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ESCRAVOS E LIBERTOS
ALBERTO VIEIRA
CEHA- Madeira
EMAIL: milsumav@gmail.com
1
. Sobre os judeus na Madeira vide: FARINHA, Maria do Carmo Dias, "A Madeira nos arquivos da inquisição", in Actas do I
Colóquio Internacional de História da Madeira, vol.I, Funchal, 1990, pp.689-742, MELLO, José António Gonsalves de, Gente da
nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco, Recife: Fund. Joaquim Nabuco, Edit. Massangana, 1989, OLIVAL, Fernanda,
"Inquisição e a Madeira. visita de 1618", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. II, Funchal, 1990, 764-
818; IDEM, "A visita da Inquisição à Madeira em 1591-1592", in Actas. III Colóquio Internacional de História da Madeira, Fun-
chal, 1993, 493-520., NOVINSKY, Anita, Inquisição e Heresias na Ilha da Madeira, Actas do I Colóquio Internacional de História
da Madeira, Funchal, 1989, vol. II, NASCIMENTO, João Cabral do, Vestígios de Sangue Impuro ou Indiscrições dum Anotador
mal Humorado, AHM, vol.I, Funchal, 1931, 4-11.
2
. Sobre esta situação particular realçada pela historiografia norte-americana destacamos os seguintes estudos: GREENFIELD,
Sidney M, “Madeira and the Beginings of New World Sugar Cane Cultivation and Plantation Slavery: A Study in Constitution
Building”, in Vera RUBIN (ed.), Comprative Perspectives on Slvaery in New World Plantation Societies, N. York, 1977; W. D.
Phillips, JR, La Esclavitud desde la Época Romana hasta los inicios del comercio Transatlántico, Madrid, 1989, p.226
dos madeirenses, conduziram à presença, desde o início do povoamento do arquipélago,
de minorias étnicas africanas e abriram as portas ao comércio de mão-de-obra escrava.
A permanência do movimento só se tornou possível porque na ilha foram criadas as
condições à sua demanda com a cultura e produção de cana-de-açúcar.
A cana sacarina chegou ao Mediterrâneo por mão dos árabes e expandiu-se no
espaço atlântico por via e iniciativa dos madeirenses. A cultura era muito exigente quan-
to ao solo e à intervenção do homem. O ciclo vegetativo da cultura aliado à morosidade
das tarefas para a transformar em açúcar implicava a disponibilidade de numerosa mão-
de-obra, que para o produto final se tornar competitivo deveria barata, que é o mesmo
que dizer escrava. O movimento e trato de escravos, entre meados do século XV e prin-
cípios do seguinte, ligam-se de forma directa à época de fulgor do açúcar. A partir de
meados do século XVI a concorrência de outras áreas açucareiras, como S. Tomé e o
Brasil, desviou a rota dos escravos. A presença escrava na Madeira perdeu importância,
deixando estes de ser uma preocupação para autoridades e naturais.
3
. Cf. José G. Salvador, Os Cristãos-novos e o Comércio no Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978, 149; António José Saraiva,
Inquisição e Cristãos Novos, Lisboa, 1994, 134-135.
4
. Vide Maria José Ferro Tavares, os Judeus na Época dos Descobrimentos, Lisboa, 1995.
nidade judaica a Madeira foi o primeiro alvo da expansão europeia donde irradiaram
para os quatro cantos do Novo Mundo, perseguindo o rasto do açúcar e do tráfico dos
escravos no espaço atlântico. Perante isto importa conhecer qual foi o papel que assumi-
ram neste primeiro poiso da diáspora atlântica. Até ao estabelecimento do tribunal de
inquisição em Portugal (1536) não é fácil identificar a comunidade judaica na documen-
tação, não obstante a presença fazer-se sentir em múltiplos domínios de sociedade e
economia portuguesa. Difícil é encontrar o rasto da sua presença, pois tal como nos diz
José Gonçalves Salvador5 “muitos vão para as ilhas e se acobertam sob a capa de cris-
tãos”. Apenas a comparação antroponímica permite algumas descobertas. Apenas com
a instituição do tribunal do santo ofício foi possível estabelecer o rasto do grupo conver-
tido ou não ao Cristianismo6. Certamente que procuravam iludir as suas crenças religio-
sas, apagando todo o rasto possível.
A Madeira não foge à regra e a xenofobia foi uma das armas usadas para travar a
concorrência das sociedades mercantis estrangeiras. Na década de sessenta os judeus e
genoveses, porque monopolizavam o comércio do açúcar, foram o principal alvo dos
madeirenses. Em 1461 os funchalenses solicitaram ao infante D. Fernando que proibisse
a sua actividade como compradores de açúcar ou arrendatários dos direitos na ilha7. Esta
estreita ligação aos genoveses é constante no controlo do comércio nos novos espaços
atlânticos, surgindo nas ilhas desde os inícios da ocupação.
Os judeus estão envolvidos em todas as actividades, mas, como nos refere Maria
José Ferro Tavares, “a actividade mercantil e a ocupação principal”. E dentro destas
parece que tiveram uma predilecção especial pelos negócios baseados no açúcar, como
se confirma nas palavras de José Gonçalves Salvado8, que é peremptório em afirmar que
“os hebreus sefarditas aparecem identificados com as actividades ligadas ao açúcar
primeiro nas ilhas adjacentes a Portugal e depois nas demais possessões”.
A estratégia judaica para domínio do mercado açucareiro atlântico passou por
uma estreita aliança com os mercadores flamengos e italianos, nomeadamente os geno-
veses. Nas Cortes de 1471-72 foi feita denuncia mas a situação continuou nos decénios
seguintes. No caso do comércio do açúcar da Madeira esta forma de actuação é comum.
Assim, quando o comércio do açúcar estava sujeito a um monopólio da Coroa entregue
a sociedades, são aliados dos Leme, Lomellini e Marchione. Nas transacções do açúcar
com a Flandres foi uma sociedade entre os Leme e Abravanel que o controlou. Já no
caso das cidades italianas foram Moisés Latam e Guedelha Palaçam que se associaram a
B. Marchione.
O “livro de estimos do açúcar” do Funchal em 14949 comprova a intervenção de
judeus, como Isaac Abeacar, Moisés Benagaçam e David de Negro nas transacções açu-
careiras, representados na ilha através de procuradores italianos como era o caso de Di-
nis Sernige, Lucas César, Sisto Lomellini. Segundo o estudo de V. Rau para 1494, os
judeus junto com outros estrangeiros, dominados pelos genoveses, dominavam as tran-
sacções açucareiras com 11.373 arrobas, o equivalente a 64% do total em causa 10. Esta
posição não está longe da realidade desta e posterior centúria, uma vez que os dados por
nós apurados entre 1490 e 1550 apontam de novo para o total controlo dos mercadores
italianos com 80% das operações comerciais do açúcar madeirense11.
Os aferidores mais importantes da religiosidade madeirense são os testemunhos
exarados, primeiro nos diversos livros das visitações e depois nos processos no Santo
5
. Os Cristãos Novos e o Comércio Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978, 246.
6
. Para a Madeira não existe estudo completo sobre a inquisição como é o caso de Paulo Braga, A Inquisição nos Açores, P.D., 1997.
