Você está na página 1de 18

-

I
I
-. --­ .-..-­ - - -
",
A rede de Vogel : armad ilhas c omo obras

de art e e ob ras de arte c omo ar madilh as

Alfred Gell

o artigo discute as distinções mais comuns entre obras de arte e "meros"


artefatos que são úteis, mas não são belos ou esteticamente interessantes.
Se, como o filósofo Arthur Danto afirma, um objeto artístico é identificado como
tol em função do modo como é interpretado, então muitos artefatos poderiam ser
exibidos como objetos artísticos. Seu objetivo é demonstrar como as armadilhas
para capturar animais poderiam perfeitamente ser exibidas como objetos
artísticos, porque contêm idéias e intenções complexas a respeito da relação entre
homens e anima is, além de fornecer um modelo do caçador e de como ele
concebe sua presa. Conclui, portanto, que a definição estética de um
objeto artístico é insatisfatória .

Arte primitivo, arte contemporóneo, ort erot os.

Até agora, grande parte dos debates no artística historicamente estabelecida. É a


campo da filosofia da arte, especialmente no chamada "teoria interpretativa", cujo grande
que diz respeito às artes visuais, dedica-se mérito crítico em relação à teoria "estética"
ao problema da definição de "obra de arte". é estar muito mais afinada com o mundo
Como determinar quando um objeto artístico contemporâneo. Nesse contexto, a
fabricado é uma "obra de arte" ou algo elaboração de pinturas e esculturas "belas"
menos nobre , um "artefato"? Existem (pelo deu lugar à chamada arte "conceitual", como
menos) três teorias que tentam responder a é o caso, por exemplo, de montagens como
essa questão. De acordo com a primeira, a realizada por Damien Hirst, na qual um
uma obra de arte pode ser definida como tubarão morto é exibido em um tanque de
qualquer objeto esteticamente superior, formol (figura a ser comentada
desde que possua determinadas qualidades, posteriormente), Mesmo não sendo um
como apelo visual e beleza. Essas qualidades objeto atraente ou especialmente
devem ter sido intencionalmente atribuídas elaborado, o tubarão de Hirst é um gesto
ao objeto pelo artista, pois os artistas altamente inteligível nos termos do fazer
seriam dotados da capacidade de resposta artístico contemporâneo e não pode ser
estética. Não pretendo discutir tomado como um truque publicitário ou um
especificamente essa teoria, embora ela sintoma de insanidade. Inserida na tradição
ainda seja aceita pelo público em geral, que artística "conceitual" pós-Duchamp, a
continua a pensar que qualidades como qualidade dessa obra deve ser avaliada em
apelo visual e beleza podem ser termos artísticos, pois, seja ela considerada
reconhecidas automaticamente nos objetos. boa, ruim ou regular, trata-se, inegavelmente,
de um tipo de arte. Os defensores da teoria
A segunda teoria sustenta que as obras de
estética têm, no mínimo, dificuldade para
arte não são identificadas por suas
aceitar esse tipo de obra e estão inclinados
qualidades externas, como a definição
a recusá-Ia categoricamente como arte, mas,
estética propõe. Um objeto pode não ser
ao fazer isso, correm o risco de ser acusados
"belo" ou mesmo interessante de se ver, mas
de reacionários por críticos e artistas que,
será considerado obra de arte se for
como eu, di sco rdam dessa visão.
interpretado a partir de um sistema de
idéias fundamentadas em uma tradição

TR ADUÇAO. ALFRED GELL 175


a/e R E Vi H A DO PROGRAMA DE POS-G R ADUAÇAo EM ARTES VISUAIS EBA • UFRJ " 200 1

Finalmente, existe uma versão mais radical Vogel. Não vi essa exposição, que foi ,
da teoria "interpretativa" , que fornece uma porém, detalhadamente descrita por Farisl
terceira possível resposta para a pergunta "o em Current Anthropology, acrescentando
que é uma obra de arte)" Conhecida como também alguns comentários crít icos, que
"teo ria in stitucional", afirma, como a pretendo retomar ad iante. O primeiro
interpretativa, que não há no objeto espaço da exposição (com paredes brancas
artísti co, enquanto veículo materi al, um a e I-efletores) foi intitulado "Galeria de Arte
característica capaz de qua lifi cá-lo, Contemporânea", e seu foco principal era
definitivamente, como sendo ou não uma um objeto impressionante: uma rede de
obra de arte. Isso é válido a despeito do caça Zande (África), firmeme nte enrolada e
fato de o objeto estar ou não subordi nado pronta para o t ransp o rte. Provave lmente ,
ao mundo artíst ico, ou seja, a uma Susan Voge l exibiu-a dessa manei ra porque
coletividade interessada em fazer, partil har e pensou que o público fre q üentado r de
debater Julgamentos críticos desse tipo. galerias de arte em Nova York seria capaz
de associar de maneira espontânea aqu ele
A diferença entre as te orias interpretativa e
"artefato" com um certo conjunto de
in st ituci o nal é que a instituci o nal não
objetos exibid os em outras ga lerias ou
press up õe a coerência históri ca das
apresentados em publi cações especializadas.
inte l' pretações. Uma obra pode estar, a
Nesse caso específico, a anal ogia mais
pl-incípio, fora do circuito oficial da hi st ória
imediata seria com as escu lturas de
da arte, mas, se o mundo artístico coopt a
barbante amarrado de Jackie Windso r Fa ris4
essa obra e a faz circular como arte, então
menciona as obras de Nancy Graves e Eve
ela é arte, porque são os rep resentantes do
Hesse como outros pa rale los possíveis. A
mundo artístico, ou seja, artistas, críticos,
escolha desse objeto específico foi um golpe
comerciantes e colecionadores, que têm o
de mestre em termos de curadoria, pelo
poder de dec idir essas questões, não a
q ua l Voge l merece muitos e logios. Além do
"história", ponto de vist a proposto pelo
mais, a exposição gerou um e nsaio,
filósofo americano George Dickie. 1 Essa
igualme nte magistral, do críti co e fil ósofo
te oria, aparentemente, não tem o apoio da
Arthur Dant O,5 publicado no catálogo.
maior pa rte dos fil ósofos contemporâneos a
Dickie, talvez por ser mais soc io lógica do A intenção de Voge l era quebrar o elo entre
que efetivamente fil osófi ca - um a te oria a arte africana e o "primitivismo" da arte
sobre o que (de fat o) é co nsiderado arte e moderna (Les Demoiselles d'Avignon, de
não so bre o que (raci o nalmente ) deve ria Picasso, as pseud o máscaras africanas, de
se r co nsiderado como tal. To dav ia, o q ue Modigliani e Brancusi, etc.) e suge rir,
t o rna a teo ri a de Dickie q uesti o náve l, do diferentemente, que os objetos africanos
pont o de vista da estética t rad icional. é podem se r analisados em uma perspectiva
precisamente o q ue a t orna at raente para mais ampla, evocando o esti lo artístico
os antropólogos, já q ue ele ultrapassa a dominante na década de 1980 em Nova
estética em nome de um a análise York, do q ual Jackie W indso r é um dos
sociológica q ue ca racteriza, em sentido representantes. Danto teve ra zões para
amplo, essa disciplina 2 Contudo, a re levâ ncia resistir a essa mudança, visto q ue nã o estava
da teo ria "institu cio nal" para o estudo persuad id o de que a rede de caça fo sse o u
socio lógico do mund o artístico deve se r pudesse vi r a ser arte . Em term os
avaliada independentemente de sua institucionais, a arm ad ilha aprese ntada já
contribuição para a estética fil osófica. havia, de fat o, se tornado arte, dado ter sido
como tal exibida po r Vogel e ,
As questões levantadas po r essas teorias
co nseq üentemente, assim apreciada por
foram colocadas em evidência pela
parte significati va do público. Caso Dickie , e
e xposição intitulada Artel Artefato, mo ntada
não Danto, t ivesse escrito o ensaio do
no Center for African Art (Nova York,
cat álogo, eu me arriscaria a dizer q ue a
1988) , sob a curado ria da antropóloga Susan
"rede" teria sido celebrada co mo um bom

