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Professora Dr.ª Martina Emonts


Aluna: Laura Alba Moniz Gouveia N.º 2017120

L’histoire de O de Pauline Réage


ou

Sublimando Estocolmo
2

INDICE

L’histoire de O de Pauline Réage ou Sublimando Estocolmo ........................................................ 1


INDICE........................................................................................................................................ 2
Resumo...................................................................................................................................... 3
Palavras-chave....................................................................................................................... 3
Abstract ..................................................................................................................................... 3
Key-words.............................................................................................................................. 3
Introdução ................................................................................................................................. 4
Os direitos das mulheres em França ......................................................................................... 5
Síntese da obra .......................................................................................................................... 5
Prefácio ................................................................................................................................. 6
Os amantes de Roissy ............................................................................................................ 7
Sir Stephen ............................................................................................................................ 8
Anne-Marie e os anéis........................................................................................................... 9
A coruja ............................................................................................................................... 11
A morte da mulher .................................................................................................................. 12
Conclusão – a procriação cultural através das mulheres ....................................................... 14
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 16
3

Resumo
Em 1954 a publicação de L’histoire de O causou polémica, interesse e sucesso de
vendas. Esta é uma obra em que o erotismo e o sadismo são racionalizados e
ficcionados in extremis, mascarando-se de amor. O nosso interesse neste texto incide
sobre a objectificação, ainda que literária, da personagem principal e sua aniquilação,
fazendo-nos reflectir sobre o conceito de amor que transforma a mulher em vítima de
opressão, e transmissora (in)consciente desta – um déja vu cultural que atravessa
milénios – mas que não ajuda a causa da igualdade de géneros, fazendo-nos
questionar se a misoginia que provoca um síndroma de Estocolmo global é na
realidade um fenómeno cultural entranhado no inconsciente colectivo das mulheres
que o perpetuam.

Palavras-chave: sado-masoquismo, patriarcado, heterossexualidade, síndrome de


Estocolmo, misoginia, Pauline Réage

Abstract
In 1954 the publishing of L’Histoire d’O led to polemics, interest and sales success. This
is a book in which eroticism and sadism are rationalized and fictionalized in extremis,
masked as love. My interest towards this narrative focuses on the objectification,
though literary, of the main character and her annihilation, leading to my reflection on
the concept of love that turns the woman into victim of oppression, and (un)conscious
conveyer of the latter – a déjà vu that crosses millennia – but does not help the cause
of gender equality, and makes us wonder if the misogyny that causes a globalized
Stockholm Syndrome is in fact a deep rooted cultural phenomenon embedded in the
collective unconscious of the women who perpetuate it.

Key-words: Sadomasochism, patriarchy, heterosexuality, Stockholm syndrome,


misogyny, Pauline Réage
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Introdução
No âmbito do mestrado em Literatura, Cultura e Diversidade, pareceu-nos pertinente
cruzar dados literários com dados culturais, o processo civilizacional que vetou a
autonomia das mulheres ao longo de séculos, e com a diversidade, construída e
imposta, do feminino que para muitos constitui, mesmo nos nossos dias, a questão das
desigualdades de género – vista assim sobretudo nas relações entre pares
heterossexuais. Um longo processo de cisão cultural que Eisler designa de
“Transformação Cultural” (Eisler,1998 : XVII) levou à sociedade bipartida que surge
com as questões de propriedade e avanço de tecnologias que propiciam conflitos: um
núcleo androcêntrico que desdenha o núcleo ginocêntrico:

“(...) Friedrich Engels foi um dos primeiros a ligar o surgir das hierarquias e
da estratificação social baseada na propriedade privada com a dominação
sobre as mulheres. Engels foi mais longe ainda, ligando a passagem da
matrilinearidade para a patrilinearidade com o desenvolvimento da
metalurgia do cobre e do bronze.” (Eisler, 1998:43)

Esta não é uma reflexão moralista nem moralizante: além de ser o resultado do
meu lento processo de consciencialização sobre o feminismo e a sua extrema
importância que culmina nesta fase da minha aprendizagem no âmbito dos Estudos de
Género do Mestrado em LCD, o que pretendo é questionar o imaginário de expressão
erótica e obtenção de prazer que destrói o parceiro sexual, nesta obra que faz parte da
literatura erótica e a que normalmente não prestei atenção, no decurso da minha vida,
considerando-a até secundária, a par, por exemplo da chamada literatura cor-de-rosa.
Esta unilateralidade a que me referi acima, patente na obra de Pauline Réage,
na obtenção do prazer masculino, que é, creio, uma forma de violência, não é
certamente uma marca de avanço nem cultural nem civilizacional, mas é um problema,
uma estigmatização da mulher que atravessa os séculos.

