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CAMPINAS
2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CAMPINAS
2019
RESUMO
O presente trabalho visa contribuir com as discussões existentes acerca do cenário das
relações exteriores africanas e francesas no século XXI. Por meio de pesquisas em artigos
acadêmicos e livros, tem-se uma abordagem e análise de conceitos de cooperação e
neocolonialismo entre o continente e o país europeu, assim como a questão da política de
influência exercida pela França. Outro ponto analisado diz respeito às consequências geradas
pelos eventos ocorridos em território africano. Portanto, este artigo mostra a atual conjuntura
das relações entre os países em questão e como o sistema internacional se comporta diante
desse quadro.
This paper aims to contribute to the existing discussions about the scenario of African and
French foreign relations in the 21st century. Through research in academic articles and books,
we have an approach and analysis of concepts of cooperation and neo-colonialism between
the continent and the European country, as well as the issue of the policy of influence
practiced by France. Another point analyzed concerns the consequences caused by events
occurred in African territory. Therefore, this article shows the current conjuncture of relations
between the countries concerned and how the international system behaves in this context.
1.INTRODUÇÃO 5
2.METODOLOGIA 6
3.INTERVENCIONISMO FRANCÊS 6
3.1 Costa do Marfim 6
3.1.1 Tentativa de restabelecimento da paz 7
3.2 Djibouti 8
3.2.1 Forças Francesas e a importância geopolítica 8
3.3 Mali, Operação Serval e Política de Contra-insurgência 9
3.3.1 Soberania e legitimidade da intervenção 10
3.3.2 Interpretações francesas e malianas sobre a intervenção 11
5. GOVERNO MACRON 14
5.1 Operação Barkhane 16
6. CONCLUSÃO 17
REFERÊNCIAS 19
5
1. INTRODUÇÃO
Durante todo o período entre os séculos XVI e XX, a França manteve domínio de
territórios na América, Ásia e África, exercendo controle e colonizando essas regiões, uma
prática característica dos Estados europeus da época para suprir suas necessidades comerciais
por meio da busca por recursos, especiarias para comercializar, estabelecimento de portos
estratégicos. Vale ressaltar que essa prática foi concretizada com a criação da Companhia
Francesa das Índias Orientais, fundada no século XVII com o objetivo central de negociação
na região do Cabo da Boa Esperança, localizado no sul da África, além dos mares orientais e
toda a Índia.
Portanto, diante desse quadro, tem-se a palavra Françafrique para ilustrar a situação
entre o Estado francês e o continente africano, referindo-se às relações entre ambos,
principalmente a respeito da esfera de influência francesa nesse território, seja de forma
negativa ou positiva.
6
2. METODOLOGIA
3. INTERVENCIONISMO FRANCÊS
Vários acordos de defesa foram propostos por parte da Costa do Marfim, embora a
França não tenha acatado, já que o país europeu declarou a não interferência em assuntos
internos, reconhecendo, portanto, a soberania do Estado, embora as intervenções militares
pudessem ocorrer em situações específicas que reconhecessem a legitimidade dessa medida.
7
Vale ressaltar que a França interveio, mais uma vez, em 2004, quando as Forças
Armadas Marfinenses estabeleceram a Opération Dignité contra rebeldes das Forces
Nouvelles e contra franceses participantes da Force Licorne, operação de paz em apoio à
ONU. Dessa maneira, os franceses realizaram um ataque aéreo em Yamoussoukro e Abidjan,
que resultou na morte de marfinenses, o que levou a uma série de protestos pelo país em
repudiação a essa medida francesa. Como resultado, a França, mediadora no conflito, acabou
sendo interpretada como antagonista.
“(...) o exército francês tenta preservar a possibilidade de uma solução.
Mas a crise é duradoura: os acordos de Marcoussis (24 de janeiro de
2003) não são respeitados, os confrontos continuam apesar do envio
de tropas pela ONU (Onug), em fevereiro de 2004, e a tensão
franco-marfinense atinge seu ápice em novembro.” (VAÏSSE,
Maurice, 2013, p. 311).
1
Acordo assinado em janeiro de 2003 na França durante o governo de Jacques Chirac com o objetivo de colocar
um fim na Primeira Guerra Civil da Costa do Marfim.