176
exemplo do modo pelo
qual o mundo artístico
cria suas obras de arte ao
classificá-Ias como ta l.
Danto, porém, seguiu
outra direção e dedicou
seu ensaio a provar que
as afinidades da "rede"
com o conceito
contemporâneo de arte
seriam meramente
superficiais,

Meu objetivo neste artigo


é duplo. Em primeiro
lugar, discutir a di sti nção
filosofia da arte moderna B Concordo com a
p roposta por Danto entre "arte" e
maior parte de sua produção, mas devo
"artefato", Em segundo lu gal~ pretendo
dizer que os pontos ma is fracos de sua
montar uma pequena exposição
versão da teoria interpretativa ficam
(infelizmente composta apenas por textos e
especia lmente evidentes, quando colocados
ilustrações) de objetos que Da nto
em um contexto antropol ógico e
consideraria "artefatos", mas que, em minha
intercultural, em seu ensaio para a
opinião, são fortes candidatos a circular
exposição Arte/Artefato.
co mo obras de arte, mesmo que essa não
tenha sido a intenção original de seus De acordo com Danto, não existem
criadores, que, provavelmente, desconheciam características intrínsecas a qualquer objeto
esse conceito. Se eu conseguir persuadir que possam, por si só, caracterizá-lo como
meu público e se a teoria institucional for artístico. A diferença "objetiva" entre uma
ve rdadeira, ou seja, se arte for tudo aquilo embalagem real de sabão Brillo e a falsa
que não apenas eu, mas outras pessoas que embalagem Briflo, de Warhol, não é o que
pensam do mesmo modo classificamos determina que apenas a últi ma seja uma
como tal, então uma nova categoria de arte obra de arte. Mesmo objetos semelhantes
está prestes a surgir. Ou não, se podem ser diferenciados de modo que um
considerarmos como parâmetro os seja considerado obra de arte, e o outro
argumentos de Danto, que retomarei agora. não. Isso foi exaustivamente discutido por
Danto,9 que, entretanto, estabelece uma
Danto é responsável por ambas as teorias
grande diferença entre o tipo de
da arte, a interpretativa e a institucional. e
interpretação, contexto, significação
foi ele quem primeiro introduziu a
simbólica, etc. que um objeto deve ter para
expressão "mundo artístico" na estética
que seja uma obra de arte, em comparação
filosófica 6 Mas, uma vez que Dickie 7
com as características associadas a uma obra
dese nvolve u as idéias de Danto na direção
que não é artística, ou seja, um "mero"
sociológica já apontada, a definição de obra
artefato. A interpretação deve estar
de arte tornou-se um problema de
relacionada com uma tradição de fazer
consenso social em meio ao público de
artístico que internaliza, reflete e se
arte. Danto, porém, tende para uma visão
desenvolve a partir de sua própria história,
mais idealista a respeito da arte, fazendo,
como a arte ocidental tem feito desde
mesmo, muitas referências a Hegel em seus
Vasari, pelo menos. Segundo ele (e estou
trabalhos. Ele afirma que objetos de arte
totalmente convencido disso), a moderna
são assim considerados em função de uma
arte "conceitual" correspo nde à
interpretação historicamente fundamentada.
subordinação da "fabri cação da imagem" à
Danto escreve u dois importantes estudos
"reflexão histórica", em outras palavras, é a
que foram muito bem aceitos no campo da