“Poucas dúvidas parecem porém restar de que, desde os primórdios, a


guerra constituiu um instrumento essencial para a substituição do modelo
de parceria pelo modelo dominador. E a guerra e outras formas de
violência social continuaram a desempenhar um papel essencial no desvio
da nossa evolução cultural de uma orientação equalitária para outra
dominadora.” (Eisler, 1998:44-45)

Indagar as razões desta perspectiva de suposta fantasia erótica, escrita no rescaldo da


segunda grande guerra, relatada em A História de O, em que a mulher se apaga e se
anula para demonstrar o seu amor, remete-nos para a reflexão de Patricia Duncker:

“Nós somos o único grupo oprimido que é obrigado a amar os seus


opressores. Nós somos o único grupo a que se exige que convide e aprecie
a agressão. A única ligação aparentemente natural entre o prazer e a dor,
que é a marca do amor romântico, é também a base para a construção
sadomasoquista da heterossexualidade, os significados sádicos da
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masculinidade, e os significados masoquistas da feminilidade.” (Duncker,


2013:563-564)

Os direitos das mulheres em França


A história de França está pejada de exemplos que nos dão conta de um processo
consciente de tentativa de afirmação das mulheres (Riot-Sarcey: 2015). Centro do
iluminismo, da insurgência contra as desigualdades de poder, ainda antes das
sufragistas do século XIX que se manifestaram em vários países – um exemplo lusitano
é a escrita e activismo de Ana de Castro Osório em Portugal – em França encontramos
exemplos de reflexões que decorrem paralelamente à Revolução francesa, e outras
anteriores ainda à indagação e reivindicação de autoras como Olympe de Gouges, ou
outras posteriores à revolução iluminista e que surgem como nova vaga de feminismo
com destaque neste contexto para Simone de Beauvoir.
Observando um processo de avanços e recuos, de consciencialização da mulher
e do seu papel na sociedade francesa, além da progressiva aquisição de direitos legais
e constitucionais (Riot-Sarcey: 2015), leva-nos a ler com outros olhos, sob outra
perspectiva, com alguma perplexidade e desencanto, a obra de Pauline Réage, Histoire
d’O, publicada em 1954.

“Comecei a escutar os silêncios e aprendi que silêncio não é ausência, nem


sequer é necessariamente aquiescência cúmplice. O silêncio não é
consentimento. E aprendi que a educação tinha tanto que ver com o
ocultar das informações quanto com a sua divulgação; aprendi que a
leitura é um processo profundamente político.” (Duncker, 2013: 28-29).

É por isso que considero importante ver com outros olhos a História de O.
Relembremos que Simone de Beauvoir havia escrito O Segundo Sexo em 1949, e que a
obra de Anne Desclos, sob pseudónimo, fora publicada cinco anos depois. Acrescente-
se que o direito a escolher ter filhos ou não também era já parte da sociedade francesa
– a contracepção deixara de ser uma utopia – e um pormenor deste tipo era sintoma
de liberdade e direito a fazer escolhas para as mulheres francófonas. Assim, no meio
de uma sociedade que paulatinamente se voltava de novo para a questão dos
problemas de género, e que se abria para a liberdade das mulheres, esta obra
contradizia, julgo, e ofendia todas as mulheres que reflectiam e lutavam por uma
sociedade justa.

Síntese da obra
A História de O, de Pauline Réage, escrita sob pseudónimo por Anne Desclos, cuja reall
autoria se manteve incógnita até algumas décadas mais tarde, sendo uma obra
considerada inovadora, escrita por uma mulher como estratégia de conquista do seu
amante na vida real, e tendo como mote o desafio lançado por este, que também
prefaciou e incentivou a primeira edição desta ficção, poderia ser vista, como de facto
o é, por pura banalização da violência, e não apenas como mais uma obra erótica. Do
nosso ponto de vista e considerando a sua génese – o mote para a sua escrita,
relembre-se, parte de um episódio em que o amante de Anne Desclos, jornalista e
ficcionista, afirma que nenhuma mulher seria capaz de redigir uma ficção erótica. Anne
Desclos dispõe-se a fazê-lo e é bem-sucedida – porque o amante, grande admirador da
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escrita do Marquês de Sade, está na base desta construção narrativa. Quem já


conseguiu ler as obras do famoso Marquês saberá a que me refiro.
Prefácio
O prefácio que Jean Paulhan redigiu começa por referir uma situação de
escravos que uma vez libertados em Barbados se teriam insurgido contra a recém-
adquirida liberdade e queriam regressar ao estatuto anterior – que era a realidade que
sempre haviam conhecido é uma metáfora para todo o discurso que se lhe segue.

“No decurso de 1838, uma singular revolta ensanguentou a tranquila ilha


de Barbados. Cerca de duzentos negros, homens e mulheres, todos
recentemente libertados pelas Ordenanças de março, dirigiram-se numa
manhã ao seu antigo senhor, um tal Glenelg, pedindo-lhe que os
readmitisse como escravos. (...) Mas Glenelg, fosse por timidez, escrúpulos,
ou por simples receio da lei, não se deixou convencer. Por isso foi (...)
massacrado com a família pelos negros, que regressaram, essa mesma
noite, às suas choças, às suas lengalengas e às suas ocupações e ritos
usuais.” (Réage, 2002:3)

É uma história que é contada para ilustrar o fato de que a dependência é de


algum modo positiva, sob o ponto de vista do redactor, mas que nos dá conta
também, da sua capacidade de manipulação e da racionalização da dependência e da
opressão. “Nesta altura algum idiota vai falar de masoquismo. É-me indiferente, não
será mais do que acrescentar ao verdadeiro mistério um falso mistério de linguagem.”
(Réage, 2002: 8). Como me considero idiota, não tenho problema nenhum em
expressar a minha opinião. Além disso, Paulhan fala inicialmente, embora
indirectamente, da corrente de feminismo que se vinha a apertar em volta do seu
machismo, revelando o seu conhecimento dos avanços das mulheres e do seu direito
de liberdade, mas distorcendo o seu verdadeiro significado:

“E, no entanto, O exprime, à sua maneira, um ideal viril. Viril ou, pelo
menos, masculino. Finalmente uma mulher que confessa! Que confessa o
quê? Aquilo de que as mulheres sempre se defenderam (mas nunca tanto
como hoje). Aquilo que os homens de todos os tempos sempre lhes
censuraram: que não cessem de obedecer ao seu sangue; que nelas tudo é
sexo, até o espírito. Que será sempre necessário alimentá-las, lavá-las,
compô-las, bater-lhes. Que elas têm simplesmente necessidade de um bom
senhor, e que desdenhe da sua bondade: porque elas usam para se fazer
amar por outrem todo o ardor, toda a alegria, toda a naturalidade que
deriva da nossa ternura, logo que esta se declara Em resumo, que é preciso
levar um chicote quando as vamos ver.” (Réage,2015: 3)

Este prefácio, escrito na nossa opinião por um narcisista manipulador, sintetiza a


vontade de culpabilizar as mulheres, de perpetuar a virgindade, de negar às mulheres
tudo, incluindo a liberdade de escolha e o prazer, mas apreciar o facto de elas se
deixarem destruir.
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“E que mulher, se por um momento pesasse o significado dos «antes de ti


não conheci o amor (...)» Ou ainda, e mais prudentemente –
prudentemente? -. «Gostaria de me poder castigar por ter sido feliz antes
de te encontrar.» Ei-la apanhada na armadilha das sua próprias palavras.
Ei-la, por assim dizer, a pedir o que merece. (...) Portanto, não faltam
torturas na História de O. Não faltam as chibatadas com um pingalim, nem
mesmo as marcas a ferro em brasa, sem fala na golilha e na exposição em
público. (...) Nada têm de sádico. Tudo se passa, enfim, como se fosse O
quem, desde o princípio, exigisse ser castigada, forçada nos seus retiros.”
(Réage, 2002: 7-8)

Na verdade, no decorrer da leitura de A História de O, verifica-se que nada há de


voluntário na sua opressão. O que ela julga ser voluntário é na verdade uma forma de
se desculpabilizar e tentar fazer sentido do absurdo em que está a viver.
Os amantes de Roissy
A este «elucidativo» prefácio segue-se “Os amantes de Roissy” que é o título que abre
a narrativa. O é levada pelo amante René a um lugar designado por ele. A sua mudez e
quietude são é flagrantes. A aquiescência no despir-se, no vestir-se e no mutismo que
René lhe impõe até a deixar à porta de uma casa desconhecida onde deverá fazer tudo
o que lhe ordenarem. É aqui que começa o que virá a ser o pesadelo que O irá viver
nos próximos dias, ou semanas, pois a dada altura, já quase no fim da sua saída d
Roissy, esta perdeu a noção do tempo – a expectativa gorada de um relacionamento
normal, de uma saída casual com o «amante» transforma-se em choque e
perplexidade e O não reage. Há nela uma fragilidade psicológica marcada, inusitada,
uma quietude de presa acabada de ser apanhada pelo caçador. O inesperado do
comportamento de René é uma forma de violência improvisa e O não tem
instrumentos psicológicos para reagir.

“«Escuta», diz ele. «Agora estás pronta. Eu vou deixar-te. Vais descer e
bater à porta, seguindo quem a abrir e fazendo o que te disserem. Se não
entrares imediatamente virão buscar-te, e se não obedeceres, obrigam-te a
obedecer. A tua bolsa? Não, já não precisas da bolsa. Só és a rapariga que
eu forneço. Sim, sim, eu estarei lá. Vai.” (Réage, 2015:15)

A recepção no castelo onde irá ser enclausurada, vítima de abusos, de violação


conjunta tanto pelo amante, como por parceiros desconhecidos, e feita pelas mãos de
outras «servas» que já lá se encontram e que a preparam para ser molestada.(Réage,
2015:16). Há zonas de silêncio neste texto. Por exemplo, a espera a que O é
submetida, despida, obrigada a ver-se a um espelho e depois transportada para uma
sala com diversos espelhos que a reflectem. Ela é aqui a sua própria mise-en-abyme:
olha, mas não vê o que de facto está a acontecer, nem tem percepção do que a espera,
paralisada pela perplexidade. (Réage, 2015:17)
Depois da violação, na boca, no ânus, na vagina, por homens que não vê nem
reconhece, mas entre os quais ouve a voz de René, “[e]xplicaram-lhe que seria sempre
assim, enquanto estivesse no castelo, que veria o rosto daqueles que a violariam ou a
atormentariam, mas nunca à noite, e que jamais saberia quem eram os responsáveis
pelo pior.” (Réage, 2015:19). São-lhe dadas ordens que, a não serem acarretadas,
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implicarão punições e abusos sexuais, não só de hóspedes do castelo que ela não pode
olhar acima da cintura, aos quais não pode dirigir palavra, aos quais não se pode
recusar e dos quais não se poder lamentar pois além do chicote também irá ser
amordaçada, além de ter as mãos amarradas nas costas e de dormir acorrentada com
uma «coleira» ao pescoço. O chicote é-lhe apresentado pela utilidade que terá na
tortura juntamente com a mordaça que lhe abafará os gritos:

“Explicaram-lhe que esta maneira de julgar a eficácia do chicote, além de


ser justa, tornando inúteis as tentativas que as vítimas faziam, exagerando
os seus gemidos, para despertarem piedade, permitiria aplicá-lo fora dos
muros do castelo, ao ar livre, no parque, como acontecia às vezes, ou em
qualquer apartamento, ou em qualquer quarto de hotel, sob condição de
se utilizar uma mordaça bem justa (...) que só deixaria em liberdade as
lágrimas e abafaria os gritos, permitindo apenas alguns gemidos.”
(Réage:2015:20)

A dada altura o «amante» deve ausentar-se e diz-lhe que a ama. A resposta de O é a


resposta de alguém absolutamente dominado e derrotado.