7
. AHM, Vol. XV, 1972, 14-15, 3 de Agosto de 1461.
8
. Os Magnatas do Tráfico Negreiro, S. P., 1981, 87.
9
. Publ. V. Rau, O Açúcar na Madeira, Funchal, 1962.
10
. Ob. cit., p. 24
11
. O Comércio Inter-Insular, Funchal, 1987, 130.
Ofício. A inquisição exercia a actividade na Madeira através do tribunal de Lisboa, a
quem pertencia todo o espaço atlântico. A acção do tribunal não era permanente e fazia-
se sentir através da presença dos inquisidores em visita. Na Madeira e Açores realiza-
ram-se três visitas: em 1575 por Marcos Teixeira, em 1591-93 por Jerónimo Teixeira
Cabral e em 1618-19 por Francisco Cardoso Tornéo, mas só é conhecida a documenta-
ção das duas últimas.
A conivência das autoridades insulares com a presença da comunidade judaica,
resultando facilidades na sua fixação quando perseguidos no reino. Para finais do século
dezasseis foram arrolados 94 cristãos novos, mas em 1618 o número não passou de 5,
quando sabemos que em 1620 eram 58 os judeus que pagavam a taxa. A presença da
comunidade judaica era assim evidente. Os judeus, maioritariamente comerciantes, es-
tavam ligados ao sistema de trocas do mercado insular, sendo os principais animadores
do relacionamento e comércio a longa distância.
A criação do tribunal do Santo Ofício em Lisboa conduziu a que os judeus avan-
çassem no Atlântico à frente das perseguições: primeiro nas ilhas e depois no Brasil. A
diáspora atlântica obedeceu aos vectores da economia atlântica, deixando atrás um rasto
evidente na rede de negócios. O açúcar foi um dos principais móbeis da sua actividade
nas ilhas e no Brasil.
A incidência do comércio da Madeira no açúcar, pastel e vinho favoreceu os
contactos assíduos com os portos da Flandres e Inglaterra e favoreceu a presença de
uma importante comunidade, o que veio a avolumar as preocupações dos inquisidores.
As perseguições movidas pelo Santo Ofício levaram muitos dos judeus a refugiarem-se
nas ilhas Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e, finalmente, o Brasil. Esta migração foi ain-
da acelerada pela crise da produção açucareira madeirense. E de novo os judeus estão
ligados à produção açucareira12.
13
. O comércio com os principais mercados fornecedores existiu, desde o começo da ocupação do arquipélago, e foi em alguns momen-
tos fulgurante. Impossível é estabelecer com exactidão a quantidade de escravos envolvida. A deficiente disponibilidade documental, para
os séculos XV a XVII, não o permite. Carecemos dos registos de entrada da alfândega do Funchal e dos contratos exarados nas actas
notariais.
14
. Lothar SIEMENS y Liliana BARRETO, "Los esclavos aborigenes canarios en la isla de la Madera (1455-1505)", in Auario de Estudios
Atlanticos, nº 20, 1974, 111-143. Aqui utilizamos o termo canário para designar os escravos oriundos do arquipélago das Canárias, não
obstante esse termo querer significar os habitantes de Gran Canária. Mas segundo Gaspar FRUTUOSO (Ob. cit., livro primeiro, p. 73) "desta
(Gran Canaria) tomaram o nome geral de canários os habitadores das outras, ainda que também seus particulares nomes".
presença. Para além dos dois que possuía o capitão Simão Gonçalves da Câmara, sabe-se
que João Esmeraldo, na Lombada da Ponta do Sol, era também detentor de escravos desta
origem, sem ser referido o número15. Cadamosto, na primeira passagem pelo Funchal em
1455, fala-nos de um “canário” cristão que se dedicava a fazer apostas sobre o arremesso
de pedras16.
Nos anos de 1445 e 1446 estão documentadas diversas expedições às Canárias, que
contribuíram para o aumento da presa de escravos a favor do arquipélago na Madeira. Em
1445 ambos os capitães da ilha - Tristão Vaz e Gonçalves Zarco - enviaram caravelas de
reconhecimento à costa africana, mas o fracasso da viagem levou-os a procurar garantia da
cobertura da despesa, buscando uma presa em La Gomera. Álvaro Fernandes fez dois
assaltos em La Gomera e em 1446 foi enviado por João Gonçalves Zarco. Segundo Zurara
a intenção era realizar alguma presa. É a partir daqui que devemos situar a importância que
assumiram os escravos canários na sociedade madeirense.
O principal estigma social está nos fugitivos, que são apresentados como violentos
e ladrões. E mesmo entre os demais as relações não deveriam ser pacificas, uma vez que o
senhorio da Madeira determinou em 148317 uma devassa, seguida de ordem de expulsão
em 149018. De acordo com este último documento todos os escravos canarios, oriundos de
Tenerife, La Palma, La Gomera e Gran Canaria, exceptuando-se os mestres de açúcar as
mulheres e as crianças, deveriam ser expulsos do arquipélago. Mas o infante apenas os
considerou forros19. Em 150320 o problema ainda persistia, ordenando o rei que todos eles
fossem expulsos num prazo de dez meses. De novo a coroa retrocedeu abrindo uma
excepção para aqueles que eram mestres de açúcar e dois escravos do capitão - Bastiam
Rodrigues e Catarina -, por nunca terem sido pastores21.
As Canárias afirmaram-se no século XV como o principal fornecedor de escravos, que
foi complementando com as presas resultantes dos assaltos à costa marroquina e das
viagens para sul do Cabo Bojador. Os canários foram na ilha pastores e mestres de
engenho.
15
. Gaspar FRUTUOSO, Livro Primeiro das Saudades da Terra. P. Delgada, 1979, 124.
16
. José Manuel GARCIA, Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, p. 86.
17
. A.H.M, vol. XV, pp.122-134.
18
. Ibidem, vol. XVI, pp.240-244
19
. Ibidem, vol. XVI, pp.260-265. A 4 de Dezembro de 1491 houve reunião extraordinária da câmara para deliberar sobre o assunto. A ela
assistiram o capitão do Funchal, Simäo Gonçalves da Câmara, os oficiais concelhios e homens bons. Ao todo eram vinte e cinco, destes onze
votaram a favor da saída de todos, nove apenas dos forros e quatro à sua continuidade na ilha. Dos primeiros registe-se a opinião de João de
Freitas e Martim Lopes, que justificam a sua opção, por todos os canários, livres ou escravos, serem ladrões. Para Mendo Afonso não era assim
que se castigava tais atropelos, pois existia a forca como solução. Se consideramos que cada um dos presentes pretendia defender os seus
interesses, podemos concluir que catorze dos presentes eram proprietários de escravos canários
20
. Ibidem, vol. XVII, pp.440441.
21
. Ibidem, vol. XVII, pp.450-451
entendida como corolário das medidas restritivas à posse de escravos mouros,
estabelecidas pela coroa a partir 1597?22.
22
. V. M. GODINHO, ob. cit., IV, 191; Fortunato de Almeida, ob. cit., VOL. XI, 110.