T RA D U ç Â o • A L F R ED G E L L J 77


a/e REVISTA DO PROGRAMA DE POS-GRADUAÇA O EM ARTES VISUAIS EBA • UFRJ· 2001

resultante final do fazer artíst ico, da fdo sofia, podem se r, mesmo assim, obras de arte, por
da hist ó ria e da crítica de arte tomad os que excluir a "rede"? E. caso a "rede" seja
conjuntamente . Todavia, o conceito-chave inc lu ída, o que sobra do valor explicativo da
aqui é o de tradi ção progressiva, cumulativa interpretação historicamente fundamentada
(Geist , esp írito, etc.). e da distinção entre arte e artefato)
O filósofo foi, efetivamente, enlaçado pela
O que Danto faz quando o público de Nova
rede de Vogel que, assim, termin o u por
York se entusiasma com uma rede de caça,
cumprir sua função, embora não do modo
como se ela fosse a mais recente produção
convencional.
do Geist na pessoa de Jackie Windsor ou de
seu grupo? A arte contemporânea é capaz Só existe uma saída para o idealista nessas
de digerir, desse modo, objetos externos? A circ unstâncias: e le deve assumir que existem
ausê ncia de um autor identificável o u de afinidades interpretativas o u simbólicas
uma intenção artística reco nhecível é um subjacentes às verdadeiras obras de arte,
obstácu lo? Danto não pode deixar de produzidas em diferentes tradições culturais.
assumir uma posição crítica em relação a A rede Zande será excluída nos termos
isso, Já que intenção, signifi cado e Zande, porque nessa cultura, como
fundamentação, em uma tradição possivelmente em todas as outras, os
diferenciada e auto-refexiva, são objetos artísticos devem ter um tipo de
fundamentais para sua compreensão da arte significação simbólica que uma mera rede de
contemporânea e, mesmo, de toda arte caça não pode ter. Sendo (supostamente)
ocidental posterior ao Renascimento. O excluída pelos próp ri os Zande, a rede não
caçador Zande que fez ou encomendou a poderia ser incluída pelos nova-iorquinos,
rede não participa do mesmo quadro porque isso significaria co ntradizer os
histórico de referência para o qual o prin cíp ios de Da nto de que "sem
trabalho semelhante de Windsor está interpretação, não há arte". Depois de
apontando, de modo que a analogia entre concordar com a idéia de que nem toda
eles é enganosa. Nem mesmo é po ssível embalagem de sabão Brillo, mas apenas a
co nsiderar, alternativamente, que o "artista", que foi criada por Warhol, é arte, Danto
nesse caso, é Vogel (Danto sequer considera não pode deixar de dizer que essa rede, nos
essa possibilidade), que está apresentando a termos Zan de, não equivale a uma obra de
"re de" como um "reody-mode", de acordo Warh o l, pois é apenas uma velha rede, co mo
com a mesma tradição dos protótipos de outra qualquer.
Duchamp, como a pá, o cabide e o urinol.
Mas como estabelecer parâmetros para a
Mesmo porque, Voge l não está se
afinidade entre obras de arte africanas
apresentando como um segundo Duchamp,
(devidamente qua lifi cadas) e obras de arte
mas como uma curadora de museu que
ocidentais, e para a não-afinidade entre a
oferece, para admiração do público, um
rede Zande e ambas as artes? Danto
objeto feito na África por um artista
argumenta que a "grande" escultura africana
anônimo que não é, certamente, ela própria.
foi reconhe cida como tal e colocada no
O dilema de Danto diz respeito, mesmo nível de ponatello, Tho rwa ldse n, etc.
essencialmente, ao fato de que sua teoria por meio de um processo de descoberta
interpretativa da arte é co nstruída a partir empreendido por Pi casso, Brancusi, Roger
do referencial hist órico implícito na arte Fry e se us contemporâneos, comparável às
ocidental. segund o um modelo hege liano. descobertas científicas. Essa grandeza já
Caso ele diga que nenhuma produção estaria lá, mas teria sido ofuscada por juízos
externa ao fluxo histórico da arte ocidental preconceituosos associados ao colonialismo.
(que é, sem dúvida, muito amplo) pode ser Esse tipo de arte africana foi produzido,
considerada co mo "arte", está sujeito a individualmente, por escultores altamente
acusações de eurocentrismo. Caso ele talentosos, com intenções artísticas
admita, porém, que objetos exóticos que (estéticas) específicas, que eles imprimiram
não participaram do Geist da arte oc idental em seus trabalhos. Só posteriormente essas

178
obras se tornaram acessíveis ao público não distinguir os potes e os cestos produzidos
africano, graças aos esforços de alguns em ambas as tribos, a diferença espiritual
simpatizantes ocidentais. Entretanto, essa envolvida na elaboração dos potes sagrados
abordagem a respeito da incorporação da entre o povo ceramista é suficiente para
arte africana, nos moldes de Danto, traz garantir-lhes o status de obra de arte, em
consigo um certo risco de esteticismo ­ oposição aos potes utilitários do povo
mas não é justamente Danto quem nos diz cesteiro (e vice-versa em relação aos
que o que faz, da arte, arte não são apenas cestos). Os potes do povo ceramista e os
as características exteriores (estéticas) que cestos do povo cesteiro estão, ambos, na
ela possa ter? Sendo assim, Danto é prestigiada coleção que está no
obrigado a mudar sua tática e considerar a Kunsthistorisches Museum. Já os cestos do
possibilidade de existência de uma "arte" povo ceramista e os potes do povo cesteiro
africana que não seria obviamente diferente, pertencem a uma coleção um pouco
sob qualquer aspecto, externo ou visível, da diferente, que está no Naturhistorisches
não-arte africana, uma afirmação que não Museum. As obras que pertencem ao Museu
seria aplicável aos exemplos famosos da de História da Arte emanam do Espírito
arte escultórica, cuja qualificação enquanto Absoluto, são veículos de idéias completas
arte nunca foi colocada em dúvida, pelo que se o riginam da condição humana em
menos por Danto. toda sua densidade e fatalidade histórica, e,
conseqüentemente, a iluminam. Já os objetos
Danto é um filósofo e, sendo assim, não
que estão no Museu de História Natural são
escolheu o caminho mais óbvio que
meios para fins utilitários, instrumentos que
consistiria em retomar tudo que já foi
ajudam os seres humanos em sua vida
escrito sobre cultura material africana. Ao
material - eles fazem parte da "prosa do
contrário, tentou obedecer a seu imperativo
mundo", segundo uma expressão hegeliana.
disciplinar, entregando-se a um
Gedonkexperiment, no qual ele parece ser Danto, em conseqüência, exclui a rede de
particularmente habilidoso. Danto imagina a caça, mera manifestação "prosaica" no
existência de duas tribos africanas, próximas, sentido hegeliano, e esboça, de modo
mas historicamente diferenciadas, que ele experimental, uma distinção particularmente
denomina Pot People (povo ceramista) e marcada entre objetos de arte e artefatos.
Bosket Folk (povo cesteiro). Aparentemente, Entretanto, como em todas as experiências
a produção material dessas duas tribos, que desse tipo, é possíve l questionar se essa
inclui potes e cestos, é quase idêntica, mas o di stinção corresponde à realidade. Creio
povo ceramista ve nera seus oleiros, que são que a antropologia deveria pronunciar-se a
tidos como sacerdotes e sábios, e considera esse respeito, já que os experimentos de
a olaria uma atividade sagrada que evoca a Danto evocam explicitamente a etnografia
cosmogênese, já que Deus foi um oleiro que como protótipo de suas ficções expositivas.
moldou o mundo a partir do barro. Esse Em seu comentário sob re a exposição, Faris
povo também faz cestos para fins utilitários, afirma que o problema está no fato de que
mas essa não é uma atividade considerada a antropologia tende, de modo geral. a ser
nobre. Do o utro lado da montanha, em condescendente com e xperimentações
meio ao povo cesteiro, as coisas são teóricas como a de Danto. Ele acusa
diferentes, já que Deus era um cesteiro e enfaticamente o ensaio escrito por Danto
fez o mundo a partir de fibras vegetais, de promover uma perspectiva orto doxa
e os potes de cerâmica produzidos são viciada, tanto em relação à história da arte
considerados meramente utilitários. Nessa quanto em relação à antropologia.
tribo, os sacerdotes são os cesteiros, Modernistas, como Danto, estariam
e os oleiros são apenas especialistas
técnicos, artesãos. paralisados pela aceitação de todas as
tiranias culturais e pela conseqüente
Danto sustenta que, mesmo que só um cegueira em relação às tiranias específicas,
exame minucioso permita aos museólogos [de modo que] eles incorrem, com