”[René] [a]o mesmo tempo disse-lhe que partia e que durante os últimos
sete dias que devia passar no castelo (...) ela não o veria. «Mas eu amo-te»,
acrescentou, «amo-te, não me esqueças». Oh! Como haveria de o
esquecer? Ele era a mão que lhe vendava os olhos, o chicote do criado,
Pierre, a corrente acima da cama, o desconhecido que a penetrava, e todas
as vozes que lhe davam ordens eram a sua voz. (...) À força de ser ultrajada,
parece que se habituara aos ultrajes, à força de ser acariciada, às carícias, e
ao chicote à força de ser chicoteada.” (Réage, 2015: 39)
Sir Stephen
Este capítulo descreve a casa de O no rio Sena na ilha Saint-Louis e sua relação com
René depois das sevícias no castelo. O diviniza o trauma e René evita o seu olhar,
embora os seus gestos e o seu discurso continuem inflamados de prepotência.

“E foi sentada diante do fogo, com a sua camisa branca, que ela escutou o
seu amante. Não deveria pensar que estaria livre a partir de agora, mas, por
outro lado, estaria livre para não mais o amar e deixá-lo quando quisesse.
Mas se o amava, não estava livre para nada. ...) De repente, disse que, para
o ouvir, ela deveria afastar os joelhos e descruzar os braços, porque estava
sentada com os joelhos juntos e os braços cruzados em torno dos joelhos.
(...) Ele insistia: ela não abria as pernas o suficiente. A palavra «abre» e a
expressão «abre as pernas» ganhavam, na boca do amante, tanta
perturbação e poder que ela nunca as ouvia sem uma espécie de
prosternação interior, de submissão sagrada, como se um deus, e não ele,
houvesse falado.” (Réage, 2015:45-46)

O ouve as ordens de René e acata a nova realidade de não poder usar nada que lhe
tolha a sexualidade. As roupas serão escolhidas por René. A sua vida é uma
continuação do que se passara no castelo. O anel que lhe foi imposto em Roissy é o
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símbolo da sua vassalagem e escravidão. “Nunca, no entanto, se sentiu mais


totalmente entregue a uma vontade que não era a sua, mais totalmente escrava e
mais feliz de o ser.” (Réage, 2015:47).
Neste capítulo ficamos também a saber que a ausência de O fora notada no
trabalho, a “secção de moda de uma agência fotográfica” (Réage:2015: 48) e que a sua
mudança de gestualidade e postura também não passara despercebida. O seu
encontro com Jacqueline, a modelo, um encontro profissional, em que a fotografa, faz
com que O se reveja no castelo de Roissy e suspeite de que esta também lá estivera. E
neste encontro, da parte de O, há vontade de transformar Jacqueline em vítima do
castelo, pela semelhança de pormenores: desde o roçagar do vestido, ao colar e aos
braceletes de ouro que O desejaria que fossem de couro, para que Jacqueline se
assemelhasse mais à sua experiência. (Réage, 2015:48-49).
Porém a servidão não acabou. René convoca-a para mais um encontro com um
amigo, obrigando a vestir-se e maquilhar-se como no local onde estivera enclausurada.
Na chegada ao restaurante italiano é-lhe apresentado Sir Stephen H que repara no seu
anel de ferro decorado com ouro. O anel, fora-lhe entregue como símbolo de
disponibilidade para todos os que a vissem depois da saída do castelo. Descobre-se
também no percurso a seguir ao jantar em que René, O e Sir Stephen partilham o
mesmo carro, que O tivera uma relação com uma mulher mais velha do que ela, anos
antes, chamada Marion. Um pormenor que aparentemente neste momento da
narrativa não é relevante para a história, mas que nos dá conta de uma vivência
anterior, mais sã. Quando o cenário muda, O encontra-se perante o que julgara ser
passado e vê-se novamente prisioneira de um acordo com René e Sir Stephen.

“(...) O repetia tão claramente quanto podia: «Reconheço em ti e em Sir


Stephen o direito.» O direito de dispor do seu corpo à vontade, em
qualquer lugar e de qualquer maneira que lhes agradasse, o direito de a
terem acorrentada, o direito de a açoitarem como uma escrava ou como
uma condenada, pela menor falta ou por simples prazer, o direito de não
levar em conta as suas súplicas nem os seus gritos, se a fizessem gritar.”
(Réage, 2015: 57).

