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Introdução ao Método Teológico

Santo Agostinho
Este grande Doutor da Igreja constitui um monumento extraordinário do
pensamento cristão e sua obra marcou e marca, ainda hoje, a história da
Igreja e, de forma especial, da teologia ocidental. Já em sua época, nos
albores da Idade Média, ele detinha uma enorme autoridade teológica e sua
opinião bastava para encerrar qualquer disputa, qualquer questão.

15. Recapitulação. — Vimos na aula passada os dois erros mais impactantes com que teve de
se defrontar a Igreja ao longo dos quatro primeiros séculos: de uma parte, o gnosticismo,
mentalidade parasitária que buscou a todo custo infiltrar-se no cristianismo e adaptá-lo ao
ethos intelectual das elites pagãs; de outra, o arianismo, heresia cristológica que, ao minar
as bases mesmas da fé, quase destruiu a ortodoxia. Procuramos, tanto quanto possível,
conjugar esses dados históricos com o princípio estabelecido no final da primeira aula, a
saber: é preciso converter-se e renunciar às próprias pretensões para fazer teologia; a esta
conversão chamamos, servindo-nos das palavras do Cardeal Ratzinger, «mudança de
sujeito», para indicar o caráter eminentemente eclesial da atividade teológica, quer dizer, a
necessidade de integração, comunhão e fidelidade à Igreja.

A fim de ilustrar este princípio com mais vivas cores, dedicaremos esta terceira aula a uma
das colunas da teologia ocidental, Santo Agostinho de Hipona, o mais proeminente dos

Padres latinos, cuja influência e inabalável autoridade fizeram-se presentes às inteligências


por mais de um milênio.

16. Vida, perfil e conversão. — Santo Agostinho talvez tenha sido o primeiro a legar à
posteridade o que hoje conhecemos por autobiografia, uma exposição pouco mais ou menos
fidedigna do itinerário da própria história pessoal. Nas Confissões, obra em que se mesclam
relatos de viagens e especulações sobre a natureza do tempo e a cosmologia mosaica,
Agostinho quis deixar-nos não tanto uma descrição minuciosa de seus feitos quanto abrir-
nos as portas de sua alma e mostrar os percalços de sua vida interior em busca de Deus. Sua
frase agora proverbial «Fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in
te: Fizeste-nos para Vós, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousar em Vós» [2],
ele a põe inclusive já à testa do livro como que a nos indicar o mote que irá seguir ao longo
de suas Confissões.

Nascido em Tagaste, província romana situada na Numídia—porção norte da África que hoje
compreende a Argélia—no ano de 354 d.C., Agostinho foi desde cedo educado com zelo por
sua mãe, Mônica, mulher piedosa, mas iletrada, e que o tempo faria modelo de maternidade
cristã [3]; de seu pai, Patrício, pagão infiel e dono duma pequenina propriedade, não temos
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muitas informações. Tendo-se instruído em Tagaste nos rudimentos das artes chamadas
liberais [4], mudou-se ainda criança para Madaura, a alguns quilômetros ao sul de casa, e,
pouco depois, por falta de recursos, retornou para o burgo natal [5], entregando-se pelo
espaço de um ano aos perigos que o ócio traz consigo. Devia orçar à época por volta dos
quinze anos de idade. Em 370, auxiliado pelo amigo Romaniano, dirige-se à então capital da
África, Cartago, onde complementa sua formação retórica e literária [6]. As nutrizes [7] não
poderiam imaginar o que aquele pequenino, «brutal, indisciplinado e [...] pouco propenso à
paciência nos estudos» [8], representaria para as gerações futuras.

Apesar de seus dotes e de seu gênio penetrante, Agostinho sentiria por boa parte da
juventude o peso da escravidão do pecado; de fato, à medida que progrediam seus estudos e
ampliavam-se os seus horizontes, sua alma tornava-se mais e mais «fogosa e apaixonada
pela ânsia de liberdade e prazer.» [9] Somado a essa tendência à intemperança e aos
excessos, o orgulho intelectual de Agostinho foi o vetor determinante de seu
desenvolvimento intelectual e posterior aproximação do cristianismo. Com efeito, além da
insatisfação com as respostas maniqueístas ao problema do mal e um certo despeito pelo
que então conhecia da religião cristã por meio da piedade algo «simplória» da mãe, sua
dedicação em aprofundar-se no neoplatonismo plotiniano traduz decerto a inquietação
duma inteligência a cujos anseios nenhuma filosofia pagã poderia plenamente satisfazer. É
possível que essa mesma ansiedade pela busca da verdade que sacia seja, de certo modo, a
raiz psicológica do porquê «a sabedoria, objeto da filosofia, sempre é confundida, por ele,
com a beatitude.» [10]

