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A causa que me moveu a tratar desta passagem das Escrituras, foi para que aqueles
que, pela inescrutável providência de Deus, caem em diversas tentações, não se
julguem, por causa disso, menos aceitáveis na presença de Deus; mas, pelo
contrário, tendo o caminho preparado para vitória através de Cristo Jesus, não
temam, acima da medida, as astutas investidas da ardilosa serpente, Satanás; mas,
com alegria e coragem, tendo tal Guia, tal Campeão e tais armas, como as
encontradas nesta passagem (se com obediência ouvirmos e crermos
verdadeiramente), possam assegurar-se do presente favor de Deus e da vitória
final, por meio de Cristo, que, para nossa segurança e livramento, entrou na
batalha e triunfou sobre seu adversário e sobre toda sua fúria, e também, para que
as subseqüências, sendo ouvidas e entendidas, possam ser melhor guardadas na
memória.
...
"Se és Filho de Deus manda que estas pedras se transformem em pães. Jesus,
porém, respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda
palavra que procede da boca de Deus" (Mt.4:3-4)
O propósito pelo qual o Espírito Santo conduziu Jesus ao deserto para que Jesus
fosse tentado, é nos fazer entender, através deste fato, que Satanás nunca cessa de
se opor aos filhos de Deus, mas continuamente, por um meio ou outro, os conduz e
os provoca a algum juízo pecaminoso sobre o Deus deles.
Desejar que pedras se transformem em pães ou que a fome seja satisfeita, nunca foi
pecado, nem tão pouco uma opinião pecaminosa sobre Deus, mas, creio que esta
tentação foi mais espiritual, mais sutil e mais perigosa. Satanás estava se referindo
a voz de Deus que disse ser Cristo Seu Filho Amado.
Contra esta declaração ele luta, como lhe e intrínseco fazer, contra a indubitável e
imutável palavra de Deus; pois sua malícia contra Deus e seus filhos escolhidos é
tal, que para quem Deus declara amor e misericórdia, a estes ele ameaça com
desprazeres e maldições; e onde Deus ameaça morte, lá ele é audacioso em
declarar vida. Por causa disto Satanás é chamado de mentiroso desde o princípio
(Jo. 8:44).
Assim sendo, o objetivo de Satanás é levar Cristo a desesperança, para que Ele não
creia na voz de Deus seu Pai; e este parece ser o significado desta tentação: "Tu
ouviste", Satanás diria, "uma voz dos céus dizer que Tu eras o amado Filho de
Deus, no qual Ele se compraz (Mt.3:17), mas não te julgarão louco ou um tolo sem
juízo, se creres em tal promessa? Onde estão os sinais deste amor? Tu não estás
sem o conforto de todas as criaturas? Tu estás pior do que as brutas feras, pois todo
dia elas caçam para se alimentar e a terra produz grama e ervas para seu sustento,
de forma que nenhuma delas definha ou é consumida pela fome. Mas tu jejuas há
quarenta dias e quarenta noites, esperando sempre algum alívio e conforto dos
céus, mas tua melhor provisão são pedras duras! Se Te glorias em teu Deus, e crês
verdadeiramente na promessa que foi feita, ordena que estas pedras se
transformem em pães. Mas, é evidente que Tu não o podes fazer, pois se pudesses,
ou se teu Deus tivesse Te concedido tal privilégio, há muito terias matado tua fome
e não necessitarias suportar este abatimento por falta de comida. Mas vendo que
ainda continuas assim e que nenhum mantimento foi preparado para Ti, é
presunção acreditar em tal promessa, e por isso, perca a esperança de qualquer
socorro das mãos de Deus e proveja para Ti, por qualquer outro meio!"
Eu usei muitas palavras, mas eu não posso expressar o grande despeito que se
esconde nesta tentação de Satanás. Foi uma zombaria de Cristo e de sua
obediência. Foi uma clara rejeição da promessa de Deus. Foi a voz triunfante dele
que aparentava ter conseguido a vitória. Oh! quão amargo este tipo de tentação é,
nenhuma criatura pode entender, a não ser os que sentem a dor de tais dardos
lançados por Satanás na consciência sensível dos que alegremente descansam e
repousam em Deus e nas suas promessas de misericórdia.
Aprenderemos, agora, com quais armas devemos lutar contra tais inimigos e
assaltos, na resposta de Jesus: "Não só de pão viverá o homem, mas de toda
palavra que procede da boca de Deus".
A resposta de Cristo prova aquilo que estivemos mencionando antes, pois a menos
que o propósito de Satanás tenha sido demover Cristo de toda esperança na
providência misericordiosa de Deus concernente a Ele, naquela sua necessidade,
Cristo não respondeu diretamente às palavras de Satanás: "ordene que estas pedras
se transformem em pães" (Mt.4:3). Mas Jesus Cristo, percebendo sua astúcia e
malícia sutis, respondeu diretamente ao significado delas, desconsiderando suas
palavras. Nesta resposta Satanás foi tão frustrado, que teve vergonha de replicar
além, sobre este assunto.
