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CHIAPPINI, Ligia. Do Beco Ao Belo
CHIAPPINI, Ligia. Do Beco Ao Belo
DO BECO AO BELO:
dez teses sobre o regionalismo
na literatura
Ligia Chiappini
O estudioso da fia;ão regionalista e dos não é menos verdade que também tem,
rnanifeslOS e polêmiCls que a cercam tam nesses e em outros países, contestado es
bém se sente contagiar pela persistência sas mestnRS políticas e aproximado solida
do objelO, declkando seu tempo a um riamente o kitor da ddade do homem
tema fora de moda, pesquisando autores pobre do campo, auxilia.ndo-nos a vencer
fora de moda, representantes de uma es preconceitos, respeiL1r a diferença e aL1r
tética fora de moda. Mas, '." tamente por gar nossa sensibilidade ao descohrir a hu
isso, porque não se deixou enganar pelo manidade do outro de classe e de cultura.
aparente simplismo dessa tendência, hoje Na mesma linha, as teses levantam ain
volta �moda meio sem querer, só porque da um problema elementar tnRS crucial
pcrm.1nece intrig;ulo peL1s questões teóri para pensar a questão: em vez de explicar
cas, es!ét;cas e éticas que o regionalismo a obra regionalista bem realizada, negan
não deixou de levantal: ao longo de, pelo do sua relação com o regionalismo para
menos, um século e meio. afirmar imediatamente sua uni�rsalida
Mas remar contra a maré sempre traz de, seria predso enfrentar, pela análise
um certo mal-es tar. E só recentemente eu trabalhosa de cada caso, a' questão de
percebi que esse mal-estar tinha muito a como se dá a superação dos limites da
ver com uma divisão que o mesmo regio tendência, de dentro dela mesma, pela
nalismo provoca no pesquis.'ldor: entre o potencialização de suas possibilidades ar
des.1grado ante a maior parte das obras ústicas e éLicas, isto é, como se resolve em
dessa tendência, porque estreitas, esque· cada caso, o problema já enunciado clara
m.íticas, pitorescas, superficiais e conde mente por George Sand em seus prefá
nadas "ao beco que não sai do beco c se cios, e reenunciado, entre nós, com cJare
contenta com o beco·\ no dizer de Mário :za de mestre, por An tônio Cánrlido há
de Andrade,4 e a atração que exercem quase trinta anos: cri.1r urna linguagem
sobre ele principalmente aquelas que que suprisse com ycrossimilh ança a ass�
conseguem superar as diflCul<L,des pró metria radical entre o cscrilOr e o leilOr
pri.15 do projeto regionallsL1 e que, como citadino em relação ao personagem e ao
tal, ganbRm o estatuto de obras-primas terna ruraI e regional, humanizando o lei
tão ou mais significativas esteticamente tor em vez de alien.í·lo em reL1ção ao
do que qualquer romance ou conlO ur homem ruraI representado. Ou, nos ter
bano com pretens.'io cosmopolita. mos em que a esaitora francesa enunciou
Esse mal-estar, de certo modo, gerou esse problema em meados do século pas
esL1S teses, onde tento problem.1tizar juí sado, furer um narrador ou um persona
ros críticos estereotipados que generaJi gem f':llar romo se à sua direita tivessem
parte, reconheço, <L15 obras que o regio TanlO no ClSO de George Sand quanto
nalismo tem produzido. Pois não tU para no de Antônio Cándido, o que se enf.tino •
postular que tudo na tendência é tenden é a relação inextricá vcl entre o ideológico
cioso ou que tudo aí é caiporismo e con- e o estético. Ou seja, ambos evidenciam
POI!TO OEVISTA·OO 1[(0 AO BELO ISS
que o úniro modo de não distanciar pre· ferentes roblemas do homem pobre
�
conceiruosamente O leilOr do homem do brasileiro.
campo que essa ficção quer retralaC é São essas algumas das questões e m
estabelecer pela arte uma ponte amorosa jogo nas leses, que apareceram assim
que llie pennila S"ir dos seus guelOS como um esforço de sÚllese, lenlando
dtadinos, comunicando-se com e apren· deixar claro o que já licou menos obscuro
dendo sobre outros laIltos becos desle para mim, depois de tanlOS encontros,
mundo. desencoOl.ros e reencontros com escrito·
tes, obras e movimentos rcgio nalistlS.
