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28/02/2020 Do puro devir – Para espíritos livres

Para espíritos livres

Do puro devir

16 de março de 201719 de abril de 2017 | ledacgr | Alice do outro lado do espelho, Carroll,
Deleuze, Devir, Paradoxo, Semântica (Filosofia)

DELEUZE, G., 1925-1995. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Fortes. 5. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2015. 342p.

Primeira série de paradoxos

Alice assim como Do outro lado do espelho tratam de uma categoria de coisas muito especiais: os
acontecimentos, os acontecimentos puros. Quando digo “Alice cresce”, quero dizer que ela se torna
maior do que era. Mas por isso mesmo ela se torna menor do que é agora. Sem dúvida, não é ao
mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ela se torna um e outro. Ela é
maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores
do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um
devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não
suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro. Pertence à
essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce sem ficar
menor e inversamente.O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido
determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo.

Platão convidava-nos a distinguir duas dimensões: 1º)a das coisas limitadas e medidas, das
qualidades fixas, quer sejam pertencentes ou temporárias, mas supondo sempre freadas assim como
repousos, estabelecimentos de presentes, designações de sujeitos: tal sujeito tem tal grandeza, tal
pequenez em tal momento; 2º) e, ainda, um puro devir sem medida, verdadeiro devir-louco que
não se detém nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se ao presente, fazendo
coincidir o futuro e o passado, o mais e o menos, o demasiado e o insuficiente na simultaneidade de
uma matéria indócil (“mais quente e mais frio vão sempre para a frente e nunca permanecem,
enquanto a quantidade definida é ponto de parada e não poderia avançar sem deixar de ser; “o
mais jovem torna-se mais velho do que o mais velho, e o mais velho, mais jovem do que o mais
jovem, mas finalizar este devir é o de que eles não são capazes, pois se o finalizassem não mais
viriam a ser, mas seriam…”)¹.

Reconhecemos esta dualidade platônica. Não é, em absoluto, a do inteligível e a do sensível, da


Idéia e da matéria, das Idéias e dos corpos. É uma dualidade mais profunda, mais secreta, oculta
nos próprios corpos sensíveis e materiais: dualidade subterrânea entre o que recebe a ação da Idéia
e o que subtrai a esta ação. Não é a distinção do Modelo e da cópia, mas a das cópias e dos
simulacros. O puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que se furta à ação
da Idéia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o modelo como a cópia. As coisas
medidas acham-se sob as Idéias; mas debaixo das próprias coisas não haveria ainda este elemento

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28/02/2020 Do puro devir – Para espíritos livres

louco que subsiste, que “sub-vem”, aquém da ordem imposta pelas Idéias e recebida pelas coisas?
Ocorre até mesmo a Platão perguntar se este puro devir não estaria numa relação muito particular
com a linguagem: tal nos parece um dos sentidos principais do Crátilo. Não seria talvez esta relação
essencial à linguagem, como em um “fluxo” de palavras, um discurso enlouquecido que não
cessaria de deslizar sobre aquilo a que remete sem jamais se deter? Ou então, não designando as
paradas e repousos que recolhem a ação das Idéias e os outros exprimindo os movimentos ou os
devires rebeldes?² Ou ainda, não seria duas dimensões distintas interiores à linguagem em geral,
uma sempre recoberta pela outra, mas continuando a “sub-vir” e a substituir sob a outra?

O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do
futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente,
do ativo e do passivo, da causa e do efeito. É a linguagem que fixa os limites (por exemplo, o
momento em que começa o demasiado), mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à
equivalência infinita de um devir ilimitado (“não segure um tição vermelho durante demasiado
tempo, ele o queimaria; não se corte demasiado profundamente, isso faria você sangrar”). Daí as
inversões que constituem as aventuras de Alice. Inversão do crescer e do diminuir; “em que sentido,
em que sentido?” pergunta Alice, pressentindo que é sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, de
tal forma que desta vez ela permanece igual, graças a um efeito de óptica. Inversão de véspera e
amanhã, o presente sendo sempre esquivado: “geléia na véspera e no dia seguinte, nunca hoje”.
Inversão do mais e do menos: cinco noites são cinco vezes mais quentes do que uma só, “mas
deveriam ser também cinco vezes mais frias pela mesma razão.” Do ativo e do passivo: “será que os
gatos comem os morcegos?” é o mesmo que “será que os morcegos comem os gatos?”. Da causa e
do efeito: ser punido antes de ter cometido a falta, gritar antes de se machucar, servir antes de
repartir.

Todas essas inversões, tais como aparecem na identidade pessoal de Alice, a perda do nome
próprio. A perda do nome próprio é a aventura que se repete através de todas as aventuras de
Alice. Pois o nome próprio ou singular é garantido pela permanência de um saber. Esse saber é
encarnado em nomes gerais que designam paradas e repousos, substantivos e adjetivos, com os
quais o próprio conserva uma relação constante. Assim, o eu pessoal tem necessidade de Deus e do
mundo em geral. Mas quando os substantivos e adjetivos começam a fundir, quando os nomes de
parada e repouso são arrastados pelos verbos de puro devir e deslizam na linguagem dos
acontecimentos, toda a identidade se perde para o eu, o mundo e Deus. É a provação do saber e da
declamação, em que as palavras vêm enviesadas, empurradas de viés pelos verbos, o que destitui
Alice de sua identidade. Como se os acontecimentos desfrutassem de uma irrealidade que se
comunica ao saber e às pessoas através da linguagem. Pois a incerteza pessoal não é uma dúvida
exterior ao que se passa, mas uma estrutura objetiva do próprio acontecimento, na medida em que
sempre vai nos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta dupla
direção. O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em
seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas.

______________________________

¹ Platão. Filebo, 24 d; Parmênides, 154-155.

² Platão. Crátilo. 437 e ss. Sobre tudo o que precede, cf. Apêndice I.

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