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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Faculdade de Formação de Professores


Departamento de Ciências Humanas

CAROLINE DOS SANTOS CUNHA DE ARAUJO

DISCURSOS LIBERTINOS: ANÁLISE DA OBRA DE MARY


WOLLSTONECRAFT SOBRE OS COSTUMES INGLESESES E SUA
CRÍTICA AOS LIBERTINOS DO XVIII.

São Gonçalo
2023
CAROLINE DOS SANTOS CUNHA DE ARAUJO

DISCURSSOS LIBERTINOS: ANÁLISE DA OBRA DE MARY


WOLLSTONECRAFT SOBRE OS COSTUMES INGLESESES E SUA CRÍTICA
AOS LIBERTINOS DO XVIII.

Monografia apresentada como exigência


parcial para a obtenção do título de
graduação em Licenciatura Plena em
História pela faculdade de formação de
Professores da Universidade do Estado do
Rio de janeiro sob a orientação do
Professor Dr.Carlos Mauro de Oliveira
Júnior.

São Gonçalo
2023

2
Agradecimento

Gostaria de expressar meus agradecimentos ao meu orientador Prof. Dr. Carlos


Mauro de Oliveira Júnior por todo o apoio e paciência dados após cada troca de tema
durante a realização desta monografia e por apresentar um campo vasto e surpreendente
de estudo. A Prof. Dr. Flávia Beatriz Nazaré que me acompanhou durante toda a
graduação e mostrou como o ensino de História pode ser surpreendente e diverso. Aos
professores desta graduação, que diante de tanta adversidade, ministraram aulas
magníficas.

Aos amigos e companheiros de turma, pois se não fosse a nossa união todas
as dificuldades não seriam superadas. E o mais importante, ao meu companheiro de
jornada Wallace de Oliveira Machado que de amigo de classe à esposo foi o responsável
pela companhia, cumplicidade e as mais diversas alegrias que a vida me trouxe.

3
“Esse quadro é encantadoramente belo...” A mulher
literária, insatisfeita, agitada, vazia no coração e nas entranhas,
sempre a ouvir, com penosa curiosidade, o imperativo que
sussurra, das profundezas de sua constituição, aut liberi aut
libri; a mulher literária, suficientemente culta para compreender
a voz da natureza, mesmo quando ela fala em latim, e, por outro
lado, suficientemente vaidosa e tola para falar secretamente em
francês consigo: je me verrai, je me lirai, je’mextasierai et je
dirai:Possoble, que j’ai eu tant d’sprit?

Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos.

4
Resumo

A proposta deste trabalho é uma análise da obra de Mary Wollstonecraft,


Reivindicação dos direitos das mulheres, sendo esta uma das mais importantes
publicações sobre a cidadania feminina e sobre o feminismo. Embora os pontos
principais desta obra sejam a inclusão da mulher na esfera política e a educação
igualitária, aqui é proposto analisar sua crítica social através da crítica aos costumes
ingleses impulsionados por uma literatura libertina que se constituiu como veículo
importante de difusão e construção de valores no século XVIII.

Palavras-chave: Mary Wollstonecraft, literatura libertina, libertino dos costumes, Jean-


Jacques Rousseau.

5
Resumen

La propuesta de este trabajo es un análisis de la obra de Mary Wollstonecraft,


Reivindicación de los derechos de las mujeres, siendo esta una de las más importantes
publicaciones sobre la ciudadanía femenina y sobre el feminismo. Aunque los puntos
principales de esta obra son la inclusión de la mujer en la esfera política y la educación
igualitaria, aquí se propone analizar su crítica social a través de la crítica a las
costumbres inglesas impulsadas por una literatura libertina que se constituyó como
vehículo importante de difusión y construcción de valores en el siglo XVIII.

Palabras clave: Mary Wollstonecraft, literatura libertina, libertino de los


costumbres, Jean-Jacques Rousseau.

6
Sumário

Introdução...................................................................................................................................8
Capítulo 1- Mary Wollstonecraft e suas influências...................................................................10
1.1 Mary Wollstonecraft.........................................................................................................10
1.2 A representação da mulher e a violência simbólica....................................................16
1.3 – O direito de pensar e aprender.......................................................................................20
Capítulo 2 – Fundamentos da crítica..........................................................................................27
2.1- Natureza e comportamento (virtude)...............................................................................27
2.2- Libertinos e seus jogos....................................................................................................30
Capítulo 3- Crítica a ética cavalheiresca....................................................................................34
3.1- Rousseau, e sua importância na crítica Cortesã...............................................................34
2.2 - É costume e não natureza!..............................................................................................37
Conclusão...................................................................................................................................43

7
Introdução

“Como pretender falar das mulheres, sem conhece-las? ” 1Essa é a pergunta feita
por Madame D’Epinay inaugurando um debate contra Thomas Grimm. Em 1770,
senhor Thomas escreve um ensaio com diversas repreendas contra Diderot e Madame
D’Epinay e pergunta a eles: o que é uma mulher? Este questionamento vai perdurar todo
o iluminismo e ainda vai chegar a nós com a incrível resposta de Madame D’Epinay “ a
mulher é um ser de cultura inteiramente moldado por sua educação”2.

A reposta dada por D’Epinay será refletida por outros autores e filósofos, como
a autora escolhida para este trabalho, Mary Wollstonecraft e sua obra Reivindicação dos
direitos das mulheres de 1792. Este trabalho propõe como a autora, que mais teve
notoriedade e reconhecimento diante a discussão sobre educação e participação
feminina na política, reconheceu na Literatura popular, aqui nomeada como Literatura
libertina dos costumes, propagada no seu período, auxiliou na divulgação ideias de
como a mulher deveria ser educada, a discussão se era um ser totalmente capaz de
pensar e realmente fazer da parte ativa da sociedade.

Esta monografia foi dividida em três capítulos. No primeiro capítulo um,


subdividido em três partes, sua primeira parte será apresentado um breve resumo do
caminho que ela fez para obter seu reconhecimento como aquela que será reconhecida
como a primeira feminista. Na parte dois discutiremos como se dá a violência sofrida
pela mulher do XVIII, visto que ela é simbólica, é refletido sobre com a educação
igualitária é um caminho importante para mudar uma sociedade. Enquanto na parte três
é apresentado os pensadores que foram antecessores a Wollstonecraft, sendo ela o eco
de seus ideais.

Capítulo dois teremos os dois alvos de críticas da filósofa, sendo o primeiro


Jean-Jacques Rousseau. Rousseau foi o filósofo que teve a opinião sobre as mulheres
mais triunfante durante todo século XVIII e XIX. A sua obra Emílio ou da Educação
(1762), ele propõe uma educação ilustrada para os homens, dessa forma obtendo o
1
THOMAS, A.L( Antonie Léonard) O que é uma mulher?: um debate/ A.l Thomas, Diderot, Madame
D’Epinay; prefaciado por Elisabeth Badinter; Trad. Maria Helena Franco Martins- RJ, Ed. Nova Fronteira,
1991.P.7
2
Idem. 1991. P.9

8
máximo uso da razão. Todavia, a crítica da filósofa recai sobre a educação dada à
personagem Sofia, em que não é dada a mesma educação dada ao Emílio, dessa maneira
não mudando a realidade e mentalidade do público do XVIII, tornando-se um manual
educacional. O segundo alvo é o libertino e a ética cavalheiresca, em que a autora
reconhece que a cultura libertina, de influência francesa, está presente no ideário de
educação.

Por fim, teremos o terceiro capítulo, em sua primeira parte, demonstraremos


como pensamento de Rousseau foi importante para construção da crítica sobre a
educação cortesã e seu elo com o pensamento propagado pelo Antigo Regime em
relação a situação feminina. Por último, provaremos que não é uma questão filosófica
que propõe o subjugo e degradação das mulheres, e sim o costume. O costume, que era
o senso comum da sociedade inglesa do século XVIII, foi continuado, divulgado e
reapresentado através da literatura libertina dos costumes.

Para a confecção desse trabalho é notória as limitações inerentes a uma


monografia, pois um tema de tamanha amplitude como a literatura libertina e,
principalmente, a análise da obra Reivindicação dos direitos das mulheres, pois mesmo
com o andar dos séculos é visto questionamentos sobre o poder que a mulher tem dentro
da sociedade. Posto isso, é relevante continuar a estudar e desenvolver estudos sobre a
história das mulheres e das mentalidades.

9
Capítulo 1- Wollstonecraft e suas influências.

1.1 Mary Wollstonecraft


A figura e as ideias da autora aqui estudada foram frutos de tempos turbulentos,
Mary Wollstonecraft foi testemunha da Guerra dos Sete anos (1759-1797), a Guerra de
Independência doa EUA (1775-1783) e a Revolução Francesa (1789-1799). A Revolução
Francesa foi o marco importante para a formação do pensamento da autora, pois no
primeiro ano da Revolução foi escrita a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, o texto não abrangia, realmente, todos os elementos da sociedade o que fez
grandes pensadoras reagirem e expor seus ideais em favor de si e de outras mulheres.

A Revolução Francesa criou uma crise na Grã-Bretanha porque segundo


Miranda3(2015), ela representou um exemplo de revolução do Estado e da religião bem-
sucedida, diante disso, visto que o Estado britânico do século XVIII era um dos regimes
mais liberais do mundo, em que seus súditos tinham liberdade para questionar
abertamente sobre o governo, além do encorajamento através do Iluminismo.

Mary Wollstonecraft nasceu em Londres no ano de 1759. É importante sinalizar


que ela pertencia à classe média inglesa, durante seus anos iniciais e adolescência foram
moldados valores e comportamentos que eram previstos e desejados para as mulheres de
sua classe social. Diante disso, entende-se que esposas deveriam ser dependentes
economicamente, estar presente intelectualmente e espiritualmente na condição de
esposas e restritas à esta subordinação. Restando apenas duas opções de papéis nesta
sociedade, sem fugir ao jugo familiar: acúmulo de propriedades e a busca de prestígio
dentro da sociedade respeitável.

A educação formal de Mary e de suas irmãs foi extremamente precária em


relação ao seu irmão mais velho. A nossa autora recebeu sua instrução em uma escola
diurna (Day School), enquanto seu irmão teve direito ao ensino secundário. Era comum
entre as famílias decidirem o caminho dos seus filhos, enquanto Mary aprendeu a ler e a
escrever, para seu irmão, sendo o primogênito, foi destinado melhor educação e o destino

3
MACLEOD, Emma Vicent. The Cises of French Revolution. Apud MIRANDA.D Apresentação: IN
WOLLSTONECRAFT, Mary.Reindidação dos Direitos das Mulheres. (2015)

10
com estudo das leis. Para ela e suas irmãs o fato do descaso com sua educação
demonstram as ideias que para mulheres era mais vantajoso um bom casamento.

Vale ressaltar que no século XVIII, dentro da sociedade inglesa, não era simples
um arranjo matrimonial. Mesmo havendo os ideais liberais como: a liberdade para
escolher o cônjuge, não necessitar do consentimento dos pais e realizar o casamento em
uma idade tardia, não era oferecida outra opção de vida ou inserção das mulheres na
sociedade. Logo, a autossuficiência era algo mais difícil de se alcançar devido à falta de
acesso ao mundo do trabalho. As que seguiam solteiras conseguiam um trabalho mal
remunerado ou dependência dos parentes mais próximos. Para mulheres pobres restavam
apenas três opções: a costura, a criadagem e a prostituição 4

O rumo do planejamento da vida de Mary e de suas irmãs mudou no momento


em que seu avô paterno faleceu em 1765. Diante a uma organização desastrosa do seu pai
em relação a sua herança, a família passa por dificuldades financeiras, exceto, seu irmão
que recebeu a herança diretamente do avô. Com ressentimento da família com a
predileção ao filho mais velho, viu-se uma situação em que a ausência de um dote,
impediu de contrair um bom casamento segundo as tradições exigidas de sua classe
social. Existe um lado escuro em ser uma “dama decente” e este será um dos argumentos
por ela criticado diante aos ideais iluministas, mas este argumento será dissertado mais à
frente.

Além disso, Mary, apesar de sua condição, também não via com bons olhos a
instituição. Viu a conturbada relação dos seus pais, eram de conhecimento as atitudes
violentas de seu pai contra a esposa e contra os filhos, e mais tarde ela também viu a
dificuldade relatada por uma de suas irmãs com um casamento malsucedido. Em
consequência, as possibilidades de vida que lhe restavam eram reduzidas, visto que era
instruída, restaram três opções: dama de companhia, governanta e ser professora em
alguma paróquia. É fato que Wollstonecraft exerceu todas estas funções com o intuito de
um único objetivo que era sua independência financeira.

