente do que patente, não se concentra
especialmente em nenhum alvo, não visando ninguém em particular, antes
procedendo por um esmagamento de todas as possibilidades de autodeterminação.
Estão claramente ao serviço desta tendência as formas de existência pública e
existência privada que identificámos atrás: por um lado a publintimidade da existência
pública, por outro a extimidade da existência privada. Com efeito, a forma como se
hegemonizou um universo da ubiquidade desmaterializada, que baseia a realização da
intimidade, tanto como a existência pública, numa acessibilidade a tender ao ilimitado,
ao mesmo tempo que se contrai, se abjura e quase se anula (com salvaguarda, até ver,
da sexualidade) a comparência material da existência privada e íntima, conduz a uma
alternativa que não permite realmente nenhuma escolha razoável: ou a absoluta
exposição, subjugação social ao totalitarismo unidimensional, ou então, a absoluta
solidão e degredo sociais.

É neste quadro obliterador que faz todo o sentido, na verdade até ganha uma nova luz,
a obliteração complementar, aparentemente benigna, entre as dimensões do lazer e
do trabalho. E não é possível, a este respeito, desvalorizar a forte orientação do
desenvolvimento tecnológico no sentido desta obliteração benigna, mesmo
convidativa como já vimos quer da barreira entre o privado e o público quer da
barreira entre o lazer e o trabalho. Este vínculo entre totalitarismo e empenho
tecnológico é particularmente notado por Marcuse:

As características totalitárias desta sociedade implicam que não possamos


manter a ideia tradicional da «neutralidade» da tecnologia. Não podemos isolar
a tecnologia enquanto tal do uso que dela é feito: a sociedade tecnológica é um

13
sistema de dominação que opera já ao nível da concepção e da construção das
técnicas. (MARCUSE, 1964: 15)

Estas relações entre uma tendência totalitária à obliteração e o próprio


desenvolvimento da tecnologia devem ser conduzidas a um último termo – a
mobilização:

A racionalidade tecnológica revela o seu carácter político à medida que se


torna o grande veículo de uma dominação mais conseguida, criando um
universo verdadeiramente totalitário no qual a sociedade e a natureza, o
espírito e o corpo são mantidos num estado de mobilização permanente em
defesa desse universo. (MARCUSE, 1964: 41)

Esta condução à mobilização implicará, contudo, uma franca rotação da reflexão e da


análise para o plano da inscrição das linhas fundamentais do sentido da existência e da
violenta tensão que aí se descobre sobre os modos de ser humano. Porque a
mobilização já não releva apenas da ordem das condições e dos factos tecnológicos,
que lhe servem sobretudo como meios de realização, porque, em boa verdade, a
mobilização releva já da ordem da intencionalidade normativa sobre as condições
espácio-temporais elementares da existência, do que deve e do que tem de ser para a
sociedade e para cada um dentro dela, há que situá-la num plano radicalmente político
e existencial, antagonístico e mesmo conflitual.

É precisamente sob este enquadramento político-existencial de mobilização que se


pode conferir inteligibilidade à ideologia do austerismo, que se popularizou designar, a
nosso ver de forma abusiva, como “austeridade”. Para compreender o austerismo, e
compreender especialmente por que razão a sua natureza é abusiva, propomos
delinear dois trajectos de sentido. Por um lado, esboçar o contexto histórico que
precedeu o austerismo e que terá induzido a instauração de um regime temporal da
precariedade, do risco, do “curto prazo”. Por outro, esclarecer que este regime
temporal que o austerismo tomou para si é bem, na verdade, a inversão do regime
temporal da austeridade. No austerismo, ou na autoproclamada "austeridade" que se
instalou, através de uma amálgama de imperativos determinados em grande medida
pelo pânico, nas economias desenvolvidas dos dois lados do Atlântico Norte, está
sobretudo em causa denegar qualquer resposta genuinamente austera de preservação
face à possibilidade de violência do mundo. Quer isto dizer que, no fundamental, com
a palavra “austeridade” não se deu nome a uma escolha humana, difícil decerto mas
decidida, para fazer frente ao caos imprevisível do mundo, que a qualquer momento,
além das nossas vontades, pode abater-se sobre as vidas, mas a uma condenação
humana, sem apelo nem agravo, à deterioração sem amparo do quotidiano dos
homens e das mulheres. Neste quadro, não é difícil concluir que para o austero estará
em causa confrontar o austerista, confrontá-lo tanto ou mais do que ao próprio caos
do mundo; para o austero, os austeristas são, na verdade, uma parte particularmente

