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https://lightnovelbrasil.com/the-beginning-after-the-end-capitulo-403/
“Deixa que eu faço! Quem diabos mistura água e gordura quente? Você já
cozinhou antes?” Ellie bateu na minha mão para afastá-la da panela.
Mergulhei os dedos no pires de água com o qual usei na panela e joguei várias
gotas em seu rosto enquanto ela lutava para virar a crosta da carne que
queimei.
“Olha quem fala: a garota que não come nada além de peixes, ratos e
cogumelos nos últimos meses.”
“Acho que eu usando ratos e cogumelos faço mais do que você com toda a
despensa real.”
“Ei, não é justo!” gritou, balançando os braços tentando me dar um soco inútil.
“Hã? O que você… ah.” Limpou com a parte de trás das mangas compridas e
deu uma risada. “Por que estou chorando? Acho que é só… acordar com uma
visão dessas… Faz um bom tempo.”
Puxei uma cadeira para ela, e ela se sentou com um sorriso agradecido. Estava
um pouco lenta, mas o olhar estava muito mais firme do que no dia anterior.
Regis recuou para que ficasse à frente dela, e ela começou a acariciá-lo atrás
das orelhas.
Ellie e eu disputamos e brigamos pelo fogão, porém no final deixei ela sair
vitoriosa, e pegamos alguns pratos de madeira e talheres para colocar à mesa.
Ela pôs carnes meio queimadas, ovos, cogumelos, verduras ao vapor, feijão
vermelho e um pedaço de algum tipo de enguia capturada de um lago
subterrâneo próximo que ela insistiu que era deliciosa, e juntos enchemos três
pratos.
Mamãe cortou uma ponta queimada da fatia de carne que lhe demos e
ofereceu a Regis, que tirou do garfo.
“Ele vai continuar pedindo coisas se mimá-lo, mãe” disse com a boca cheia.
“Ah, está tudo bem. Não acha que ele merece, com tudo o que fez para
ajudar?”
Os grandes olhos dele brilhavam ao olhar para ela como se tivesse acabado de
ganhar um prêmio.
“Enfim, como você está agora?” Espetei uma parte da enguia e perguntei,
mantendo o tom claro e a observando com cuidado.
Ellie zombou e abriu a boca, entretanto fez uma pausa quando a mãe a
encarou. Ela tirou um momento para terminar de mastigar e engolir antes de
continuar.
“Ele fez a gente pensar que morreu por meses, não foi? Deixe ele se
preocupar.”
O seu sorriso suave vacilou, e estendi a mão sobre a mesa para apertar a dela.
“Sim, mas vocês duas estão sempre no topo dessa enorme pilha que não para
de crescer.”
Seu olhar pousou no prato, contudo ainda via a umidade brilhando. Ellie a
observou calada, respeitando o momento.
Dei a maior parte da carne queimada para Regis, que mastigava alto, alheio a
tudo, exceto à comida quente na frente, embora pudesse sentir a emoção que
sentia ao compartilhar uma refeição em família conosco através da nossa
conexão.
O pensamento do que parecia ser de outra vida surgiu, porém sabia que não
era verdade. Vivi outra vida, e em Alacrya fingi ser alguém que não era,
revivendo um eu que morreu ao reencarnar em Dicathen. Precisava dele para
sobreviver lá, e por mais que quisesse apenas ser Arthur, viver como Grey de
novo me lembrou por que me tornei ele.
“… Thur?”
“Oh! Eu esqueci que disse a Saria Triscan que ajudaria a realocar os elfos
refugiados hoje. A maioria estava temporariamente alojada nos níveis
inferiores, que foram bastante danificados no ataque. Vamos começar a
transportá-los para lugares permanentes.”
“Boo!” disse Ellie, exasperada. “Não estou em perigo! E o que falei sobre não
entrar nos cômodos?!”
Ele soltou um grunhido que sacudiu os pratos, que foram pressionados ao seu
lado. Mamãe havia se espremido ao seu redor, que ocupava uma grande
porcentagem da cozinha, contudo parou para se apoiar no arco da porta e
olhar para todos nós, sorrindo.
“Vejo vocês dois no jantar à noite, ok? Eu vou cozinhar.” Seu sorriso vacilou
um pouco, e assumiu uma expressão de desculpas. “Algo gostoso desta vez.”
“Parece incrível” falei, a retribuindo com o sorriso mais caloroso que pude.
Ela devolveu, acenou e depois desapareceu atrás de Boo. Ouvi a porta da suíte
se abrir e fechar e depois me virei para Ellie, que arranhava o meio da testa da
grande besta de mana.
“Não via ela sorrir assim desde que o papai morreu.” Sem olhar para mim,
colocou o ombro no lado de Boo e o empurrou. “Vamos lá, seu grande idiota,
precisamos descobrir como espremê-lo pela porta da frente.” Ela parou e
lançou um olhar hesitante por cima do ombro para mim. “Você… quer vir com
a gente? Os refugiados… tiveram um tempo difícil. Ver você pode deixá-los
melhor.”