Um misto de discurso indirecto livre segue-se revelando o pensamento de O, o seu


comportamento juvenil e a sua relação tanto com homens como mulheres antes de ter
conhecido René. De novo submetida a violência, crendo amar e crendo-se amada e
desejada, assemelhada a uma prostituta O ouve o novo amante, Sir Stephen, que
agora a partilha com René dizer que deseja Jacqueline, a modelo que surge no início
deste capítulo.
Anne-Marie e os anéis
Neste capítulo revelam-se as intenções de Sir Stephen que espera de O que esta
seduza Jacqueline. René intervém para acelerar o processo e descobrem-se as origens
de Jacqueline, a sua miséria, a sua persistência, e os seus dramas. Ela é convidada a
viver com o casal, O e René, e abandona a casa da mãe. Descobre-se que os seus
antecedentes familiares a equiparam com uma bússola moral com a qual se julga
protegida.
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“Mas, no fundo, O enganava-se. Jacqueline era apaixonadamente ligada ao


que lhe pertencia – à sua pérola cor-de-rosa, por exemplo – mas de uma
ndiferença absoluta pelo que não lhe pertencia. Alojada num palácio, não
se mostraria interessada a não ser que lhe dissessem «este palácio é seu» e
isto fosse sancionado por uma escritura. Que o seu quarto fosse ou não
agradável era-lhe indiferente e não foi para se escapar dele que se deitou
na cama de O. Também não foi para provar a O um reconhecimento que
não sentia. Jacqueline amava o prazer e achou agradável e prático recebê-
lo de uma mulher, entre cujas mãos nada arriscava.” (Réage, 2015:91).

Aos poucos a vontade de possuir Jacqueline crescera em O, ao mesmo tempo que a


vontade de protegê-la de Roissy decrescera. Além disso, Jacqueline desconhece a vida
dupla do casal com quem partilha a casa e as actividades de escravidão sexual exigidas
por Sir Stephen a O e que ocupam o seu dia. Nestes percursos com Sir Stephen O fica a
conhecer Anne-Marie, uma mulher que aparenta a idade do amante e a saber o que
para esta mulher O representa – mais um abuso e invasão.

“O pensou para si: assim se expõe as guelras do peixe no mercado e se


arreganham os beiços dos cavalos na feira. Lembrou-se também que o
criado Pierre, na primeira noite em Roissy, depois de a acorrentar, fizera a
mesma coisa. Afinal de contas já não pertencia a si própria e o que menos
lhe pertencia era certamente esta metade do corpo, que podia muito bem
servir, por assim dizer, fora dela.” (Réage, 2015: 96)

Por René, depois da saída da casa de Anne-Marie, espartilhada para que a cintura se
adelgaçe, fica a saber que Jacqueline tem de ser encaminhada para Roissy e que Sir
Stephen a enviará para casa de Anne-Marie onde será novamente vítima de açoites
para reforçar sentido de «desejo», «amor» e «propriedade» destes e que tem apenas
cinco dias para convencer Jacqueline usando de uma mentira, dizendo que esta é
amada por René.

“O, que à ideia de ver este corpo frágil e esbelto trabalhado pelo chicote,
este ventre ainda estrito, trucidado, a boca pura a gritar, a penugem das
faces coladas pelas lágrimas, um mês atrás teria sido assaltada pelo terror,
repetiu para si mesma as últimas palavras de René e sentiu-se feliz com
isto.” (Réage, 2015:99)

Jacqueline acaba por não ser «caçada». René ausenta-se para outro país e Sir Stephen
requisita O para novas torturas em casa de Anne-Marie. Ali será novamente açoitada,
marcada e novas pulseiras lhe serão colocadas nos tornozelos e nos pulsos, sob o
comando de Anne-Marie em que O reconhece a crueldade de que as mulheres são
capazes, ao debater-se com a dor atroz que esta lhe inflige, amarrando O, expondo-a,
e forçando-a a manter as pernas abertas (Réage, 2015:103). Marcada e com anéis no
sexo, é de novo reencaminhada para a continuação do seu suplício, a pedido de Sir
Stephen e aprende também a infligir dor às companheiras que vivem em casa de Anne-
Marie e a obter prazer insano nesse acto. A marcação pelos ferros com que lhe
perfuraram o sexo para a prepararem para os anéis antecede mais uma tortura: é a
11

preparação para ser marcada a ferros, além da introdução das argolas definitivas, com
o nome do seu senhor, cerimónia a que Sir Stephen assiste.

“No estrado havia um grande fogão redondo de uma só boca. Anne-Marie


trouxe umas cordas do armário e mandou amarrar O pela cintura e pelos
tornozelos, o ventre contra uma das colunas. Amarraram-lhe também as
mãos e os pés. Perdida no seu pavor, ela sentiu a mão de Anne-Marie nas
nádegas, a indicar os sítios para imprimir os ferros, ouviu o assobio de uma
chama e, num silêncio total, a porta que se fechava. Poderia voltar a
cabeça, poderia olhar, mas não tinha forças. Uma única e abominável dor
trespassou-a, fazendo-a gritar e retesar-se. Ela jamais soube quem lhe
enterrara os ferros os dois ferros ao mesmo tempo na carne das nádegas,
nem de quem era a voz que tinha contado lentamente até cinco, nem a
que gesto tinham sido retirados. (Réage, 2015:109)