23
. A.R.M., C.M.F., tomo I, fls. 223 vo-225, sentença régia isentando os moradores da Madeira do pagamento de dízima nos escravos que
levarem para Lisboa, para seu serviço, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, Vol. XVI, 1973, nº 161, pp. 269-271.
24
. A.R.M., C.M.F., t. I, fls. 226.229vo., 7 de Novembro de 1466, "Apontamentos do infante D. Fernando, em resposta de outros", in A.H.M.,
XV, 1972, doc. 13, 38.
25
. A.R.M., C.M.F., t. 1,fl.169, in A.H.M., vol. XV, 1973, doc. Nº 131, p. 226
26
. Ibidem, tomo velho, fl. 11
27
. A.R.M., Misericórdia do Funchal, nº 710, fls. 308-309, testamento de 3 de Fevereiro de 1557.
28
. Archivo Historico Provincial de Las Palmas, Lorenzo de Palenzuela, nº 844, fl. 109; Manuel LOBO CABRERA, "Los mercadores y la
trata de esclavos en Gran Canaria", in Homenage a Alfonso Trujillo, II, Santa Cruz de Tenerife, 1982, 59 e 71.
29
. A.R.M., Documentos Avulsos, cx. 2, nº 194
30
. Idem, C.M.F., t. 3, fl. 137 vo-138
O documento mais importante sobre a intervenção dos madeirenses no comércio de
escravos da Costa da Guiné, é o testamento do madeirense Francisco Dias, feito em 22 de
Outubro de 159931 na Ribeira Grande (ilha de Santiago-Cabo Verde). Os encargos e
dívidas testemunham que foi um importante interlocutor do tráfico negreiro na ilha, e que
estava relacionado com o comércio de escravos no interior dos Rios da Guiné, com
mercadores de Sevilha e o mercado negreiro das ilhas de S. Domingos e Honduras. À sua
morte quebrou-se a cadeia de negócio32.
Francisco Dias, com morada fixa na Ribeira Grande, intervinha no trato de escravos
nos Rios da Guiné por meio do escravo António. A referência a dívidas de alguns
madeirenses poderá ser o indicativo do envio de escravos para a Madeira. O testamento
anota dívidas a João Gonçalves, Jerónimo Mendes, Francisco Afonso, António Gonçalves
e Francisco Fernandes, todos vizinhos da Madeira.
400
350
300
250
200 XVI
150 XVII
100
50
0
preto mulato mourisco
Os três grupos étnicos referenciados por Giulio Landi são os mais frequentes na
documentação disponível. No grupo dos escravos identificados, que representa apenas
18% do total, sendo destes 1% são mouriscos, 6% mulatos e 10% pretos. Os mouriscos
(84%) e mulatos (56%) surgem com maior evidência no século XVI, enquanto os pretos
31
. A.R.M., Misericórdia no Funchal, 684, fl. 785-90 vo
32
. Os seus bens móveis foram avaliados em 1.231.000rs a que se deverá somar as dívidas no valor de 30.600 rs; deste elevado pecúlio
entregou 74.000 rs para encargos pios e 209.999rs pelos familiares, escravos e testamenteiro.
(59%) dominam na centúria seguinte. Os mouriscos circunscrevem-se apenas a um
momento definido do século XVI (1516-1582), assumindo excepção o baptismo de um em
1639. A sua incidência é no período de 1539 a 1561. As dificuldades sentidas na
manutenção das praças africanas, mercê dos custos elevados das campanhas poderão estar
na origem disto. O madeirense não mais fez das praças africanas o campo para as
aventuras guerreiras e o saque de mouros deixou de ser uma realidade. Entretanto os
guanches, protegidos pelo papado e coroa de Castela, deixaram de ser presa fácil para os
aventureiros furtivos.
644
544
444
344
244
144
44
O movimento dos nascimentos define-se por dois rumos distintos: primeiro a tendência
para a subida vertiginosa até à década de trinta do século XVII, quebrada por momentos de
descida entre 1551-70, 1581-90, 1601-10, 1621-30, a que se segue um crescimento,
contrariado apenas nas décadas de setenta e oitenta do século XVII. Esta fase de afirmação
da natalidade dos escravos coincide com o período de retorno da cana-de-açúcar na ilha,
enquanto o segundo momento está relacionado com a crise da segunda metade da centúria
setecentista, marcada pela concorrência do açúcar brasileiro e dificuldades no mercado
interno.
33
. "Descrição da ilhas da Madeira", in A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.92.
34
. A.R.M, C. M. F., livro de posturas
35
. A.R.M, C.M.F., nº.1397, fls.58-59.
no período de 1538 a 1700 entre os 93 e 114, o que provocava dificuldades na constituição
dos pares e na reprodução do sistema36. A partir de 1601 é evidente uma quebra na sex
ratio, que se reflecte no número de enlaces, fazendo disparar a ilegitimidade dos escravos
nascidos.
O casamento, pelas limitações que impõe à plena intervenção do senhor,
dificilmente ganhava a adesão no mundo dos escravos. Deste modo o número de
casamentos em que ambos os cônjuges são de origem escrava é pouco significativo, não
ultrapassando 1% do total de actos realizados, e surge com maior relevância no século
XVII. O mesmo já não se poderá dizer dos enlaces mistos, em que a tendência era para a
aproximação entre antigos escravos, já forros, com os que ainda assumem esta condição.
O interesse dos libertos por uma relação matrimonial com os escravos está perfeitamente
definido ao período de 1571 a 1620. O incremento das relações mistas resulta, não só, das
assimetrias evolutivas do sexo dos escravos, mas também, da conjuntura sócio-económica,
definida pela desvalorização da mão-de-obra escrava, provocada pela crise açúcareira.
De todos são os mouriscos que apresentam uma tendência endogâmica, pois 63%
dos pares são constituídos no seu seio, enquanto nos negros a percentagem fica por 53% e
nos mulatos não ultrapassa os 28%. Aliás os últimos preferem escolher o parceiro entre a
categoria designada de outros, usualmente europeus, que serviam como trabalhadores. As
mouriscas e mulatas saem, no entanto, do seu círculo étnico e integram-se no grupo
europeu, enquanto a negra não se afastava da sua etnia. É evidente ainda uma tendência
generalizada de opção pelo parceiro de um grupo étnico que não seja sinónimo da
condição de escravo, contrariado apenas pelos negros. O negro manifesta uma certa
aversão ao enlace com o mulato: dos 249 casais contabilizados apenas 14(6%) envolvem
estes.
Uma das grandes preocupações da sociedade madeirense prendia-se com o
relacionamento entre escravos, libertos e livres, ao nível matrimonial, convívio social e
habitacional e laboral. Isto resulta do espírito de solidariedade que existia entre eles e que
actuava como condicionante da sua conduta. Em 1546 refere-se a acção conjugada de
homens de soldada e trabalhadores com negros e mulatos, livres ou não, em roubos e
mortes. Não obstante este temor, bastante evidente nas posturas37, onde se lavrava a
proibição de amancebamento de escravos com livres. Os dados confirmam que este
relacionamento era frequente: em 611 situações de casamento ou relação sexual entre
escravos e livres. Nos registos paroquiais, surgem 228 envolvendo os dois grupos, sendo
de realçar que 145 casos (24%) resultam de casamento. No último caso temos 169 uniões
entre escravos e livres ou libertos. Situa-se entre 1571 e 1620 o período de maior
afirmação de tal relacionamento, mas é para 1651 a 1660 que se atinge o maior valor.