O fato é que as crescentes ambições de seu coração não lhe permitiram permanecer por
muito mais tempo em Tagaste. «Deixar ali Agostinho seria condená-lo a uma vida de
comerciante rural ou, quando muito, de modesto funcionário.» [11] Sua ida para Roma em
383—feita às escondidas enquanto Mônica orava à noite numa capela [12]—a fim de lá fazer

carreira é prova de que a Providência divina sabe muita vez valer-se da cobiça dos homens
para reconduzi-los à via da salvação. Ora, apenas uma década antes Ambrósio fora eleito
bispo de Milão e sua eloquência já era notória. O jovem Agostinho, aliciado pela fama do
orador, acudirá por mera curiosidade aos sermões deste santo, cuja fortaleza e coragem
sabiam impor-se à obstinação e à força imperial de um Teodósio I. A harmonia daquelas
homilias ficará para sempre gravada em seu espírito [13].

Render-se-á enfim à graça senão após uma verdadeira guerra contra a cupidez, «omnium
scilicet malorum radix: a raiz de todos os males» [14], como lhe chamará anos depois,
preconceitos sectários e as más inclinações que cultivara durante a vida e nele formaram
uma como segunda natureza [15]. «Fruto sazonado das lágrimas de sua santa mãe» [16], a
conversão de Agostinho, batizado pelas mãos de Ambrósio na Páscoa de 387, juntamente
com o filho, Adeodato, e o amigo Alípio, mudará os rumos da teologia católica e da história
eclesiástica: a experiência que terá da graça divina durante seu processo de
amadurecimento na fé condicionará de forma decisiva sua visão sobre a inteligência e a
vontade humanas e influenciará maciçamente os teólogos posteriores.

Tronado bispo auxiliar de Valério, em Hipona, com apenas quarenta e um anos, Agostinho
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assistirá de perto ao paulatino crepúsculo do Império Romano do Ocidente; sua morte,
ocorrida em 430, quando os vândalos de Genserico assediaram Hipona [17], sinaliza a aurora
de uma nova era, cujas luzes porém ainda se não distinguem com clareza: a Idade Média.

17. O caminho da humildade. — De acordo com Étienne Gilson, a premissa fundamental do


pensamento agostiniano é a necessidade de a verdadeira filosofia, ou seja, a busca sincera
pela verdade, aderir à ordem sobrenatural [19]: a vontade, sob a moção da graça, consegue
desembaraçar-se da concupiscência da carne; a inteligência, iluminada pela luz da
Revelação, pode libertar-se do ceticismo. Essas duas pressuposições são o resultado da
experiência pessoal de Agostinho, que vira de perto a insuficiência dos vários sistemas
filosóficos para dar ao homem entregue às próprias forças aquela «certeza plena sem a qual
para ele não há nem repouso, nem felicidade.» [20]

A identificação acenada há pouco entre verdade e beatitude deve-se não só a um traço,


digamo-lo assim, biográfico da especulação de Agostinho, mas também à percepção de que,
se a verdade é o bem da inteligência humana [21] e sendo Deus a suma verdade e o sumo
bem, «quid beatius eo qui fruitur inconcussa et incommutabili et excellentissima veritate?
— Que é mais feliz do que aquele que goza da verdade inconcussa e incomutável e
excelentíssima?» [22] Ora, o caminho que leva à fruição desse bem que não passa [22],
Agostinho o resume insistentemente à humildade, fundamento da religião cristã: «Ea autem
est [a via que conduz à verdade] prima, humilitas; secunda, humilitas; tertia, humilitas: Ela é,
pois, primeiro humildade; depois, humildade; e por fim, humildade.» [23] Aquele presunçoso
Agostinho da mocidade que buscava, como que às apalpadelas, a verdade onde ela não se
encontrava, dobrará sua soberba e dirá, quase no fim da vida:

A esta sã humildade, que Nosso Senhor nos quis ensinar humilhando-se a Si


mesmo, opõe-se, por assim dizer, uma inutilíssima ciência, pela qual nos
orgulhamos de saber o que disseram Anaxímenes, Anaxágoras, Pitágoras,
Demócrito etc., a fim de parecermos homens doutos e eruditos; ora, isto está
muitíssimo longe da verdadeira ciência e erudição. [24]

A água dessa humildade brota somente de Cristo, fonte perene de todas as virtudes, e não se
pode haurir de livros epicuristas, maniqueus ou platônicos [25]. É n'Ele, por Ele e a Ele—essa
a tônica da obra agostiniana—que se devem ordenar nossos pensamentos, palavras e ações.
Cristo é a verdade que alumia a inteligência, é o bem imarcescível que farta e preenche a
alma, é a felicidade perfeita e imperecível: «A Ele, que está todo presente em todo lugar, não
é possível ir a pé, mas por meio duma vida reta. Boas e más ações, não as fazem senão bons
e maus amores.» [26] Como sintetiza Étienne Gilson,

Resumida de uma forma abstrata, pode-se dizer que a experiência de Agostinho


volta-se para uma descoberta da humildade, pois o erro da inteligência está ligado à
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corrupção do coração pelo orgulho e o homem só encontra a verdade beatificadora
ao curvar sua inteligência à fé e a sua vontade à graça pela humildade. [27]

Santo Agostinho sentiu na carne a força corruptora dos vermes do pecado e a fraqueza de
nossa natureza: reconhecemos, de um lado, a impotência da vontade, que, abandonada a si
mesma, é incapaz de libertar-se da sordidez duma existência pecaminosa; de outro, a
debilidade da razão, obscurecida pelo orgulho do pecado original. Aliás, é justamente a sua
doutrina da culpa primeva (ou o que a ele se costuma atribuir) que se mostrará mais
polêmica, a ponto de suscitar reações e reformulações entre teólogos medievais a respeito
do influxo do pecado de Adão e Eva na capacidade e limites da razão humana e seu
posterior relacionamento com a fé. Séculos mais tarde, a concepção agostiniana do lapso de
nossos primeiros pais será, inclusive, um dos mais importantes pontos de dissídio entre a
ortodoxia católica e os desvios teológicos seja de cismáticos, seja de protestantes.

À parte sua monumental obra, pode-se dizer que a grande herança do bispo de Hipona foi
sua profunda vivência da graça de Deus, que mostra ao filho pródigo a miséria em que se
pôs, excitando-o a retornar para a casa do Pai [28]. Esse legado demonstra-nos que vontade,
com os auxílios divinos, e inteligência, ancorada na fé, formam em harmonia uma sinfonia
feita para glorificar ao Criador.

Referências

1. Cf. J. Govea, Summa Proverbiorum Sancti Augustini Hypponensis Episcopi et


Ecclesiæ Doctoris Eximii Universa Disciplinarum Moralium Elementa Complectens.

Hispali, ex Typograhpia Mariani Caro, 1832, p. 121.

2. Conf. I, 1, com notas de K. von Raumer. 2.ª ed., Gütersloh: Bertelsmann, 1876, p. 1.

3. V. Ricardo da Costa, «Santa Mônica: A Criação do Ideal da Mãe Cristã», in: Grupos de
Trabalho III – Antiguidade Tardia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, pp. 21-35. Disponível em
(sítio): <www.ricardocosta.com/artigo/santa-monica-criacao-do-ideal-da-mae-
crista>. Acesso em: 14 abr. 2015.

4. Possídio Epíscopo, Sancti Augustini Vita, c. 1, editada por Herbert T. Weiskotten.


Princeton: Princeton University Press, 1919, p. 40.

5. Cf. H. Petiot [Daniel-Rops], «A Igreja dos Tempos Bárbaros», in: História da Igreja de
Cristo, vol. 2. Trad. port. de Emérico da Gama. São Paulo: Quadrante, 1991, p. 13.

6. Cf. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., Historia de la Iglesia Católica. 7.ª ed.,
Madri: BAC, 2009, vol. 1, p. 504.