14
perversa do caos do mundo. A sua ideologia só por furto das palavras se confundiria
com as formas de vida austeras.

Esta distinção vocabular que aqui se propõe, entre austeridade e austerismo, ou entre
austeros e austeristas, embora não seja inteiramente familiar, tem, ainda assim, a sua
origem em usos de alguma maneira consagrados, estando, por exemplo, pelo menos
parcialmente assumida pela Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira, obra de
referência que não apenas apresenta verbetes separados para ambos os vocábulos,
'austerismo' e 'austeridade', como define o primeiro como o abuso do outro. (Cf.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 3: 734)

7. “O capitalismo do curto prazo”

Não é novidade a identificação de um regime temporal do trabalho transformado com


a passagem do capitalismo a uma fase pós-industrial. Também não é novidade a
articulação dessa transformação com aspectos que relevam da moralidade. Em 1998,
há quase década e meia atrás, já Richard Sennett com desenvoltura e profundidade
intelectual notáveis expunha os aspectos centrais dessa transformação. Em primeiro
lugar, importava para o sociólogo norte-americano identificar exactamente em que
aspecto se transformava realmente o capitalismo industrial em pós-industrial:

Os líderes empresariais e os jornalistas põem ênfase no mercado global e no


uso de novas tecnologias como marcas do capitalismo do nosso tempo. Isto é
bastante verdadeiro, mas esquece outra dimensão de mudança: novas
maneiras de organizar o tempo, particularmente o tempo de trabalho. O sinal
mais tangível dessa mudança poderia ser o lema «Nada de longo prazo».
(SENNETT, 1998: 35)

O trabalho tendeu a reconfigurar-se temporalmente, já não como uma relação laboral


sem termo, um “emprego para a vida”, como nota Sennett, mas, antes, como
“projectos” que, por princípio, devem perspectivar o seu termo. Nisto não deve
ignorar-se um pormenor importante: no quadro de um projecto, a transitoriedade
acidental de um emprego torna-se necessária – as pessoas não perdem o emprego, o
projecto em que participavam é que terminou; aliás não seria de esperar outra coisa.
Os projectos não nascem sem termo à vista, não são “casamentos” laborais, muito
menos para a vida. Não devem por isso ser vividos de forma traumática, mas como
experiências enriquecedoras, que cumulam para um melhor desempenho no projecto
que se seguir, sempre de maneira elástica, adaptativa, dinâmica. Mas, curiosamente,
apesar dessa apologia do desapego, os projectos, enquanto duram, esperam do
trabalhador um forte envolvimento afectivo e existencial, equivalente ao da co-autoria
de uma obra. Aliás, a designação “empregado” torna-se completamente inadequada
no quadro destes projectos, sendo muito mais apropriada a designação de

15
“colaborador”, de quem se espera um empenho informal, de quem aceitou o convite
para entrar no barco, de quem manifesta vontade de contribuir e participar na obra
em curso, relação que muito excede, pois, o que pudesse estar em jogo num vulgar
contrato de trabalho. Aliás, uma vez mais, os colaboradores só por necessidade formal
são contratados; o que conta é o convite endereçado sob o pressuposto de uma
comunhão de vontades.