Embora as posturas falem de um relacionamento frequente em ambos os casos a
tendência foi para o relacionamento do homem livre, solteiro ou casado, com a escrava. No
período em causa as situações deste tipo rastreadas nos paroquiais representam 14%,
enquanto no inverso são de 12%.
36
. S. B. SCHWARTZ, ob. cit., 359-360.
37
. Posturas da Câmara do Funchal
escravos, pelo simples facto de que não encontrámos qualquer testamento. Os únicos
encargos de missa conhecidos foram estabelecidos pelos proprietários, por norma do sexo
feminino. Apenas para alguns libertos conseguimos reunir informação, cujo testemunho
não se afasta dos demais.
A maior mortalidade dos escravos acontece na idade adulta, sendo já idosos, pois dos
369 óbitos apurados apenas se referenciam quatro (1%) menores. É de salientar que apenas
6 (2%) o foram por acidente. Por outro lado é evidente a manutenção da condição servil
até à morte, pois só 52 (14%), se encontravam já forros quando a morte lhes bateu à porta,
sendo eles, maioritariamente, do sexo feminino.
46
. Sobre as actividades pastoris dos escravos é extensa a bibliografia em Canárias: Manuel LOBO CABRERA, La Esclavitud en Las
Canarias Orientales (...), 239; idem, "Los galegos en Canarias (...)", 217; idem, "Los indigenas trás de la conquista (...)", 241-243; Eduardo
AZNAR VALLEJO, La Integración de las islas Canarias en la Corona de Castilla, La Laguna, 1983, 200-204; Manuela MARRERO, La
Esclavitud en Tenerife (...), Santa Cruz de Tenerife, 1968, 93-109.
47
. A.R.M., Câmara Municipal de Machico, nº 109, 86 vo., 9 de Maio de 1696, João de Castro, almocreve do capitão Manuel Barbosa.
48
. La Esclavitud en Sevilla (...), Sevilha, 1979, 194
aproveitamento intensivo do solo, baseado nos poios, construídos pelos proprietários,
arrendatários ou meeiros. Deste modo é difícil, senão impossível, falar da grande
propriedade de canaviais, se nos situamos ao mesmo nível do mundo americano. No caso
americano uma plantação de canaviais encontra-se quase sempre indissociavelmente ligada
a um complexo industrial - o engenho -para a sua transformação, o que não sucede na
Madeira. Aqui são muitos os proprietários de canaviais mas poucos os de engenho. Esta
diferente estrutura da faina açucareira condicionou uma forma de posicionamento distinto
do escravo.
No caso da exploração agrícola madeirense torna-se necessário distinguir dois grupos
de proprietários: os que haviam entregue as terras a foreiros ou arrendatários e os
proprietários plenos. Esta dupla posse da terra marcou a actividade agrícola e favoreceu o
aparecimento e afirmação do contrato de colonia, a partir de finais do século XVI. Por
outro lado a extensão reduzida dos canaviais não obrigava à existência de engenho para a
transformação da cana, tão pouco de um grupo numeroso de escravos.
No início os engenhos de moer cana foram privilégio dos capitães do donatário e só
muito mais tarde começaram a surgir engenhos particulares. A posição dos escravos na
estrutura agrária madeirense deverá ser equacionada de acordo com esta estrutura e
processo evolutivo do sistema de propriedade na ilha. Se é certo que na exploração directa
ou no arrendamento se estabelece uma posição clara para o escravo, o mesmo não se
poderá dizer com o contrato de colonia.
A par da ligação do escravo à fase de cultivo e amanho dos canaviais também se pode
atestar a sua presença nas tarefas ligadas à laboração do engenho. O regimento dos
alealdadores de 150149 refere que é um serviço especializado. Pois, os mestres e
alealdadores que fizessem açúcar quebrado sujeitavam-se a severas penas e, numa alusão
clara à presença deles, ordenava-se que, caso eles fossem cativos, a coima correria pelo
proprietário. O serviço dos escravos poderia assumir duas situações distintas: ajudante dos
oficiais da safra, ou dos mesmos operários especializados. Em 148250, numa demanda
sobre a qualidade do açúcar "temperado", depõem perante a vereação do Funchal os
mestres de açúcar, Vaz e André Afonso: O primeiro referia que, por ter estado ausente nas
Canárias, um homem, seu cativo, havia temperado o açúcar, enquanto o segundo, também
fora da ilha, havia entregue o mesmo trabalho a um moço que o servia de soldada.
Na Madeira, a exemplo do que sucedeu nas Canárias51, a mão-de-obra utilizada nos
engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, que executavam tarefas
diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar52. Neste grupo de escravos
integram-se os que pertenciam ao proprietário do engenho mas também outros de soldada.
49
. Ibidem, t. 1, fls. 83vo-94, regimento de 27 de Março, in ibidem, nº 246, 412-413.
50
. A.R.M., C.M.F., nº 1297, fl. 45, vereação de 20 de Abril de 1482.
51
. F. FERNANDEZ-ARMESTO, The Canary Islands after the Conquest, Oxford, 1982, 85; Manuel LOBO CABRERA, La esclavitud en
las Canarias orientales en el siglo XVI, Las Palmas, 1982, 232-246, idem, Grupos Humanos en la Sociedad Canaria, Las Palmas, 1979, 36,
idem, Los Libertos en la sociedad canaria del siglo XVI, Santa Cruz de Tenerife, 1983, 50-61.
52
. Alberto Vieira, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI , Funchal, 1987, 57.
para a sociedade, por serem fonte geradora de conflituosidade social. É isso que combatem
as posturas ao vedarem aos escravos um espaço de encontro e convívio. De acordo com a
postura de 1473 ele não poderia viver só ou ser acolhido por libertos. Todas estas medidas
são o espelho do temor que havia face a qualquer atitude de revolta dos escravos.
O escravo carecia, ainda de personalidade jurídica. As leis e a justiça só o admitiam na
posição de réu e nunca como vitima ou testemunha. Por isso não gozava da imunidade
eclesiástica, não tinha o direito de fazer testamento, servir de testemunha na feitura de
qualquer acto escrito ou de tutor. A presença em actividades conexas como o exercício da
justiça era também limitada, não podendo ser ajudante dos homens que a ela estavam
ligados. Somente podia testemunhar nos sacramentos do baptismo e casamento. Portas
adentro da igreja era um cristão com o mesmo estatuto do cidadão livre.
A justiça assumia posições distintas, consoante o réu fosse escravo ou livre, tal como o
preceituavam as ordenações do reino. As penas aplicadas variavam de acordo com o
estatuto social. O castigo ao homem que dormisse com manceba só tinha lugar quando tal
acontecesse com mulher livre ou branca escrava. O castigo estava de acordo com a
condição social do sentenciado. Quem dormisse com mulher livre era condenado à morte
enquanto se fosse com uma escrava branca sujeitava-se, apenas, ao degredo para as galés.
No caso de fogo posto, o escravo sujeitava-se a açoites no pelourinho, ficando a cargo do
senhor o pagamento dos danos. Já nos outros grupos sociais as penas eram distintas, de
acordo com o estatuto social.