Nesta resposta de Cristo podemos discernir quais armas devem ser usadas contra
nosso adversário, o diabo, e como devemos refutar seus argumentos, que, com
astúcia e malícia, ele faz contra os eleitos de Deus. Cristo poderia ter repelido
Satanás com uma palavra ou pensamento, ordenando-o calar, como Aquele a
quem todo poder foi dado no céu e na terra. Mas foi agradável a sua misericórdia,
nos ensinar como usar a espada do Espírito Santo, que é a palavra de Deus, na
batalha contra nosso inimigo espiritual. O texto da Escritura mencionado por
Cristo, encontra-se no oitavo capítulo de Deuteronômio. Foi dito por Moisés, um
pouco antes de sua morte, para firmar o povo na misericordiosa providência de
Deus; pois no mesmo capítulo, e em outros depois deste, ele avalia a grande luta,
os diversos perigos e as necessidades extremas que eles tiveram que suportar no
deserto, no período de quarenta anos; e quão constante Deus tinha sido em mantê-
los e em cumprir sua promessa, conduzindo-os através de todos os perigos até a
terra prometida. E assim, este texto da Escritura responde, mais diretamente, às
tentações de Satanás, pois Satanás raciocina deste modo(como mencionei antes):
"Tu estás em pobreza e não tens provisão para sustentar tua vida. Isto prova que
Deus não considera e nem toma conta de Ti, como Ele faz com os seus filhos
escolhidos", Jesus Cristo responde: "Teu argumento é falso e vão, pois pobreza ou
necessidade não excluem a providência ou cuidado de Deus, os quais são
facilmente provados pelo exemplo do povo de Israel, que no deserto, muitas vezes,
necessitou de coisas necessárias ao sustento da vida e, por carecerem delas,
invejaram e murmuraram. Apesar disto, o Senhor nunca retirou deles seu cuidado
e providência, mas, em conformidade ao que uma vez falou, a saber, que eles eram
seu povo peculiar, e em conformidade a promessa feita a Abraão e àqueles que
saíram do Egito, Ele continuou sendo seu guia e condutor, até que os colocou na
tranqüila possessão da terra de Canaã, não obstante a grande debilidade e as
diversas transgressões do seu povo".
Assim, nós somos ensinados, por Jesus Cristo, a repulsar Satanás e seus assaltos
pela palavra de Deus e a aplicar os exemplos de sua misericórdia, mostrada a
outros antes de nós, para nossa alma nas horas de tentação e nos tempos de nossas
tribulações; pois aquilo que Deus faz a alguém em determinada época, cabe a
todos que confiam e dependem Dele e nas suas promessas. Por esta razão, por
mais que sejamos assaltados pelo nosso adversário Satanás, encontramos, na
Palavra de Deus, armadura e armas suficientes.
A principal astúcia de Satanás é atormentar aqueles que começaram a abandonar
seu domínio e a declarar inimizade contra a iniquidade, com diversos ataques,
tendo como objetivo colocar em suas consciências, divergências entre eles e Deus,
para que eles não descansem e repousem nas seguras promessas de Deus. E para
conseguir isto, ele usa e inventa vários argumentos. Algumas vezes ele chama à
lembrança deles, os pecados de sua juventude ou aqueles que cometeram no
tempo de cegueira. Freqüentemente ele objeta a ingratidão deles em relação a Deus
e suas presentes imperfeições. Através de doença, pobreza, tribulações nos seus
lares, ou pela perseguição, ele pode alegar que Deus está zangado e não liga para
eles. Ou pela cruz espiritual, que poucos sentem e menos ainda entendem sua
utilidade e proveito, ele poderia levar os filhos de Deus ao desespero e, através de
infinitos meios mais, ele anda ao redor como um leão que ruge, para minar e
destruir nossa fé.
Mas é impossível para ele prevalecer contra nós, a menos que nós, obstinadamente,
nos recusemos a usar a proteção e a arma que Deus tem oferecido.
Os eleitos de Deus não podem recusá-la, mas buscar pelo seu Defensor quando a
batalha estiver mais acirrada, pois os soluços, gemidos e lamentações de tal luta
(vencer o medo, as súplicas por persistência), são a busca incontestável e certa de
Cristo nosso campeão. Não recusamos a arma, embora algumas vezes, por
debilidade, não a usemos como devêssemos. É suficiente que seus corações
sinceramente clamem por forca maior, por persistência e pelo livramento final de
Cristo Jesus.
Aquilo que carecemos, Sua suficiência supre; pois é Ele que luta e triunfa por nós.