A extensão temporal dos compromissos laborais comprime-se, portanto, numa


transitoriedade essencialmente intensa, de envolvimento pessoal, como se do sucesso
do projecto dependesse o sucesso pessoal. Misturadas as ordens de empenho e
envolvimento, o tempo livre dispõe-se a tornar-se tempo produtivo, como se a
contrapartida fosse o tempo de trabalho ser tempo de lazer e como se a mobilização
dos tempos todos da pessoa fosse a demonstração do seu empenho no cumprimento
das metas antes acordadas, dos objectivos que o próprio há-de auto-avaliar,
responsabilizando-se por qualquer fracasso, ou, caso contrário, convertendo-se mais
profundamente ao mérito da fórmula empenhada, assegurando o prosseguimento da
comunhão, que não precisa de formalidades contratuais (que já dariam sinal de uma
fragilidade escusada), e da capacidade para continuar a participar, com o seu poder
empreendedor, em novos projectos.

Para Sennett, a compressão do tempo no capitalismo pós-industrial transitava em


consequências emocionais, éticas e existenciais.

É a dimensão temporal do novo capitalismo, e não a transmissão de dados de


alta tecnologia, as bolsas globais ou o comércio livre, que afecta mais
directamente a vida emocional das pessoas fora do local de trabalho.
(SENNETT; 1998: 39)

Pela nossa parte, acreditamos que esta “dimensão temporal do novo capitalismo”, que
Sennett enfatiza com toda a razão, não se explicaria sem o recurso à transformação
radical das formas de existência pública produzida pela revolução dos meios
informáticos. Esta é a base de sustentação que propicia efectivamente a desagregação
da massa operária em colaboradores singulares, a incorporação do trabalho pela
existência privada do trabalhador, mesclando tempos de trabalho e de lazer,
prioridades pessoais e de trabalho. A desmaterialização omnipresente que dispersa o
trabalho e a materialidade quasi-ausente que concentra o trabalhador estão aqui
ambas, novamente, muito evidentes. Cada colaborador decide particularmente quais
os seus objectivos, quais as suas metas, estabelece-os fora do quadro de qualquer
negociação colectiva, livre de constrangimentos, na estrita dependência de si próprio,
para o bem e para o mal.

Nesta reconfiguração do trabalho, o fundamental é a actividade do desábito,


rompendo com um arquétipo de trabalho baseado no ciclo, na repetição, na rotina, no
longo prazo. Sennett exemplifica esta mudança na descrição da enorme diferença

16
como o trabalho se apresentava a Enrico, um porteiro, e, uma geração depois, ao seu
filho Rico, engenheiro. Apesar da diferença considerável de rendimentos entre ambos,
o pai nunca ultrapassara o último quartil de rendimentos, enquanto o filho alcançava
valores apenas ao alcance dos 5% maiores rendimentos na sociedade. Há, contudo,
para este sociólogo nesta transformação do regime temporal do trabalho uma
implicação ética significativa. Trabalhar dentro apenas da lógica do «curto prazo» e de
forma adversa a lógicas de «longo prazo» abala, no seu entender, os fundamentos do
carácter humano.

Como é que um ser humano consegue desenvolver uma narrativa de


identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e
fragmentos? As condições da nova economia alimentam-se, em vez disso, da
experiência que se acumula no tempo, de lugar para lugar, de emprego para
emprego. Especificando melhor o dilema de Rico, o capitalismo de curto prazo
ameaça corroer o seu carácter, particularmente as qualidades de carácter que
vinculam os seres humanos uns aos outros e conferem uma sensação de eu
sustentável a cada um. (SENNETT, 1998: 41)

