Arqueologia – Bacharelado 10299 - Sociedades Pré-Coloniais Americanas II – 2/2022 Prof. Dr. Alex da Silva Martire - alexmartire@furg.br Acadêmico: Luciano de Mello Silva / Matrícula: 151601
Resenha crítica do artigo “Arqueologia do povoamento inicial da América ou História Antiga da
América: quão antigo pode ser um ‘Novo Mundo’?” de Lucas de Melo Reis Bueno. Referência da obra: BUENO, Lucas. Arqueologia do povoamento inicial da América ou História Antiga da América: quão antigo pode ser um ‘Novo Mundo’? Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 14, n. 2, p. 477-495, maio-ago. 2019. DOI: http://dx.doi. org/10.1590/1981.81222019000200011. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, Lucas de Melo Reis Bueno, atuante nas áreas da Arqueologia brasileira tais como, tecnologia lítica, povoamento das Américas, Arqueologia do Brasil Central, Amazônia e região Sul do Brasil, formou-se como bacharel em História pela USP (Universidade de São Paulo) entre os anos de 1995 e 1999, obtendo o título de doutoramento em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e obtendo 5 títulos de pós-doutoramento em Arqueologia pelo Muséum National d'Histoire Naturelle (Paris, França) no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo e no Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais entre os anos de 2006 e 2018. Suas principais obras publicadas são os livros “Variabilidade Tecnológica nos sítios líticos da região do Lajeado, médio Tocantins.” (Bueno, 2007a), “Das Pedras aos Homens. Estudos de Tecnologia Lítica na Arqueologia Brasileira.” (Bueno, 2007b) e “Florianópolis Arqueológica.” (Bueno, 2021), possuindo ainda 32 artigos completos publicados em periódicos e outros 16 capítulos de livros publicados. O artigo “Arqueologia do povoamento inicial da América ou História Antiga da América: quão antigo pode ser um ‘Novo Mundo?” possui um resumo e está dividido em um texto introdutório seguido por três subtítulos: “Origens dos povos ameríndios: diferentes perspectivas de um discurso em construção”, “Arqueologia e história indígena na perspectiva da ‘história profunda’” e “Sobre teoria, método e geopolítica: quão antigo pode ser um novo mundo?” seguido por um subtítulo de “Conclusão”. Lucas Bueno propõe em seu artigo uma análise das narrativas geradas pelas teorias de povoamento das Américas de diversos autores, assimilando a lógica de História Profunda proposta por Gamble, em substituição ao termo Pré-História, incluindo especialmente, as diversas narrativas dos povos originários, que carregam a memória transmitida oralmente também sobre as teorias do povoamento das Américas. Apoiado nas definições teóricas de Michael Shanks e Ian Hodder que apontam o passado como um processo dinâmico e contínuo, sujeito a transformações e no aspecto dinâmico das transformações culturais (diversidades culturais não estáticas), Bueno aponta que as narrativas geradas a partir do conhecimento arqueológico cria e constrói diferentes comunidades, articulando diferentes sujeitos. Portanto, Bueno evoca o autor indígena Ailton Krenak, em contraste às narrativas geradas pelo conhecimento arqueológico, para lembrar que também para o conhecimento originário, as famílias grandes que já ocupavam o território carregam narrativas próprias sobre a construção do passado, que devem ser vistas pela Arqueologia como História Indígena, num processo de reconciliação com a História Ameríndia pré-invasão europeia, buscando desconstruir a visão eurocêntrica de que a terra foi descoberta e que não existia nenhuma História anterior a invasão. Assim, Bueno aponta a visão de Gamble que ressalta as características de infância, crueza, simplicidade, encantamento e superstição inerentes ao termo “Pré” utilizado como construção ideológica conivente aos interesses dos invasores. Para discutir o período pré-invasão e incluir as diferentes perspectivas nesse discurso em construção sobre a origem dos povos originários, utilizando o conceito de História Profunda, Bueno busca articular as narrativas criadas por diferentes referenciais teóricos, relativizando aos compromissos políticos de cada época, desde os primeiros invasores que chegaram às Américas, apontando que, durante os séculos XVI e XVII, ainda imersas em sentimentos de estranheza e fascínio e direcionadas pela imposição de dominação, as primeiras narrativas geradas na ótica dos invasores, buscavam aspectos da mitologia clássica para explicar a origem dos povos originários, buscando um ponto comum entre elas e as sociedades europeias, mas desconstruindo suas singularidades ao utilizar estes referenciais, apontando a existência de uma possível rota por terra ligando as longínquas terras do Norte às Américas. A partir da segunda metade do século XVIII, segundo Bueno, Humbolt propõe uma origem comum asiática aos povos originários das Américas, que haveriam proliferado e se modificado ao longo do tempo. Bueno aponta que a partir de meados do século XIX, as discussões sobre as origens dos povos originários