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Sublimando Estocolmo
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INDICE
Resumo
Em 1954 a publicação de L’histoire de O causou polémica, interesse e sucesso de
vendas. Esta é uma obra em que o erotismo e o sadismo são racionalizados e
ficcionados in extremis, mascarando-se de amor. O nosso interesse neste texto incide
sobre a objectificação, ainda que literária, da personagem principal e sua aniquilação,
fazendo-nos reflectir sobre o conceito de amor que transforma a mulher em vítima de
opressão, e transmissora (in)consciente desta – um déja vu cultural que atravessa
milénios – mas que não ajuda a causa da igualdade de géneros, fazendo-nos
questionar se a misoginia que provoca um síndroma de Estocolmo global é na
realidade um fenómeno cultural entranhado no inconsciente colectivo das mulheres
que o perpetuam.
Abstract
In 1954 the publishing of L’Histoire d’O led to polemics, interest and sales success. This
is a book in which eroticism and sadism are rationalized and fictionalized in extremis,
masked as love. My interest towards this narrative focuses on the objectification,
though literary, of the main character and her annihilation, leading to my reflection on
the concept of love that turns the woman into victim of oppression, and (un)conscious
conveyer of the latter – a déjà vu that crosses millennia – but does not help the cause
of gender equality, and makes us wonder if the misogyny that causes a globalized
Stockholm Syndrome is in fact a deep rooted cultural phenomenon embedded in the
collective unconscious of the women who perpetuate it.
Introdução
No âmbito do mestrado em Literatura, Cultura e Diversidade, pareceu-nos pertinente
cruzar dados literários com dados culturais, o processo civilizacional que vetou a
autonomia das mulheres ao longo de séculos, e com a diversidade, construída e
imposta, do feminino que para muitos constitui, mesmo nos nossos dias, a questão das
desigualdades de género – vista assim sobretudo nas relações entre pares
heterossexuais. Um longo processo de cisão cultural que Eisler designa de
“Transformação Cultural” (Eisler,1998 : XVII) levou à sociedade bipartida que surge
com as questões de propriedade e avanço de tecnologias que propiciam conflitos: um
núcleo androcêntrico que desdenha o núcleo ginocêntrico:
“(...) Friedrich Engels foi um dos primeiros a ligar o surgir das hierarquias e
da estratificação social baseada na propriedade privada com a dominação
sobre as mulheres. Engels foi mais longe ainda, ligando a passagem da
matrilinearidade para a patrilinearidade com o desenvolvimento da
metalurgia do cobre e do bronze.” (Eisler, 1998:43)
Esta não é uma reflexão moralista nem moralizante: além de ser o resultado do
meu lento processo de consciencialização sobre o feminismo e a sua extrema
importância que culmina nesta fase da minha aprendizagem no âmbito dos Estudos de
Género do Mestrado em LCD, o que pretendo é questionar o imaginário de expressão
erótica e obtenção de prazer que destrói o parceiro sexual, nesta obra que faz parte da
literatura erótica e a que normalmente não prestei atenção, no decurso da minha vida,
considerando-a até secundária, a par, por exemplo da chamada literatura cor-de-rosa.
Esta unilateralidade a que me referi acima, patente na obra de Pauline Réage,
na obtenção do prazer masculino, que é, creio, uma forma de violência, não é
certamente uma marca de avanço nem cultural nem civilizacional, mas é um problema,
uma estigmatização da mulher que atravessa os séculos.
É por isso que considero importante ver com outros olhos a História de O.
Relembremos que Simone de Beauvoir havia escrito O Segundo Sexo em 1949, e que a
obra de Anne Desclos, sob pseudónimo, fora publicada cinco anos depois. Acrescente-
se que o direito a escolher ter filhos ou não também era já parte da sociedade francesa
– a contracepção deixara de ser uma utopia – e um pormenor deste tipo era sintoma
de liberdade e direito a fazer escolhas para as mulheres francófonas. Assim, no meio
de uma sociedade que paulatinamente se voltava de novo para a questão dos
problemas de género, e que se abria para a liberdade das mulheres, esta obra
contradizia, julgo, e ofendia todas as mulheres que reflectiam e lutavam por uma
sociedade justa.