Em, 1774, Mary e sua família, já empobrecida, mudaram-se para Hoxton.


Tornou-se amiga do seu vizinho, o pastor Claire e sua família que a ajudou em sua
educação. No ano seguinte conheceu sua amiga Fanny Blood, esta amiga será importante
no decorrer de sua vida. Entre 1778 e 1787, no intervalo dos seus 19 aos 28 anos exerceu
4
LOBATO, Sâmia Elene. Jane Austen: a mulher diante do casamento na sociedade inglesa do século
XVIII. 2018. P.4

11
as atividades que ela poderia exercer de acordo ao “manual de decência”, sendo dama de
companhia, professora e finalmente, governanta de uma família aristocrática.

Seu ato de rebeldia contra as convenções sociais se inicia quando planeja a fuga
de sua irmã Elisa de um matrimônio infeliz. De acordo com Lobato (2018), as mulheres
eram tão limitadas, principalmente quanto ao assunto divórcio. Pois,

Enquanto as mulheres de outras sociedades


recebiam o apoio do grupo familiar de origem após o
divórcio ou separação, na Inglaterra a situação era menos
favorável. Não havia grupo familiar ao qual as mulheres
inglesas pudessem retornar após o divórcio, uma vez que
nem os pais, nem os irmãos ou outros parentes tinham a
responsabilidade de amparar essas mulheres, que, no ato
da separação, também corriam risco de perder a guarda
dos filhos. 5

Neste contexto, sua intenção era uma resposta a todos maridos tirânicos, contra ao
seu pai e contra seu prepotente irmão, seria um golpe contra os homens que se
enxergavam superiores por seu direito de desfrutar de suas heranças, educação e carreiras
profissionais.6

As duas irmãs Wollstonecraft junto a sua amiga Fanny Blood fundam uma
escola em Newington Green, onde ela conhece outro personagem importante para sua
vida o reverendo da Igreja Dissidente Richard Price (1723-1791), filósofo e autor do
sermão a favor da Revolução Francesa que provocou a reação de Edmond Burke e
provocaria uma de suas obras famosas Reflexões. Foi por intermédio deste reverendo, que
Mary conheceu seu futuro editor Samuel Jhonson (1709-1784) 7. É necessário esclarecer
que os dissidentes era o termo empregado aos cristãos protestantes que não faziam parte
da igreja da Inglaterra e, portanto, eram excluídos legalmente dos direitos civis entre
outros serviços como, acessar as Universidades de Oxford e Cambridge. Assim a vila de
Newington Green foi uma espécie de vila universitária, lá havia discussões e

5
IBIDEM, P.4.
6
. Miranda, Anadir dos Reis.Mary Wollstonecraft e a reflexão sobre os limites do pensamento liberal e
democrático a respeito dos direitos femininos (1759-1797) Curitiba, 2010. P.119
7
Há uma ressalva sobre este nome Samuel Johnson. Este nome foi apontado uma única vez na página 9
na Apresentação da edição da Reivindicação de 2015, editado pela EDIPRO. É possível que seja um erro
de edição, já que em outras fontes é apresentado Joseph Johnson como o primeiro editor de Mary
Wollstonecraft e também daquele que viria ser também editor do seu marido William Godwin.

12
disponibilidade de livros que possibilitou Mary conseguir livros emprestados e saber
sobre aqueles que não poderia ler.

Os Dissidentes Racionalistas eram herdeiros do empirismo de Locke e do


puritanismo de Calvino, eles acreditavam na evolução humana através do conhecimento,
da educação e do controle emocional. Este círculo de convivência foi importante para
Wollstonecraft criar seu senso crítico, pois diante a situação difícil enfrentada pelos
dissidentes mostrou a autora um paralelo com a situação das mulheres. Ela identificou
que os dois suportam opressões e que ambos teriam uma oportunidade melhor se os
direitos humanos e igualdade de oportunidades fossem oferecidos. Refletir sobre este
assunto a fez pensar sobre si e as condições de mulheres iguais a ela.

É dado neste momento que se deve focar ao tema deste trabalho, pois foi com a
experiência com os Dissidentes que fez com que Wollstonecraft desenvolvesse o
desapreço e as críticas em relação ao comportamento aristocrático e cavalheiresco.
Segundo Burdiel(2000)8, o ambiente frequentado por Mary era um local onde mulheres
vinculadas aos Dissidentes poderia expressar suas ideias com mais liberdade e
independência. A influência das ideias de Locke e a crença da mulher com papel de
moralizadoras tomou a educação das meninas mais séria que em outras igrejas 9. Embora,
os Dissidentes tornassem um ambiente favorável para expressar suas ideias, também
continham um caráter cerceador, visto que seu objetivo era formar uma identidade
feminina sóbria, autocontrolada e abnegada se opondo a licenciosidade moral e ao
despotismo aristocrático.

Segundo Miranda, é apontada como outra experiência intelectual que aconteceu


na mesma época foi sua leitura sobre Emílio, de Rousseau. Sua leitura resultou nas obras
Thoughts on the Education of Daughters (1787) e Mary (1788), um guia de educação
para meninas e um romance sentimental Assim, é compreensível que sua relação e
companhia dos Dissidentes proporcionou a Wollstonecraft a possibilidade de ter outra
carreira, o ofício de escritora. Claro, que não era qualquer obra que ela poderia discorrer,
neste período, para mulheres eram reservados temas como educação e novelas
sentimentais, no entanto sua inovação foi inserir a questão das poucas possibilidades de
8
BURDIEL, Isabel.” Introdución” APUD: MIRANDA.A. In: Mary Wollstonecraft e a Reflexão sobre os
limites do pensamento Iluminista a respeito dos Direitos das Mulheres. REVISTA
VERNÁCULO,n.25.2010. P.117
9
MIRANDA, Anadir dos Reis.Mary Wollstonecraft e a reflexão sobre os limites do pensamento liberal e
democrático a respeito dos direitos femininos (1759-1797) ( Dissertação de Mestrado) Curitiba, 2010.
P.122

13
respeitabilidade social e independência econômica destinadas as mulheres educadas que
por ventura da vida ou decisão não chegavam ao casamento.

No tempo que Wollstonecraft permaneceu na casa editorial de Johnson, ela pôde


trocar suas ideias de forma cômoda e aceita. Neste convívio, permitiu que a autora se
aprofundar em seu autoconhecimento, a qual aprendeu a se disciplinar, já que era
conhecida por ser passional, seguindo esta grande influência que seria o culto à razão de
procedência iluminista e liberal. Seu caminho dentro desta editora a tornou uma escritora
competitiva e competente, atenta aos grandes movimentos políticos, inclusive, diante
aquele que vai gerar seu mais famoso trabalho, a Revolução Francesa em 1789.

Deve-se neste momento tomarmos ao marco de 1789, que para os londrinos


radicais a revolução prometia uma nova era, um momento mais racional e mais livre. Tais
promessas afetaram todo o círculo que ambientava a casa Johnson, para Mary, este
evento a fez rever seus preconceitos e a fez abandonar os temas que eram reservados a
ela. Neste momento ela adentrou no debate mais ferrenho sobre educação e política.

A Revolução Francesa foi responsável por incentivar as discussões


revolucionárias na Inglaterra em torno do legado da revolução Gloriosa de 1688. O tema
da Revolução Gloriosa foi inserido por Richard Price, que era amigo e protetor de Mary.
O seu texto “Discurso sobre o amor e à Pátria”10, diz que a revolução foi inacabada, pois
sua reivindicação foi obscurecida pela intolerância e permanência de direitos hereditários.
No entanto, houve uma resposta de Edmund Burke, conservador, além de escrever o seu
discurso sobre a Revolução Francesa em 1790, ele toma para si a crítica feita por Price
sobre a revolução Gloriosa e a defende.

Wollstonecraft segue seu ideal de defender seu amigo. Instigada por Johnson, a
obra que causou a mudança em sua carreira foi o Vindication of Rights of Men
(Reivindicação dos Direitos do Homem), sua primeira de muitas respostas dadas à
Burke11. A primeira edição foi publicada anonimamente, a segunda já foi publicada em
seu nome, consagrando-a como escritora política. Nesta obra em que destaca sua posição
sobre ser representante do valor do esforço pessoal contra os privilégios herdados em sua
face mais radical. O que a destaca é sua observação e ousadia em questionar a maneira”

10
MIRANDA, Daniel. Introdução. In: WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulheres.
Trad. Andreia Reis do Carmo. SP: EDIPRO,2015. P: 9
11
Idem.P.10

14
natural” em que era vista a subordinação da mulher. Ela entende o que esta prática é para
seu próprio ser e para uma sociedade que sustentava toda uma diferença de gênero.

Para uma mulher fazer uma crítica sobre sua realidade, naquele momento, era algo
individual, era uma responsabilidade dada àquelas que conseguiram uma superioridade
intelectual. No entanto, ela buscou tratar o problema como social, ou seja, a situação da
mulher não era uma escolha individual e sim um resultado de um contexto de diferenças
de gênero do tempo protagonizado pela própria. Como resultado deste bojo foi a criação
de sua obra mais importante, a Vindication of Rights of the Woman, de 1792.

A Reivindicação dos direitos das mulheres foi certamente influenciada pela


promessa da Revolução Francesa, tal promessa era a possibilidade de mudança social e
igualdade. Todavia, mudança social e igualdade para quem? Este é o questionamento
iniciado pela autora. Afinal que direitos são esses em que ela não era incluída?
Compreende-se que a exclusão das mulheres da vida pública era resultado do
desenvolvimento político e de todo um pensamento filosófico que colocava no centro da
discussão o indivíduo. Logo, será no contexto revolucionário e filosófico que veremos a
discussão sobre os direitos femininos. Como exemplo, deve-se pôr em pauta, novamente,
que antes de Wollstonecraft, houveram Madame D’Epinay, Mary Astell como a própria
Olympe de Gouges e Condorcet que eram participantes da Revolução, já discordavam
sobre a situação feminina.

Sua obra foi muito bem aceita, não só na Inglaterra, mas também no restante da
Europa e nos Estados Unidos. Ela estava no auge de sua carreira com uma obra original e
todo um mundo particular repleto por tensões que continham ressentimento sobre a
educação sentimental das mulheres, razão, virtude e o próprio amor.

Obviamente, a vida de Marry Wollstonecraft não foi só lutas e questionamentos.


Ela teve em sua vida particular seus desencantos que a levou a duvidar de seus ideais,
amores não correspondidos, desilusões e filhos fazem parte de sua história. Mesmo sendo
interessante descrever todo seu processo pessoal, aqui se faz necessário apenas destacar
seu período em que esteve na França. Sua intenção pela sua passagem por lá, era
descobrir a si mesma, visto que estava em uma desilusão amorosa, e ver com seus
próprios olhos o resultado da revolução. Escreveu A Historical and moral view of the
origin and progresso f French Revolution and effect it has Produced in Europe, de

15
179412. Neste tempo ela como uma mulher rígida, fez-se tentar negociar sobre a “razão e
sua sensibilidade”, como o título da obra da autora Jane Austen. Mulheres como Mary
viviam seu próprio conflito por ter a ambiguidade de suas aspirações e as exigências
feitas pela sociedade.

Wollstonecraft, é conhecida por ser mãe da grande Mary Shelley, teve seu
casamento com seu antigo companheiro dissidente Willian Godwin. Ele em sua intenção
publicou obras póstumas e a sua biografia. Embora, acredita-se que tivesse uma boa
intenção, ele revelou seu lado doloroso que mancharam seu nome. Sua reputação foi
restaurada somente com o movimento sufragista no século XIX. Autoras como, Virginia
Woolf, nos EUA, viram-na como a primeira feminista.

1.2 A representação da mulher e a violência simbólica.

Para compreender o desenvolvimento intelectual da autora aqui estudada, é


necessário frisar os mecanismos que levaram e definiram a atuação da mulher na
sociedade do século XVI até XVIII, quiçá o atual.