T RA o U ç Á o • A l f RE o G El l I 79
a/e REVISTA DO PROGRAMA DE P6S-GRADUAÇAO EM ARTES VISUAIS EBA • UFRJ 2001

freqüência, no sentimento humanista mais seu ensaio, ele divaga sobre a idéia de que
banal e no entusiasmo inútil em relação ao os artefatos são "incompletos", enquanto as
poder emotivo e expressivo_o. Eles o fazem, obras de arte encarnam idéias auto­
em grande medida, reconhecendo o
suficientes e completas. Citando Heldegger,
empreendimento antropológico, como, por
exemplo, a idéia de que os objetos africanos
ele observa que um artefato é sempre
não podem ser inteiramente compreendidos parte de um Zeuggonzes - um sistema de
sem a referência aos nativos africanos no ferramentas, um sistema técnico que forma
contexto cultural específico que os uma totalidade. Um martelo não existe por
produziu ... Danto tem que concordar que si só; implica os pregos a serem martelados,
não se deve atribuir ao contexto um valor as madeiras nas quais essa ação será
axiomático - embora seja inegável sua executada, as serras que darão forma à
relação com o significado -, particularmente
madeira, e assim por diante. A rede
quando tanto contexto quanto significado
(implicitamente) é apenas um componente
foram indicados pela Antropologia. 10
do Zeuggonzes de caça Zande e não tem
Faris argumenta ainda que, de modo geral, significado em si mesma. Mesmo quando são
esse tipo de liberalismo recebe as produções bem elaborados, objetos como uma rede,
do "Outro" etnográflco nos termos do um martelo, um trinco de porta decorativo
"Outro", mas só na medida em que essa ou outro exemplo qualquer de arte aplicada
produção seja aceitável ou coerente com são incapazes de veicular o tipo de idéia
um dado conceito de Espírito Absoluto. que distingue o objeto artístico, pois este
sempre se reporta ao universal:
A etnografia imaginária de Danto a respeito
da cosmogenia dos potes e dos cestos
seria equivocado afirmar tais coisas [que
revela, com precisão, o tipo de narrativa dizem respeito a verdades universais] a
antropológica que ele considera respeito de facas, redes ou grampos de
conveniente, e, de fato, tanto os cabelo, objetos cujo significado se esgota em
antropólogos quanto seus informantes sua utilidade. Afinal de contas, a
nunca hesitaram em produzir relatos desse universalidade diz respeito, antes de mais
tipo. O ponto foucaultiano de Farris diz nada, a pensamentos e proposições, e
respeito ao fato de que o empreendimento ninguém suporia que objetos como os que
acabei de citar expressem um conteúdo
antropológico como um todo tende a
universal. A realidade desses objetos esgota­
buscar esse tipo de sábio ou especialista se em seu uso; já as obras de arte possuem
nativo ao qual Danto atribui o poder de um papel mais elevado, colocando-nos em
distinguir entre arte e não-arte. Isso ocorre contato com realidades superiores: elas são
porque, em última instância, nós, definidas por meio da apreensão de
antropólogos, queremos tachar esses significado. Elas devem ser explicadas pelo
objetos e atribuir-lhes significados fixos e que expressam. Diante de uma obra de arte,
controláveis. Concordo com Faris quanto ao estamos diante de algo que só por si mesmo
é possível apreender, do mesmo modo que só
fato de que os sábios (fictícios) de Danto
por intermédio de ações corporais podemos
são projeções palpáveis de autoridade, e,
ter acesso à mente de outra pessoa. 12
como tal, merecem ser desmascarados. Mas,
infelizmente, ele acaba não discutindo a Mas até mesmo Danto é forçado a fazer
distinção "objeto de arte" versus "artefato", uma ressalva, dado ser óbvio que a maior
exceto para indicar que essa oposição está parte da produção pertencente à tradição
sujeita a uma redeflnição contínua II e que, artística ocidental não foi produzida para ser
dificilmente, pode ser separada de questões apreciada pelo público, mas para atender a
relativas à ideologia e ao poder. propósitos instrumentais. As pinturas
religiosas servem a funções litúrgicas (como
O próprio Danto não esgota o assunto
peças de altar, objetos de devoção), retratos
quando diz que os sábios fornecem
expressam semelhança, estátuas dignificam
interpretações capazes de transformar as
espaços públicos e soberanos, e assim
verdadeiras obras de arte em fragmentos
sucessivamente. O mesmo é válido, de
do Espírito Absoluto. Na segunda parte de
modo ainda mais contundente, para os