Na aplicação das penas, às infracções cometidas pelos escravos, é necessário ter em
conta a posição assumida pelos proprietários, uma vez que algumas delas poderiam ser-
lhes ruinosas. Todas as responsabilidades dos danos causados e o pagamento das penas
pecuniárias eram uma obrigação do proprietário. Por outro lado a aplicação das penas de
degredo ou de morte tornavam-se igualmente prejudiciais para o mesmo, pois implicavam
uma dupla perda. O senhor perdia o valor pago na compra e ficava privado dos seus
serviços. Sendo assim como entender a atitude de João Rodrigues Castelhano, ao aprovar a
pena de enforcamento para cinco dos escravos que lhe mataram o feitor53. Diferente foi a
atitude de Diogo Leitão que preferiu pagar cinco mil réis pelo perdão régio a ver-se
privado do seu escravo, Diogo, degredado em Cabo Verde por haver ferido um homem,
pois como refere "nada dele servido tinha porquanto o criara de pequeno e tinha gasto
muita de sua fazenda"54.
Em toda a legislação referente aos escravos, para além da diferenciação social, está
patente o medo da revolta. Só assim se pode entender o excessivo cuidado no estabelecer
de medidas de controlo. Primeiro restringia-se a mobilidade social do escravo, depois
exercia-se uma justiça draconiana sobre os prevaricadores. Proibiu-se o uso de armas.
Limitou-se o tempo, o espaço de convívio e de intervenção social. Está proibido
circularem isolados sem qualquer ordem do dono. As ordenações e posturas, pelas medidas
restritivas que estabeleceram à convivência social dos escravos, dão a entender isso. O
recolher é obrigatório após o toque de rebate.
O maior perigo não estava no escravo propriamente dito, mas sim nos fugitivos.
Eles constituíam um grupo de alto risco e a principal causa de instabilidade social, por isso
estabeleceram-se normas no sentido de travar a violência destes. As serras da Madeira,
dizia-se, estavam polvilhadas de fugitivos que assaltavam, com frequência os caminhantes.
O caso mais célebre foi o do mulato preso por Marcos de Braga, no actual Terreiro da
Luta, que lhe tomou o nome. Com castigo foi posto "a lavrar como um boi com uma canga
e arado"55.
53
. Gaspar FRUTUOSO, Ob.cit.
54
. A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel, livro 46, fl.50, publ. História Geral de Cabo Verde. corpo documental, vol.I, Lisboa, 1988, n .47,
129-130.
55
. Gaspar FRUTUOSO, Livro segundo das Saudades da Terra, p.141.
No entender do mulato madeirense João Fernandes Vieira, libertador de Pernambuco
(1645-54) e Governador de Angola (1658-61), era "velho e aprovado costume" nunca
permitir que o negro levantasse a mão contra um branco, pois "a preservação do reino
depende desta obediência e medo56". As normas de conduta social para os escravos,
estabelecidas pelas ordenações do reino e posturas municipais, são a respostas a isso.
O roubo era uma actividade andava associada à condição de escravo. Escravo é muitas
vezes sinónimo de ladrão e criminoso. A disso está patente no século XVI na afirmação do
Conde de Linhares, que não hesitava em afirmar, que nunca havia de castigar um escravo
por furto, pois "enquanto ele fora cativo, nunca outra coisa desejava senão furtar57". Para
combater esta apetência do escravo ao furto surgiu uma postura em 154658 que proibia a
mancebia com o livre, nomeadamente o trabalhador, pois dizia-se que roubavam aos
senhores para dar aos parceiros ou para conseguirem a alforria. Na Madeira os roubos
referenciados incidiam sobre objectos ou produtos de pouco valor, como roupas, aves,
gado e alguns produtos da terra, como vinho, canas e frutas.
O maior perigo para a sociedade estava na criminalidade, mais acentuada com os
fugitivos. Giullio Landi59, que esteve na Madeira na primeira metade do século dezasseis,
estabelece uma diferenciação entre os escravos mouriscos e negros, enquanto os primeiros
são criminosos e dados a fugir, os segundos são "bons e fiéis". Quanto às características
definidoras do primeiro grupo refere: "E não é de admirar que dificilmente suportem a
escravidão, pois primeiramente foram livres, mas quando são feitos prisioneiros de guerra,
logo são reduzidos à escravidão e mantêm-se agrilhoados". Os grilhões são inseparáveis
dos mouriscos, pois os negros só os tinham que suportar quando condenados por qualquer
crime. Em 168760 Hans Sloane é peremptório em afirmar que “apenas uma moeda de ouro
nas mãos de um negro era o "suficiente para comprar a vida de qualquer pessoa".
Uma das formas de justiça exercida pelos proprietários era a negação da possibilidade
de alforria ou a venda para fora da ilha. Ao contrário, o bom comportamento era sinónimo
de uma posterior alforria por morte do proprietário.
56
. C. R. BOXER, Relações Raciais no Império Colonial Português. 1415-1825, Porto, 1977, 32.
57
. Ditos Portugueses Dignos de Memória, Lisboa, s/d, nº 1459, p. 486.
58
. A.R.M., C.M.F., nº.1307,fls.50-59.
59
. "Descrição da Ilha da Madeira", ibidem, 92.
60
."Uma viagem às ilhas da Madeira...", in A Madeira Vista por Estrangeiros, p.161
pela escravatura. Na Madeira, a primeira recomendação neste sentido foi expressa em
1592 pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, quando da visita à paróquia da Fajã da
Ovelha61.
O bispo refere a presença no bispado de inúmeros escravos gentios que, no seu
entender, deveriam merecer a atenção dos vigários. O facto de, segundo o mesmo, alguns
deles terem manifestado o desejo de professar a religião era o indicativo seguro dos
cuidados a ter com a doutrinação. Deste modo o bispo recomendava aos curas e párocos o
cuidado a ter, fazendo com que os escravos saibam "a doutrina christam e ao menos a
oração Pater Noster e Ave Maria, os artigos de fé e os mandamentos da Lei de Deus (...)".
Aos fregueses eram também atribuídas responsabilidades, ordenando-se que aos escravos
de mais de sete anos "lhes fação com muita diligência ensinar a doutrina". Por outro lado
advertia-se os párocos para que se informassem sobre os escravos da freguesia "e achando
que não sabem o Pater Noster e Avé Maria, os artigos de fé e mandamentos de lei de deus
proceda(m) contra seus senhores pera que ensinem ou fação ensinar a dita doutrina, e os
mandem a igreja aprendella ao tempo que a ensinarem(...)".
A insistência da Igreja na doutrinação e prática religiosa dos escravos esbarrava com
inúmeras resistências dos proprietários ou dos próprios escravos, que se mantinham
arreigados aos rituais africanos, ou islâmicos. Na Madeira foi reduzido o número de
refractários ao catolicismo, tal como testemunham as poucas denunciações feitas, aquando
das visitas do Santo Ofício à Madeira, em 1591 e 1618. O único indicador disso poderá ser
revelado pelo elevado número de ligações ilegítimas. Mas aqui a principal causa deverá ser
o facto dos senhores insistirem em manter as escravas livres do casamento pois delas se
serviam muitas vezes como concubinas.