Na obra de Pierre Bourdieu, a identidade feminina foi construída através de


normas e discursos criados pela ótica masculina, o que gerou dispositivos que foram
reconhecidos como atos de violência simbólica 13. Esta violência está presente na
história das mulheres em forma de discursos, práticas, manifestos públicos, estatutos,
que garante a eficácia de representações dominantes. Como uma forma incansável de
marketing, houveram inúmeras maneiras de justificar a inferioridade feminina, era
incansavelmente repetida no pensamento e nos corpos 14. Para Chartier (1995, p.40),
definir como violência simbólica a submissão compulsória imposta a mulher ajuda a
compreender a relação de dominação que foi imposta historicamente, cultural e
linguisticamente.

A dominação imposta nas mulheres pode ser ilustrada através do pensamento


apresentado segundo Gerda Lerner (2022, p. 44), em que descreve um longo caminho, a
qual afirma que a desvantagem entre os gêneros se inicia no âmbito educacional. A
12
MIRANDA, Daniel. Introdução. In: WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulheres.
Trad. Andreia Reis do Carmo. SP: EDIPRO,2015. P.11
13
Pierre Bourdieu, apund Roger Chartier
14
CHARTIER, Roger. Diferenças entre o sexo e dominação simbólica. ( nota crítica). In: Cadernos Pagu,
vol.4.1995.pp.: 37-47.

16
educação das mulheres em relação aos seus irmãos é desigual, o que é uma realidade,
que segundo a autora é quase universal, um privilégio de classe para poucas mulheres 15.
Lerner, ao discorrer sobre a educação, remonta que já no XIII, quando a educação se
tornou institucionalizada quando as elites precisaram manter sua posição de poder, e
assim, perpetuar-se. Dessa maneira, perpetuou seus valores morais e a solução
encontrada para gênero feminino é que as mulheres seriam educadas de forma menos
formal, embora esse olhar mudasse quando a mulher pertencesse a uma elite.

Durante toda a Idade Média, mulheres pertencentes à realeza e nobreza doaram


ou criaram conventos, os quais as filhas de nobres e algumas pobres, recebiam educação
simples como, religião, latim, leitura, escrita, canto e aritmética simples, entretanto,
todas as meninas eram treinadas no trato doméstico e em atividades relativas a costura.
O que a leitura de Lerner traz de interessante é a discussão sobre o privilégio
educacional até o surgimento do nível superior, que levou a crescentes divisões de
classes para homens que resultou em um meio de estruturar as diferenças de classe
permanentes resultando em divisões de gênero mais rígidas, o que gera as ilhas de
excepcionalidade da educação feminina tornando- as tão especiais, pois desses espaços
saem mulheres instruídas, com conhecimentos e talentos relevantes, apenas por existir
um abismo como comparação.

A autora generaliza, de forma consciente, que até o fim do século XVII, as chances de
qualquer mulher receber qualquer tipo de educação eram maiores quando ela era de
família mais abastada, filha em família sem herdeiros homens e se o pai fosse culto em
relação à educação. Essas combinações eram raras, mas existiam como, por exemplo, as
filhas de Sir Tomás Morus, o que a autora toma para si a expressão de Virgínia Woolf
“ filhas instruídas de homens instruídos.16”

Mulheres instruídas eram uma raridade, o que as tornam conhecidas são o fato
de existirem e não por suas produções. Visto que a educação é privilégio de classe,
outro ponto que é generalizante é o fato de serem solteiras. O destino da mulher é
implacável, principalmente quando se refere aos laços familiares, pois existe um padrão
em que é encorajado durante infância e juventude e desencorajado durante a vida adulta,
que resulta nas cobranças sociais sofridas até em tempos contemporâneos como

15
LERNER, Gerda. A criação da consciência feminista: a luta de 1200 anos das mulheres para libertar
suas mentes do pensamento patriarcal. Ed.Cultrix – SP, 2022.
16
Ibidem, 2022. P.:51

17
“quando irá se casar? ” e “quando será mãe? ”. Conquanto, existiram aquelas que
resistiram a pressão social entrando em conventos, pois não eram de sua vontade levar
uma vida que era considerada “ normal”. Enquanto, aquelas que escolheram a vida em
matrimônio não conseguiram repetir seus feitos intelectuais.

Portanto, pode-se entender que durante a Idade Média até o Renascimento, como
exemplo de Isotta de Nogarola17 , humanista que para manter-se como pensadora teve
que escolher o isolamento e a castidade para continuar com a respeitabilidade perante a
sociedade, essa cobrança social não era imposta aos homens de seu tempo. Logo, não se
pode confundir seu ato com a escolha de outros em ter uma vida religiosa, é que
simplesmente não havia espaço para uma mulher pensadora que não renunciasse à
sexualidade.

O marco para mudança intelectual na vida das mulheres foi a Reforma


Protestante. A doutrina trouxe a legitimação do estudo e educação individual das
mulheres. O protestantismo promoveu o desenvolvimento da educação pública nas
cidades protestantes, a princípio notório nos estados alemães 18. Era uma educação
rudimentar, mas era oferecida de forma igualitárias para ambos os sexos. Seu intuito era
formar religiosamente cada integrante pertencente a um núcleo familiar, desta forma,
não era só o pai responsável pela instrução religiosa, o papel da mãe foi ressignificado
como educadora. Nos séculos XVI e XVII, nos territórios alemães e na França houve
um aumento significativo de oferta educacional para meninos e meninas, embora as
mulheres continuassem em desvantagem.

Na Inglaterra, a educação feminina se restringiu nas esferas elitizadas, pois no


reinado de Henrique VIII, quando rompeu com a igreja de Roma, além de confiscar os
bens da Igreja, medida que prestigiou o rei principalmente entre a gentry, a pequena
aristocracia ligada às atividades mercantis, provocou o encerramento dos conventos e
escolas católicas em 1534. Outro fator apontado por Lerner ( 2022, p. 52), seria a lei “
proibia todas as mulheres, exceto as nobres e de boa estirpe, bem como os artesãos,
fazendeiros e serventes[...] de lerem a bíblia em inglês, em público e para terceiros”,
17
Isotta Nogarola, (Verona, 1418 - 1466), foi uma humanista, intelectual e autora de um vasto leque de
trabalhos, que abrangem os quatro géneros literários populares entre o universo humanista do
Quatrocentos – a epístola, o diálogo, o discurso e a consolatio - e que refletem a sua paixão pela educação
e pelos direitos femininos. In:RODRIGUES, Paula Cristina Pontes. ISOTTA NOGAROLA: A
HUMANISTA QUE A HISTÓRIA ESQUECEU (1418-1466) CONTRIBUTO PARA UMA VISÃO SOBRE
O HUMANISMO FEMININO RENASCENTISTA (Lisboa,2014)
18
LERNER, Gerda. A criação da consciência feminista: a luta de 1200 anos das mulheres para libertar
suas mentes do pensamento patriarcal. Ed.Cultrix – SP, 2022. P.:55

18
provavelmente, segundo a autora, o objetivo da lei fosse desencorajar o sectarismo
radical, o fato é que salvo as mulheres nobres, o restante da população era classificado
de maneiras diferentes.19 O resultado foi a redução de oferta e restando o meio particular
de tutores ou escolas ilegais não licenciadas. A escola primária tornou-se disponível
para a maioria dos meninos, porém para as meninas a educação era dada de forma
suficiente para que ela se tornasse competitiva no mercado matrimonial. Não havia
escola pública para meninas protestantes de classe baixa. 20.

No fim do século XVII, na França, Holanda e Inglaterra, algumas mulheres


identificaram a privação educacional como um fator de manutenção do status inferior da
mulher na sociedade. Desta maneira, deve-se compreender que a realidade das mulheres
inglesas, no tempo de Wollstonecraft (século XVIII), a maioria teria que viver sob a
tutela de pai ou de seu marido, aquelas que pertenciam a classe média tinham a
possibilidade de trabalhar em atividades que eram restritas a condição feminina. O que
torna Wollstonecraft um elemento fora do eixo, tendo ela iniciado uma produção
significante que envolvia política, romances e a própria filosofia, ela atingiu um patamar
de produção intelectual em um lugar onde era hegemonicamente masculino. Ela, em sua
produção, produz um questionamento que já estava em voga ao problematizar a situação
feminina e o pensamento enraizado sobre a natureza feminina.

Portanto, para justificar a importância Wollstonecraft é preciso retornar ao


pensamento do Chartier, em que a demanda da modernidade não atingiu a tradição, pois
com a revolução industrial a mulher teve que sair da esfera doméstica, mas esta esfera
não foi retirada dela. A diferença entre os sexos, que abrange da vida doméstica a
divisão de trabalho, é produzida por discursos. Bourdieu (2018, p.40) dirá que discurso
de visão androcêntrica ” legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma
natureza biológica que é, por sua vez, ela própria, uma construção social
naturalizada.”21Logo, o discurso não a mostra, apenas a define e a inventa.

19
LERNER, Gerda. A criação da consciência feminista: a luta de 1200 anos das mulheres para libertar
suas mentes do pensamento patriarcal. Ed.Cultrix – SP, 2022. P.52.
20
Ibidem, 2022. P.:249
21
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. A condição feminina e a violência simbólica. RJ,
Bestbolso,2018. P.40

19
1.3 – O direito de pensar e aprender.

Com a chegada do século XVIII, tivemos a renovação de paradigmas


conhecidos historicamente como Iluminismo, em que teremos a abundância de ideias e
de pensadores que usaram o termo razão não mais como algo uno e sim, como algo
mais amplo dotado de liberdade e mobilidade. Consoante a isto, teremos filósofos que
vão repensar a natureza, assim como a sociedade e as leis. Como não é prático para este
estudo relembrar todos os pensadores iluministas ficaremos com aqueles que pensaram
na sociedade e nas leis, como Montesquieu que aplica a noção de “ lei geral”, Voltaire
que postula que em leis que são universais a todos os homens, e o próprio Diderot que
em seu pensamento diz que as condutas humanas são baseadas em sua biologia.
Entretanto, aquele que será mais debatido no tema aqui proposto será Jean-Jacques
Rousseau.

Embora, com esta renovação que é entendida como um progresso intelectual


para os homens, não foi tão inclusivo em relação a outra parte da sociedade relativa às
mulheres. Segundo Karen O’Brien22 “trouxe, pela primeira vez, a ideia de que as
mulheres, assim como os homens, têm uma história, e que, longe de serem
compreendidas em termos de seus papéis biológicos, religiosos ou domésticos
imutáveis, elas também mudam com o tempo”. Assim, segundo Gomes, neste processo
foi mais difícil a iluminação das mulheres do que escrever ou pensar sobre a iluminação
das mesmas, afinal ainda estavam com as amarras intelectuais do século anterior, ou
seja, seguiam “Lei dos Costumes”23(RODRIGUES,p.48), em que eram enclausuradas
em estereótipos perpetuados desde a Idade Média.

Como foi dito, a educação é o fator que indica a inferioridade do gênero. Desta
forma, houve quem defendesse o direito a uma educação igualitária e direitos como
cidadã antes de Mary Wollstonecraft, ela foi a mais notória por separar as
reivindicações do contexto religioso por desafiar, fortemente, a definição de mulher
dependente e subserviente apresentada por Jean-Jacques Rousseau em Émile ou de l
´éducation (1762) e trazendo este contexto para a área cívica. Logo, é importante

22
Karem O’Brien, O’BRIEN, Karen. Women and Enlightenment in Eighteenth-Century Britain. New
York: Cambridge University Press, 2009. apund Anderson Soares Gomes. MULHERES, SOCIEDADE E
ILUMINISMO: O SURGIMENTO DE UMA FILOSOFIA PROTOFEMINISTA NA INGLATERRA DO
SÉCULO XVIII. Revista Matraga, Rio de janeiro, v.18 n.29, jul./dez. 2011. P.: 32
23
RODRIGUES, Ana Patrícia. In: O despertar da consciência cívica feminina, identidade e valores
femininos na literatura proto-feminista do século XVIII .Revista Interações, NO. 5, 2007. P. 46-59

20
referenciar pensadores que a influenciaram, dentre as personalidades que indicam o
pensamento próximo ao dela, a qual poderemos citar são: as inglesas Mary Astell,
Catharine Macaulay e os franceses Nicolas Condorcet e Olympe de Gouges.