O capítulo prolonga-se por passeios que O, em aparente recuperação, faz com Sir
Stephen, e a ilusória felicidade vista pelos transeuntes da cidade é narrada, dando a
impressão que a violência teria acabado e que O estaria a salvo de abusos por parte de
terceiros. No entanto, é isso que acontece novamente numa das saídas com Sir
Stephen, obrigada a expor-se e a praticar sexo oral num lugar público, a ser levada
para um hotel e violada novamente, tendo sido apresentada inicialmente por Sir
Stephen aos supostos amigos como «puta» (Réage, 2015:112-113). Um destes declara
depois a Sir Stephen o seu amor por O e o seu desejo de resgatá-la. Sir Stephen irá
maltratá-la num quarto insonorizado e Eric, o pretendente, quando vem vê-la e
verifica o estado em que Stephen a deixou desiste das suas pretensões, mas semanas
mais tarde irá violá-la e maltratá-la.
A coruja
Neste capítulo, o derradeiro, O expõe-se orgulhosamente a Jacqueline e esta curiosa,
acompanhada pela irmã Natalie, bem mais jovem do que ela, um criança ainda, deixa-
se enredar pela curiosidade. O sente-se revoltada pela opinião de Jacqueline em
relação aos medalhões que lhe pendem do sexo e às marcas de suplício e propriedade.
Encenam-se umas férias, René entretanto já regressou a França, e é neste
aparentemente bucólico cenário que O cria mais uma vez intimidade com Jacqueline
para poder expô-la ao olhar invisível de Sir Stephen, que espreita os movimentos de
ambas. O inesperado acontece quando Natalie, ainda menor, presencia a intimidade
que há entre a irmã e O, o que para mim significa que esta jovem acaba por ser
corrompida prematuramente pela violência a que assiste, pois na sequência da sua
confissão – de que observara a irmã e queria estar perto de O – acaba a acompanhar e
observar a perda total de poder de O e os sadismos a que esta é submetida. O capítulo,
de acordo com o título, conclui-se de três maneiras, com O acorrentada pelo sexo,
despida e usando uma máscara em forma de coruja, numa festa de um certo
Comandante, amigo de Sir Stephen, humilhada publicamente, causando horror e
repulsa a quem a vê. A primeira versão é de que após a repulsa O é desacorrentada e
violada por Sir Stephen e pelo Comandante. A segunda é a de que O regressa a Roissy
e é ali abandonada por Sir Stephen, e a terceira é a da morte de O, para se poder
libertar, perante a indiferença de Sir Stephen.
12

Este capítulo fecha assim esta narrativa que se iniciara com versões que levariam O a
efectuar o mesmo percurso a que assistimos.

A morte da mulher
Ler este livro é fazer um luto prolongado por todas as mulheres que povoam a
Terra. Para poder enquadrar devidamente esta reflexão em que a morte da identidade
e a morte física andam a par e passo, ilustramos uma parcela desta com uma anedota
acerca da mulher da época vitoriana em que alguém pergunta: sabes como é que um
homem da época vitoriana sabia que a mulher tinha morrido? E a resposta era a
seguinte: quando ela começava a cheirar mal.
É claro que a época vitoriana foi marcada por uma profunda hipocrisia que não
difere muito dos dias de hoje nem de outros períodos da nossa história civilizacional,
embora o «menu» fosse mais directo. Falei aleatoriamente da época vitoriana, mas
poderia também ter referido a época salazarista e o Ballet Rouge, por exemplo, e
também aleatoriamente poderia ter referido a visita de João Paulo II à Madeira e o
encerramento «temporário» de um «bordel» que ficava mesmo ao lado da estrada
que o Papa iria percorrer. Porque ainda hoje, depois de sonhos concretizados
legalmente – o sonho de igualdade de direitos e deveres a todos os níveis de Olympe
de Gouges (2010) – a luta constante continua. As ambiguidades de comportamento
também. E já há quem queira derrotar novamente este ideal concretizável de parceria,
através de textos como o de Bérénice Levet (2021), que incluo na bibliografia, restando
sempre esta perplexidade que nos segue: porquê? E que não se explica só por
reflectirmos. Depois de conflitos em que as mulheres provaram o seu valor, depois de
avanços científicos que nos deram, depois de tanto progresso no pensamento, é
necessário relembrar Engels, citado por Eisler, autora que tentou justificar e explicar
esta luta milenar que leva, segundo Engels à «derrota histórica mundial do sexo
feminino.»” (Eisler,1998: 43-44)
Convém também relembrar o pensamento de Simone de Beauvoir que agora
leio com outra consciência: “A humanidade é masculina e o homem define a mulher
não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autónomo.”
(Beauvoir, 2015: 15”. É isso que viremos a verificar nesta obra – até que ponto a
mulher-personagem ao passar a ser considerada ser diverso acaba por se transformar
nesse ser que dentro de si mesmo não existe nem aufere de direitos, acabando por
decidir que não tem direito a nada e criando uma visão distorcida do prazer e do amor
e do seu valor como ser vivo e humano.