180
produtos africanos aos quais Danto atribui o Danto quer dizer que as obras de arte têm
estatuto de obras de arte. Nenhum deles foi significados independentemente de se u uso
feito para ser admirad o apenas como uma prático e, à medida que são artísticos, não
obra de arte independente . Esses objetos, são úteis, mas significativos. Todavia, esses
em vez di sso, fazem parte de cerimônias mesmos objetos são usado s em rituais
públicas que, todavia, não podem ser supostamente eficazes. Poderíamos subtrair,
e xpo rtadas, como os objetos o são. Em hipoteticamente, as obras de arte, e a "vida
suma, não apenas as rede s, mas também prática" se ria capaz de co ntinuar, porq ue os
objetos como as máscaras fazem parte do mesmos o bjetos, di sfarçados de ferramentas
Zeuggonzes. Danto lida com esse problema, ou artefatos, estariam lá para preencher
admitindo que: suas funçõe s extra-artísticas anteriores. Esse
raciocício é, ce r tamente , cas uístico. De que
até há pouco tempo [e mesmo agora, maneira as máscaras africanas podem
provavelmente, na África], as obras de arte participar de um contexto ritual como
usufruíam de dupla identidade, tanto como instrumentos eficazes se m que possua m
objetos de uso e práxis quanto como qualquer significação interpretativo-cultural.
receptáculos de espírito e significado. A arte
o que, segundo o pró prio Danto, já seria
africana, uma vez exportada, perde a
primeira função, mas retém a última. O co ndição para qualificá-Ias como arte?
objetivo não é fazer do destacamento A separação entre instrumentalidade e
espacial um atributo para a definição de espiritualidade é, portanto, imp rati cável.
arte, porque isso desqualificaria como arte E. se as obras de arte são um tip o de
as obras das culturas primitivas. Em suas instrumento (o que, creio eu, não seria
próprias sociedades, essas obras têm um qu estion ad o pelo s escultores africanos),
lugar, mas que não é o tipo de lugar que por que não considerar também que os
elas têm no Zeugganzes, como ferramentas
instrumentos podem ser um tipo de
em um sistema técnico. O fundamental é
que toda a vida prática dessas sociedades obra de arte?
poderia seguir adiante mesmo se não A partir daí, podem os inferir que Danto
houvesse nelas nenhuma obra de arte ...
exclui a "rede" como arte, porque ele não
mesmo admitindo que as obras de arte
fazem parte de rituais supostamente pode imaginar que um sábio nativo seja
dotados de eficácia prática. 13 capaz de contar-lhe uma estória
sufi cientemente convincente , capaz de
Essa, sem dúvida, é uma declaração persuadi-lo do contrário. Ele faz essa
enigmática, até mesmo para um fil ósofo. suposição porque uma "rede" é usada para
caçar e, para ele, a caçada é apenas um
meio para a obtenção de alimentos, logo, a
"rede" nã o passa de uma ferramenta, com o
um ralador de queijo. Esse raciocínio revela
uma total falta de familiaridade com a
etnografia africana, na qual a maioria das
caçadas é descrita como parte de rituais
específicos (iniciações, fe stiva is anuais, etc.)
ou, pelo menos, como um costume
altamente ritualizado, mas não, com ce rteza,
co mo um disp ositi vo co rriqueiro para
garantir a sobrevivência. Assi m, caso a "rede"
tivesse sido documentada de fo rma correta
na época em que foi coletada (c. 19 10), é
mais provável que ela figurasse ritualisticamente
co mo um atributo do papel do "caçador" no
drama co letivo da caça ritual; pelo menos,
não se pode excluir essa possibilidade .
._ - - - - ,,- , , - - -- - - - -- - --- - - -_._ - -- ----­ Nesse caso, o fun cio namento da "rede" não

TRADUçAO • A LFRED GELL 181

r---
~ • UFRJ 2001

seria muito diferente do funcionamento de Assim como os animais selvagens, e como


qualquer outro item da parafernália ritual, evur (sabedoria/poder mágico), mvet (épico)
como as máscaras, por exemplo. pertence à floresta, em sua evanescência;
você pensa que pode pegá-lo, mas ele
Entretanto, é preciso esclarecer que os escapa, e é você quem é capturado. Com Ze
sábios africanos estão preparados para percebi que, de certo modo, as
contar aos antropólogos estórias que complexidades de mvet eram sempre
revelam não apenas que a caça é comparadas a armadilhas. Em resposta, ele
me contou a seguinte estória:
ritual mente importante (como ordálio,
provação para os jovens, e assim por
"Quando eu era jovem, conheci bem os
diante), mas também que seus meios, as Pigmeu. Eles vivem na floresta, não são
"redes" ou "armadilhas", são metaflsicamente pessoas de aldeia como nós ... Fui com
significativos. Recorrerei agora à narrativa de freqüência caçar com eles. Os Pigmeu têm
Soyer l4 a respeito de cantores Fang (África armadilhas para cada tipo de animal e, por
Ocidental) de épicos mágicos (mvet). Soyer isso, são tão bem sucedidos. Eles têm uma
armadilha especial para
chimpanzés, porque os chimpanzés
são como os seres humanos: quando
têm algum problema, param e
pensam sobre isso, ao invés de
fugirem e gritarem simplesmente.
Você não pode pegar um chimpanzé
com uma armadilha comum, porque
ele não foge [e, assim, o nó não é
puxado]. Então, os Pigmeu
inventaram uma armadilha especial
com uma linha que prende o braço
do chimpanzé. A linha é bem fina e
o chimpanzé pensa que pode se
soltar. Ao invés de arrebentá-Ia, ele
puxa suavemente para ver o que
acontecerá. Neste momento, um
fardo de setas envenenadas cai
sobre ele, e isso só ocorre porque
ele não corre como um animal
estúpido, um antílope, por exemPlo,
faria".15

A conversa entre Ze e Soyer


não é uma anedota boba sobre
caça, mas diz respeito,
fundamentalmente, ao problema
faustiano relativo ao
conhecimento (entre outras
coisas); um problema que não é
menos importante para o povo
Fang da floresta tropical de
Camarões do que para os
está tentando entender a natureza do saber professores do MIT.
"tradicional" e, no decorrer de suas
Com base no depoimento desse sábio Fang,
investigações, acaba conhecendo um
parece inquestionável que uma "armadilha"
especialista em canto, chamado Ze, com o
seja uma metáfora de profunda significação,
qual trava um longo debate sobre a
uma refração do Espírito Absoluto, se é que
natureza da sabedoria:
esse algum dia existiu. Todavia, tenhamos em
mente as críticas feitas por Faris de que os