Falar neste trabalho sobre o núcleo inglês e francês será importante para
entender a crítica da autora aqui estudada. Entende-se que ao registrar um pouco de
cada experiência irá construir o discurso usado por Mary Wollstonecraft. Este discurso,
que é no sentido foucaultiano, cujo sentido é definido como a articulação daquilo que
pensamos, dizemos e fazemos caracterizando determinado período, uma vez em que o
acontecimento discursivo são acontecimentos históricos. Em sua Arqueologia do saber
24
ele dirá que o procedimento arqueológico caracteriza o domínio do “ser-saber”, sendo
um saber é aquilo o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos
de que se ocupam seus discursos.

As autoras Mary Astell e Catharine Macaulay são importantes porque elas estão
intimamente ligadas à questão da educação feminina da Inglaterra. No final do século
XVII para o XVIII, temos Mary Astell, considerada a primeira a defender a educação
feminina fora da esfera doméstica e micro social.

Astell, conhecida por ser a primeira feminista inglesa, ela unificou os ideais
religiosos e filosóficos em um discurso em prol as mulheres, em que propôs que só
através da fé e de um cristianismo fundamentado e consciente a mulher poderia
ascender espiritualmente. Seus ideais estão relacionados a mulher ideal setecentista
vista como: casta, pia e virtuosa. Usando da lógica cartesiana, argumentou sobre a
igualdade absoluta e inerente entre homens e mulheres, defendeu que a natureza e o
comportamento feminino não são “naturais”, e sim de origem social. Logo, somente
uma educação de qualidade levaria as mulheres tomarem consciência de sua própria
situação que as ajudariam a se protegerem do poder masculino abusivo e, aquelas que
por ventura não pudessem evitar o destino do casamento ou tivessem a escolha deste
destino, o estudo traria o benefício da filosofia e da religião para tolerar o seu destino.

Ela foi a primeira a criar uma proposta de ensino superior voltado para mulheres,
que se tratava de um “internato utópico”, (RODRIGUES, P. 49) 25onde seriam
24
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
25
RODRIGUES, Ana Patrícia. In: O despertar da consciência cívica feminina, identidade e valores
femininos na literatura proto-feminista do século XVIII. RODRIGUES, Ana Patrícia. In: O despertar da
consciência cívica feminina, identidade e valores femininos na literatura proto-feminista do século XVIII
.Revista Interações, NO. 5, 2007. P. 46-59

21
transmitidos tanto conhecimentos anglicanos como seculares. Seu projeto fora rejeitado,
assim Astell se dedica a ensinar mulheres a pensarem de maneira clara e lógica. Ela era
totalmente crítica a instituição do casamento e defendida ao estado civil solteiro e, por
ser conservadora, aconselhava mulheres casadas a se submeterem como mártires ao
tratamento injusto e desigual, logo, sua recomendação era um casamento cauteloso ou
não se casarem, como na citação:

“ser Cristã verdadeira e ter um Espírito equilibrado, precisa de toda assistência


de da melhor educação que pode receber, e deve ter uma boa convicção de sua
própria firmeza e virtude, quem se aventura em tal provação, e , por esse motivo,
não se pergunta se tal mulher se casa precipitadamente, pois talvez, se as mulheres
dedicassem um tempo para considerar e refletir sobre isso, não se casariam”
(LERNER, p.257) 26

Conforme Lerner, outra autora que tem que ser esclarecida é Catharina
Macaulay. Também escritora, foi famosa em seu tempo sendo considerada a primeira
mulher historiadora inglesa. Era reconhecida intelectualmente por suas críticas ao
pensamento monarquista de Thomas Hobbes, ao conservadorismo de Edmund Burke,
em especial, crítica ao sexismo de Jean-Jacques Rousseau, por defender o
republicanismo. Ela era a favor da educação das mulheres.

Segundo Allan Coffe, Macaulay é apenas uma geração anterior que Mary
Wollstonecraft, no entanto, seu trabalho relativo à educação foi publicado dois anos
antes da obra Reivindicação dos direitos das Mulheres (1792) de Wollstonecraft.
Macaulay e Wollstonecraft se comunicaram, quando Mary entrou em contato com sua
antecessora, esta já era consagrada por sua obra a História da Inglaterra, que foi escrita
durante um período de vinte anos (1763-83). Segundo o mesmo autor, esta obra foi
bastante popular em seu tempo, superando a História da Inglaterra de David Hume
(1754-1761) (COFFE,p.1). 27

Macaulay entra em consonância com Mary Wollstonecraft, pois iniciou a crítica


à obra de Rousseau, Émile ou de l´éducation (1762). A filósofa defende que homens e
mulheres deveriam ser educados de forma igual, desta maneira não ocorreria a diferença
na natureza racional entre os sexos, a diferença seria dada apenas no âmbito social.
Posteriormente, Wollstonecraft, desenvolveu suas ideias, relacionando-as com os

26
Mary Astell, apund LERNER, Gerda. A criação da consciência feminista: a luta de 1200 anos das
mulheres para libertar suas mentes do pensamento patriarcal. Ed.Cultrix – SP, 2022.P.: 257.
27
COFFE, Allan. Catharine Macaulay's Influence on Mary Wollstonecraft. In: The Wollstonecraftian
Mind, Sandrine Bergès, Eileen Hunt Botting, and Alan Coffee (eds.), London: Routledge, 2019. P.1

22
princípios republicanos de igualdade e liberdade(COFFE,p.3) 28, para contrapor o fato de
que a Constituição Francesa de 1791 não incluía as mulheres na categoria de cidadãs.

As duas viveram períodos conturbados, Mary Astell vive no período pós-


Restauração (1660), enquanto Catharine Macaulay já vive nos tempos da Revolução
Francesa de 1789 e mesmo com as diferenças ideológicas elas tinham um elemento
comum que era a defesa da igualdade intelectual. A diferença entre elas se dá enquanto
Astell defendia uma educação com a criação de uma instituição exclusiva para
mulheres, sem interferência de homens e com o mundo exterior, com a justificativa que
as mulheres não tinham a maturidade suficiente para resistir às tentações do convívio
social. Macaulay, assim como Wollstonecraft --embora seja mais radical--, defende que
meninos e meninas têm que ter uma educação conjunta e igualitária.

No grupo francês, iniciaremos com um representante masculino: Marie Jean


Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de Condorcet ou Nicolas de Condorcet (1743-
1794), intelectual que em 1786 lançou as bases de uma declaração universal dos direitos
do homem, apoiou a revolução e o republicanismo. Um dos grandes filósofos do
Iluminismo francês e um dos principais teóricos da educação, ele tinha grande interesse
naqueles que eram os excluídos do Antigo Regime, entre estes interesses estão a
igualdade do direito.

Condorcet ficou conhecido como proto-feminista, pois defendeu o voto


universal para ambos os sexos na Revolução Francesa. Com uso de argumentos sólidos,
baseado nos princípios de uma cidadania universal. O filósofo que teve a influência de
Rousseau quando concorda com a ideia da soberania com o ato da criação de leis ao
afirmar que “ pertence ao povo, quer dizer, a universalidade dos cidadãos que ocupam
um território, e pode pertencer apenas a ele” ( REIS, p. 181) 29. Desta forma, afirma que
uma pessoa não pode impor quais regras vão vigorar para uma sociedade pelo fato disto
28
The republican is built around the central concept of freedom, which is understood as independence and
entails a commitment to both equality and virtue. This concept plays a foundational role in both
Macaulay’s and Wollstonecraft’s work, and provides the rationale for many of their arguments on a range
of issues such as education, citizenship, marriage, public deliberation, gender quality, and social reform.
COFFE, Allan. Catharine Macaulay's Influence on Mary Wollstonecraft. In: The Wollstonecraftian Mind,
Sandrine Bergès, Eileen Hunt Botting, and Alan Coffee (eds.), London: Routledge, 2019. P.:3
Tradução: O republicano é construído em torno do conceito central de liberdade, que é entendida como
independência e implica um compromisso com a igualdade e a virtude. Este conceito desempenha um
papel fundamental no trabalho de Macaulay e Wollstonecraft, e fornece a justificativa para muitos de
seus argumentos em uma série de questões, como educação, cidadania, casamento, deliberação
pública, qualidade de gênero e reforma social.
29
REIS, Patrícia Carvalho. O LEGISLADOR COLETIVO NA FILOSOFIA DE CONDORCET.
Revista Síntese, Belo horizonte, v.46. n.144, p 179-193. 2019. P.;181

23
ferir a igualdade. Nesta questão da igualdade ele vai incluir as mulheres, já que na
própria Declaração dos homens e do cidadão elas não foram incluídas. Defendendo o
direito de voto feminino na Assembleia Nacional, Condorcet ( CONDORCET, p.238-
239) diz:

Disseram que as mulheres, embora melhores que os homens, mais doces,


mais sensíveis, menos sujeitas aos vícios ligados aos egoísmos e à dureza do
coração, não tinham propriamente o sentimento de justiça, que elas obedeciam mais
verdadeira, mas não prova nada: não é natureza, é a educação, é a existência social
que causa essa diferença. Nem uma nem outra acostumou as mulheres à ideia do que
é justo, mas àquela que do que é honesto. Afastadas dos negócios, de tudo aquilo
que se decide a partir da justiça rigorosa, a partir de leis positivas, as coisas com as
quais elas se ocupam, sobre as quais elas agem, são precisamente aquelas regidas
pela honestidade natural e pelo sentimento. É, portanto, injusto alegar para continuar
recusando às mulheres o gozo de seus direitos naturais, motivo que têm uma certa
realidade apenas porque elas não gozam desses direitos.30

Neste trecho do texto Sobre a admissão das mulheres ao direito à cidadania


(1789) podemos observar que ele não nos mostra a questão do direito como natural e,
sim, como um fator social. O filósofo nesta sua obra nos dirá que não iria discutir se as
mulheres eram merecedoras devido suas aptidões ou de sua dita natureza postulada por
Rousseau, o que ele posta como inovador é no sentido de existir desigualdade através
das instituições sociais o feriria a ideia de igualdade. Condorcet, irá retirar do próprio
significado do que é direito natural, que a desigualdade de direitos entre homens e
mulheres é inútil e não tem outra origem são o abuso da força(VIDEIRA, p.13).31

Como é comprovado no seguinte trecho:

Então se as mulheres que têm, então, as mesmas qualidades, elas têm,


necessariamente, os mesmos direitos. Ou nenhum indivíduo da espécie humana tem
verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos; e aquele que vota contra os direitos
do outro, seja qual for a sua religião, cor ou sexo, a partir daí, abre mão dos seus.
Seria difícil provar que as mulheres são incapazes de exercer os direitos de
cidadania. (...)Admitindo, por enquanto, que existe nos homens uma superioridade
de espírito, que não é o resultado necessário de uma diferença de educação (que não
é de modo algum provada, mas que deveria ser, permitir que as mulheres sejam
privadas de um direito natural sem injustiça).32

30
Nicolas de Condorcet, Sobre a admissão das mulheres ao direito à cidadania (1789). In:
Arqueofeminismo: Mulheres filósofas e filósofos feministas séculos XVII-XVIII. São Paulo, 2019. P.:
238-239.
31
Cfr. Condorcet, Bosquejo de un cuadro histórico, cit., «Décima Época (os progressos futuros do
espírito humano)» p. 175. In: VIDEIRA, Susana Antas. IGUALDADE DE DIREITOS PARA
MULHERES E HOMENS: UM TESTEMUNHO HISTÓRICO INSPIRADOR. Revista da Faculdade
Mineira de Direito │V.20 N.40- P.13
32
Nicolas de Condorcet, Sobre a admissão das mulheres ao direito à cidadania (1789). In:
Arqueofeminismo: Mulheres filósofas e filósofos feministas séculos XVII-XVIII. São Paulo, 2019. P.:
235-236.

24
Portanto, o filósofo diz que não é só necessário admitir que a mulher deve ter
direito a ser cidadã como é necessário para toda a sociedade o direito a uma educação
comum para homens e mulheres. Ademais, é importante registrar que Condorcet, com
seu texto de 1789, irá inspirar as duas mulheres que serão aqui citadas, consideradas
pioneiras do feminismo moderno: Olympe de Gouges, que escreveu a provocativa
“Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, em setembro de 1791 e Mary
Wollstonecraft que escreveu a fundamental obra “Uma defesa dos direitos da mulher”
em 1792.