“Ela não é senão o que o homem decide que seja; assim é chamada «o
sexo» para significar que ela se apresenta diante do mundo como um ser
sexuado: para ele, a fêmea é sexo, logo ela é-o absolutamente. A mulher
diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é
o não-essencial perante o essencial. O homem é o ser, o Absoluto; ela é o
Outro.” (Beauvoir, 2015:15-16”

A simbólica morte da mulher em A história de O, a morte de valor identitário, e


a alteridade que a coloca numa posição de alvo de todo o tipo de abuso e de violência
a que o prefaciador irá chamar de «voluntária» (Réage, 2015) liga-se também ao que
aprendi com estas palavras de Simone de Beauvoir de que a assim chamada alteridade
da mulher é um dado forçado pelo patriarcado:
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“A categoria do Outro é tão original quanto a própria consciência. (...) A


divisão não foi estabelecida inicialmente sob o signo da divisão dos sexos,
não depende de qualquer dado empírico. (...) [A] alteridade é uma
categoria fundamental do pensamento humano.” (Beauvoir, 2015:16)

A objectificação da mulher, que aqui é representada cruamente, a sua


formatação secular para a culpabilização da sua expressão sexual e global como ser
vivo, e sujeição ao masculino, a ausência de reciprocidade em A história de O, pode
também ser explicada pelas palavras de Simone de Beauvoir.

“Como se entende então que entre os sexos essa reciprocidade não tenha
sido colocada, que um dos termos se tenha imposto como único essencial,
negando toda a relatividade em relação ao seu correlativo, definindo este
como alteridade pura? Porque não contestam as mulheres a soberania do
macho? Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como não-
essencial; não é o Outro que, definindo-se como Outro, define o Um; ele é
posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro
não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista
alheio. De onde vem essa submissão na mulher?” (Beauvoir, 2015:18)

A propósito das minhas limitações de conhecimento e do que com uma simples


frase retomada após décadas aprendi, cito Maria de Lourdes Pintassilgo que disse na
praia das Macieiras, na zona de Sintra, decorria a Expo 98, que «o grande problema
das mulheres é que o seu alter ego é sempre o homem». Na altura tinha sido
convidada para um grupo de debate de feminismos, um retiro numa casa cheia de
comodidades, e todo o discurso sobre questões de género me era alheio. Respondi a
um questionário a que várias intervenientes do grupo também responderam. Uma das
perguntas era se alguma vez já tivera problemas por ser mulher? Problemas com
homens por ser mulher? Respondi que não, tal era a minha inconsciência. Achava,
disse, que os problemas que tivera eram por causa do carácter do dito homem ou
homens, mas não por uma questão de género e muito menos cultural ou civilizacional.
Achava que vivia numa sociedade equalitária. As especialistas em questões de género
entreolharam-se, mas não prolongaram o discurso.
Só agora, reflectindo sobre este comentário da nossa única primeira-ministra
na história deste país misógino que continua a ser Portugal cremos que se está a
delinear o nosso propósito de discorrer acerca do pavor que as mulheres têm em
acordar. Por tradição e por cultura, as mulheres-mães, mulheres-amigas, mulheres-
colegas, mulheres-irmãs, mulheres-todas (embora haja excepções, e cada vez mais
excepções), são perpetuadoras do preconceito. A mulher-objecto-adormecida
sexualmente e em todas as suas vertentes humanas, ou semi-acordada
estrategicamente, para sobreviver, age, no âmbito da heterossexualidade como a
Branca de Neve no dossel-caixão vitoriano ou a Bela Adormecida. Se, metaforicamente
bocejar ao acordar, perde o poder, o interesse do parceiro, e é punida. A sua existência
em si mesma é punida, independentemente do que faça, como acontece a O.

“Certamente que encontrei mulheres domesticadas cujo cinismo é deveras


surpreendente. Mas não creio que seja sempre o caso. Muitas mulheres
foram alvo de demasiada lavagem cerebral, têm o ânimo demasiado
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derrotado, estão demasiado esfomeadas e humilhadas para poderem agir


em sua defesa. Outras acreditam simplesmente que a sua opressão foi
escolhida alegremente. Muitas mais afadigam-se a contarem a si próprias
mentiras piedosas, para serem poupadas à dor de refletir. (...) Pois estas
são as realidades da opressão e do poder (...)” (Duncker, 2013:561-562)

Este fenómeno não é puramente ocidental – enquanto que se aparentemente


se dilui no Ocidente através de legislação adequada que protege as mulheres, mesmo
quando estas não se sabem proteger, noutras paragens do mundo, o silâncio
institucionalizado, legalizado, torna-as mais vítimas do que as mulheres ocidentais.