Síntese da obra
A História de O, de Pauline Réage, escrita sob pseudónimo por Anne Desclos, cuja reall
autoria se manteve incógnita até algumas décadas mais tarde, sendo uma obra
considerada inovadora, escrita por uma mulher como estratégia de conquista do seu
amante na vida real, e tendo como mote o desafio lançado por este, que também
prefaciou e incentivou a primeira edição desta ficção, poderia ser vista, como de facto
o é, por pura banalização da violência, e não apenas como mais uma obra erótica. Do
nosso ponto de vista e considerando a sua génese – o mote para a sua escrita,
relembre-se, parte de um episódio em que o amante de Anne Desclos, jornalista e
ficcionista, afirma que nenhuma mulher seria capaz de redigir uma ficção erótica. Anne
Desclos dispõe-se a fazê-lo e é bem-sucedida – porque o amante, grande admirador da
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“E, no entanto, O exprime, à sua maneira, um ideal viril. Viril ou, pelo
menos, masculino. Finalmente uma mulher que confessa! Que confessa o
quê? Aquilo de que as mulheres sempre se defenderam (mas nunca tanto
como hoje). Aquilo que os homens de todos os tempos sempre lhes
censuraram: que não cessem de obedecer ao seu sangue; que nelas tudo é
sexo, até o espírito. Que será sempre necessário alimentá-las, lavá-las,
compô-las, bater-lhes. Que elas têm simplesmente necessidade de um bom
senhor, e que desdenhe da sua bondade: porque elas usam para se fazer
amar por outrem todo o ardor, toda a alegria, toda a naturalidade que
deriva da nossa ternura, logo que esta se declara Em resumo, que é preciso
levar um chicote quando as vamos ver.” (Réage,2015: 3)
“«Escuta», diz ele. «Agora estás pronta. Eu vou deixar-te. Vais descer e
bater à porta, seguindo quem a abrir e fazendo o que te disserem. Se não
entrares imediatamente virão buscar-te, e se não obedeceres, obrigam-te a
obedecer. A tua bolsa? Não, já não precisas da bolsa. Só és a rapariga que
eu forneço. Sim, sim, eu estarei lá. Vai.” (Réage, 2015:15)
implicarão punições e abusos sexuais, não só de hóspedes do castelo que ela não pode
olhar acima da cintura, aos quais não pode dirigir palavra, aos quais não se pode
recusar e dos quais não se poder lamentar pois além do chicote também irá ser
amordaçada, além de ter as mãos amarradas nas costas e de dormir acorrentada com
uma «coleira» ao pescoço. O chicote é-lhe apresentado pela utilidade que terá na
tortura juntamente com a mordaça que lhe abafará os gritos:
”[René] [a]o mesmo tempo disse-lhe que partia e que durante os últimos
sete dias que devia passar no castelo (...) ela não o veria. «Mas eu amo-te»,
acrescentou, «amo-te, não me esqueças». Oh! Como haveria de o
esquecer? Ele era a mão que lhe vendava os olhos, o chicote do criado,
Pierre, a corrente acima da cama, o desconhecido que a penetrava, e todas
as vozes que lhe davam ordens eram a sua voz. (...) À força de ser ultrajada,
parece que se habituara aos ultrajes, à força de ser acariciada, às carícias, e
ao chicote à força de ser chicoteada.” (Réage, 2015: 39)
Sir Stephen
Este capítulo descreve a casa de O no rio Sena na ilha Saint-Louis e sua relação com
René depois das sevícias no castelo. O diviniza o trauma e René evita o seu olhar,
embora os seus gestos e o seu discurso continuem inflamados de prepotência.
“E foi sentada diante do fogo, com a sua camisa branca, que ela escutou o
seu amante. Não deveria pensar que estaria livre a partir de agora, mas, por
outro lado, estaria livre para não mais o amar e deixá-lo quando quisesse.
Mas se o amava, não estava livre para nada. ...) De repente, disse que, para
o ouvir, ela deveria afastar os joelhos e descruzar os braços, porque estava
sentada com os joelhos juntos e os braços cruzados em torno dos joelhos.
(...) Ele insistia: ela não abria as pernas o suficiente. A palavra «abre» e a
expressão «abre as pernas» ganhavam, na boca do amante, tanta
perturbação e poder que ela nunca as ouvia sem uma espécie de
prosternação interior, de submissão sagrada, como se um deus, e não ele,
houvesse falado.” (Réage, 2015:45-46)
O ouve as ordens de René e acata a nova realidade de não poder usar nada que lhe
tolha a sexualidade. As roupas serão escolhidas por René. A sua vida é uma
continuação do que se passara no castelo. O anel que lhe foi imposto em Roissy é o
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Por René, depois da saída da casa de Anne-Marie, espartilhada para que a cintura se
adelgaçe, fica a saber que Jacqueline tem de ser encaminhada para Roissy e que Sir
Stephen a enviará para casa de Anne-Marie onde será novamente vítima de açoites
para reforçar sentido de «desejo», «amor» e «propriedade» destes e que tem apenas
cinco dias para convencer Jacqueline usando de uma mentira, dizendo que esta é
amada por René.