Olympe de Gouges é o pseudônimo de Marie Gouze (1748 – 1793). Ela é uma


representante do movimento extraordinário de mulheres na história, que diferente de
outras aqui já citadas, não era um caso isolado de mulher erudita. Como ela está situada
na época da Revolução Francesa, em que teremos aristocratas, burguesas, plebeias,
monarquistas e republicanas, entre outras tantas que expondo seus escritos, seus
pensamentos e suas lutas. Gouges configurou a ideia do patriotismo feminino, a qual
constata que a construção da rivalidade e a não sororidade feminina era realmente um
obstáculo social para a propagação de suas ideias.

Segundo Rovere (2019, p.248), fora dito que Gouges não foi uma boa escritora,
pois suas obras eram ditadas e editadas, mas suas propostas queriam melhorar as
condições de vida das mulheres em relação a: instauração de casamento civil, igualdade
entre os cônjuges, autorização para o divórcio, o reconhecimento de crianças nascidas
fora do casamento, criação de maternidades etc. 33. Partidária de uma monarquia
constitucional, ela se opôs, firmemente, contra os montanheses denunciando Marat e
Robespierre através de cartazes. Logo, não foi poupada pelo Terror, foi guilhotinada em
1793.

Gouges, como patriota, abraçou com destemor a Revolução. Porém cai em


desencanto com a constatação de que a égalité (direitos iguais), apontada na Assembleia
Constituinte, que após desfeita, não incluía as mulheres no que se refere à igualdade de
direitos. Ela redigiu um texto com um tom de humor, visto que com a ironia ela
englobava a realidade familiar e questionava a posição feminina. A Declaração de 1791
de Olympe de Gouges não é uma imitação da Declaração de 1789, ela demonstra que a
sociedade é formada pelos dois sexos e que a diferença sexual não pode ser dada através

33
ROVERE, Maxime. Apresentação, Olympe de Gouges. In: Arqueofeminismo: Mulheres filósofas e
filósofos feministas séculos XVII-XVIII. São Paulo, 2019. P.: 248

25
da política e nem na prática da cidadania. Ela denuncia a ingratidão do homem que
impede que a mulher também ascenda ao mesmo estatuto que ele, após a queda do
Antigo Regime. Como podemos ver nos três primeiros artigos:

Artigo 1º
A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As
distinções sociais só podem ser fundadas sobre o proveito comum.
Artigo 2º
O objeto de toda associação política é a conservação dos direitos
imprescritíveis da mulher e do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade,
a segurança e, sobretudo, a resistência à opressão.
Artigo 3º
O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação, que é a união
da mulher e do homem nenhum organismo, nenhum indivíduo, pode exercer
autoridade que não provenha expressamente deles. ( ROVERE,p.257-258)34

Suas palavras eram um ponto de esperança em uma realidade que não concebeu
as mesmas coisas em relação às mulheres, pois no período do Terror, Diretório, o
Consulado e depois Império os clubes das mulheres foram fechados e no período
Napoleônico, através do código Napoleônico de 1804, houve o retrocesso da condição
feminina a ser inferior e novamente dependentes de pais e maridos. Portanto, tendo
raros defensores, como o próprio Condorcet, Gouges teve como eco outras vozes
femininas, principalmente entre elas, Mary Wollstonecraft.

Assim, vimos que o pensamento formulado por Wollstonecraft teve muitas


vozes até chegar a ela. A posição feminina era debatida e constantemente silenciada
devido aos preconceitos e de acordo com os autores lidos, as próprias mulheres que
devido a uma estrutura ideológica e moral não se viam e não tinham as devidas
condições de combater.

34
GOUGES, Olympe de . Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. In: Arqueofeminismo: Mulheres
filósofas e filósofos feministas séculos XVII-XVIII. São Paulo, 2019. P.: 257-258.

26
Capítulo 2 – Fundamentos da crítica.

2.1- Natureza e comportamento (virtude).


Quando se é proposto estudar a história das mulheres, vemos que a partir de
1970 terá uma amplitude que também acompanhou as campanhas feministas. Ressalta-
se que neste caminho há um predomínio da imagem atribuída a mulher, sendo ela vítima
ou rebelde. O que torna importante uma ampliação das concepções habituais de poder,
seguindo a contribuição de Michel Foucault, diante uma obra que credita atenção na
Revolução Francesa quando as mulheres vislumbram brechas no sistema de poder.

Na Microfísica do poder, 35Foucault, propõe a noção que o poder não possui um


determinado lugar na sociedade, ele se encontra em todas as relações sociais. Logo,
todas as pessoas o exercem ao mesmo tempo em que sofrem do seu exercício,
dependendo do papel social que estão ocupando naquele instante na sociedade. No caso
proposto por este trabalho, como exemplo: a mulher é posta a obedecer às ordens de seu
marido, mas dá as ordens para a sua empregada. Ela dá ordens aos filhos, mas obedece
tudo o que o seu pastor manda fazer.

Dessa maneira, nos é levado a entender que as percepções visíveis de exercício de


poder são reflexos das relações que já ocorriam em pequena escala. O que devemos
perceber é o papel da mulher nessa escala do poder, o limite que foi permitido para ela
ao longo da história ocidental é posto como ser inferior e interior porque é ensinado.

Todavia, para iniciar pequena analise da obra de Wollstonecraft é necessário


entender conceitos que foram confrontados pela autora em parte de sua obra, além
daquele que é parte essencial deste trabalho, pois antes de definir seu pensamento sobre
os libertinos, temos que compreender o que é a natureza e a virtude apontados pela
autora e, assim, entender esta relação de poder.

No capítulo dois da Reivindicação(2015,p.45), Wollstonecraft inicia com a


Discussão da opinião geral do caráter sexual com a tentativa de explicar e justificar a
tirania do homem e questiona o porquê à mulher é negada o intelecto suficiente para
merecer a virtude. A virtude no questionamento filosófico não há uma concordância de
35
FOUCAULT,Michel. Microfísica do poder. Michel Foucault: organização e tradução de Roberto
Machado-RJ. Ed. Graal. 1984.

27
seu significado, mas existe uma concordância entre sofistas, platônicos e aristotélicos,
pois concordam, de alguma forma, que justiça e felicidade é o objetivo a qual devemos
educar os jovens, e chama-se “virtude a prática que leva a essas coisas, em prol dela
devemos concentrar todos nossos esforços”(SANTOS, p.15).36Desta maneira, a autora
continua a questionar :

É dito às mulheres desde sua infância, e são ensinadas por meio do exemplo
de suas mães, que um pouco de conhecimento da fraqueza humana, corretamente
denominada de astucia, suavidade ou serenidade, obediência aparente e uma atenção
escrupulosa a tipo pueril de decoro, trará a elas a proteção de um homem(...)
(2015,p.41)37

Pode-se ver neste trecho o início do questionamento provocado por Wollstonecraft, em


que refletirá o sentido de virtude, que para autora o significado está atrelado à forma de
educação, mas diferenciando aquele aplicado para o homem e aquele que será aplicado
para a mulher. Para compreender melhor essa diferença proposta, devemos compreender
que no século XVIII houve a mudança no sentido de constituição familiar, os moldes
familiares nucleares que perpetuavam neste período, firmou-se junto com a
consolidação da burguesia em conjunto com os valores sociais e morais pautados por
esta classe.

Lembrando que a família é considerada ao longo da história uma instituição


política e Natural. Segundo Lawrence Stone (1990, p.18), “a pressão da urbanização e
industrialização afetaram mais as classes médias e baixas” 38, a qual a família deixou de
ser uma unidade de produção passou a situar-se fora dela, no âmbito público. Diante
disso, fixou-se papeis dentro da sociedade que cabia aos homens o lugar público, a qual
têm a produção, o poder e decisões, e, à mulher, em sua oposição, caberia o espaço
privado a afastando das decisões públicas. Esta visão moderna privilegiava a mulher
apenas como mãe, positivando os atributos ditos femininos, que tornará o sentido de
virtude e naturalidade e, a partir desta ideia, assim como outros filósofos deste período,
Rousseau, um conservador e calvinista, não se afasta desta divisão, por conseguinte,
criticado por Wollstonecraft.

36
SANTOS, Guilherme Celestino S. Aprendizagem da Virtude em Aristóteles. Revista Ítaca, UFRJ. RJ n
15. 2010. P15
37
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulheres. Trad. Andreia Reis do Carmo.
SP: EDIPRO,2015. P.: 41
38
STONE, Lawrence. Família, sexo y matrimonio em Inglaterra, 1500-1800.Fondo de Cultura
Económica, México.1990

28
O genebrino foi o responsável pelo discurso que influenciou a constituição da
mulher na sociedade moderna. Ele postulou uma divisão dos gêneros através de suas
características biológicas, assim definindo papéis específicos na sociedade, reafirmando
o homem/público e mulher/ privado, assim, tendo como resultado o ideal de
feminilidade. Este ideal que tem como características a mulher como frágil, emotiva,
dependente, instintivamente maternal e sexualmente passiva. Endossando a justificativa
conservadora e, desta forma, perpetuar a dominação masculina sobre a mulher. Da
crítica de Wollstonecraft, sobre a posição de Rousseau, pode ser observada no seguinte
no trecho:

Rousseau declara que a mulher nunca deveria, por nenhum momento, sentir-se
independente, mas que deveria ser governada pelo medo de exercer sua astúcia
natural e fazer dela uma escrava a fim de torná-la um objeto mais atraente, uma
companheira mais doce para o homem, sempre que ele decidir relaxar-se 39

Percebe-se que a autora indica a forma de educação apontada por Rousseau. Ele
pregava a favor de uma educação para as meninas voltada a necessidade de controlar e
disciplinar os sentimentos e desejos, considerando fundamental adestrá-las para que
pudessem servir melhor aos homens de quem naturalmente eram dependentes.

No capítulo V do livro Emílio ou da educação, seu autor trata da educação da


personagem Sofia. Nele indica que a Sofia deve aprender a cantar, dançar e saber
conversar de forma alegre, sem ter muita profundidade. Rousseau dirá que a educação
não deve ser igual e deve seguir a natureza, pois ele seguirá outros filósofos que
privilegiam a natureza como fundamento da moralidade, logo, se o que é natural é
moral, homens e mulheres não devem fazer as mesmas coisas. 40 Ele dirá em outra
citação, que “ arte de pensar para as mulheres não era estranha, mas elas não devem
interessar-se senão ligeiramente pelas ciências de raciocínio. Sofia tudo concebe, mas
retém pouca coisa( 2014, p.502)41.”Ou seja, pode-se compreender que ele não nega a
razão, mas a proposta de educação para as mulheres é dada de forma ofuscá-las e
constrangê-las:

Resulta desse constrangimento habitual uma docilidade de que as mulheres


precisam durante toda a vida, pois nunca deixam de estar sujeitas quer a um homem,
quer ao juízo dos homens, nunca lhes é permitido colocarem acima desse juízo. A
primeira é a doçura; feita para obedecer a um ser tão imperfeito quanto o homem,

39
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulheres. Trad.Andreia Reis do Carmo.
SP: EDIPRO,2015.P.: 41
40
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. Trad.Roberto Leal Ferreira. SP.Ed. Martins
Fontes,2014.p.524.
41
Ibidem 2014.p.502.

29
tantas vezes tão cheio de vícios e sempre tão cheios de defeitos, ela deve aprender
cedo a suportar até a injustiça, assim como os erros do seu marido sem se queixar.
(2014,p.536)42

Portanto, este breve esclarecimento, é para compreender que o que Rousseau diz
sobre a natureza da mulher não é justificável, de acordo Mary Wollstonecraft. Ele não
retém a mulher na condição “ feminina” de forma social ele tentará recolocá-la na esfera
determinada para ela, a esfera da família, logo do mundo privado, assim, seu lugar
natural. Enquanto a virtude, esta, é ligada ao seu comportamento, como castidade, moral
e integridade, e não ao seu intelecto.

Segundo Costa, ao citar Landes, dirá que o significado de virtude tem em sua
etimologia a raiz vir que denotam masculinidade, que é associada a valor, resistência,
força, controle e dever, que para Rousseau ter autocontrole e dever eram características
masculinas,43 em que o homem virtuoso, dentro de uma república, necessita do apoio de
outra mulher virtuosa, ou seja, a casta, a doce, cujo dever é no lar. É importante frisar
que a obra Emílio apresenta nuances da ideologia dominante, pois não há avanço --ou
não foi permitido--do papel da mulher na sociedade, mantendo assim o seu status quo, e
ao retornarmos a proposta de Foucault veremos que a questão da mulher com sua
educação e seu poder de representação não é algo natural e sim uma relação de poder.

2.2- Libertinos e seus jogos.