8
Após um relativo período de paz, outro conflito ocorreu em 2011, conhecido como a
Segunda Guerra Civil da Costa do Marfim, que despertou, mais uma vez, todo o quadro
caótico e conflituoso dos anos anteriores. Causado, principalmente, pela vitória de Alassane
Ouattara nas eleições de 2010, vitória reconhecida pela ONU e por organizações africanas, e
pela rejeição do resultado pelo antigo presidente, Laurent Gbagbo, e das forças armadas, que
conseguiram manter Gbagbo no poder. Assim, as forças de Ouattara tomaram o norte do país,
deixando Gbagbo se entrincheirado na maior cidade do país, Abidjan. O conflito foi
estabilizado somente quando as forças de Ouattara entraram em Abidjan, por meio do apoio
das tropas da ONU e da França – partindo do princípio da legalidade do processo eleitoral que
o elegera, e Gbagbo foi capturado em sua residência. (FAKHOURY, 2017).
3.2 Djibouti
2011, que tem como um dos objetivos a contribuição para a defesa territorial. Além disso,
suas bases navais no Djibouti têm importância estratégica, pois, dessa forma, a França pode
realizar um ataque nuclear submarino na região do Oceano Índico em caso de necessidade.
Em 2014, foram instaladas as denominadas Forças Especiais Francesas no Djibouti no caso da
probabilidade de crise nessa região africana ou no Oriente Médio.
No ano de 2018, o governo francês cogitou enviar mais tropas devido ao aumento da
presença chinesa na região e devido ao aumento da importância geopolítica do estreito de
Bab-el-Mandeb que separa a África do continente asiático, pois além da localização
estratégica, as exportações de petróleo do Golfo Pérsico e dos países asiáticos destinadas aos
países ocidentais devem passar por ele antes de chegar ao Canal de Suez.
da primeira justificativa, a intervenção por convite2 pode soar como um argumento sólido para
a operação estrangeira, porém, o pedido foi feito sob o governo de Dioncounda Traoré, cujas
eleições de abril de 2012, que o elegeram, são alvos de críticas relacionadas à transparência e
representatividade do processo eleitoral3, ademais, os líderes regionais da África Ocidental
não consentiram no reconhecimento do presidente Traoré (JESSE, 2019 apud BLYTH et al.,
2013). Dito isto, o pedido de intervenção foi feito por um governo com legitimidade
democrática questionável, o que torna a justificativa de intervention by invitation igualmente
questionável.
Em relação ao argumento voltado para a legitimação da intervenção baseada na
autorização da ONU, por uma ótica analítica realista proposta por Yates (2018), a França
poderia estar se utilizando de um contexto de operações de manutenção de paz para impor sua
agenda política no continente, se aproveitando da estrutura de segurança internacional
estabelecida para aumentar sua influência e poder. Seguindo a mesma abordagem teórica,
enfatizada na afirmação de que "as estratégias de intervenção têm maior probabilidade de
serem guiadas por cálculos de interesse nacional" (PITTS, 2013 apud BELLAMY &
WHEELER et al., 2011), o consentimento das Nações Unidas não extingue a presença de
elementos de interesses vantajosos ao Estado francês na Operação Serval, logo, do ponto de
vista objetivo e pragmático, o apoio da ONU não pode ser usado como fator legitimador da
intervenção.
2
A chamada “intervention by invitation” consiste em atender um pedido de intervenção feito pelo governo
vigente do Estado em questão. Este conceito não é integralmente aceito em termos de Direito Internacional pelo
fato de que o governo que realizou o pedido, pode não ser legítimo em termos democráticos.
3
Cidadãos deslocados pelo conflito não foram capazes de votar nas eleições de 2012.
4
“Esta resolução focava em fornecer segurança, estabilização e proteção de civis; apoiando políticas nacionais
diálogo e reconciliação; assegurando o restabelecimento do estado autoridade, a reconstrução do setor de
segurança e a promoção de direitos humanos no Mali.” (ALI, 2018).
12
bilateral de cinco anos entre Mali e França, com o objetivo de fortalecer as relações militares
entre ambos, envolvendo treinamento e compartilhamento de informações para uma condução
eficiente das operações de segurança na região. A Operação Serval encerrou oficialmente em
14 de julho de 2014, no entanto, as tropas francesas permaneceram em parte no território
maliano, de modo que as operações francesas na região se reestruturaram através da Operação
Barkhane, iniciada em agosto de 2014, desta forma, dando continuidade à base de influência
militar francesa no continente.