“O, que à ideia de ver este corpo frágil e esbelto trabalhado pelo chicote,
este ventre ainda estrito, trucidado, a boca pura a gritar, a penugem das
faces coladas pelas lágrimas, um mês atrás teria sido assaltada pelo terror,
repetiu para si mesma as últimas palavras de René e sentiu-se feliz com
isto.” (Réage, 2015:99)
Jacqueline acaba por não ser «caçada». René ausenta-se para outro país e Sir Stephen
requisita O para novas torturas em casa de Anne-Marie. Ali será novamente açoitada,
marcada e novas pulseiras lhe serão colocadas nos tornozelos e nos pulsos, sob o
comando de Anne-Marie em que O reconhece a crueldade de que as mulheres são
capazes, ao debater-se com a dor atroz que esta lhe inflige, amarrando O, expondo-a,
e forçando-a a manter as pernas abertas (Réage, 2015:103). Marcada e com anéis no
sexo, é de novo reencaminhada para a continuação do seu suplício, a pedido de Sir
Stephen e aprende também a infligir dor às companheiras que vivem em casa de Anne-
Marie e a obter prazer insano nesse acto. A marcação pelos ferros com que lhe
perfuraram o sexo para a prepararem para os anéis antecede mais uma tortura: é a
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preparação para ser marcada a ferros, além da introdução das argolas definitivas, com
o nome do seu senhor, cerimónia a que Sir Stephen assiste.
O capítulo prolonga-se por passeios que O, em aparente recuperação, faz com Sir
Stephen, e a ilusória felicidade vista pelos transeuntes da cidade é narrada, dando a
impressão que a violência teria acabado e que O estaria a salvo de abusos por parte de
terceiros. No entanto, é isso que acontece novamente numa das saídas com Sir
Stephen, obrigada a expor-se e a praticar sexo oral num lugar público, a ser levada
para um hotel e violada novamente, tendo sido apresentada inicialmente por Sir
Stephen aos supostos amigos como «puta» (Réage, 2015:112-113). Um destes declara
depois a Sir Stephen o seu amor por O e o seu desejo de resgatá-la. Sir Stephen irá
maltratá-la num quarto insonorizado e Eric, o pretendente, quando vem vê-la e
verifica o estado em que Stephen a deixou desiste das suas pretensões, mas semanas
mais tarde irá violá-la e maltratá-la.
A coruja
Neste capítulo, o derradeiro, O expõe-se orgulhosamente a Jacqueline e esta curiosa,
acompanhada pela irmã Natalie, bem mais jovem do que ela, um criança ainda, deixa-
se enredar pela curiosidade. O sente-se revoltada pela opinião de Jacqueline em
relação aos medalhões que lhe pendem do sexo e às marcas de suplício e propriedade.
Encenam-se umas férias, René entretanto já regressou a França, e é neste
aparentemente bucólico cenário que O cria mais uma vez intimidade com Jacqueline
para poder expô-la ao olhar invisível de Sir Stephen, que espreita os movimentos de
ambas. O inesperado acontece quando Natalie, ainda menor, presencia a intimidade
que há entre a irmã e O, o que para mim significa que esta jovem acaba por ser
corrompida prematuramente pela violência a que assiste, pois na sequência da sua
confissão – de que observara a irmã e queria estar perto de O – acaba a acompanhar e
observar a perda total de poder de O e os sadismos a que esta é submetida. O capítulo,
de acordo com o título, conclui-se de três maneiras, com O acorrentada pelo sexo,
despida e usando uma máscara em forma de coruja, numa festa de um certo
Comandante, amigo de Sir Stephen, humilhada publicamente, causando horror e
repulsa a quem a vê. A primeira versão é de que após a repulsa O é desacorrentada e
violada por Sir Stephen e pelo Comandante. A segunda é a de que O regressa a Roissy
e é ali abandonada por Sir Stephen, e a terceira é a da morte de O, para se poder
libertar, perante a indiferença de Sir Stephen.
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Este capítulo fecha assim esta narrativa que se iniciara com versões que levariam O a
efectuar o mesmo percurso a que assistimos.
A morte da mulher
Ler este livro é fazer um luto prolongado por todas as mulheres que povoam a
Terra. Para poder enquadrar devidamente esta reflexão em que a morte da identidade
e a morte física andam a par e passo, ilustramos uma parcela desta com uma anedota
acerca da mulher da época vitoriana em que alguém pergunta: sabes como é que um
homem da época vitoriana sabia que a mulher tinha morrido? E a resposta era a
seguinte: quando ela começava a cheirar mal.