Os libertinos foram outro elemento foco da crítica de Wollstonecraft. Entretanto,
deve-se fazer uma explicação antes de adentrar profundamente nesta proposta. Segundo
Raymond Trousson, libertino é proveniente da palavra “libertinus” que o direito romano
opõe ao homem nascido livre. O termo aparece pela primeira vez em francês em textos
de Calvino para designar os dissidentes oriundos de seitas protestantes no Norte da
França, em que em tom de censura, consideravam religiões reveladas imposturas,
afirmarem que a única moral é a natureza e interpretarem a sua maneira a palavra
sagrada.44
42
Ibidem ,2014.p.536
43
COSTA, Marta Rios Alves Nunes da. O desafio da igualdade de gênero à luz da herança e das
contradições de Rousseau. Revista dois pontos. Curitiba, São carlos, volume 16, número 1,p.164-
176,2019. P.:171
44
TROUSSON, Raymond. Romance e libertinagem no século XVIII na França. IN: NOVAES, Adauto
(org.) libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras,. P. 165-183. 1996

30
O imaginário libertino já tem no século XVI inúmeros significados, mas é no
século XVIII quando foi influenciado pelos ideais iluministas que ele tomará o sentido a
qual foi mais popularmente conhecido, encontrado nos romances literários e na cultura
popular. Sua influência concretizou-se no pensamento anticlerical, promoveu o
intercâmbio intelectual contra a intolerância do Estado, crítica à moral e aos valores
estabelecidos. Nesse novo cenário filosófico e social, podemos dizer que a libertinagem
à moda francesa do século XVIII foi uma ruptura nos códigos e representações sociais e
principalmente nas representações sexuais, em que temos, segundo Sergio Paulo
Rouanet45, uma dissociação entre saber e prazer.

O pesquisador propõe uma divisão entre libertinagem erudita (ligada às ideias)


e libertinagem dos costumes (ligada às práticas) e defende que havia um acordo, não
explícito ou conspiratório, entre filósofos e libertinos, que levava os primeiros a
atacar as bases políticas do Antigo Regime, enquanto os segundos atacavam suas
bases morais. Segundo esta linha de pensamento, ambos (filósofos e libertinos)
pregavam a liberdade. No entanto, não podemos fazer uma divisão rígida, pois os
filósofos muitas vezes escreviam obras obscenas – como é o caso de Bijoux
indiscrets (1748), de Diderot (1713-1784). A filosofia e a literatura tinham fronteiras
fluidas, portanto, eram libertinos ao mesmo tempo no plano intelectual e nos planos
dos costumes46.

Mesmo compreendendo que há uma divisão entre os tipos de libertinos, temos que frisar
o ponto da igualdade social, pois este é o que deve ser discutido porque entra em
relevância com a mudança na estrutura da propriedade privada. É visto que há
discussões sobre o uso livre do corpo para homens e mulheres. As mulheres, que foram
hostilizadas pelos iluministas no XVIII, terão seus corpos transformados em objetos de
prazer, visto que igualdade de gênero e igualdade social não são discutidas, pois o
libertino se trata entre pares47e, também, não é discutida pelos filósofos, pois para
alguns deles as mulheres não teriam virtude suficiente.

Na literatura libertina é interessante notar que existe uma classificação, que além
do próprio libertino, também apresenta a figura não mais atraente, porém mais
difundida, do janota ou roué (na tradição francesa), que é aquele personagem
empenhado em fazer aumentar sua lista de conquistas, sem jamais se fixar em nenhuma
delas. Ele se tornou um personagem mais narcisista que orgulhoso, frequentemente

45
ROUANET, Sérgio Paulo. O Desejo Libertino entre o Iluminismo e o Contra Iluminismo. In: O
Desejo/ organizado por Adauto Novaes. Ed. Cia das Letras, RJ. 1990.
46
ARAUJO, Caroline S. Cunha de. Porque Faublas tem mais leitores que Homero”: estudo sobre o
romance Os amores de um libertino, de Louvet de Couvray, e sua trajetória no Brasil no século XIX.
UERJ. 2015.
47
CARVALHO, Sônia Maria Materno de. Libertino: Um significante e seu deslizar de sentidos. Ipotesi,
revista de estudos literários Juiz de Fora, v. 4, n. 1 2009.p. 125 a 134. P:.130

31
sarcástico, porém amável. Segundo Carvalho, os roués serão a forma mais agressiva do
libertino, pois estes tornam públicas suas conquistas, eles quebram a regra da
privacidade das aventuras. O comportamento deles, a emoção e o desejo cedem lugar à
vaidade e a dominação e o prazer são substituídos pela reputação de invencível. Ele joga
suas redes, prevê suas rupturas, medita seus lances como um xadrezista e deleita-se com
o prazer de prejudicar e destruir.48

Compreender os roués será necessário para olhar os atores destes romances, pois
são eles serão quem vão dar vida ao imaginário do libertino mais difundindo que caiu
no gosto popular de leitura. Contudo, não podemos desviar o olhar para a mulher, sendo
ela caçadora ou a caça é um elemento essencial, pois serão elas encarregadas de exibir a
virtude e moral. É ela quem é sempre conduzida para o jogo engenhoso do libertino, a
qual só pode se defender através da dissimulação e do artifício. Deve-se observar que
quanto mais virtuosa, mais dispostas a um jogo desigual porque são raras as Juliette,
como a de Sade49, em que fazem uma ação refletida e um empreendimento de
dominação.

Embora, ambos os sexos podem parecer desempenhar o mesmo papel na sociedade


descrita pelos libertinos, o homem pode abrir sua vitória, enquanto a mulher tem que
ficar às sombras porque se essa for descoberta pode trazer o escândalo, ou seja, ela não
poder trazer para o público aquilo que deve acontecer no privado, retomando a um
ponto apontado no tópico anterior, o lugar da mulher é no privado. Assim, as heroínas
libertinas e precursoras do feminismo vivendo como iguais aos homens são difíceis de
serem encontradas porque o universo libertino é androcêntrico.

Com o passar do tempo, o termo libertino será finalmente utilizado para todos
aqueles que pensavam e agiam contra os costumes ou contra a ordem social vigente 50.
E, assim, a transgressão dos libertinos propunha uma concepção desconcertante de
liberdade, que se confundia com libertinagem e adquiria, no século XVIII, a
configuração de um jogo de sedução que seria amplamente explorado dentro do mundo

48
TROUSSON, Raymond. Romance e libertinagem no século XVIII na França. IN: NOVAES, Adauto
(org.) libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras, P. 165-183. 1996. P>:172
49
Marquês de Sade. Os infortúnios da Virtude.
50
Idem.

32
literário 51. Este jogo tinha como finalidade preencher a existência ociosa dos nobres
aristocratas, que viviam uma vida cercada de privilégios e tediosa.

Portanto, os libertinos, seguindo a premissa apontada por Carvalho, é possível


que representem uma crítica a própria ilustração e sua visibilidade, veremos mais à
frente que os libertinos eram, também, divulgadores de ideias ilustradas. Todavia, a
ilustração, que não é o mesmo que iluminismo, segundo Rouanet, é um termo ambíguo
pois ele é emancipatório quando indica que não há interdições sobre a visibilidade
porque teria uma extinção da fronteira daquilo que é público e privado, embora seja
inquietante quando esta barreira é quebrada. Logo, o roués, que foi referido
anteriormente, tem um jogo agressivo em que a visibilidade apesar de trazer-lhe a glória
também o prejudica.

Consequentemente, conforme o libertino faz parte de aristocracia, com a Revolução


Francesa, após a implantação de uma ordem burguesa, que projeta o sentido de respeito
à ordem, família e aos bons costumes, logo, esta nova ordem os fazem sucumbir.
Devido a lógica proposta pelos burgueses, que não tem um futuro pronto, precisa
trabalhar para viver e construir fortuna. Quer deixar algo para a posteridade, algo que é
material e não glórias, por que estas não são herdadas. O burguês, que não tem
ascendência, faz sua descendência através do casamento, da família, valores estáveis e
seguros, algo que o libertino não sabe honrar. Assim, o libertino representa valores do
Antigo Regime, logo, ele não poderia fazer parte em sua totalidade na luz da nova
ordem, ele ficará no crepúsculo e na licenciosidade.

51
CARVALHO, Sônia Maria Materno de. Libertino: Um significante e seu deslizar de sentidos. Ipotesi,
revista de estudos literários Juiz de Fora, v. 4, n. 1 2009.p. 125 a 134

33
Capítulo 3- Crítica aos libertinos e a ética cavalheiresca

3.1- Rousseau, e sua importância na crítica Cortesã.


Virginia Woolf dirá em seu em seu ensaio Mulheres e Ficção que

“ A história da Inglaterra é a história da linha masculina, não feminina. De nossos


pais sempre sabemos de alguma coisa, um fato, uma distinção. Eles foram soldados,
marinheiros, ocuparam um cargo ou fizeram tal lei. Mas de nossas mães, avós, de
nossas bisavós, o que resta? (...) nada sabemos sobre elas, a não ser seus nomes,
datas de casamento e números de filhos que tiveram”. 52

O que Woolf escreveu foi no século posterior a Wollstonecraft, o tempo pode ter
passado, mas ainda analisamos que a história da mulher tem vácuos e silêncios. No
mesmo ensaio Woolf dirá que para mulher era mais fácil escrever romances, e a
explicação não é complicada de entender, é que para escrever uma ficção a escritora
poderia parar o pensamento e retomá-lo depois, o que não é fácil quando se está
escrevendo uma poesia ou um ensaio. Este raciocínio é para instigar o pensamento de
como Wollstonecraft se destacou no que nos remete as mulheres do século XVIII.

Wollstonecraft, teve em sua vida uma trajetória singular, já que ela conseguiu
um destaque significativo como escritora e intelectual em um contexto social em que as
mulheres eram submetidas quase com exclusividade ao ambiente doméstico. Ela
defendia a igualdade entre os sexos dentre os pensadores iluministas. Todavia não está
inserida totalmente no contexto canônico.

Segundo Perea (2014, p.112), a ausência da filósofa em textos canônicos como


Cassiere é devido seu pensamento transgressor. Seu pensamento não só fascinou as
feministas como também os pensadores da esquerda mais radical resultado sua crítica
ilustrada a própria ilustração, podendo ela ser um dos pensadores mais eminentes do
pensamento ilustrado53.

O intuito da autora era abordar o destino da mulher a partir de uma perspectiva


exclusivamente política, assim, sua argumentação era centrada na formação da
identidade feminina diante a opressão cultural. Ela não concebia a desigualdade ou
hierarquias naturais pregadas majoritariamente entre os iluministas, pois acreditava que

52
WOOLF,Virgínia. Mulheres e ficção;Trad.Leonardo Fróes. São Paulo. Ed. Cia das Letras, 2019. P.10
53
PEREA, Issac P.J. Moctezuma.La crítica de Mary Wollstonecraft a la crítica Cortesana e Caballeresca.
In: Filósofas de la Modernidad temprana y la Ilustración. Homenaje a Laura Benítez y José Antonio
Robles. Org.: Viridiana Platas Benítez Leonel Toledo Marín. Universidad Veracruzana 2014.P.112

34
qualquer distinção alheia a razão seria ilegítima. Wollstonecraft dirá que: “A mente
sempre será instável se apenas tiver preconceitos para se basear, e esta funcionará com
fúria destrutiva quando não houver barreiras para quebrar sua força.”54

Nesse contexto, entendemos que ela não estava só em sua contestação. Como foi
exposto no capítulo anterior, no século XVIII, a divisão entre libertinos eruditos e dos
costumes havia uma linha tênue, assim, filósofos também eram, em parte, libertinos.
Dessa maneira, é entendido que a bandeira da igualdade entre os sexos também era uma
bandeira das luzes, entretanto, tinha a ajuda na divulgação das ideias através das
publicações libertinas já que elas eram propagadoras dos ideais ilustrados. O problema
desse “marketing” era justamente seu poder de alcance e aquilo que foi absorvido pela
população, seja a camada mais erudita quanto as alcovas.