O governo francês, durante as operações, continuamente disseminava o discurso de
que a intervenção tinha objetivos de ajuda humanitária e restabelecimento da paz. Focando
agora nas opiniões e discursos da França sobre a intervenção, François Hollande, no início da
Operação Serval, tinha a tendência de “homogeneizar” os grupos rebeldes do Mali, no sentido
de que não fazia qualquer distinção entre os movimentos insurgentes da região, de forma que
grupos não extremistas como o MNLA eram igualados à jihadistas islâmicos como o
MUJAO5. O fato do Estado francês não reconhecer as peculiaridades destes grupos e
generalizá-los como parte de uma grande ameaça terrorista na região, se apresenta como um
discurso que pretende facilitar o entendimento e a justificativa da intervenção, na tentativa de
moldar a opinião pública sobre o assunto (JESSE, 2019). Hollande sempre considerou que o
contra-terrorismo seria a principal motivação dos movimentos militares franceses no Mali
(YATES, 2019).
Aderindo ao ponto de vista de autoras e autores malianos, como Aminata Traoré
(2013) e Boucabar Boris Diop (2013) , a intervenção francesa demonstra atitudes que podem
ser vinculadas como neocoloniais, evidenciando a persistência da imposição histórica da
potência europeia sob suas ex-colônias, que se utiliza de pretextos de proteção à segurança
regional como oportunidade de atender à seus interesses (JESSE, 2019 apud TRAORÉ,
2013). De acordo com Diop (2013), de todas as nações européias, a França possivelmente é a
que mais se agarra ao seu passado colonial, não conseguindo se desvincular dos privilégios
políticos que o continente lhe oferece. A Operação Serval evidenciaria essa conexão colonial,
expressando uma “teimosia reacionária” na política externa francesa. (JESSE, 2019 apud
DIOP, 2013).
5
O MNLA se diferenciava de outros grupos insurgentes, principalmente pelo fato de não defenderem a Sharia e
não terem reivindicações expansionistas, em contraste com outras organizações, que almejavam a disseminação
da jihad e a criação de um estado islâmico em uma grande porção da África Ocidental.
13
Criado após a Segunda Guerra Mundial e aprimorado nas décadas seguintes, o Franco
CFA é uma moeda que tinha como objetivo, em sua origem, atrelar uma conexão monetária
direta entre França e os países da zona francófona, com o intuito de criar vantagens no
comércio exterior, manutenção de taxas cambiais favoráveis e principalmente, construir uma
base de influência que poderia ser utilizada em um período pós-colonial (TAYLOR, 2019).
A moeda é utilizada atualmente pelos seguintes países pertencentes as ex-colônias
francesas; Togo, Senegal, Mali, Burkina Faso, Costa do Marfim, Níger, Benim, Camarões,
Chade, República do Congo, Guiné Equatorial, República Centro-Africana e Gabão. As
restrições que o estabelecimento desta moeda gera a estes países africanos podem ser
observadas em diversos níveis, como por exemplo, a obrigação estabelecida por um acordo
que diz que 50% das reservas internacionais do Franco CFA devem ser depositadas no
Tesouro Francês, como forma de controle da convertibilidade, fazendo com que uma quantia
considerável do dinheiro não esteja sob total controle das nações africanas. Outro fator é a
limitação de concessão de crédito existente entre os países do CFA, não podendo eles
conceder ou receber uma quantia em crédito que ultrapasse mais de 20% de sua receita
pública6, criando assim uma demanda de financiamento externo por parte destes países,
ocasionando necessidade constante de empréstimos internacionais, prática esta que gera
problemas a produção interna e corrobora com o subdesenvolvimento. A vantagem
comparativa também colabora para este cenário, visto que os produtos internos são menos
competitivos do que aqueles importados da França.
A fixação da taxa de câmbio entre euro e franco CFA também possibilita uma posição
vantajosa das empresas francesas, que se beneficiam da relação de convertibilidade da moeda,
fazendo com que a França possa comprar matérias-primas essenciais a preços muito baixos
para financiar sua indústria aeronáutica e de armamentos, produtos como cromo, manganês e
fosfato. Além disso, as informações sobre onde e como as reservas estrangeiras de Franco
CFA armazenadas no Tesouro Francês são investidas, não são divulgadas pelo governo
6
TAYLOR, Ian. France à fric: the CFA zone in Africa and neocolonialism, 2019.