É claro que a época vitoriana foi marcada por uma profunda hipocrisia que não
difere muito dos dias de hoje nem de outros períodos da nossa história civilizacional,
embora o «menu» fosse mais directo. Falei aleatoriamente da época vitoriana, mas
poderia também ter referido a época salazarista e o Ballet Rouge, por exemplo, e
também aleatoriamente poderia ter referido a visita de João Paulo II à Madeira e o
encerramento «temporário» de um «bordel» que ficava mesmo ao lado da estrada
que o Papa iria percorrer. Porque ainda hoje, depois de sonhos concretizados
legalmente – o sonho de igualdade de direitos e deveres a todos os níveis de Olympe
de Gouges (2010) – a luta constante continua. As ambiguidades de comportamento
também. E já há quem queira derrotar novamente este ideal concretizável de parceria,
através de textos como o de Bérénice Levet (2021), que incluo na bibliografia, restando
sempre esta perplexidade que nos segue: porquê? E que não se explica só por
reflectirmos. Depois de conflitos em que as mulheres provaram o seu valor, depois de
avanços científicos que nos deram, depois de tanto progresso no pensamento, é
necessário relembrar Engels, citado por Eisler, autora que tentou justificar e explicar
esta luta milenar que leva, segundo Engels à «derrota histórica mundial do sexo
feminino.»” (Eisler,1998: 43-44)
Convém também relembrar o pensamento de Simone de Beauvoir que agora
leio com outra consciência: “A humanidade é masculina e o homem define a mulher
não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autónomo.”
(Beauvoir, 2015: 15”. É isso que viremos a verificar nesta obra – até que ponto a
mulher-personagem ao passar a ser considerada ser diverso acaba por se transformar
nesse ser que dentro de si mesmo não existe nem aufere de direitos, acabando por
decidir que não tem direito a nada e criando uma visão distorcida do prazer e do amor
e do seu valor como ser vivo e humano.
“Ela não é senão o que o homem decide que seja; assim é chamada «o
sexo» para significar que ela se apresenta diante do mundo como um ser
sexuado: para ele, a fêmea é sexo, logo ela é-o absolutamente. A mulher
diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é
o não-essencial perante o essencial. O homem é o ser, o Absoluto; ela é o
Outro.” (Beauvoir, 2015:15-16”
“Como se entende então que entre os sexos essa reciprocidade não tenha
sido colocada, que um dos termos se tenha imposto como único essencial,
negando toda a relatividade em relação ao seu correlativo, definindo este
como alteridade pura? Porque não contestam as mulheres a soberania do
macho? Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como não-
essencial; não é o Outro que, definindo-se como Outro, define o Um; ele é
posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro
não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista
alheio. De onde vem essa submissão na mulher?” (Beauvoir, 2015:18)
a violência a que jovens são submetidas antes de serem colocadas na rua como
prostitutas), cruzando o seu desejo de entrega com a vontade de posse de um amante
que representa toda a cultura de aniquilação do feminino que subjaz ao
androcentrismo.
Esta obra não ajuda a causa dos movimentos feministas nem a causa da igualdade de
géneros pelo erotismo destruidor, que não é erotismo, mas sadismo, em que o prazer
é unilateral e pertence ao homem que assiste indiferente ao sofrimento e progressiva
morte psíquica de O que vê nela o único modo de se libertar dos grilhões que a
aprisionam e a dada altura chega a falar do seu como algo exterior a si mesma.
Acrescente-se também que qualquer obra é interpretável para além da intenção que a
criou e embora haja rejeição por parte da autora do pendor vitimista e auto-
vitimizante da sua ficção, e embora o nome da personagem principal, «O», não tenha
sido deliberadamente escolhido pela forma vaginal ou ovular, a nossa opinião é a de
que se deve também interpretar este aspecto desta ficção, do ponto de vista simbólico
e cultural. Assistir imageticamente a uma obra como a história de O leva-nos a
questionar a sua génese e aprofundá-la e a colocar ulteriores questões:
Esta não é decididamente uma história de amor, embora tenha sido escrita por amor
(?!), e muito menos uma história de prazer recíproco: é uma história de destruição
decidida pela acumulação de aviltamentos por parte do objecto de amor da
protagonista cuja prova de desdém pelo feminino é a aceitação indiferente da sua
morte psicológica e perda de objectivos. Para além destas inimizades eróticas do
patriarcado creio que enquanto as mulheres forem inimigas umas das outras manter-
se-á a perpetuação da misoginia, e enquanto as mulheres escreverem histórias de
sofrimento deliberado, e não relatos de denúncia da violência, continuarão a
«subsidiar» a cultura machista. E esta história, à distância de mais de 50 anos, é um
relato de violência, encerrado na lógica falogocentrista (Macedo, 2002), em que o
destino da mulher, se não for objecto, é a morte, e em que ser-se objecto é também
uma forma de não-vida.
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BIBLIOGRAFIA