Por válidas que sejam estas observações de Sennett, interessar-nos-á, contudo, ligar a
sua descrição do «capitalismo de curto prazo», designadamente do seu regime
temporal encurtado, enquanto etapa prévia e preparatória, do subsequente regime de
austeridade que, entretanto, se tem vindo a impor nas economias ocidentais. Importa
notar, desde logo, que a opção pelo risco e insegurança acrescidos que, de acordo com
Sennett foi tomando, no intervalo de uma geração, o lugar do paradigma anterior do
emprego para a vida, só pôde ter constituído uma preferência razoável enquanto se
tratou de uma opção que não envolvia uma percepção excessiva de risco. Mau grado
as desvantagens, apontadas por Sennett, de fragmentação e carácter episódico das
vidas profissionais no quadro de uma lógica do «curto prazo», tal lógica, contudo, num
ambiente francamente propício ao empreendedorismo e aos bons negócios, num
clima de crescimento económico, com boas oportunidades de sucesso, autorizava que
se preferisse uma cultura de risco, atendendo às consideráveis perspectivas de ganhos
que se abriam. Naturalmente, mudassem as circunstâncias, e a mesma cultura de risco
suscitaria uma forte reacção de aversão. E, de facto, as circunstâncias mudaram muito;
todavia, longe de cortar raízes ao risco instalado, essa mudança veio, pelo contrário,
exigir um maior enraizamento da cultura de risco. Por que persistiu esta insistência no
risco, na instabilidade e na precariedade num contexto de austeridade se sabemos que
a aversão ao risco teria de crescer na proporção da austeridade? Por que nos
determinámos a uma cultura do desábito e imprevisibilidade quando, como nenhuma
outra, é a cultura do hábito e de previsibilidade que mais naturalmente se esperaria
ter como resposta austera ao risco, à precariedade, à iminência do caos? Explicar estes
contrastes paradoxais é conduzir-nos, então, a um entendimento do cerne do regime
da austeridade e ao paradoxo do austerismo.

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8. O regime temporal dos austeros

Encontramos um arquétipo do modo austero de existir, e do seu regime temporal, na


obra do cineasta húngaro Bela Tarr, O Cavalo de Turim (A Torinól ló). Neste filme, que
tem de extraordinário o que tem também de árduo, todas as manhãs uma mulher
levanta-se, veste-se e, antes de uma palavra ser pronunciada, sai porta fora em
direcção ao poço diante de casa, com dois baldes de latão nas mãos. Nós vemo-la uma,
duas, três vezes. E antes de alguma voz, apenas se ouve o mesmo latão a chiar, a cada
começo de dia. É a rotina, a repetição, o hábito, que em nada que seja humano falhar
pode falhar. É isto a vida austera. Mais logo, a mesma mulher coze um par de batatas
igual ao do dia anterior e nós vemo-la, com o seu pai, a comê-las. No meio, outros
hábitos preenchem meticulosos todo o vazio do tempo, que suportam integralmente,
sem fugas. Os homens resistem à animalidade pela exactidão com que repetem, como
lei da natureza, os hábitos que se determinaram observar. Os homens podem sempre
determinar-se a sua regra. A rígida repetição dos comportamentos é a medida da sua
austeridade e, também, da sua dignidade. Amanhã seria assim se nada mais fosse
possível, amanhã só não seria assim no que não fosse possível.

Para quem vê este filme de Bela Tarr, a contrariedade crescente em assistir à repetição
é bem, por detrás da superfície dos juízos de tédio e de ausência, a resistência das
consciências a que sejam levadas para o lugar inóspito daquele hábito. Perseverarem
as consciências no espectáculo da repetição é permitirem-se serem arrastadas, com a
violência de uma mulher que resiste à dureza dos dias, para esse lugar conhecido dela,
a austeridade. Eu, espectador, não sei apenas que aquela mulher acorda, se veste e vai
buscar água ao poço todas as manhãs; eu, presente, também assisto e participo na
cena, pelo movimento do meu hábito de o assistir. O hábito testemunhado encontra a
sua possibilidade de me tornar seu habitante, ainda que estrangeiro, no hábito de o
testemunhar. É o meu hábito que me torna íntimo do hábito daquela mulher.