Dei um sorriso de desculpas antes de balançar a cabeça. “Eu iria, El, mas
tenho coisas para fazer.”
Quase acrescentei um “e que precisam ser resolvidas antes que eu saia mais
uma vez”.
Ela revirou os olhos, mas seu sorriso era de boa índole e compreensivo. “Sim,
sim, eu sei, tanta coisa para salvar o mundo para apenas um irmão mais velho.
Bem… até logo, então.”
Ela deslizou em volta de Boo, que se virou para me inspecionar pensativo com
o rosto franzido antes de grunhir e se virar para segui-la. Ele quase virou a
mesa, e precisou se espremer para caber na porta da cozinha e depois na da
frente na extensa série de túneis interligados do Instituto Earthborn.
O meu sorriso desapareceu. Olhei ansioso para a suíte, desejando poder ficar
mais tempo. O tempo com elas foi um alívio muito necessário, todavia o tempo
estava contra mim, e ainda tinha muito a fazer.
“Eu…” gaguejei, esfregando a mão no rosto antes de virar para ele com uma
careta. “É o quê?”
“Ainda não temos tempo para elas. Primeiro, temos que ter certeza de que
podemos deixar Vildorial sem que caia nas forças de Agrona.”
Um minuto ou dois após Ellie sair, passei pela porta. Em vez de ir à saída, fui
mais fundo no Instituto Earthborn. Como esperava, encontrei Gideon, Emily e a
sua equipe de magos anões já no trabalho.
“A última vez que te vi foi há dezesseis horas, das quais pelo menos quatro
passei dormindo. Nada mudou, Arthur.”
Emily, que estava curvada vendo o cajado de cristal com um par de varinhas,
apontou uma para mim, que fez um assobio estridente. Ela saltou, sorriu
timidamente e voltou a colocá-la no lugar.
Ele devagar pousou as notas que lia, pôs um dedo na orelha e procurou um
pouco, depois balançou a cabeça e me deu um sorriso doentio.
“Sinto muito, Arthur, mas juro que parece que você acabou de entrar no meu
laboratório e começou a me dar ordens sem contexto ou consideração por
projetos já em andamento, estes que fui informado por você mil e uma vezes
que são da mais alta prioridade.”
O olhando nos olhos, continuei: “Emily, preciso que localize as Lanças Mica,
Varay e Bairon e traga-os.”
Ela bateu tocou nas varinhas duas vezes e guardou com cuidado ao lado do
cajado.
Quando passou por ele, estendeu a mão e fechou a sua boca, que estava
pendurada enquanto continuava a me encarar. Ele olhou para as costas dela,
todavia a sua atenção logo voltou a mim.
Meus pés me levaram sem delongas para fora do Instituto Earthborn pelo
caminho tortuoso, passando pelos grupos reconstruindo as muitas estruturas
destruídas e por um dos túneis que se conectavam ao nível mais baixo da
cidade.
‘Tem certeza de que vai funcionar?’ Regis perguntou. Ele estava em silêncio se
alimentando da minha recusa em reconhecer o “nome de equipe” sugerido,
mas sua irritação enfim se instalou em uma espécie de acordo resignado de
apenas discordar.
Os túneis entre Vildorial e a região dos Três Lagos eram frios e demorados, o
que significa que fui deixado em paz para refletir sobre o que esperava
realizar.
Organizei o que pensava, tentando lembrar de tudo o que ouvi sobre os dois
conjuntos de artefatos asurianos: aqueles dados aos reis, e esses novos, que,
pelo visto, poderiam fazer um mago forte o suficiente para lutar contra até
Foices.
Minha mente foi ocupada até que o ar ficasse úmido e o cheiro dos lagos
subterrâneos enchesse os túneis. Salmoura, algas e o odor inebriante de
cogumelos gigantes combinavam para criar um perfume de outro mundo, como
se estivesse saindo do continente a um lugar mais antigo e selvagem. O som
distante de água caindo fazia o chão tremer um pouco.
O túnel estava coberto por uma parede de granito áspera, mas o portão estava
aberto. Dentro, vários edifícios se amontoaram em torno da borda do primeiro
dos três lagos que deram a este lugar seu nome. Um píer de pedra corria ao
longo da beirada, e alguns barcos quadrados plano flutuavam ali. O posto
avançado estava vazio hoje, como esperava. A maioria da população da cidade
está sendo mantida no meio em caso de outro ataque.
A caverna era enorme, ainda maior do que o santuário. Embora não fosse tão
alta quanto a cidade em si, se estendia sem parar, o primeiro lago enorme se
derramando em um segundo em uma série de amplas cachoeiras, que por sua
vez levavam água ao terceiro a quase um quilômetro e meio de distância.
Enquanto caminhava entre as construções vazias, observei tudo. Por mais que
o cheiro fosse algo que levaria algum tempo para se acostumar, havia um tipo
de beleza inspiradora no lugar.
Não demorou muito para que os passos alertassem da chegada dos outros e a
fantasia fosse quebrada.