55
Podemos seguir o raciocínio de Rétif de la Bretone em que diz que que no
século XVIII o pensamento ilustrado tinha seus regentes que eram Rousseau, Voltaire,
Diderot e Montesquieu. Posto isso, é preciso dizer que em grande parte dos filósofos
eram “feministas”, ou seja, propagava o igualitarismo seja sexual seja econômico, com
exceção de Rousseau. Voltaire tinha boas relações motivações para proclamar o
igualitarismo, pois era amigo de mulheres excepcionais, logo, afirmava que mulheres
deveriam ser tratadas como seres pensantes. Diderot denuncia a educação
embrutecedora dada as mulheres nos conventos e diz “ foi a tirania do homem que
transformou em propriedade a posse da mulher”. Não se pode esquecer do próprio
Condorcet, que já foi falado.

Portanto, associar os libertinos a Rousseau se faz necessário, porque os


libertinos como divulgadores de ideais ilustrados e apesar de muitos serem igualitários,
as obras mais difundidas tinham bases rousseaunianas, logo, seu modelo de mulher ideal
foi o mais propagado. Um exemplo seria a obra, conforme Rouanet, Les Amours du
Chevalier de Flaubas (1787), do escritor Jean-Baptiste Louvet de Covray (1760-1797),
em que o protagonista se apaixona por uma forma idealizada feminina com traços pré-
românticos idênticos ao da Julie personagem criado por Rousseau em sua obra La
nouvelle Heloïse (1761).

54
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulheres. Trad. Andreia Reis do Carmo. SP:
EDIPRO,2015. P.42
55
ROUANET, Sérgio Paulo. O Desejo Libertino entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. In: O Desejo/
organizado por Adauto Novaes. Ed. Cia das Letras, RJ. 1990. P.172

35
Wollstonecraf era rousseauniana e reconhecia sua genialidade, ela concordava
com ele enquanto encara os costumes aristocráticos que prezam honrarias, reputação e a
aprovação frente à opinião alheia como alienantes e sem profundidade. Para ela essas
relações típicas do Antigo Regime deformavam as relações sociais. Entretanto, com a
obra Emílio ou da Educação (1762), a filósofa se deparou com seguintes afirmações do
autor: ‘que a opinião alheia, principalmente a masculina, deve ser o guia delas” 56 e, que
“uma mulher intelectual é o flagelo de seu marido, de seus filhos, de seus amigos, de
57
seus empregados, de todo mundo” . Em dissonância com essas afirmações,
Wollstonecraft busca dirigir-se ao genebrino, com o objetivo de pontuar as passagens
que ela considera problemáticas diretamente na obra dele.

Dessa maneira, a participação de Rousseau na vida intelectual da autora,


conforme Nunes, será justificada por duas razões: A primeira será por questões
institucionais, em que Emílio serviria de inspiração para a educação pública
58
implementada na França. A segunda razão-- e a que devemos prestar atenção-- se dá
pela importância do genebrino na formação autodidata de Wollstonecraft. Suas leituras
feitas da obra de Rousseau permitiram que ela consolidasse seu arcabouço teórico e
aprendesse sobre igualdade e a questionar a origem e os fundamentos das
desigualdades, assunto interpelado pelo próprio filósofo. Em certo ponto ela
compreendeu que, ainda que o filósofo pautasse as questões da desigualdade, ele não
questiona a situação das mulheres, apenas reforça a mentalidade vigente, ou seja, ao
analisar os manuais dos defensores da ilustração ela se deparou que os mesmos ainda
mantinham os vícios da sociedade cortesã, que eram baseadas em falsa observações que
justificavam a subordinação das mulheres.

Destarte, Mary Wollstonecraft, como pensadora iluminista, contrariou Locke ao


dizer que tanto homens e mulheres têm direitos naturais, ela contribuiu para expandir
este pensamento para mulheres, como leitora ela aceitou as ideias de educação para
meninos em Rousseau, mas rejeitou seu conservadorismo em relação a educação
feminina. Embora o trabalho de Wollstonecraf não seja o primeiro a conter teoria do
feminismo, é a primeira a fazer uma teoria a favor de uma igualdade de forma
56
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. Trad.Roberto Leal Ferreira. SP .Ed. Martins
Fontes,2014.p.559
57
Idem,2014.p.600
58
NUNES, Sarah Bonfim Matos. O PAPEL DA RAZÃO NA EMANCIPAÇÃO FEMININA: MARY
WOLLSTONECRAFT E SUA REIVINDICAÇÃO. Universidade Estadual de Campinas. Campinas. SP.2021.
P.:13

36
libertadora mais ampla na sociedade, apesar de não se afastar totalmente do lugar posto
a mulher, o de mãe e esposa, ela propõe a questão da escolha e uma vida doméstica e
não o seu confinamento.

2.2 - É costume e não natureza!


Wollstonecraft tinha repulsa à tolice feminina, que incluía a questão da
delicadeza do corpo, a leitura de romances, a música, a poesia e a galanteria que levam
as mulheres a tornarem-se criaturas da sensação. Ela dirá que a sobreutilização da
sensibilidade reduz naturalmente outros poderes mentais. Ela terá uma crítica severa
para aquilo que ela chamou de sensibilidade, ou seja, tudo aquilo que é dito que as
mulheres devem aprender. Desta maneira, em seu estudo, as mulheres são socializadas
para serem escravas de seu corpo e de sua sexualidade. Diante a isso, sua crítica será
contra a desigualdade artificial criada pela divisão por gênero.

Segundo a filósofa, as mulheres de sua época não se encontravam em seu estado


natural. Começou a questionar, através da lógica que se Deus criou o homem e a mulher
e este mesmo Deus deu a eles uma alma imortal, portanto, Deus requer que ambos
sejam virtuosos, porém a virtude só poderá ser conquistada através da razão e a virtude
não foi separada por gênero. Logo, não é natural que a mulher não exerça sua razão.
Consequentemente, os manuais de educação, em que diziam que através dela é formado
um indivíduo e não por suas condições naturais, mas ao dizer que mulheres têm que
aprender ser dóceis e frágeis, brincar de bonecas e ter conversas rasas, portanto é
confundir costume com natureza.

Eu posso ser acusada de arrogância; ainda sim, preciso


declarar o que realmente acredito, todos os escritores que têm escrito
sobre educação e maneiras femininas, de Rousseau a Dr. Gregory, tem
contribuído para tornarem as mulheres mais artificiais, personagens
mais fracas do que seria em outro contexto; e, consequentemente seres
mais inúteis para sociedade59
É interessante refletir sobre o desenvolvimento do libertino do século XVII para
o XVIII. Pois é do meu entendimento que o libertino erudito, comum no XVII, levou
esta alcunha por ser um revoltoso da classe alta contra a moralidade e a ortodoxia da
Igreja. Prosseguindo o raciocínio, chegamos ao século XVIII estes mesmos eruditos que
59
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulheres. Trad. Andreia Reis do Carmo. SP:
EDIPRO,2015. P.43

37
eram críticos não só sociais quantos dos costumes aristocráticos, seriam os livres
pensadores dispostos à experimentação sexual e literária, assim proponho a hipótese que
há uma amálgama a qual todo libertino erudito tem traços de libertino dos costumes. É
possível estabelecer esta conexão através do mercado editorial no XVIII. O que eu
quero dizer é que o libertino dos costumes pode estar relacionado ao desenvolvimento
da literatura pornográfica e popular.

Não é a minha intenção trazer a história da pornografia, pois os estudos apontam


seu desenvolvimento no século XVI. Todavia, de acordo com Lynn Hunt, não se pode
provar que seja coincidência a ascensão das publicações pornográficas nos anos de 1740
ser simultânea ao início do apogeu do Iluminismo e a crise geral da sociedade política
europeia. O ano de 1748, tão rico em produção pornográfica, também foi o ano da
publicação de L’Esprit de lois, de Montequieu, e L’Homme machine de La Mettrie60.

A crítica iluminista contra a rigidez do clero, censura policial e principalmente costume


morais ofereceu um espaço favorável para o ressurgimento do pensamento erótico que,
mais tarde, foi profundamente impactado pelo materialismo. Segundo Jacob, autores
pornográficos apropriaram-se do materialismo metafísico para descrever, erotizar e
61
pregar a ética do libertino, através do anonimato e da clandestinidade. Assim, pode-se
compreender que a literatura pornográfica tem o seu potencial democrático e popular
devido ao seu discurso com ataques políticos, alçados na Revolução Francesa, acrescido
a sua associação com a cultura impressa e com as filosofias materialistas. O que
devemos compreender e especular é que o público que possuía alguma renda extra, a
burguesia, é o que consumia a literatura pornográfica e o mesmo que consumia os
jornais e os romances.

Com esse potencial é que chegamos próximo ao objeto de estudo, pois os


primeiros autores ditos pornográficos não eram feministas, suas publicações
valorizavam a determinação sexual muito mais que os textos médicos. Portanto,
segundo Hunt, a pornografia estruturou uma representação literária e visual do corpo

60
HUNT, Lynn. Obscenidade e as origens da modernidade, 1500-1800.In: Invenção da pornografia:
Obscenidade e as origens da modernidade. Organização Lynn Hunt; Trad. Carlos Szlak. SP. ED. Hedra,
1999. P.34
61
JACOB, Margaret C. O mundo materialista da pornografia. In: Invenção da pornografia: Obscenidade e
as origens da modernidade. Organização Lynn Hunt; Trad. Carlos Szlak. SP. ED. Hedra, 1999. P.173

38
feminino como um objeto público a serviço do homem62, o que contribuiu para a
incompatibilidade dos novos ideais políticos e sociais já propagados no século XVIII .

É neste momento que se pode dizer que a literatura libertina dos costumes
ajudou na divulgação e propagação do pensamento que é combatido por Wollstonecraft.
Segundo Perea, os prejuízos da reprodução praticamente ao pé da letra, com mínimo de
embasamento científico proveniente dos ilustrados, os manuais de educação voltados
para mulheres, que deveriam ser um lugar de discussão, se tornaram um ponto de
encontro entre o pensamento aristocrático e o pensamento burguês de modo justificar o
domínio do homem sobre a mulher63.

Para compreender este ponto, devemos seguir conforme Hayden White, ao propor que
as obras distribuídas naquele período há um controle da narrativa. Para entender um tipo
de discurso tem que compreender que existe a diferença entre uma interpretação dos
fatos e uma “estória” contada sobre eles. Deve-se ter uma noção do que é real (contra
uma imaginária) e aquilo que é estória 64, e neste caso, o que interessa é elaboração do
enredo. Porque irá predominar, como representação figurativa de eventos reais, a visão
daqueles que dominam regem a forma de enxergar a realidade.

Com isso, conforme Rouanet, a literatura libertina na elaboração do seu enredo


acentua um aspecto específico da opressão sofrida pela mulher, que viria a ser sexual,
embora também devemos acrescentar, neste contexto, a opressão intelectual. O direito
ao corpo e ao prazer é negado, neste sentido o autor cita o pensamento de Mirabeau na
obra L’éducacion de Laure que consoante a ideia de igualdade que a literatura libertina
tenta passar, ela não é uma real igualdade e sim migalhas de conforto “ os homens só
querem permitir-nos os prazeres que eles dão. A seus olhos, somos simples escravas,
que não devemos receber nada se não da mão que nos subjugou. Tudo é para eles, tudo
deve referir a eles...São egoístas, eles pretendem sê-lo sós, e não deixam que nós

62
HUNT, Lynn. Obscenidade e as origens da modernidade, 1500-1800.In: Invenção da pornografia:
Obscenidade e as origens da modernidade. Organização Lynn Hunt; Trad. Carlos Szlak. SP. ED. Hedra,
1999. P.46
63
PEREA, Issac P.J. Moctezuma. La crítica de Mary Wollstonecraft a la crítica Cortesana e
Caballeresca.In: Filósofas de la Modernidad temprana y la Ilustración. Homenaje a Laura Benítez y José
Antonio Robles. Org.: Viridiana Platas Benítez Leonel Toledo Marín. Universidad Veracruzana 2014.
P.112
64
WHITE,Hayden.Enredo e verdade na escrita da história. In: História escrita, teoria e história da
historiografia. In: MALERBA, Jurandir (Org.) A História escrita. São Paulo: Contexto, 2006. p. 191-210.
P.194

39
sejamos”65 Wollstonecraft dirá que “ fortaleça a mente feminina expandindo-a, e será o
fim da obediência cega, mas como a obediência é almejada pelo poder, tiranos e
sensualistas estão certos em querer manter as mulheres no escuro, por que os primeiros
só querem escravos, e os últimos brinquedos.”66

A filósofa no capítulo IV, empregará o termo “cultura do coração” 67, referindo-


se ao poder de influência editorial popular, ou seja, tudo que remete a mulher a ser
educada através das sensações formando o seu caráter da insensatez, portanto, relativo a
produção literária em que se encaixa os romances e os libertinos dos costumes. De
forma sarcástica, ela dissertará sobre o sistema de maneiras que roubaria toda a
dignidade do sexo feminino, a qual o homem é feito da razão e a mulher tem que
compreender através da confiança negando a elas o poder sobre o próprio corpo. A
autora usará como explicação o Festival de Saturno ou Saturnália, que ocorria em Roma
onde os mestres serviam aos seus escravos, para se referir ao relacionamento romântico
identificado na literatura. Com esta analogia, ela explora a análise cujas mulheres que
aceitam a atenção, respeito e civilidade por curto tempo, e que dessa maneira, são
tratadas como rainhas para serem iludidas e levadas a renunciar à liberdade e sua
virtude, neste caso a castidade.