criam uma ruptura entre passado e presente, e adquirem conotações identitárias para os Estados em construção, através de discursos oficiais respaldados pela participação de cientistas sociais das áreas de História, Filologia, Etnografia, Arqueologia e Antropologia, num processo de ruptura do passado originário, visto como exógeno, degenerado e perdido em tempos imemoriais, onde as sociedades estudadas por estes cientistas iluministas eram classificadas, ordenadas e descritas como apenas “ruinas de povos”, merecendo assim a denominação de Pré-História e, portanto, servindo aos interesses geopolíticos de âmbito global das nações europeias, cujo processo de expansão capitalista buscava inferiorizar os povos dominados para expropriação e geração de mão de obra. Em finais do século XIX, surgem as primeiras discussões sobre a existência de um ou mais centros de origem da humanidade, que perde força posteriormente com as publicações de Agassiz sobre as geleiras do Hemisfério Norte e os períodos de glaciação, dando lugar a partir do início do século XX, às teorias preferenciais de ocupação das Américas através de rotas via Estreito de Behring, com a abertura do “Corredor Livre de Gelo”, num caminho com direção definida de Norte a Sul em suas narrativas, como por exemplo as teorias “Clovis First” e “Overkill Hypothesis” apontando para a cronologia relativa de artefatos arqueológicos na presença de megafauna pleistocênica extinta e definindo de uma única vez o processo de povoamento de todo continente. Já criticado por Willey & Philips, o modelo “Clovis First”, surge no auge da Guerra Fria, numa clara concepção assimétrica entre Norte e Sul. Em meados da década de 1950, o modelo começa a ser questionado devido ao surgimento de outros sítios com datações mais antigas que “Clovis” e “Folsom”, indústrias líticas e dinâmicas de povoamento distintas, dando lugar a narrativas que contrapõe a ideia dos estadunidenses como fonte irradiadora de toda diversidade cultural latino-americana, demonstrando que outras narrativas surgem ao longo do século XX. Bueno busca, então, no conceito de História profunda e na inspiração dos escritos de Ailton Krenak sobre as narrativas da criação do mundo pelos povos originários, argumentos para discutir a desconstrução da visão impetrada pelo conceito de Pré-História, conceito este criado no contexto da formação dos Estados nacionais e dos processos colonizadores visando uma fragmentação da História de povos autóctones objetivando a criação de um novo marco para regiões há muito antes povoadas. Tal dissociação entre presente e passado tem sido cada vez mais fortemente questionada, como através do exemplo mencionado pelo autor do caso de repatriação daquele denominado como “O Ancestral” ou a partir das narrativas também dos povos originários norte americanos que apontam uma longa jornada para chegar ao seu território através de geleiras, em uma clara referência às teorias de povoamento ainda discutidas nos meios científicos. Para Bueno, em referência a outros autores, é necessário incluir na discussão sobre a origem dos povos originários, não só outras narrativas, mas também outras temporalidades, citando como exemplo a visão de jovens aborígenes que citam seus anciãos como referência para contestar a teoria científica de que os aborígenes chegaram na Austrália há 50.000 AP, argumentando que para seus ancestrais, eles sempre estiveram lá. Nesse sentido, Anne McGrath, conforme citado pelo autor, considera lidar com diferentes noções de tempo e espaço, “de uma forma que, o termo “pré” exclui da construção da história a possibilidade de incorporação de outras temporalidades distintas, narrativas alternativas e renegociação de poder por parte dos povos originários.” O autor aprofunda sua discussão sobre o povoamento das Américas, discutindo aspectos metodológicos e científicos controversos, como os métodos de datação e metodologias de campo, para discutir o espaço restrito que foi relegado às outras narrativas de povoamento das Américas. Além de apontar a maneira dominadora como foi utilizada a “voz da ciência” como instrumento de validação dos discursos de Estados, que transitaram de invasores/escravistas, para imperialistas e posteriormente neocolonialistas/neoescravistas, numa espiral ascendente do contexto de imposição capitalista eurocêntrico como sistema dominante sobre povos nativos de culturas próprias e modos de bem viver diversificados. Em termos metodológicos, como disputa pelo espaço de poder através do controle da narrativa vigente, segundo aponta o autor, a clara definição de contexto antrópico associado a material utilizado para datação é o ponto central da discussão. Assim, no início do século XX, foram definidos critérios para que sítios localizados em outros lugares que não fossem ou a Europa ou o EUA fossem validados, tais como: “1) apresentar artefatos ou restos osteológicos obviamente humanos; 2) apresentar associação estratigráfica direta com restos de animais extintos do