14
francês, fazendo com que a França tenha uma autonomia abusiva do dinheiro depositado
pelos países africanos em seus cofres (SYLLA & KODDENBROCK, 2019).
Dito isso, a política monetária dos países africanos francófonos está altamente
subordinada ao controle econômico francês, fato este que remonta às práticas coloniais de
dominação e subordinação exercidas pela França e que se mantêm ativas como materialização
da política externa no continente, focada em conservar a ligação com a África através de
atitudes neocoloniais. Com isso, as barreiras à integridade monetária destes países também se
refletem em barreiras ao desenvolvimento dos mesmos, promovendo a continuação de um
cenário de submissão econômica estrutural, que está presente não somente no continente
africano, mas em em diferentes níveis em todo o Sul Global (SYLLA & KODDENBROCK,
2019).
O poder exercido pelo Estado francês na África Ocidental e Central através do franco
CFA se traduz não somente em uma estratégia econômica, mas principalmente, em uma
ferramenta política (TAYLOR, 2019) do qual a França utiliza para perpetuar a relação
hierárquica que tinha com o continente séculos atrás.
5. GOVERNO MACRON
7
“Les enjeux de la diplomatie française en Afrique”, matéria disponível no site do governo francês (Ministère de
l’Europe et des Affaires Étrangères).
15
chinesa no continente. Além das relações econômicas entre China e África, Pequim possui
bases navais no Djibouti, o que remete à disputa estratégica do estreito de Bab-el-Mandeb.
8
Registro da Imprensa publicado no site do Ministério das Forças Armadas da França.
9
Arlit e Akokan, duas minas de urânio localizadas no Níger, oferecem 75% dos recursos energéticos que as 19
usinas nucleares francesas consomem em um ano. (MARQUES, 2017 apud CAÑAS, 2017.)
17
6. CONCLUSÃO
10
‘Le Gabon sans la France, c’est une voiture sans chauffeur, la France sans le Gabon, c’est une voiture sans
carburant’. Omar Bongo et la France. Jornal Libération. 1996.
18
poder existente e, de certa forma, perpetuada por essa relação de subordinação da África em
relação a França, de forma que a ex-metrópole europeia ainda desempenha um papel crucial
nas relações sociais, políticas, culturais e econômicas para suas ex-colônias. Outra forma de
análise se insere no contexto de teoria da dependência dentro da abordagem marxista das
Relações Internacionais. Nela, vemos que as assimetrias de poder existente entre os países
africanos e a França são extremamente discrepantes, e enquanto a França, já desenvolvida,
alcança cada vez mais sucesso em termos de poder econômico, os países em desenvolvimento
e subdesenvolvidos da África avançam em menor grau. Assim, cria-se um certo “ciclo” de
dependência entre os últimos em relação ao Estado francês.
Dito isto, em uma perspectiva analítica objetiva, apesar da cooperação, as relações
França-África possuem um certo grau acentuado de neocolonialismo, que se manifesta tanto
por dimensões militares, quanto políticas e econômicas. A falta de integração regional no
continente africano poderia ser uma das explicações para a presença demasiada da figura da
França como autoridade na África, tendo em vista que os países do Sahel possuem uma
cooperação ativa, porém fragmentada e consideravelmente ineficiente em termos de condução
de políticas de interesse compartilhado. Além disso, a França tenta se colocar como principal
tomadora de decisões no Sahel, compondo isso como parte de sua política no continente. O
país europeu, além de ter na África uma base de captação de recursos econômicos, também a
utiliza para ganhar reconhecimento internacional e prestígio diplomático, visto que lidera as
discussões na ONU sobre África e é exatamente no continente que se localizam suas
principais conquistas militares, fazendo com que a África represente uma das bases de
sustentação não só da política francesa, mas também da própria composição da reputação do
Estado francês.
A França vê na África, não somente uma fonte de vantagens políticas, diplomáticas e
econômicas, mas também como a grande oportunidade de se alavancar como potência
mundial.
19
REFERÊNCIAS
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<https://www.cartainternacional.abri.org.br/Carta/article/view/197/111> Acesso em: 16 out.
2019.
<https://information.tv5monde.com/afrique/video-emmanuel-macron-revendique-une-rupture
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onchi-Bortoli-Fran%C3%A7a.pdf> Acesso em: 30 out. 2019.
TAYLOR, Ian. France à fric: the CFA zone in Africa and neocolonialism, 2019.