A própria Igreja não se preocupou em levar à risca o preceituado nas constituições
sinodais, administrando de igual forma o baptismo aos escravos nascidos na ilha por
relação ilegítima. A única excepção conhecida deu-se em 154162 na freguesia de Santa
Cruz, onde o pároco se recusou a baptizar uma criança "por que hera filha de huma escrava
negra cativa de Antonio Correia".
Um dos domínios que mais tem preocupado os estudiosos dos aspectos ideológicos
da escravatura é esta posição adoptada pela Igreja63. Questiona-se o procedimento perante
a existência da escravatura e alude-se à dupla posição assumida quanto ao fenómeno no
continente americano, pautada pela defesa da condição do escravo negro como forma de
luta contra a escravização do índio, em que se evidenciaram Frei Bartolomé de Las Casas e
o P.e. António Vieira.
As posições da igreja católica nas colónias portuguesas e castelhanas da América do
Sul testemunham esta diversidade de opções, nomeadamente no seio da Companhia de
Jesus. Contestava-se e proibia-se a escravização dos índios, mas em contrapartida
favorecia-se a submissão dos negros africanos, não obstante os últimos serem, no entender
de Pierre Cubert64 mais aptos a abraçar o cristianismo. Todavia, no seio da Companhia de
Jesus no Brasil surgiram vozes, como as de Miguel Garcia e Gonçalo Leite, contrárias à
escravatura dos negros.
A documentação pontifícia dá-nos conta de idêntica atitude assumida pelo papado em
relação à escravatura. O procedimento condenatório dos papas Pio II, Paulo III e Urbano
VIII, contrasta com as posições de Niculau V, Calisto III, Sixto IV, Leão X e Alexandre
VI, expressas em bulas defensoras da legitimidade da escravatura. Neste último caso
61
. Arquivo Paroquial da Fajã da Ovelha, Livro de Visitações 1587-1730, fls. 14-15.
62
. A.R.M., Paróquias, M-833, fl. 217, 5 Fevereiro 1541.
63
Veja-se Domingos Maurício, “A Universidade de Évora e a Escravatura”, in Didaskália, VII, 1977, pp.153-200; António Hespa-
nha, “luís de Molina e a Escravização dos Negros”, in Análise Social, vol. XXXV, nº.157, 2001, 937-960.
64
. Nouveau Voyage aux Isles Atlantiques, 1931, 2, 406, cit. por G. Midlo HALL. Social Control in Slave (...), Londres 1971, 40.
merecem referência as bulas "Dum Diversas" e "Divino Amore Comoniti" que
asseguravam aos portugueses o direito de conquista e escravização dos sarracenos65.
Na Madeira, ao contrário do que sucedeu no continente americano, não se
estabeleceu nos registos paroquiais qualquer separação entre escravos e livres. O escravo
surge ao lado do cidadão livre. Até mesmo o tribunal do Santo Ofício atribuía tratamento
idêntico, em termos processuais aos escravos e livres, na qualidade de réus ou de
denunciantes. Esta valorização do testemunho ou denúncia do escravo, que, por vezes,
atinge o próprio proprietário66, contraria a norma corrente do direito civil. Na Madeira,
para a visita de 1618, foram referenciados cinco mulheres e um homem como
denunciantes, todos livres, mas cuja origem étnica é indicativo da anterior condição de
escravo.
Outro facto comparativo da plena integração religiosa dos escravos na comunidade é-
nos apresentado pelo ingresso em conventos ou na colação de ordens menores. Aqui, a
exemplo do reino, surgem escravos e libertos. Em 153867 Manuel, liberto de Francisco
Narde, recebeu a primeira tonsura, enquanto em 156368 Álvaro Gonçalves, mulato, é
referido no registo de óbito como clérigo de missa. Esta situação poderia resultar do desejo
manifesto do proprietário, como sucedeu com Agostinho, escravo de dona Guiomar de
Couto69 e Maria dos reis, escrava de D. Luís de Figueiredo Lemos, bispo do Funchal70.
Temos também notícia de alguns casos de entrada em conventos, nomeadamente nos
do sexo feminino, na explicitação das obrigações referentes a alforria dos escravos. Assim
aconteceu com Antonia, escrava do capitão Domingos de Figueiredo Calheiros71, Teresa
do P.e. Manuel Dias Pinheiro72, Paulina de Apelonia Távora73 e Isabel de Maria de
Câmara74. Estranhamente o cónego Henrique Calaça, fundador do Convento da
Encarnação do Funchal, contrariou o desejo de uma sua irmã quanto ao ingresso no
convento da escrava que lhe havia legado. Esta atitude é justificada no testamento da
seguinte forma: "me parece que ella nam queria ficasse forra, e assim o digo que fique
forra e como tem sua filha no mosteiro não deixará de continuar lá que não será de
perda75".
A administração de qualquer sacramento implicava conhecimento mínimo da doutrina
mas no caso dos escravos esta recomendação era quase sempre esquecida. Nas
Constituições Sinodais de 1597 o bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos refere o escravo
como pessoa ignorante no conhecimento da religião e a necessidade de se providenciar o
ensino da doutrina antes de ser baptizado. Para os restantes sacramentos (crisma,
casamento e extrema-unção), não obstante a obrigatoriedade de conhecimento da doutrina
as normas não foram tão rigorosas como se poderá avaliar pelas mesmas constituições.
Um dos melhores aferidores da religiosidade dos escravos e libertos poderá ser a
presença ou não no baptismo, crisma, casamento e óbito. Os três primeiros actos são
puramente litúrgicos. Já o último aparece como uma forma da Igreja controlar a execução
dos encargos testamenteiros. O escravo e o liberto não tinham lugar de relevo no último
caso, pois as precárias condições económicas não permitiam dispor de muitos encargos ou
65
. Cf. L. Conti, “A Igreja Católica e o Tráfico negreiro”, in O Tráfico dos Escravos Negros. Sécs. XV-XIX, Lisboa, 1981, pp.335-
339. J. F. Maxwell, Slavery and the Catholic Teaching, Londres, 1975, pp.52-59; J. R. Tinhorão, Os Negros em Portugal, Lisboa,
1988, p.56.
66
. A.C. SAUNDERS, A Social History of Black Slaves and Freedman in Portugal. 1441-1555., Cambridge, 1982, 159.
67
. A.N.T.T., Cabido da Sé do Funchal. Livro de Matrículas de ordenados em ordens menores, nº 29, fls.70vº.
68
. A.R.M., Paroquiais Sé, nº 68, fls. 36vº,16 Maio 1563.
69
. A.R.M., Capelas, maço7, nº 4, 18 Setembro 1604.
70
. Francisco Afonso Chaves e MELLO, "A Margarida Animada", in Arquivo dos Açores, vol. I, p. 293.
71
. A.R.M., Juízo dos resíduos e Capelas. Tombo, fls. 386-388v ., Funchal 21 Junho 1658.
72
. A.R.M., Capelas, maço 137, nº 10, Fajã da Ovelha, 11 Setembro 1696.
73
. Ibidem, maço 17, nº 10, Ribeira Brava, 15 Janeiro 1683.