Na verdade, a hislÓria do regionalismo
Elas são O marco, portanto, de um ponto
mostra que ele sempre surgiu e se desen
de chegada da pesqu isa, mas também um
volveu em conflilO com a mode rnização,
desalio e um ponlO de partida, pois o que
a indusrrialização e a urbanização. Ele é.
se impõe daqui para a frente é estudar
portanlO, um fenômeno moderno e, pa
pelo menos alguns casos exemplares, do
radoxalmente, urbano. No Brasil, não foi
presenle e do pa�sado, do Brasil e do
diferente. Já tive ocasião de moslJ"ar6 que
a primeira geração modemisla saudou a exterior, que possam concorrer concre·
laCnente à demonstração dessas teses ain
modernização endossando o ,gosto e os
da um laIlto hipotéticas enquanto não for
w10res cL'lC(ueles que IUCr.lYoUll com ela,
feito esse novo trabalho que continua a
sem alentar para as dores, desvalorcs e
exigir muito fôlego da crítica.
desgostoS dos que com ela perdiam. Dai
indusiveo entusiasmo um IanlO ingênuo
da primeira hora que fez Guilherme de
Almeida bzer do regionalismo o princi
pal alvo a atacar e m suas conferênc11S
Teses
pelo Brasil, como defcnsor da "cruzada
novol", por volla de 1925. Dai o ataque
violento do próprio Mário dcAndrade ao 1_ A obra literária regionalisL� lem sido
regionalismo corno "praga nacional", juí· definida como "qualqucr livro que, inten
20 que ele iria relativizar 'na maturidade. cio n.'lImente ou não, trad llza peo11jarida·
des IOCIis",8 definição que alguns tentam
Uma das conclusões quc se pode tirar explicitar enumerando tais peculiaridades
dessa hislÓria do regionalismo brasileiro ("costumes, crendices, superstições, mo
é que a transição dUicil nos reajustes dismo" e vinculando-as a urna área do
�
sucessivos da nossa economia aos avan· país: IoIregiona1ismo gaúcho", IoIregio naJis
ços do capitalismo mundial se trama de mo nordestino", "regionalismo paulista"...
modo específico e a literatura tcnde a Tomado assim, amplarnenle, pode-sefular
reconlaC o processo ora como decadên IanlO de um regionalismo rural quanlO de
da ora como ascensão, ora com pess imis um regionalismo urbano. No limite, toda
mo, ora com otimismo, dependcndo de obra literária seria regionalista, enquanlO,
que lado está: da modernmção Ou da com maiores ou menores mediações, de
ruina. Quando consegue superar o oti modo mais ou IUcnos explicito Ou mais ou
mismo autocentr;ldo das elites ganhado menos ma.scarado , expressa seu momen·
ras ou o simples re«eÍltimento das (ra 10 e lugar. HislOricam ente, porém, à len
ções perdedoras, expressando o modo dên<;ia a que se deno minou rogionalisla
como o pobre "paga o paIO" em um e . em·literatura vincula-se a obras que ex
outro caso, ela supe.ra laCnbém os limites pressarn regiões ru� e neL1S Situamsuas
estreilOS da ideologia, para virar forma de ações e personagens, procurando expres
conhecimenlO e vivência solitária dos di- sar suas particularidades lingüísticas.
156 ESTUDOS HISTÓRICOS· 199ini
place", nos Estados Unidos; já foi "super DO, =por.ineo e démodé. Da mesma
n o Brasil, onde em breve forma, um esaitor regionalista que escre
sed, "regionalismo cósmioo", o que é pre· va hoje como George Sand ou como Ver
visível d1do o grande pn:stígio do critiro ga. O defeito não esL1 em George 5.md
Davi Arrigucd Jr. que acaba de ulili>;í-b nem em Verga, nem na tendênci ..
..l rcgi�
também referindo-se a Guimarães Rosa nalisL1, m1S Da 1:1.IL1 de cullUra, de esforço
num brilhante ensaio sobre Grande ser e de "dcsconfiôrnctro" para superá·los,
1O
tão: IlCroCÚlS). superando as dillculd1des especificas d1
ficção n:gion;l1ista, que eles enfrenL1ram
cada um a seu modo, com os recursos de
6. É compreensível o esforço da critica
suas respectivas épocas.
para e:xcIuirda ICndência os grandes 3U1O
res, já que nela o número de obras litera
8. É imporL1nte distinguir o regiona
riamente menos expressivas L1.Ivez seja
lismo como movimento político, cultural
maior que em outras, porque proporc:jo..