Pleistoceno; 3) oferecer controle válido sobre a cronologia/estratigrafia inalterada”, que foram ainda complementados posteriormente adicionando “apresentação de um conjunto consistente de datas radiométricas estatisticamente precisas (com sigma menor do que 300), obtidas a partir de amostras individualmente e taxonomicamente identificadas de carvões claramente culturais, encontrados em associação estratigráfica primária com artefatos e cujos resultados tenham sido publicados em periódicos com revisão por pares.” Tais critérios rigorosos, justamente eliminavam da discussão, sítios importantes para o entendimento sobre a origem do povoamento das Américas, uma vez que estes são escassos, principalmente no que concerne a presença dos esqueletos humanos e frequentemente sujeitos a influência de fatores tafonômicos, e embora os demais critérios também sejam controversos e sujeitos a discussões metodológicas, Bueno referencia-se nas citações de autores como Borrero e Dillahay para afirmar que não se pode ser tão flexível que se inclua todos achados sem nenhum critério, mas também não se pode ser tão restrito que se exclua contextos relevantes. Exemplos como os sítios do Boqueirão da Pedra Furada no Brasil ou Monte Verde no Chile, cujas datações remetem a uma ocupação das Américas anterior a abertura do “Corredor Livre de Gelo” são ainda, até os dias de hoje questionados quanto a validade de suas datações, justamente por não atender a todos estes critérios. Além disso, Bueno aponta que estes critérios não se aplicam a estudos sobre demografia, dinâmicas de deslocamento e tecnologia ou mesmo estudos de dinâmicas de ocupações de locais pouco ou não habitados, uma vez que estes sítios teriam características de conter “vestígios arqueológicos extremamente fugazes, com poucos artefatos, predominância de uma tecnologia expeditiva, o que cria dificuldades de visualização e identificação, além de serem de difícil datação”. Na verdade, Bueno ressalta o fato de que os critérios da maneira como são propostos para sua utilização, serviriam apenas para estudos realizados em períodos recentes, Holocênicos e não Pleistocênicos como requer o período de povoamento das Américas, mas além disso, também para sítios onde as ocupações já estariam mais estabilizadas, envolveriam melhor conhecimento ambiental e repetição na dinâmica de ocupação de um mesmo local e não como seria esperado de populações pequenas e em deslocamento. Coincidentemente, ou não, no Brasil, o PRONAPA, Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas, implementado no contexto da Ditadura Militar por pesquisadores estadunidenses implementa uma metodologia de escavação em quadrículas insuficientemente profundas para alcançar o período Pleistocênico, sugerindo que o lugar de fala reservado aos povos cujos vestígios arqueológicos revelam uma ancestralidade pleistocênica e consequentemente uma discussão sobre as origens da humanidade, estão reservados apenas para europeus e estadunidenses. Assim, buscando finalizar seu argumento, Bueno aponta que as questões geopolíticas incorporadas às teses de povoamento das Américas tiveram reforço nas metodologias impostas por partes interessadas na manutenção de suas posições nas discussões arqueológicas e antropológicas mundiais, cujos interesses eram o de manter a ideia de que, este lugar que hoje convencionou-se denominar Américas, era um “Novo Mundo” e que portanto, não poderia ser mais antigo que o de seus invasores. O artigo de Lucas Bueno traz aspectos de substancial relevância para as discussões atuais realizadas nas disciplinas de Arqueologia e Antropologia, no que concerne as teorias de povoamento das Américas, onde as narrativas sobre a origem de Povos Originários devem ser inclusas por seus protagonistas, em uma perspectiva de História Profunda, considerando também os aspectos científicos em diálogo com os demais atores. Para Bueno, a desconstrução de conceitos como o de Pré-História é o ponto de partida para esta articulação pois, conforme deixa claro no retrato histórico de seu artigo, questões geopolíticas sempre estiveram presentes como elemento determinante em detrimento a própria história contada na existência de artefatos mais antigos que as próprias teorias vigentes. Claramente Bueno faz um chamado para a maturidade científica brasileira no sentido de se afirmar em suas posições teóricas frente aos questionamentos de países que historicamente sempre utilizaram a ciência como instrumento de dominação e imposição de seus próprios interesses. Referências Bibliográficas BUENO, L.; Reis, Lucas (Org.). Florianópolis Arqueológica. 1. ed. Florianópolis: EDUFSC, 2021. v. 01. 524p. BUENO, L.; Isnardis, A. (Org.). Das Pedras aos Homens. Estudos de Tecnologia Lítica na Arqueologia Brasileira. 1. ed. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007a. v. 1. 270p. BUENO, L. Variabilidade Tecnológica nos sítios líticos da região do Lajeado, médio Tocantins. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007b. v. 1. 215p.