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Reconheço-a como se a conhecesse familiarmente. E quando a fome, a sede e o vazio
forem o estertor do seu hábito eu, como estrangeiro, estarei nesse lugar horrível com
o meu hábito, ela contra o vento, eu a dar corpo àquele estertor. Faz-nos falta quem
nos olhe, feito um deus, absolutamente de fora; fazemos falta, feito deuses, a quem
consigamos olhar de fora, absolutamente de fora. A este olhar absoluto que urge pode
chamar-se verdade.

A exactidão do hábito observado cumpre-se como vontade no rigor da moral. Vencer a


realidade irascível assim, pela vontade e pela força do hábito, é a mesma proveniência
da moral se aceitarmos seguir as considerações genealógicas nietzschianas. Depois
disso, o costume que se corrompe só tem duas explicações morais: ou foi submetido
pelo caos da realidade, e assim também cometida injustiça sobre a lei humana, ou foi
acanalhado pelo escrúpulo traído dos homens. Entre a injustiça transcendente e a
imoralidade imanente, entre a realidade que diminui os homens e os homens que
diminuem a realidade, a dignidade moral terá sido, antes de toda a ciência, prática do
rigor. Sob esta perspectiva, Immanuel Kant terá percebido bem que era menos o
costume do que a vontade do seu rigor que principiava a respeitabilidade dos justos.
Mas não a terá interpretado bem: o rigor do imperativo tem de dignidade o que tem
de inumanidade. A sua severidade é o prolongamento da exactidão com que as leis
naturais comandam os instintos dos animais. O seu poder é ser lei. Como um deus que
legislasse por detrás das leis da natureza, o homem legisla a sua natureza no rigor da
repetição dos seus hábitos.

O que tem de inumana esta moral de hábitos? Se o hábito nos liberta da animalidade
e, ainda assim, precisamos tanto de nos libertar humanamente do hábito é porque ele
nos liberta apenas pela mobilização de meios animais. A necessidade do hábito é
outra, mas é ainda necessidade; mesmo se não imposta, auto-impõe-se: esse é mesmo
o seu traço mais distinto.

Afinal, o que é habituar-se se não a constituição natural dos homens prolongar-se por
meios não naturais? O corpo acostuma-se, apanha-lhes o jeito; e, então, aperfeiçoa o
gesto com que tem de continuar a sua vida, seja como a personagem feminina do filme
de Bela Tarr, a vestir-se e a carregar, todas as manhãs, baldes à água de um poço, seja
ainda, como sucede com os milhões anónimos das sociedades contemporâneas, a
levar as crianças à escola, alimentá-las e deitá-las, seja, enfim, a fazer o trabalho nas
máquinas, até o amor nalgumas vidas. O hábito é o benefício de uma lembrança que
não lembra, de um esquecimento que não se esquece, como quem se desprende do
fardo de respirar e, ainda assim, respira.

A moral é inumana como natural é o prazer infantil na repetição. A criança ouve as


histórias insaciavelmente, desejadas não pelo pormenor que pudesse ter escapado mil
vezes, muito menos pelo que mil vezes não lhe escapou, mas pelo prazer de desejar a
repetição dos acontecimentos e eles tornarem a acontecer ou deixarem de acontecer

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na exclusiva proporção da fadiga da sua vontade. Este prazer infantil da repetição é
prazer do poder infindável da vontade sobre a realidade. E é um prazer de origem
remota ou, como notou Freud em Para além do Princípio de Prazer, em que «estamos
no encalço do carácter geral dos instintos, ou talvez mesmo da própria vida orgânica».
(FREUD, 1955: 35).

A moral cuja genealogia Nietzsche traça é uma moral de hábitos esquecidos e assim
tornados veneráveis, chamem-lhe tradição, «continuamente mais venerável, quanto
mais remota for a sua origem», ou chamem-lhe «moral da devoção» – «uma moral
muito mais antiga do que a que exige acções não-egoístas» (NIETZSCHE, 1997: §96). E
tem origem no prazer da repetição – «Uma importante variedade do prazer e, com
isso, fonte da moralidade, provém do hábito» (NIETZSCHE, 1997: §97). Este é, em
suma, o trabalho moral do hábito. Não podia ser mais justificada a epígrafe
nietzschiana de O Cavalo de Turim de Bela Tar.