7. Cf. Conf. I, 7, p. 6 da ed. de Raumer.

8 H Petiot [Daniel-Rops] op cit loc cit


8. H. Petiot [Daniel Rops], op. cit., loc. cit.

9. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., loc. cit.

10. Étienne Gilson, Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Trad. port. de Cristiane N. A.
Ayoub. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006, p. 17. Agostinho diz em De Trinit.
XIII, 20: «Beatos se esse velle, omens in corde suo vident, tantaque est in hac re
humanae naturae conspiratio, ut non fallatur homo qui hoc ex animo suo de animo
conjicit alieno: Todos veem em seu coração que querem ser felizes; ora, é tão ardente
esse desejo pela felicidade, que quem quer que o perceba em seu espírito pode, sem
perigo de enganar-se, supô-lo também no espírito de seu irmão» (trad. nossa).

11. H. Petiot [Daniel-Rops], op. cit., loc. cit.

12. Cf. Id., p. 16, nota 5.

13. Cf. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., p. 505.

14. Lib. de divers. quaest., 83; v. J. Govea, op. cit., p. 34.

15. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., loc. cit.

16. Id., ibid. (trad. nossa).

17. Cf. Id., ibid.

18. Encontra-se na p. 269 da ed. de Raumer.

19. Cf. Étienne Gilson, op. cit., p. 450.

20. Id., p. 449. Cf. De Civit. Dei, VIII, 9: «Quandoquidem nulla est homini causa
philosophandi, nisi ut beatus sit. Nulla igitur est causa philosophandi, nisi nis boni:
Com efeito, o homem não tem outra razão para losofar, senão a m de ser feliz; de
fato, não hã outro motivo para se losofar do que o m do Bem» (trad. nossa).

21. Solil. I, 12: «Optimum enim in animo sapientia. Summum bounum hominis sapere: A
sabedoria é o ótimo da alma; de fato, saber é o sumo bem do homem» (trad. nossa).

22. De lib. arb. II, 13; v. A. Martin, Sancti Aurelii Augutini Hipponensis Episcopi Philosophia.
Parisiis, 1876, p. 574.

23. Cf. De lib. arb. II, 13: «Nulla enim re fruitur anima cum libertate, nisi qua fruitur cum
securitate: De nada goza a alma com liberdade, senão do que goza com segurança»
(trad. nossa); v. A. Martin, op. cit., p. 576.

24. Epist. CXVIII, 3, 22.

25. Epist. CXVIII, 4, 24 (trad. nossa).

26. Cf. En. in Psalm. XXXI.


27. Epist. CLV, 4, 13 (trad. nossa.).

28. Étienne Gilson, op. cit., p. 433.

Bibliografia

COSTA, Ricardo da. Santa Mônica: A Criação do Ideal da Mãe Cristã, in: «Grupos de
Trabalho III – Antiguidade Tardia». Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, pp. 21-35. Disponível
em (sítio): <www.ricardocosta.com/artigo/santa-monica-criacao-do-ideal-da-mae-
crista>.

GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Trad. port. de Cristiane


N. A. Ayoub. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006.

GOVEA, José. Summa Proverbiorum Sancti Augustini Hypponensis Episcopi et


Ecclesiæ Doctoris Eximii Universa Disciplinarum Moralium Elementa Complectens.
Hispali, ex Typograhpia Mariani Caro, 1832.

LLORCA, B.; GARCÍA-VILLOSLADA, R.; LABOA, J. M. Historia de la Iglesia Católica. 7.ª


ed., Madri: BAC, 2009, vol. 1.

MARTIN, Andrea. Sancti Aurelii Augutini Hipponensis Episcopi Philosophia. Nova


editio a Julio Fabre rocognita atque in pluribus locis emendata. Parisiis, 1876.

PETIOT, H. [DANIEL-ROPS]. «A Igreja dos Tempos Bárbaros», in: História da Igreja de


Cristo. Trad. port. de Emérico da Gama. São Paulo: Quadrante, 1991, vol. 2

RAUMER, K. von. Sancti Augustini Confessionum Libri Terdecim. Auf Grundlage der
Oxforder Edtion. 2.ª ed., Gütersloh: Bertelsmann, 1876.

WEISKOTTEN, Herbert T. (ed.). Sancti Augustini Vita Scripta a Possidio Episcopo.


Princeton: Princeton University Press, 1919.

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