182
sábios não estariam falando sobre impensada e iminente. o que talvez não
armadilhas utilitárias, prosaicas. mas sobre seja um belo pensamento. mas nem por isso
armadilhas imaginárias. espirituais, armadilhas pode se r considerado falso ou não artístico.
no sentido figurado. não no sentido literal. Inicialmente. uma arma dilha como essa
O sábio Fang não produziu nenhuma comunica uma ausência fatal - a ausência
armadilha para a investigação de Boyer, Seria do homem que a idealizou e armou e a
possível irmos além do texto de Boyer e ausênc ia do animal que se tornará a vítima
montarmos uma exposição de armadilhas (o artista indicou essa vítima num segund o
de caça, apresentando-a ao público como plano da ilustração). Devido a essas
uma exposição de obras de arte? ausências marcadas, a armadilha em questão,
como t odas as outras. funciona como um
Deixemos o sábio fora disso, por enquanto,
poderoso signo. Mesmo nã o sendo
e nos perguntemos o que as armadilhas de
projetada explicitamente para comunicar ou
caça animal revelam sobre o Espírito
func ionar como signo (na verdade, é
Absoluto, mesmo sem sua exegese nativa.
projetada para ficar oculta e passar
Por sua simples presença, as armadilhas de
despercebida). a armadilha, entretanto, é
caça, descontextualizadas. podem revelar
muito mais significat iva do que a maioria dos
mais do que o gosto dos homens pelo
signos su postos como tais. A violência
consumo de carne animal)
estática do arco retesado. a malevolência
De modo a leva r o leitor a um julgamento congelada dos paus e das cordas são
adequado a respeito dessa questão. ofe reço reveladoras por si mesmas, a despeito do
algumas ilustrações tiradas da literatura recurso a representações convencionais.
etnográflca sobre armadilhas. Observe a Uma vez que esse é um signo não oficial, ele
armadilha de setas. Lembre-se da afirmação escapa de toda censura. Nele, é possível ler
de Danto de que olhar para uma obra de a intenção de seu autor e o destino de sua
arte é com o encontrar uma pessoa: vítima. Essa armadilha é um modelo, bem
encontra-se uma pessoa. um ser pensante. como um instrumento. De fato, todos os
co-presente. reagindo a sua aparência instrumentos são modelos. porque eles
externa e a seu comportamento. Do precisam se r adaptados às características de
mesmo modo. resp onde-se a uma obra de seu s usuários e. assim. têm sua marca. Uma
arte co mo a um ser co-presente, um perna artificial é um modelo de uma perna
pensamento encarnado. Agora, imagine-se verdadeira que está ausente. um a
encontrando uma armadilha de setas não repre se ntação que funciona como uma
(assim espero) como a vítima que será prótese. A armadilha de setas é
capturada. mas como o visita nte de uma especialmente evidente como um modelo
galeria que encontra uma "instalação" feita de se u criador. porque ela tem que
pelo mais recente artista contemporâneo. substituí-lo: como uma espécie de caçador
Em tais circunstâncias e sem qualquer substituto, ela caça para seu dono. É. de fato.
contexto adicional, o que o visitante poderá um autômato ou robô, cujo design co ndensa
intuir como sendo o pensamento ou a o design de seu mentor. Ela está equipada
intenção revelados por essa obra de .arte? com um transdutor sensorial rudimentar (a
corda. suscetível ao toque do animal). Esse
Creio que não haveria nada errado, caso o
siste ma nervoso aferente leva informações
visitante imaginário de nossa exibição visse
para o comando central (o mecanismo de
nessa armadilha de setas uma representação
disparo. uma chave, base de todos os
sobre a condição humana no mundo. Essa é
dispositivos de processamento de
uma representação que as pessoas de
informações) que ativa o sistema eferente,
pensamento limitado poderiam censurar e
liberand o a energia armazenada no arco.
negar se ao menos estivessem conscientes
que impulsi ona as setas. produzindo ação a
de que a armadilha poderio ser uma
di stância (a morte da vítima). Isso não é
representação. Isso porque ela aponta para
apenas o modelo de uma pessoa, como um
a existência humana co mo uma violência
boneco qualquer, mas um modelo eficaz de

T RA o U ç À o • A L F R E o G E L L I 83
a/e REV I 5 TA DO PR oG RA M A DE PÓ 5 - G R A D U A ç Á o EM A RTE5 VI5U AI5 EBA • U FRJ 2 oo ,

pessoas que funciona. Seria razoável o ne xo drámatico que liga os dois


perguntarmos que escultura seria capaz de protagonistas e que os alinha no tempo e
mostrar mais sobre a condição humana, no espaço. Nossas ilustraçõe s não podem
revelando apenas nosso delineamento mostrar isso, porque elas apresentam as
exterior, do que esse dispositivo mecânico. armadilhas esperando suas vítimas ou
Muito mais sobre a existência humana está vítimas que já foram capturadas. Elas não
presente aqu i do que em qualquer podem mostrar, po rém, a "estrutura
escultura, mas como esse não é um temporal" da armadilha. Essa estrutura
exemplo óbvio de um objeto de "arte", tempo ral o põe o tempo suspenso, o tempo
jamais será olhado sob esse prisma. vazio da espera, à catástrofe súbita que
resulta do fechamento da armadilha. Essa
Além disso, se olharmos para outras
estrutura temporal varia com o tipo de
armadilhas, poderemos ver que cada uma é
armadilha empregado, mas não é difícil ver
não apenas o modelo de se u criador, um eu
no drama da captura um análogo mecânico
subsidiário na forma de um autômato, mas
da sucessão trágica de hubris-nemesis­
cada uma é também um modelo de sua
cotostrophe. Considere o hipopótamo
vítima. Esse modelo pode refletir
co nden ado, tranqüilo com a se nsação de
efetivamente a forma externa da vítima,
fal sa segurança decorrente apenas de se u
como na cômica armadilha de girafa, que
tamanho e majestade. Quantos heró is
delineia, em negativo, os contornos da parte
trágicos sofreram das mesmas ilusões de
inferior d o corpo desse animal. Ou a
presunção e atraíram o mesmo destino)
armadilha pode, de modo mais sutil e
Se o chimpanzé que cai na armadilha de
abstrato, representar parâmetros do
Boyer for Fau sto, talvez este hipopótam o
comportamento natural do animal, que são
seja Otelo. O fato de que todos os animais
subvertidos a fim de aprisioná-lo. As
que caem vítimas das armadilhas sempre
armadilhas são paródias letais do Umwelt do
provoquem suas quedas por meio da
animal. Assim, o rato que gosta de se enfiar
própria autoconfiança complacente demonstra
em espaços estreitos tem uma cavidade
que a caça com armadilhas é uma forma
atraente, preparada para sua última e fatal
muito mais poética e trágica do que a
co rreria na escuridão. É claro que a
simples perseguição. Este último tipo de
armadilha não é, em si mesma, inteligente ou
caçada iguala caçadores e vítimas, unidos em
enganosa. O caçador é que conhece as
ação e reação espontâneas, ao passo que a
respostas habituais da vítim a e é capaz de
caça com armadilhas hierarquiza decisivamente
subvertê-Ias. Mas, uma vez montada a
o caçador e a vítima. O capturador é Deus
armadilha, a habilidade e o conhecimento do
ou o destin o, o animal capturado é o
caçador estão efetivamente inscritos nela, de
homem em sua encarnação trágica.
forma objetiflcada; caso contrário a
armadilha não funcionaria. Esse Parece -me, portanto, que mesmo sem o
conhecimento objetivo sobreviveria até contexto etnográfico, mesmo sem a exegese
mesmo à morte do próprio caçador e de qualquer nativo, armadilhas animais como
também seria (parcialmente) "legível" por essas poderiam ser apresentadas ao público
outros que só tivessem acesso à armadilha e como obras de arte. Esses d ispositi vos
não ao conhecimento sobre o animal que incorporam idéias, ve icu lam significados,
está refletido em seu projeto. A partir da porque uma armadilha, por sua própria
forma da armadilha, poderiam ser deduzidas natureza, é uma representação transformada
as disposições da vítima. Nesse sentido, as de seu fabricante, o caçador, e da presa
armadilhas podem ser consideradas como animal, sua vítima, e de sua relação mútua
textos so bre o comportamento animal. que, nos povos caçadores, é
fundamentalmente socia l e complexa. Isso
A armadilha é, portanto, um modelo tanto
significa que essas armadilhas comunicam a
de seu criador, o caçador, quanto de sua
noção de um nexo de intencional idades
vítima, a presa animal. Porém, mais do que
entre os caçadores e as presas animais,
isso, a armadilha encarna um cenário, que é
mediante formas e mecanismos materiais.