Na realidade, o esplendor da austeridade, muito antes de outras formas de expressão,


como a magnífica ilustração que encontrámos na obra de Bela Tar, foi e permanece
signo indelével do monaquismo cristão. Falamos em «esplendor» da austeridade,
repetindo de forma confessada o título da importante obra O Esplendor da
Austeridade - Mil anos de empreendedorismo das ordens e congregações em Portugal:
Arte, Cultura e Solidariedade (INCM: 2011, sob a direcção de José Eduardo Franco). É,
de facto, imprescindível ao monaquismo cristão a organização da vida no seu
quotidiano sob uma regra ou outra, também por aí se distinguindo as diferentes
ordens monásticas. O vínculo entre regra, ordem e austeridade é profundo e foi
profundamente vivenciado na História europeia. Uma descrição correcta e elementar
da noção de ordem expõe à evidência aquele vínculo:

A palavra 'ordem' deriva do vocábulo latino ordo, que traduz a ideia de


organização em linha, de fileira, de uma disposição determinada em termos de
critérios de ordenação. Em sentido analógico, foi usada para designar
experiências eclesiais de organização grupal dentro do Cristianismo e em
grupos filosóficos e religiosos das religiões orientais (escolas, seitas,
movimentos, vidas monásticas). Os elementos caracterizadores dessas
organizações, que se designavam por ordem, eram: identidade marcada por
uma forma de vida seguida comummente pelos seus membros, práticas
espirituais seguindo um método próprio, identificação pelo uso de um
vestuário uniforme (hábito, sinalética, etc.), regras de ascese (alimentares e
outras). (FRANCO, 2011: 26)

Por outro lado, este vínculo entre regra e austeridade, por extraordinário que seja o
seu impacto mundano, não se funda em nenhuma razão mundana. Pelo contrário, a

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mundaneidade da regra e da austeridade – trata-se sempre de uma forma de vida
seguida commumente pelos membros da ordem – desloca, como uma imensa
metonímia, motivos existenciais profundos para a superfície sensibilizada do
quotidiano, partilhado ou não. Não se escolhe a austeridade para fazer face à pobreza,
escolhe-se a pobreza para fazer da austeridade o hábito de vida. A exigência é
resultado de uma necessidade interior.

A força do hábito não tem mais do habituar-se exterior dos gestos do que do habitar-
se interior do repouso. Na verdade, interioridade e exterioridade implicam-se aqui
reciprocamente. Porque são como moradas aonde se volta sempre, os hábitos são
lugares que habitamos. E o notável é os habitantes dessas habitações serem tão
variáveis. Há hábitos que apenas eu habito; há hábitos com dois habitantes, como
entre mim e o cão que levo sempre a fazer o mesmo caminho; com três, quatro, cinco
membros de uma família que se encontram à mesma mesa sempre; há hábitos que
sacralizam a amizade; e há-os tão povoados que nos vemos diante do paradoxo de
reconhecermos as pessoas desconhecidas com que partilhamos o tédio do comboio
diário, a aflição das contas por pagar nos últimos dias do mês, cúmplices até no que
juntos poderíamos fazer se não nos faltasse coragem ou nos sobrassem desculpas.
Quantas vezes, também por hábito, não nos olhamos um olhar falsamente vazio que,
pelo contrário, se enche de consolo com o vazio pleno de todos os outros olhares
entreolhados? O olhar do hábito consola-se, e talvez se iluda em demasia, no hábito
do olhar. Ou talvez não, talvez se trate de genuína confissão, resignação que não se
resigna tanto que não possa ser compartilhada. Até a incompreensão é compreendida.