e, mesmo, literário, das obras que decor
nal ao grau de dillculd1de que a especifi
rem deste direta ou indiretamente. Mui
cid1de d1 empres.1 do regionalismo lilerá
rio implica. O argumenlo d1 critica para L'lS vrzrs programa e obra mantêm uma
assim fIzer é que a qualid1de lilerária de reL1çãO lens.1, quando não se contradi
suas obras os elevaria do t<gional ao uni
zem a.bel1amente, exigindo uma análise
das distinL1S med',çõcs que reladonam
versal. Mas freqüentemenle ela esquece
a obra liter.íri.1 com a rcaJid1de natur.ll e
que é o seu espaço hislÓrico-geogr:lfiro,
soei.1.I. O regionalismo, lido como movi
en lr.lnbado e vivcnciado pela consciên cia
mento, penodo ou lendência fechada em
d1S personagens, que permite concretizar
o universal. O problema não nos parece si mesma num determinado período his
LÓrico em que surgiu ou alcançou maior
L1nto distinguir os tipos de region:l1ismo
prestigio, é empobrecedor: um Ismo en
mas distinguir, como em qualquer 1Cn
dência, as obras boas d1S m;ís, estetica
tre L'ln lOS.
mente filando. NesL1S, o efeito sobre os O regionalismo lido como Um.1 ten
leitores será acanhado como soado aca dência mutável onde se enquadram
nhados o espaço, os d rnrnas, os caracteres, aqueles escritores e obras que se esfor
a lingu.1gem, o pensamenlo e as idéi.1S. çam por fIzer [1.Iar o homem pobre d1S
NaqueL1S, r, ecess.m1ffiente, por menor áreas rurais, expressando uma região
que seja a regi.'io, por mais provinci.ma para além da geografia, é uma tendênci.1
que seja a vid1 Dela, haverá grand=, o que tem suas difJcuJdades específicas, a
espaço se aL1rg.1r.Í no mundo e o tempo maior das quais é tomar verossímil a fala
finito na elemid1de, porque o beco se do outro de classe e de cultura para um
transfigurará no belo e o belo se exprimirá público citadino e preconceituoso que,
no beco. somente por meio da arte, poderá enten
der o diferente como eminentemente
7_Só podemos suslenL1CqueumFaulk outro e, ao mesmo tempo, respeitá-lo
nceou urnGuimarácsUosa sáo regiooalis como um mesmo: "homem humano".
tLS, se entendermos que o regionalismo,
como IO<L1 lendência litcrfuia, não é esLi 9_ O defeito que muiL1S vezes a critica
tico. Evolui. É hislÓrico, enquanto alCaves aponta no esaitor regionalisL1, do pitoles·
sa e é atravessado pela hislória Um esai co, da cor local, do desaitivismo, foi a seu
lord,lileratura funListica que escreva hoje tempo uma dura ronquisL1. Da mesma
como Poe ou como os rom1ncisL'lS do forma, na pinlUra, só depois de pinL1C com
gótico cerL1ffiente será tido como epígo- peneição a figura, O piOlor pode aludir a
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ela por traços, cores e1uzes; só depois de diante de obras que se enqua dram na
descrever romo quem pinta uma paisa. tendência regionalista é, por isso, inda
gem, o escritor pode indicá-la pela alusão, gar da função que a regionalidade exeree
conseguida seja por imagens, seja pela nelas; e perguntar como a arte da palavra
sonorid:!de e ritmo, seja pelo modo de ser faz com que, através de um materi:d que
e de f.l'r das personagens. Em qualquer parece confiná-Ias ao beco a que se refe
dos casos, o grande escritor region.lista é rem, algumas alcancem a dimensão mais
aquele que sabe nomear; que sabeo nome geral da bele"" e, com ela, a possibilidade
exato das árvores, Dores, pássaros, rios e de fuJar a leitores de ou trOS becos de
monlanbas. Mas a regi30 descrita ou alu espaço e tempo, pennanecendo, cn·
dida não é apenas um lugar fisicamente quanto outras (mesmo muitaS que se
localizhel no mapa do país. O mundo querem imediatamente cosmopolitas,
narrado (Lia se 1000liza neces&viamcnlc urbanas e modernas) se perdem para
em uma detennin.,da regi:io geogmIka uma história permanente da leilura.
mente reconheáve� supondo muito maís
um compromisso entre referência geográ
Ika e geogmfia ficcional.
Tr.ua-se. portanto, de negar a visâo
ingênua da cópia ou reOexo fotográfICO Nota.
da região. Mas, ao mesmo tempo, de
reconhecer que. embora ficcional, o es 1. Especialmente em Regionalismo e m�
demlsmo: ° "caso" gaúcho (São P:!u1o, Atica,
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