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Carta de João Guimarães Rosa a João Condé,

revelando segredos de

Prezado João Condé

Exigiu você que eu escrevesse, manu propria, nos espaços brancos deste
seu exemplar de Sagarana, uma explicação, uma confissão, uma conversa,
a mais extensa, possível — o imposto João Condé para escritores, enfim.
Ora, nem o assunto é simples, nem sei eu bem o que contar. Mirrado pé
de couve, seja, o livro fica sendo, no chão do seu autor, uma árvore ve-
lha, capaz de transviá-lo e de o fazer andar errado, se tenta alcançar-lhe
os fios extremos, no labirinto das raízes. Graças a Deus, tudo é mistério.
Algo, porém, tem de ser dito. Ao autor o que é do autor, mas a João
Condé o que é de João Condé.
Assim, pois, em 1937 — um dia, outro dia, outro dia... — quando
chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num bar-
quinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos,
eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embar-
car, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo.
Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela
para mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles va-
riados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente.
Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de
novelas. E — sendo meu — uma série de Histórias adultas da Carochi-
nha, portanto.
Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de
que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, precon-
ceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, dou-
trinas, conceitos, atualidades e tradições — no tempo e no espaço. Isso,
S aga r ana

porque: na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio


salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe.
Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De
certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas
como a bela amante e companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não
o que fiz, João Condé!) seria aplicar, no caso, a minha interpretação de
uns versos de Paul Éluard: ...“o peixe avança nágua, como um dedo numa
luva”... Um ideal: precisão, micromilimétrica.
E riqueza, oh! riqueza... Pelo menos, impiedoso, horror ao lugar-
-comum; que as chapas são pedaços de carne corrompida, são pecados
contra o Espírito Santo, são taperas no território do idioma.
Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João Condé, rea-
lizar é que são elas...): além dos estados líquidos e sólidos, por que não
tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!
Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde locali-
zar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a
China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o
pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque
tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra,
a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior — sem convenções,
“poses” — dá melhores personagens de parábolas: lá se veem bem as
reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na ca-
choeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem
sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se
estorricar com a seca.
Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de
Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Condé, findava
a fase de premeditação. Restava agir.
Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas
sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo”
paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a
máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de
manhã.
O livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em caderno de cem
folhas — em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento.

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Jo ã o G u i m a r ã e s Ro s a

(Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945 foi “retrabalhado”, em


cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez).
Lá por novembro, contratei com uma datilógrafa a passagem a limpo.
E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às cinco e meia da tar-
de, na Livraria José Olympio. O título escolhido era “Sezão”; mas, para
melhor resguardar o anonimato, pespeguei no cartapácio, à última hora,
este rótulo simples: “Contos (título provisório, a ser substituído) por Viator.
Porque eu ia ter de começar longas viagens, logo após.
Como já disse, as histórias eram 12:

I) — O Burrinho Pedrês — Peça não profana, mas sugerida por


um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos anos: o
afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio.

II) — A Volta do Marido Pródigo — A menos “pensada” das


novelas do Sagarana, a única que foi pensada velozmente, na ponta do
lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945.

III) — Duelo — Aqui, tudo aconteceu ao contrário do que ficou


dito para a anterior: a história foi meditada e “vivida”, durante um mês,
para ser escrita em uma semana, aproximadamente. Contudo, também
quase não sofreu retoques em 1945.

IV) — Sarapalha — Desta, da história desta história, pouco me


lembro. No livro, será ela, talvez, a de que menos gosto.

V) — Questões de Família — História fraca, sincera demais, meio


autobiográfica, malrealizada. Foi expelida do livro e definitivamente des-
truída.

VI) — (Uma História de Amor — Um belo tema, que não consegui


desenvolver razoavelmente. Teve o mesmo destino da novela anterior).

VII) — Minha Gente — Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita
molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor
não poderia ter, ao escrever as demais.

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S aga r ana

VIII) — Conversa de Bois — Aqui, houve fenômeno interessante,


o único caso, neste livro, de mediunismo puro. Eu planejara escrever um
conto de carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro. Peno-
samente, urdi o enredo, e, um sábado, fui dormir, contente, disposto a
pôr em caderno, no domingo, a história (no 1). Mas, no domingo caiu-
-me do ou no crânio, prontinha, espécie de Minerva, outra história (no
2) — também com carro, bois, carreiro e guia — totalmente diferente da
da véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo, e me esqueci da outra, da an-
terior. Em 1945, sofreu grandes retoques, mas nada recebeu da versão
pré-histórica, que fora definitivamente sacrificada.

IX) — Bicho Mau — Deixou de figurar no Sagarana, porque não


tem parentesco profundo com as nove histórias deste, com as quais se
amadrinhara, apenas, por pertencer à mesma época e à mesma zona. Seu
sentido é outro. Ficou guardada para outro livro de novelas, já concebi-
do, e que, daqui a alguns anos, talvez seja escrito.

X) — Corpo Fechado — Talvez seja a minha predileta. Manuel


Fulô foi o personagem que mais conviveu “Humanamente” comigo, e
cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer espécie de exis-
tência. Assim, viveu ele para mim mais umas três ou quatro histórias,
que não aproveitei no papel, porque não tinham valor de parábolas, não
“transcendiam”.

XI) — São Marcos — Demorada para escrever, pois exigia grandes


esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já muito afunda-
das. Foi a peça mais trabalhada do livro.

XII) — A Hora e Vez de Augusto Matraga — História mais sé-


ria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre
o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima,
pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava des-
cobrir.

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Por ora, Condé, aqui está o que eu pude relembrar, acerca do Saga-
rana. Se Você quiser, eu poderei contar, mais tarde —, num exemplar da
2ª edição — algumas passagens históricas, ocorridas entre o dia 31 de
dezembro de 1937 e a data em que o livro foi entregue à Editora Univer-
sal. Serve?

Com o cordial abraço do


Guimarães Rosa

(Transcrita do livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de


Vilma Guimarães Rosa. 3a edição revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008. p. 442-5.)

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