184
Creio que essa evocação de intencionalidades temporariamente em seu trajeto, mas
complexas é, na realidade, o que serve para escapou. Essa pintura refere-se às afiliações
defin ir as obras de arte, e que, adequadamente do clã dos mortos e metaforiza a viagem do
emolduradas, as armadilhas para animais espírito à terra ancestral e a necessidade de
poderiam evocar intuições complexas a transferir- lhe forças (por meio de cerimôn ias
respeito do ser, da alteridade, do funerá rias), de modo que ele, como o
relacionamento. O impacto dessas armadilhas, tubarão ancestral, possa escapar das
agora apresentas como obras de arte, pode, "armadilhas" que ameaçam sua trajetória.
no entanto, ser maior, caso elas sejam exibidas O episódio do tubarão sendo capturado e
ao lado de obras de artes ocid entais (d as escapando é encenado pelos participantes.
quais é fácil achar numerosos exemplos) que Essas idéias escatológicas são, é claro,
ocupem, pelo menos aparentemente, o específicas da cultura Yolnngu, mas eu me
mesmo território sem iológico. arriscaria a sugerir que a semelhança entre
o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu não é
O trabalho de Damien Hirst, um dos jovens
apenas superficiaJ, mas insinua uma metáfora
artistas britânicos mais citados pela mídia,
vá lida em termos interculturais, embora
parece ser um desses casos. De fato, foi a
sujeita a leituras diferenciadas.
notória exposição de Hirst exibida na Tate
Gallery, em 1992, que me induziu, pela Enquanto isso, para reforçar a idéia de que a
primeira vez, a pensar sobre as armadilhas obra de Hirst diz respeito, de modo
como objetos artísticos. Considere o profundo, às armadilhas e à rede de
tubarão de Hirst no tanque de formol. Essa intencio nalidades complexas que a ca ptura
obra cativa devido ao contraste profundo em armad ilhas estabelece, de sc reverei outro
entre o pei xe gigantesco, ultrabiológico, e trabalho de Hirst presente na mesma
sua gaiola ou armadilha de vidro, asséptica exibição, na qual uma armadilha em
(recordando Eichmann em seu julgamento, funcionamento foi efetiva mente incorporada.
preso numa caixa de vidro), cujas paredes Refiro -me à instalação que consiste em uma
refletoras projetam imagens virtuais da cabeça de ovelha dentro de uma caixa de
igualmente asséptica galeria dentro do vidro: a cabeça deteriora-se e cria larvas,
domínio biológico do tubarão. Um eco que se transformam em moscas, que depois
distante das metades superior (biológica) e se tornam víti mas de uma armadilha para
inferior (mecânica) do Large Glass, de
Duchamp? - sem dúvida -, mas também
uma reflexão sobre nosso poder de
imobilizar força s elementares, que, no
entanto, parecem sempre potencialmente
prontas a escapar: Até mesmo o tubarão
de Hirst, tão morto quanto possível,
continua residualmente vivo, observando
e pensando ou, pelo menos, parece estar;
porque mantém seus olhos abertos e
fi xos em nós. Um dia ele escapará.
Seria apropriado colocar o tubarão de
Hirst ao lado da pintura em casca de
árvore extraída do livro Ancestral
Connections, de Morphy l6, que mostra um
tubarão capturado, quase idêntico,
visualmente, à instalação exibida na Tate
Gallery. Os Yolnngu produzem esse t ipo
de pintura durante rituais funerários, e ela
se refere à jornada rio acima de um
tubarão ancestral mítico que foi capturado

TRAD UÇÁO · A LFRED G ELL 185


- - - -- - - -
a/e R E V I \ TA DO PRo G RA M A DE PÓ \ • G R A oU A ç A o EM A RT E\ vI\ UA I\ E8 A • U FRJ 2 o0 1

moscas, como as usadas em açougues (em significado da outra. Essas obras não são
que as moscas são atraídas por uma luz iguais, mas também não são inteiramente
vio leta até os fios de alta vo ltagem), nas diferentes ou inco mensuráveis. Elas estão,
quais e las morrem. Uma armadilha dentro para utilizar uma ex pressão de Marilyn
de uma armad ilha, vítimas dentro de um a Strathern, 17 "parcialmente co nectadas".
vítima. Como antro pólogos, de ve ríamos ser
Também não supo nho qu e, para que uma
os primeiros a reco nhecer a redund ânci a no
armadi lha afri cana o u uma armadilha de
cód igo mito lógico co mo meio de sublinh ar a
qualquer o utra parte exótica do mundo
mensagem dialética que, nesse caso, co nsiste
possa funci o nar como uma o bra de arte,
em indu zir o es pectador a se ide ntifi car com
seja realmente necessári o o u desejáve l que
as vítimas presentes nessa montagem
se u contexto etnográfico seja abstraíd o.
(o animal mo rto, as larvas, as moscas) e, ao
Freqüentemente, o signifi cado artístico de
mesmo temp o , co m o Deus pe rverso que
certas armadilh as só pode ser estabelecido
coloco u este mund o incoere nte em
de modo etnográfico, e isso faz com que o
movim ento, co m o fabricante de armadilhas,
compo nente textual seja essencial para
Hirst. você, eu .
qualquer e xposição satisfat ória de
Hi rst não seria o único artista ocidenta l armad ilhas como obras de arte. Todavia, não
contemporâneo cujo tra balho estaria à precisamos nos desculpar por isso, pois,
mostra na exibição de armadilhas. Próximo desde Duchamp, sabemos, implicitamente,
à armadilha de setas, por e xempl o, eu que recursos como notas escritas e
poderia instalar o trabalho da artista com entários na forma de entrevistas são
conceitual Judith Horn. Essa obra de Horn necessários para a compreensão das obras
consiste em duas espingardas penduradas de arte contemporânea, assim como o
no teto da galeria que periodi camente conh ecimento da filosofia neoplatônica é
descarregam uma sobre a outra um líquido necessário para uma verdadeira apreciação
vermelho parecido com sangue, que fica da arte do Renascimento. IB N ão tenho
armazenado em dois tanques posi cionados nenhuma exegese para a armadilha de setas,
acima delas. Evidentemente, num dado nível,
esse é um comentário sobre a
insensibilidade da guerra, mas a chave para a
compreensão desse trabalh o não é tanto o
tem a da vio lê ncia mútua, mas da ausência
marcada de seus perpetrado res, just ame nte
o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em
relação à armad ilha de seta s. De fato, a
instalação de Horn relacio na-se diretamente
ao tip o de armadilha serial para ho mens
(esp ingard as ativadas por cordas) que eram
armadas para di ssuadir invasores de
pro priedades em te mpos passados.
Exemplos adicio nai s de obras de arte pós­
Duchamp (até mesmo trabalhos do próprio
Duchamp, como o Trébuche t, de 19 I 7)
po deriam facilmente ser selecionados para
figurar nessa exibição, mas Hirst e Horn
servirão por enquanto. Nã o quero dizer, em
absoluto, que uma armadilha africana e a
obra mais recente de Damien Hi st são
exempl os do mesmo tip o de co isa. Sugiro ,
apenas, que cada uma é capaz, no co nt exto
de uma ex ibição, de sinergizar e extrair