Se conhecemos hábitos a pessoas desconhecidas é porque habitamos os mesmos


lugares – os seus hábitos são as nossas moradas. Se desconhecemos os seus hábitos,
mesmo de pessoas conhecidas, passar a conhecê-los é simples – é passar a habitá-los.

9. O método austerista

Esperar-se-ia em tempos de escassez e dificuldade que as pessoas privilegiassem a


segurança e a estabilidade, determinando-se ao rigor da austeridade; e que assim
precavessem a sociedade da imprevisível violência que o mundo pode fazer abater
sobre os humanos.

No entanto, se a escolha pelo regime de vida austero devia significar a escolha por
incarnar uma regra humana que resistisse ao caos do mundo, já esta forma particular
de "austeridade" que tem assolado as sociedades ocidentais nos últimos anos tem
muito menos de escolha e de auto-determinação do que de rendição. Há nesta palavra
uma grave ambiguidade, que também palavras devem esclarecer.

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A "austeridade" que nos aflige agora só se assemelha à austeridade dos austeros em
ambas nos confrontarem com a escassez e a agressão do mundo para com os nossos
desejos e necessidades. Além disto, nada mais as liga e mesmo nisto apenas se
exprime uma enorme distorção. Os austeros respondem com austeridade à
confrontação que o caos do mundo produz nas nossas vidas; os outros, chamemos-
lhes "austeristas", exacerbam a confrontação justamente fazendo tudo por erodir as
defesas que um modo de ser austero escolheria.

Os regimes temporais da austeridade e do austerismo contrastam tanto entre si


quanto o regime da previsibilidade precavida e o regime da exposição desguarnecida, à
mercê do imprevisível.

Mas seria outro considerável engano pensar que, por esta razão, o austerismo
coincidiria com a cultura liberal do risco. O apreço pelo longo prazo que conduz o
austero a reter o fluxo temporal, a poupá-lo, conservando e acumulando bens que lhe
ajudem a enfrentar as dificuldades dos tempos, não dá lugar, no espírito do austerista,
a uma preferência pelo curto prazo, como se estivesse convencido de que o risco das
oportunidades compensaria, com proveito, a maneira retida como o austero leva a
vida. Na verdade, esse que seria o ponto de vista do liberal, não é, com toda a certeza,
o do austerista. A ideologia deste ambiciona, com apetite, tomar para si as
possibilidades que os austeros, por uma retenção autodeterminada, conseguem
alcançar, mesmo em tempos de dificuldades. O que interessa aos austeristas não é
serem austeros, mas o espólio do que o sacrifício autodeterminado concedera aos
austeros. O austerismo é simplesmente um método de espoliação dessa fonte de
riqueza que reside na escolha pelo modo de vida austero. O seu método é simples e
até certo ponto muito eficaz: basta trazer o caos do mundo para o lugar da
autodeterminação humana, impô-lo, na forma de uma existência incerta, onde a
semente da razão de ser humana procurasse fazer alguma raiz, se fosse a tempo disso.
Nesse sentido, o austerista manda destruir toda a previsibilidade que permitia alguma
perspectiva sobre o futuro, e manda transformar, pelas leis que tem o poder de criar, o
trabalho em desábito, a existência em risco, o sentido em caos. O austerista coarcta às
pessoas o modo de vida austero, como quem faz da denegação do sentido da
autodeterminação humana uma determinação humana.

O método austerista tem tão pouco de liberal como de austero. Para os seus
pregoeiros, não se trata de preferir o curto ou o longo prazo, avaliar um ou outro
destes regimes temporais a partir das condições existentes de riqueza, sua distribuição
mais ou menos equitativa, e as perspectivas de crescimento. O austerista não faz essas
contas, porque, no essencial, a sua perspectiva é diametralmente oposta àquilo que,
além do muito que os divide, acaba ainda assim por unir liberais e austeros: o
objectivo de tornar o mundo humanamente menos inóspito. A aposta do austerista é
só uma miserável e declarada degradação do mundo que as pessoas têm de enfrentar.