Conclusão – a procriação cultural através das mulheres


Poderia ter começado esta reflexão com um título como “A mulher-elefante” porque
me ocorreu uma história que me contaram uma vez: era uma vez um elefante bebé
que ficou órfão e foi apanhado pelos homens do circo. Estes batiam-lhe e prenderam-
no enquanto crescia. O pequeno elefante habituou-se a estar preso. Era a única vida
que conhecia. Um dia, já adulto, tiraram-lhe as amarras das patas. Ele continuou onde
estava. Não fugiu. Continuou a obedecer como se ainda estivesse amarrado.
Ora bem, o que me fascinou nesta obra de Pauline Réage foram as ideias subjacentes à
sua construção e à formação da personagem principal: O. Uma ilação que talvez se
possa retirar da leitura desta narrativa é a reflexão acerca da síndrome de Estocolmo
como fenómeno cultural generalizado na psique das mulheres heterossexuais e que
nesta personagem de L’histoire de O se explica como facto anterior à ocorrência da
violência a que esta se submete, logo, tem uma génese anterior à violência física-
sexual a que se submete, como se no seu íntimo essa propensão para a auto-
destruição já se tivesse instalado desde muito cedo. Esta predisposição apenas se
pode, cremos, justificar, por formatação cultural sobre o indivíduo, como acima referii
nas palavras de Simone de Beauvoir. Quem vive no Ocidente conhece a história da
Bela Adormecida e da Branca de Neve, ambas em estado vegetativo até serem
despertadas pelo amor. Depois disso, depois da partida em direcção ao sol poente,
certamente acabaram como O – novamente mortas ou adormecidas.
Um aspecto adicional é a oposição que se pode estabelecer entre esta
personagem ficcionada que se deixa aniquilar porque quer ser derrotada e não sabe
que foi formatada para não-reagir e para se omitir, e o mito de Virginia Woolf, do seu
protesto ideológico e consciência política da fragilidade forçada das mulheres e sua
diminuição perante o patriarcado. Logo, O, para evocarmos e homenagearmos Virginia
Woolf, nunca poderia ser irmã de Shakespeare..
Creio que nesta procura de dados culturais e históricos há algumas pistas
suficientes para entender o comportamento da protagonista da obra que nos
propusemos analisar que se transforma em metáfora da aniquilação do feminino ao
adoptar o calendário patriarcal, tornando-se assim no expoente máximo da vítima da
dominação masculina sobre as mulheres. O imaginário preferido do patriarcado, que
se constitui como um espectro omnipresente de posse, domínio, humilhação, prazer
unilateral, aniquilação da mulher, destruição da identidade feminina e destituição, foi
plenamente realizado e satisfeito nesta obra de Pauline Réage. A autora consegue,
através de um entendimento profundo do patriarcado, construir uma história de
sedução, recorrendo ao imaginário erótico misógino, de modo que consideramos que
talvez seja pouco realista (embora a realidade da prostituição nos forneça dados sobre
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a violência a que jovens são submetidas antes de serem colocadas na rua como
prostitutas), cruzando o seu desejo de entrega com a vontade de posse de um amante
que representa toda a cultura de aniquilação do feminino que subjaz ao
androcentrismo.
Esta obra não ajuda a causa dos movimentos feministas nem a causa da igualdade de
géneros pelo erotismo destruidor, que não é erotismo, mas sadismo, em que o prazer
é unilateral e pertence ao homem que assiste indiferente ao sofrimento e progressiva
morte psíquica de O que vê nela o único modo de se libertar dos grilhões que a
aprisionam e a dada altura chega a falar do seu como algo exterior a si mesma.
Acrescente-se também que qualquer obra é interpretável para além da intenção que a
criou e embora haja rejeição por parte da autora do pendor vitimista e auto-
vitimizante da sua ficção, e embora o nome da personagem principal, «O», não tenha
sido deliberadamente escolhido pela forma vaginal ou ovular, a nossa opinião é a de
que se deve também interpretar este aspecto desta ficção, do ponto de vista simbólico
e cultural. Assistir imageticamente a uma obra como a história de O leva-nos a
questionar a sua génese e aprofundá-la e a colocar ulteriores questões:

“A sexualidade feminina existe anteriormente ou apesar da experiência


social? AS mulheres experienciam os seus corpos puramente ou
essencialmente, fora da aculturação perniciosa tão agudamente analisada
pelas mulheres em França e noutros países? A resposta é não (...)”
(Macedo, 2002:84).

Esta não é decididamente uma história de amor, embora tenha sido escrita por amor
(?!), e muito menos uma história de prazer recíproco: é uma história de destruição
decidida pela acumulação de aviltamentos por parte do objecto de amor da
protagonista cuja prova de desdém pelo feminino é a aceitação indiferente da sua
morte psicológica e perda de objectivos. Para além destas inimizades eróticas do
patriarcado creio que enquanto as mulheres forem inimigas umas das outras manter-
se-á a perpetuação da misoginia, e enquanto as mulheres escreverem histórias de
sofrimento deliberado, e não relatos de denúncia da violência, continuarão a
«subsidiar» a cultura machista. E esta história, à distância de mais de 50 anos, é um
relato de violência, encerrado na lógica falogocentrista (Macedo, 2002), em que o
destino da mulher, se não for objecto, é a morte, e em que ser-se objecto é também
uma forma de não-vida.
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BIBLIOGRAFIA

 Beauvoir, Simone (2015). O segundo sexo. Volume I. Lisboa: Quetzal Editores


 Duncker, Patricia (2013). Irmãs e estranhas. Funchal: Nova Delphi
 Eisler, Riane (1998). O Cálice e a Espada – A Nossa História, o Nosso Futuro.
Porto: Via Óptima, Oficina Editorial, Lda.
 Gouges, Olympe de (2010). Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.
Funchal: Nova Delphi
 Levet, Bérénice (2021). Libertem-nos do Feminismo. As novas inquisições.
Lisboa: Gradiva Publicações, S.A.
 Macedo, Ana Gabriela (2002). Género, Identidade e Desejo. Antologia crítica do
feminismo contemporâneo. Livros Cotovia
 Réage, Pauline (2002) (Tradução Luísa Saraiva). A história de O (1.ª Edição
1954), ebook ISBN : 978989231233, Lisboa: Leya.
 Riot-Sarcey, Michèle (2015). Histoire du féminisme. Collection Repères n.º 338 -
Histoire. Paris: La Découverte

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