74
. A.R.M., Juízo dos resíduos e Capelas, tombo, fls. 350vº-353, Câmara de Lobos, 2 Outubro de 1676.
75
. A Restauração de Portugal e o Convento de Encarnação, 1940, 39.
legados. Daí, talvez, o facto da sua pouca assiduidade nestes registos, que contrasta com o
que sucede no baptismo.
A Igreja depara-se com um dilema. Ao nível da doutrina reclamava a luta contra a
mancebia dos escravos e livres. Na prática, confrontada com a presença de uma criança
para baptizar, ignorava-o, ficando sem exercer qualquer represália sobre os pais, como
preceituavam as Constituições Sinodais. As constituições de 1585 estabeleciam que a
cópula antes e sem casamento era condenada com a pena de excomunhão76.
A posição assumida pelos escravos e libertos perante a morte é, sem dúvida, outro
indício da religiosidade do grupo. A concepção de morte veiculada pela Igreja está patente
nas cédulas e testamentos. O recurso a estes documentos, transcritos no registo de óbito ou
tombados em alguma instituição que hajam recebido legados, permite tal conclusão. No
caso dos escravos, sem meios necessários para assegurar a intercessão celestial por
intermédio dos encargos de missas, a sua presença é quase nula. Apenas nos registos de
óbito encontramos oito deles que estabeleceram tais cargos, sendo seis do sexo feminino e
dois do masculino. Em qualquer dos casos não foi feito testamento, sendo o último desejo
expresso, de viva voz, quando administrava a extrema-unção.
A reduzida presença dos escravos a solicitar a intercessão divina por meio de encargos
de missas não pode de modo algum ser o indicativo da fraca adesão ao ritual da morte, mas
sim o resultado dos parcos recursos económicos. Os testamentos ou cédulas, tombados nas
Misericórdias, no Julgado de Resíduos e Capelas e, raramente, nos registos de óbito, só
tem lugar quando o morto estabelecia doações ou encargos que interessavam a estas
instituições.
Em todos eles é patente o recurso à protecção do hospital da Misericórdia e o
reconhecimento da obra caritativa do mesmo. Os encargos e legados são estabelecidos,
maioritariamente, para a instituição. Muitos reclamavam os préstimos religiosos da
instituição ao pretenderem enterrar-se na capela e ao lhe concederem também encargos de
missa.
Um dos aspectos de particular significado na cerimónia fúnebre dos escravos e libertos
é o local de enterramento. É evidente a preferência por determinados templos e neles de
certas capelas. No Funchal, a par da capela da Misericórdia, temos as igrejas da Sé e Nossa
Senhora do Calhau. Neste último templo havia uma confraria de Nossa Senhora do
Rosário dos pretos, que deveria estar na origem insistente preferência por este templo.
A par do ritual de enterramento, havia a escolha do espaço de enterro dos mortos. De
acordo com as informações colhidas nos registos de óbitos só os libertos podiam ser
sepultados dentro da Igreja. Os escravos eram enterrados na cova pertencente à fábrica da
igreja, local para onde iam todos aqueles que não tinham meios para pagar a sepultura.
Mas para alguns, a quem o senhor reconhece os seus préstimos, há lugar na cova do
mesmo. Assim sucedeu com Leanor, preta, forra de Gaspar Nunes, com Lourenço e Marta
ambos da Tabua.
Em 1580 o cabido da Sé do Funchal manifestou-se contra os frades do convento de S.
Francisco por eles consentirem maior número de enterramentos na capela, angariando os
consequentes legados. A conclusão do litígio só teve lugar em 161577 com as Constituições
Sinodais de D. Frei Lourenço de Távora. Aqui se ordenava aos curas e vigários não
deveriam consentir o enterro de "menores e escravos fora de suas igrejas e cemitérios ou
hermidas anexas, em especial no convento de S. Francisco e mais igrejas de religiosos e
religiosas". Esta determinação testemunha que muitos dos escravos preferiam as sepulturas
das capelas dos conventos, onde eram enterrados no adro.
76
. Constituições Sinodaes do Bispado do Funchal, Lisboa, 1597, título I, Constituição primeira, p. 3-4.
77
. A.N.T.T., Cabido da Sé do Funchal, Maço 11, nº 3.
Outro aspecto de particular interesse na devoção dos escravos acontece com as
confrarias. Trata-se de instituições de assistência na vida e na morte, cujo início e
afirmação foi resultado da influência dos franciscanos e dominicanos. O culto a Nossa
Senhora do Rosário encontra-se ligado à tradição dominicana, tendo surgido em Portugal
na segunda metade do século XV, a partir da Igreja de S. Domingos em Lisboa. Todavia, a
assimilação deste culto pelos negros da capital, através da confraria de Nossa Senhora do
Rosário, ter-se-ia iniciado em data incerta.
O culto a Nossa Senhora do Rosário expandiu-se a todo o espaço atlântico, tendo
expressão nas ilhas e Américas. Na Madeira, não obstante as ausências dos dominicanos, o
culto teve forte implantação, existindo a confraria respectiva nas freguesias da Sé, Nossa
Senhora do Calhau, E. da Calheta, Ribeira Brava, Santo António, São Martinho, Tabua,
Porto Santo, Machico e São Vicente. Além disso deparamo-nos, a partir do século XVII,
com algumas capelas particulares em que o orago é Nossa Senhora do Rosário. Elas
existiram em São Vicente, Machico, S. Roque, Santa Cruz, São Jorge e Campanário.
A devoção de escravos e libertos não se resumia apenas à confraria de Nossa
Senhora do Rosário. A prova está na freguesia da Sé onde Maria Afonso, preta, e Isabel
Dias, mulata, estabeleceram encargos nestas e noutras, como a de Santiago Maior, Reis
Magos, das Chagas, Nossa Senhora do Populo, Candelaria, São Bartolomeu, São José e
São Diogo. Mas é evidente a preferência por Nossa Senhora do Rosário. A primeira ao
estabelecer o valor de legados às confrarias privilegia a do Rosário a quem concede 300
reis e um sobrado, enquanto a segunda doou uma loja e fez um encargo de duas missas no
altar da Sé com a mesma invocação.
O altar de Nossa Senhora do Rosário da Sé do Funchal era alvo de uma devoção
especial pelos libertos e escravos. Em 160878 Maria das Neves, mulata forra, foi sepultada,
a seu pedido, defronte do referido altar. Por outro lado é de referir que nas três situações
em que aparecem legados para a confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, da
freguesia de Nossa Senhora do Calhau, os intervenientes não declaram qualquer situação
étnica o que dá a entender que nas citadas confrarias havia lugar para livres, libertos e
escravos.
A confraria não se resumia apenas à função religiosa, pois a ela estavam associados
outros interesses de ordem social. No caso dos negros a de Nossa Senhora do Rosário
providenciava o necessário apoio social aos irmãos e os meios necessários à alforria. Na
Madeira não conhecemos nenhum caso de libertação por esta via, mas sabemos que em
162279 Catarina Gonçalves entregou à mesma quinze mil réis com tal objectivo.
O culto do Nossa Senhora das Neves, comum nos escravos, não desfrutou de grande
aceitação na Madeira, uma vez que apenas está documentada a existência de uma capela
em S. Gonçalo, dedicada a este orago, mandada construir no século XVI por João Afonso
Mealheiro e a sua mulher Catarina de Sá. Nenhum dos dois é referenciado como possuidor
de escravos, nem encontrámos qualquer alusão por parte dos escravos a este culto.