Varay vinha logo atrás, tão estóica e ilegível como sempre. Seus cabelos
brancos curtos pareciam brilhar na luz difusa, lhe dando um ar místico. Seu
braço conjurado de gelo não se movia, porém, a mão de carne e osso carregava
certo nervosismo ao se mexer agressivamente, sobrepondo a sua presença
indomável.
Por fim, Bairon entrou uns metros atrás. Seu olhar seguiu os calcanhares das
companheiras, vendo nada fora o terreno irregular. Me perguntei o que
pensava; que cena invisível o fez franzir a testa tão forte.
Fiquei no cais, Regis sentado ao meu lado, e esperei que viessem até nós.
Varay falou primeiro. “Espero não tenha nos trazido até aqui somente para nos
levar para pescar” falou, se concentrando em um dos barcos flutuando depois
das minhas costas.
Dei uma risada silenciosa, arrancando olhares incertos das outras Lanças. “Eu
realmente aprendi a aprimorar meus reflexos e ajustar a percepção pegando
peixes com as mãos quando era só um menino em…” Me interrompi e deixei o
pensamento fugir. “De qualquer forma, não, acho que vocês já passaram desse
ponto no treino.”
“Estamos aqui para você nos treinar, então?” Mica perguntou, levantando uma
sobrancelha e cruzando os braços. “A Watsken não deu tantos detalhes quando
nos chamou.”
“Acha que ele vai atacar de novo?” Varay perguntou, os dedos batendo contra
a coxa, tipo um tique.
“Ele vai.” Comecei a andar de um lado para o outro na frente das três Lanças,
os olhares me seguindo com cautela. “A derrota das Assombrações e o ataque
subsequente em solo alacryano podem lhe dar uma pausa, mas não por muito
tempo.” Parei de andar de repente, contendo a agitação. “Sim, eu impedi
qualquer uma delas de retornar a ele com informações, o que também deu a
ele uma melhor compreensão do meu poder.”
Bairon bateu a ponta da lança no chão e ficou de pé, olhando para mim em
desafio e me lembrando de seu antigo eu. “Podemos, Arthur. E presumo que
saiba disso, caso contrário, não teria nos trazido aqui.”
“Espero que esteja certo, Bairon…” disse, suavizando o tom. “… Porque não sei
o que fazer se estiver errado. Como recuperaremos nossa terra, derrotaremos
Agrona e evitaremos mais ataques de Kezess Indrath.”
“Então não vamos perder mais tempo” respondeu, orgulhoso. “Vou lutar até
que meu núcleo se rompa e meus músculos cedam se isso oferecer uma chance
de superar as barreiras colocadas sobre nós. Apenas nos diga o que quer que
façamos, Arthur.”
Não muito tempo atrás, teria me maravilhado com a ideia de que o nobre
Bairon Wykes ficou tão disposto e aberto a me seguir. A guerra o transformou
em um verdadeiro líder de forma que nenhum de nós esperaria, ainda mais
depois de sua quase morte nas mãos de Cadell.
“Agora que estamos todos aqui, vamos começar.” Gesticulei para que me
seguissem.
Nós circulamos ao redor da borda do lago até que estivéssemos sob os largos
“chapéus” roxos, verdes e azuis dos cogumelos gigantes. Varay e eu, e em
menor grau, Regis, que insistia em arrastar uma única sacola de couro,
ajudamos Emily a carregar o equipamento, depois o colocamos em uma série
de pedras planas após ela fazer um escândalo porque queria limpar a sujeira e
o musgo.
Contei a eles sobre os djinns, como eles obtiveram insights sobre éter e mana
além dos dragões, e como Kezess os destruiu quando não pôde forçá-los a
ajudá-lo.
“Os asuras esperam… exigem controle acima de tudo. Os Vritras criam pessoas
que nem bestas de mana, e os Indrath brincam de deus de longe, cutucando e
mexendo em nossa sociedade na forma que desejam, e derrubam todos os
brinquedos se ficarem chateados. Ao darem a Dicathen os artefatos, Kezess
garantiu que certas linhagens seriam mantidas seguras e politicamente
poderosas enquanto declinavam no quesito de força mágica, o verdadeiro
poder deste mundo. Ele fez isso dando vocês a essas linhagens. Poderosos
protetores ligados por um juramento de sangue que os impedia de traí-los. E
ainda assim, para impedir que qualquer pessoa ou nação crescesse
magicamente, impediu que vocês se tornassem poderosos o suficiente para
serem uma ameaça aos clãs asura.”
“Já Agrona tinha uma corda mais bamba para andar. Ele precisava de soldados
que pudessem lutar contra os asuras, sejam os outros clãs ainda em Epheotus
ou o próprio povo, se pensassem em se virar contra ele. Mas tinha que ter
certeza de que nunca poderiam se fortalecer o suficiente para desafiá-lo, e se
tornou o juiz supremo de quem obtém magia em Alacrya. A verdade é que eles
não querem que façamos progressos, porque vêem isso como uma ameaça
existencial ao seu próprio domínio.”
Varay se ajustou no chão musgoso. “Você passou mais tempo com os asuras do
que qualquer um de nós, Arthur. Confiamos em seu julgamento sobre isso, mas
há a questão: o que faremos a respeito disso?”