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Por que razão o austerismo se empenha nesta vertiginosa desolação, como se, no
âmago da sua convicção, nada importasse mais do que deixar às gerações vindouras,
como herança sua, um mal irreversível? Que sentido retirar desta glória que, acima de
tudo, não se quer vã? O sentido mais claro que disto se consegue extrair é a residual
relevância para as motivações do austerismo de quaisquer aspectos materiais fácticos
relacionados com a descrição do mundo que os humanos habitam - designadamente a
"saúde" da economia, e a promoção de condições menos inóspitas para a sociedade
humana. A realidade que motiva verdadeiramente o austerismo não é fáctica, mas
prescritiva - o que quer mesmo é regular os comportamentos das pessoas, mudá-los, e
assim adequá-los à sua própria e particular visão de como deviam ser. Os austeristas
pouco querem saber de como as coisas são, foram, ou venham a ser; só lhes importa
como devem ser. Daí a urgência como encaram a necessidade de deixar uma marca
irreversível que atinja todos, nas suas vidas como nas suas consciências. A missão
austerista quase chega a comparar-se com uma anedótica condução das almas - não
sejam piegas, saiam da zona de conforto, venham cá para fora e exponham-se…

O austerismo tem razões fundas portanto, que transcendem a ordem das razões do
cálculo. Com razão se tem referido uma deriva moralista do debate político em geral,
mas também, já na esfera do exercício dos poderes legislativo e executivo, das
próprias políticas económicas sob o credo austerista. Contudo, não basta identificar
este moralismo como uma deriva ou defeito acidental que, de alguma maneira,
permanecesse corrigível. A relação entre economia e moral ganhou uma saliência
crucial no austerismo, e, na verdade, também uma feição muito distintiva, que não
pode ser escamoteada. Relações de moralidade sempre estiveram em jogo no debate
da economia política, pelo menos no sentido em que um desígnio de maior justiça
social implicava uma atenta consideração moral das consequências deste ou daquele
sistema económico, refreando o seu impacto negativo na vida das pessoas e das
sociedades em geral. Especialmente no quadro do sistema capitalista, com a geração
de desigualdades sociais, impunham-se constrangimentos morais à economia. A
revolução por que pugnam os austeristas inverte as relações entre economia e moral -
já não se trata de moralizar a economia, tornando-a compatível com os modos de
existência tidos por comunitariamente aceitáveis, mas, tudo ao contrário, de fazer da
própria economia um dispositivo moralizador que dita o único modo de existência
aceitável. Para o austerista, a economia não é nada que se deva compreender,
explicar, nem sequer respeitar; é apenas o instrumento banalizado da sua moral.

Pior do que vivermos tempos austeros é vivermos depois de tempos em que nos
desfizemos dos meios mais básicos que a humanidade conheceu para enfrentar o caos
do mundo. Pior do que o termos feito, é prosseguirmos no mesmo caminho, como se
uma vertigem nos conduzisse, num delírio obstinado, ao mal irreversível sobre as vidas
comuns.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRANCO, José Eduardo (Dir.). O Esplendor da Austeridade - Mil anos de empreendedorismo das ordens e
congregações em Portugal: Arte, Cultura e Solidariedade. Lisboa: INCM, 2011.

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LACAN, Jacques, Le séminaire, Livre VII: L'Ethique de la psychanalyse. 1959-1960. Paris : Seuil, 1986.

MARCUSE, Herbert, O Homem Unidimensional. Sobre a Ideologia da Sociedade Industrial Avançada.


Trad. de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Letra Livre, 2011.

MASI, Domenico de, Il Futuro del Lavoro. Milano: Rizzoli, 1999.

NIETZSCHE, Friedrich, Humano, Demasiado Humano. Trad.: Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio
d’Água, 1997.

TISSERON Serge, L'intimité surexposée, Paris: Editions Ramsay, 2001.

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