78
. A.R.M., Paroquiais - Óbitos-Sé, nº 73, fls. 40vº
79
. A.R.M., Paroquiais. Óbitos-Sé. Nº 73, fls. 143, de 8 de Setembro.
no filão português, são, imediatamente, associadas a este grupo, como é o caso do baile
pesado, mourisca, canção de embalar e o baile da meia volta80. A maior parte dos auto-
res que o defendem têm como mira a situação da escravatura do Brasil. Acontece que aí
ela assumiu proporções muito diferentes das que adquiriu no arquipélago madeirense. A
forma de dominação e sociabilidade daí decorrentes favoreceram no Brasil a manuten-
ção nas senzalas dos usos e costumes das terras de origem. Os dados avulsos sobre o
quotidiano dos escravos permitem-nos questionar algumas falsas visões em que se fili-
am as explicações dadas para a origem das danças e cantares. O escravo, negro ou ber-
bere, era um filão em permanente descoberta.
Avaliar o contributo de uns e outros, eis a tarefa espinhosa que espera, a histori-
adores e estudiosos do Folclore. Uma primeira ideia se impõe. Na Madeira a escravatura
foi algo diferente daquilo que sucedeu no Brasil. A dispersão geográfica das áreas arro-
teadas, o reduzido número de escravos por proprietário e as limitações ao espaço de
convívio social, não favoreceram este tipo de convivência. Ainda, na Madeira, tendo em
conta as limitações impostas pelas posturas à circulação dos escravos após o sino de
correr, parece-nos difícil, senão impossível, encontrar um momento para eles se diverti-
rem em conjunto, com as danças e cantares. Mais, será possível encontrar entre o redu-
zido número de escravos de cada senhor um grupo da mesma etnia ou cultura, capaz de
recriar as suas danças e cantares? Desta forma apenas lhes restavam os momentos de
folia estabelecidos para o proprietário, a que certamente não deviam ser alheios: com os
jogos de canas, as touradas e lutas.
O escravo é parte integrante da sociedade madeirense, não existindo qualquer
separação ou delimitação do espaço de convívio social. O mundo do escravo entrecru-
zava-se com o do livre. A dimensão reduzida do arquipélago, associada à forma de es-
truturação da sociedade e economia fizeram com que esta simbiose se concretizasse em
pleno. Os regimentos régios, as posturas municipais, insistiam na necessidade de con-
trolo, no acanhado espaço de convívio, do escravo, no sentido de evitar qualquer situa-
ção propiciadora da revolta. Estamos perante um processo de assimilação forçada, que
deixa pouca margem de expressão à cultura dominada. Perante isto, o escravo estava
amarrado ao quotidiano do senhor e só se poderia desprender-se dele em condições es-
peciais e mediante o seu consentimento. O escravo só existe em relação ao proprietário,
pois era ele quem lhe atribuía posição na estrutura social. Desde o nome, que o identifi-
ca, à profissão, que ocupa, no dia a dia, e ao cumprimento dos preceitos religiosos, a
figura do proprietário é omnipresente. Com as escravas a ligação é mais estreita, servin-
do muitas vezes de concubinas.
Há aqui uma questão fundamental que tem sido preterida pelos estudiosos e de-
fensores da aportação africana à cultura madeirense. A África foi e continua a ser um
mosaico de culturas. Por isso, defender o contributo cultural africano implica a busca da
diversidade cultural, que é como quem diz, da origem geográfica e étnica dos escravos
que vieram para a Madeira. A Costa da Guiné, um dos principais mercados fornecedor
de escravos para a Madeira, é, também, como sabemos, um autêntico mosaico de cultu-
ras e etnias81. Esta ideia é tida em conta por todos os estudiosos da cultura negra às re-
giões aonde chegaram os africanos. Somente entre nós este tipo de comportamento é
esquecido82. Por tudo isto, podemos afirmar que estamos perante um campo ainda em
80
. Confronte-se o estudo de Danilo Fernandes, Danças e Bailados no folclore Madeirense. Origem e Mitos, Funchal, 2001
81
. São muitos os estudos feitos, confronte-se: Artur Ramos, As Culturas Negras no Mundo Novo, S. Paulo, 1979 ( 1ª edição em
1937); Philip Curtin, Atlantic Slave Trade, Madison, 1969; Basil Davidson, Revelando a Velha Africa, Lisboa, 1977; idem, À Des-
coberta doPassado de África, Lisboa, 1981; idem, Os Africanos. Uma Introdução à sua História, Lisboa, 1981.
82
. Tenha-se em conta o que foi dito e feito para outras áreas: Roger Bastide, African Civilisation in the New World, N. York, 1971;
idem, Las Americas Negras, Madrid, 1969; Artur Ramos, O Folclore Negro no Brasil, 1ª edição, 1935; Eugene D. Genovese, Roll,
Jordan Roll. The World the Slave Made, N. York, 1974; Daniel C. Littlefield, Race and Slaves, Baton Rouge, 1981; Sterling Stuck-
ey, Slave Culture: Nationalist Theory & the Foundations of Black America , N. York, 1987; J.William Harris, Society and Culture in
aberto a aguardar um tratamento cuidado pelos investigadores. Por exemplo, o alarga-
mento da investigação ao período final da permanência do fenómeno na ilha poderá
propiciar-nos novos dados capazes de justificarem o desenvolvimento dos rastos e tes-
temunhar, ainda hoje, a sua presença na sociedade madeirense.
Às possíveis reminiscências da presença dos escravos na ilha podemos ainda co-
locar outras questões. A evolução da escravatura desde o século XV até à sua abolição
não assumiu diversas formas. Na Madeira é evidente a incidência nos primeiros cem
anos de ocupação, até que foi chegado o momento de maior procura pelo mercado ame-
ricano. Para os eruditos esta realidade é ignorada, sendo a escravatura negra ou mouris-
ca uma constante da História da ilha.
Há ainda muito a fazer e é necessário repensar o contributo cultural da popula-
ção escrava à sociedade e cultura madeirenses. A sua definição e permeabilidade às in-
fluências externas devem ser feitas num correcto enquadramento histórico. Só assim
estaremos em condições de afirmar que o actual folclore madeirense é a manifestação
sincrética de múltiplas influências e da evolução no tempo. Definir uma e outra situação
é tarefa do investigador, a quem se depara um vasto campo a desbravar. Tudo se mistu-
rou, por uma poção mágica, dando origem às múltiplas manifestações das danças e can-
tares que ritmaram as tarefas agrícolas, e ficaram a evidenciar a transbordante alegria do
íncola nas festas populares e de homenagem aos oragos e santos da sua devoção.
FARINHA, Maria do Carmo Dias, "A Madeira nos arquivos da inquisição", in Actas do I Colóquio Inter-
nacional de História da Madeira, vol.I, Funchal, 1990, pp.689-742.
MELLO, José António Gonsalves de, Gente da nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco, Recife:
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