Wollstonecraft era contra a forma que a mulher era vista sexualmente, ela era
contra o caráter libertino que utiliza o traje de herói (roués) para ganhar a confiança das
mulheres para renunciá-las depois. Ela admite que se deve ter um relacionamento para
estimular a emoção e o pensamento, o que não admite é apenas o desejo sexual, algo
que evidencia sua educação puritana. Esta crítica sobre o mundo libertino é importante
por ser um dos pontos de sua crítica social, porque é neste questionamento que ela pode
ter construído seu argumento da desigualdade educacional. A mulher que se sobressai
no mundo cortesão é a mesma que tem a educação privilegiada, são as Damas
pertencem a ótica aristocrática, de classe rica.

Podemos usar como argumento um exemplo encontrado na Literatura, em que a


romancista Jane Austen em suas obras, em específico Orgulho e preconceito,
apresentou várias formas de união, entretanto ela destaca, nesta obra, o casamento dos

65
ROUANET, Sérgio Paulo. O Desejo Libertino entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. In:NOVAES,
Adauto(Org) O Desejo. Ed. Cia das Letras, RJ. 1990. P.178
66
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulheres. Trad. Andreia Reis do Carmo. SP:
EDIPRO,2015. P.51
67
Idem,2015. P.83

40
personagens Lydia Bennet com Wickham que fogem para selar a união. Apesar da
romancista descrever o evento, ela reprova este tipo de união, pois é aquela pautada no
aspecto físico e em atitudes imprudentes. A consequência deste tipo de casamento não
só provoca a infelicidade do casal, visto que a paixão acaba, mas por trazer prejuízos
tanto para as pessoas que se unem quanto para a honra e nome da família das mesmas.
Logo, pode-se compreender que o efeito da educação de forma cortesã não iria afetar as
Damas aristocratas, já que estas possuem o dote e uma vida planejada, e sim as
mulheres das camadas mais vulneráveis, como as irmãs Bennet que eram burguesas, e
as pobres. Ao retornarmos o que fora dito no subcapítulo anterior, que as obras como a
de Jean-Jacques Rousseau eram fontes principais da educação burguesa, a classe à qual
a filósofa também pertencia, reforçam a ideia de que o casamento seria o único destino,
ou seja, o caminho natural da mulher.

Com isso, Wollstonecraft tem seu pertencimento de classe e se inclui em suas


reivindicações, diante ao caminho natural destinado às mulheres. Ela irá dialogar e
afirmar no capítulo intitulado “ O dever dos pais” que uma educação submissa que os
pais dão às suas filhas é o que limita a faculdade do intelecto, logo a obediência e
privação da razão. Citando Locke, a filósofa dirá que se uma mente é muito reprimida e
seus espíritos humilhados, ela perderá seu vigor e diligência 68. Dessa maneira, a
rigorosidade dos pais é responsável pela fraqueza das mulheres devido a serem
rebaixadas diante os homens desde ao seu nascimento.

A filósofa dirá neste capítulo que assim como os pais tem o dever de educar os seus
filhos, também é instituído a mulher o dever69, que é um senso de normas e, afirmado
por ela, como um senso comum70, assimilado dentro da sociedade do século XVIII,
assim, conforme o costume e respeito ao decoro são mais válidos do que o uso da razão,
como resultado as meninas são preparadas para uma vida dentro de um casamento
escravizador.

Embora, devemos ter atenção quando a filósofa reconhece que nem todas as
mulheres são escravas dentro do matrimônio. Podemos entender que ela fala de um mau
casamento, porém, dessa maneira tem-se a leitura que aquelas que conseguiram um bom
acordo matrimonial se tornam tiranas, porque ela mesma admite que é mais fácil
68
Idem,2015. P.222
69
Grifo meu
70
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos das mulheres. Trad. Andreia Reis do Carmo. SP:
EDIPRO,2015. P221

41
comandar que raciocinar. A tirania é alguém que, investido de poderes extraordinários,
por tempo determinado ocupava o cargo de chefe absoluto. Ao encaixar esta definição
ao único lugar em que a mulher era permitida a exercer um poder, que é o ambiente
doméstico, ela confirma a manutenção do sistema.

Portanto, Wollstonecraft atribuiu o costume como norteador da situação


feminina diante de dois fatores: a situação imposta de extrema dependência em que as
mulheres se encontravam e a educação que as mesmas recebiam, sendo este o resultado
da distinção de tratamento dado aos sexos. O problema se torna mais profundo devido a
literatura desenvolvida na época, pois existiam manuais de educação e toda uma
produção literária que reproduziam a Ética Cavalheiresca, que eram escritos por homens
que reproduzem o senso comum que reforçam a subordinação e degradação das
mulheres.

42
Conclusão
A extensão deste trabalho foi para evidenciar a obra de Mary Wollstonecraft e
explicar como o pensamento libertino influenciou grande parte do ideal iluminista
referente ao universo feminino. Wollstonecraft ao diagnosticar um círculo vicioso em
que se encontrava as mulheres, ela reivindicou não só para nós mulheres, mas o fez para
todo gênero humano, para uma humanidade melhor. Na sua perspectiva, se as mulheres
fossem educadas de maneira igualitária, teriam o desenvolvimento de virtudes
verdadeiras, ou seja, virtudes que eram ensinadas aos homens e não aquela imposta as
mulheres. Em consequência seriam humanos melhores e em sequência cidadãs, esposas
e mães melhores. A filósofa exige uma nova forma de educação, assim como as suas
predecessoras, porque deseja que a mulher seja uma companheira e não uma
subordinada.

Na obra analisada, Reivindicação dos direitos das mulheres, ela tece sua crítica a
obra de Jean-Jacques Rousseau, a qual é identificado que existe uma separação por
gênero por uma divisão de espaço, em que o filósofo faz esta distinção na divisão entre
público e privado. Para melhor nortear esta proposição usaremos as palavras de
Karlfriedich Herb, “Rousseau é um homem moderno com alma antiga”71.

Rousseau em sua obra Contrato social, pretende construir uma nova política
moderna, um programa teórico que propõe uma união contratual de indivíduos livres e
iguais transformando o Estado e a cidadania em produto das ações humanas. Em Emílio
ou Da Educação teremos, também, um programa teórico, porém este é para educar este
novo homem moderno. O problema identificado pela filósofa se dá justamente na
educação traçada para o homem como objeto central do Emílio. Ele faz a distinção de
gênero em forma de educação e como vimos no decorrer do trabalho a maior
consequência evidenciada é a manutenção do status da mulher subordinada, o que nos
faz concordar com o pensamento de Herb, que apesar de moderno, em certos aspectos,
ele é um homem antigo.

71
HERB, Karlfriedich.Luz e sombra: O público e o privado em Jean-Jacques Rousseau e Hanna Arendt.
Editorial Philosophia; Philósophos 2002.1. P.;76

43
Rousseau foi o autor que mais incitou, no século XVIII, a participação política
do homem, ele afirmará que só é” propriamente homem após nos tornarmos cidadão 72”.
Discorremos no capítulo 1 que não foi só Wollstonecraft que se manifestou sobre a
participação política, vimos que Condorcet, Catharine Macaulay e Olympe de Gouges
debateram sobre a exclusão feminina na política e, sobre isso ainda usaremos o trabalho
de Herb para ajudar a compor a solução para o problema proposto. Em seu trabalho ele
contrapõe o pensamento de Rousseau e Hanna Arendt em relação ao público e privado.
O que nos importa neste momento é “ Hanna Arendt acompanha Aristóteles ao declarar
a humanidade do homem uma consequência de ele pertencer a pólis, à comunidade
política. Quem não tem acesso ao espaço político, por conseguinte, não realiza uma
forma autentica de humanidade “73, dessa maneira, ao contextualizar com a
problemática aqui abordada, o que foi dito que na Declaração dos homens e do cidadão
(1789), de forma generalizada, podemos pressupor que por causa do costume do período
as mulheres não foram incluídas, portanto concordando com Condorcet, em que excluir
a metade da população de participar da política é negar a autêntica humanidade, logo é
negado a mulher a participação na esfera pública.

Ainda na crítica sobre o genebrino, ele dá o destino de Sofia, em seu livro


Emílio, um caminho totalmente direcionado para o privado, ou seja, ela não é uma
cidadã, é um ser proposto para ficar à sombra. O que faz Mary Wollstonecraft olhar
para esta Sofia é justamente a personagem ficar eclipsada diante de uma realidade em
que não caberia mais uma pessoa ser dependente de outro ou de um matrimônio. Ela
identificou um estado vicioso vivido pela população feminina, logo, um senso comum
como resultado catalisado através das ideias propagadas pela Literatura popular da
época. A literatura libertina do XVIII, esta que foi identificada como libertina dos
costumes, devido sua repercussão reforçou a ideia que uma mulher não precisa ter uma
educação aprofundada e sim uma educação de forma que transforme em ser cortês e
agradável. Este pensamento que era corrente, invés de ser combatido foi reformulado e
reapresentado através da obra rousseauniana que se tornou um modelo a ser seguido de
educação feminina, principalmente, da burguesia que estava se consolidando.

72
HERB, Karlfriedich.Luz e sombra: O público e o privado em Jean-Jacques Rousseau e Hanna Arendt.
Editorial Philosophia; Philósophos 2002.1. P.;78
73
HERB, Karlfriedich.Luz e sombra: O público e o privado em Jean-Jacques Rousseau e Hanna Arendt.
Editorial Philosophia; Philósophos 2002.1. P.79

44
Diante disso, podemos recorrer à história das mentalidades, pois segundo Paul
Ricoeur, na sua obra A memória, a história, o esquecimento, a palavra representação
possui três significados diferentes, a primeira com eikon e seu par phantasma e fantasia
que tem a ver com a memória, aquilo já foi.74A segunda categoria da representação se dá
no âmbito da teoria da história e a terceira é proposta da representação através do
trabalho de historiador quando publica seu livro ou seu artigo transformando em algo
concreto. É importante perceber que foi tomado o foco da terceira fase da representação,
quando a escrita da história se tornou escrita literária. Quando nos deparamos com
publicações populares e pornográficas, a narrativa e o enredo construídos são uma
espécie de apropriação de representação de eventos históricos e, neste caso, o evento
real é o discurso de submissão feminina que conforme foi evidenciado remonta do
período medieval.

Desta maneira, ao analisar e reivindicar os direitos femininos, Wollstonecraft,


estava aprofundada e comprometida com os ideários iluministas. Consoante a isso, ao
criticar Rousseau ela estará provando que o filósofo usará do discurso de uma falsa
universalização das práticas da ilustração. Portanto, ao descrever a submissão feminina
como natural e dar diretrizes sobre o tema, ele utilizará de uma Ética Cavalheiresca.
Compreende-se como ética porque segundo a significado da palavra é um conjunto de
regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo ou de um grupo social e,
será cavalheiresca porque ele recorreu a valores morais pertencente ao Antigo Regime,
ou seja, retomando ao pensamento medieval para justificar o costume, e assim
frustrando as principais bandeiras do iluminismo que é a natureza e o uso da razão.

Assim, Wollstonecraft exigiu uma educação que tornassem as mulheres em seres


úteis e respeitáveis, a mesma educação dada aos homens. Tornando-as profissionais,
independentes econômica e mentalmente. Logo, libertando as mulheres da obrigação de
do peso social de preocuparem unicamente em atrair os homens para contrair um bom
matrimônio, moldar suas personalidades e desejos às imposições do mundo masculino.

74
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Unicamp, 2007. P.199

45
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