186
por exemplo, mas ela é tão gráfica, que mal O que é sig nificativo em relação à armadilha
necessita de uma. Já para outro s tipos de Anga é o contexto e o cuidado com que é
armadilha, a exegese é essencial. feita, que pode não ser evidente para
alguém desinformado. Os Anga de
Veja, por exemplo, a arm ad ilha de pesca da
Lemonnier capturam enguias em armadilhas
Guiana ilustrada em Roth. 19 Eu dificilmente a
como essa no contexto dos ritos
'­ co nside raria uma armadilha particularmente
mortuários, especificamente ao término do
artística, caso Stephen Hugh-Jones não me
período de luto, quando os enlutados
tivesse informado (comunicação pessoal)
devem ser reanimados como condição para
que, entre os Barasana (na vizinh a
seu retorno à vida normal. Nesse momento,
Colômbia), a armadilha de pesca equi vale nte
banquetear-se com enguias torn a-se eficaz
é conhecida como aquela "que transforma
não só porque as enguias são um excelente
peixes em frutas". Dada essa informação, vê­
e valioso alimento, mas também porque
se imediatamente o quanto essa armadilha é
estão associadas ao pênis do ancestral
espiritualmente metafísica e mágica. Em um
fundador, destacado por ser excessivamente
momento, o peixe está placidamente
lo ngo. Assim, elas não são apenas uma fonte
nadando e fazendo parte (assim pensa ele)
de vitalidade espiritual. como também um
do reino animal ao qual pertence e, então,
alimento superior de alto poder nutritivo
bong l Antes de saber o que aconteceu,
(não que essas categorias possam ser
tran sforma-se em um vegetal, balançando nos
completamente dissociadas em termos
galhos de uma árvore e disponível para ser
locais). Se isso fosse tudo, as armadilhas
colhido como qualquer outra fruta por algum
ainda poderiam ser consideradas meros
nativo. Que castigo mais merecido, em mais
implementos, porque o fato de as enguias
de um se ntido! Essa transubst anciação evoca
serem sagradas para os Angas não significa
as tran substanciações presentes na
necessariamente que os meios para obter
instalação de Hil-st discutida acima - cabeça
enguias sejam sagrado s ou extraordinár ios.
de ovelha (morta)/Iarva/mosca/mosca
Até mesmo o fato de as armadilhas serem
(morta) -, porém, de mod o mais radical. no
construídas no decorrer de um ritual. com
senti do de que o peixe se move entre
muita atenção mágica a elas vo ltada, não
reinos, enquanto que a cabeça da ovelha,
bastaria para retirá-Ias do conjunto dos
literalmente, só se move entre ordens. Com
objetos comuns. Mas o que Lemonnier
certeza esse ponto não ocorreria a um
consegue mostrar - e isso, muito
público de arte não pertencente à comunidade
provavelmente, só seri a evidente para um
barasana, desprovido de informações
antropólogo, situado entre o mundo dos
textuais. Porém, uma vez que a pista seja
Anga e o mundo ocidental, não para um
fornecida, a pessoa não precisa de um PhD
nativo - é que, de fato, é na fabricação das
em antropologia para apreciar a anedota,
armadilhas que os Anga constroem a noção
nem tam po uco, penso eu, para ser levado a
de "poder" inerente às enguias. As
refletir sobre suas implicações mais profundas.
armadilhas são feitas de tiras de casca de
Outro exemplo (que deve ser o último) de árvore amarradas com argolas de can a e
armadilha que só pode fun cionar como obra guarnecidas de um alçapão na extremidade
de arte com a ajuda de um certo grau de mais larga. O que Lemonnier observa é que
material exegético, é a armadilha Anga para as argolas de cana são muito mais
enguias, descrita num artigo recente de resistentes, numerosas e cuidadosamente
Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo elaboradas e, analogamente, o alçapão é
cilindro de casca de árvore enrolado, muito mais resistente do que seria
amarrado com cordões de fibra vegetal, necessário apenas para capturar algumas
{ reforçado com madeira e provido de um enguias. Assim, é a armadilha que carrega a
mensagem do poder da enguia, não o animal
engenhoso alçapão encurvado. Na verdade,
enguias são apanhadas em armadilhas concreto. Como um artefato simbólico que
alongadas como essa em muitas partes da captura e co ntém o poder da enguia, ela
Nova Guiné e tam bé m em outro s lugares. funciona, metonimicamente, para

T RA D U ç Â o • A L F R E D G E L L 187

~ ---------- --------------------
a/e REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUAÇÃO EM A RTES VISUAIS EB A • UFRJ 2001

potencializar a enguia, em virtude de sua ten ha dito o suficiente para convencer. pelo
própria resistência e força. De fato, a menos algumas pessoas. de que tal
armadilha, que recebeu uma forma para conjunção não se ria completame nte
acomodar e atrair enguias, é uma inoportuna. Nesse ponto. a teo ria
representação da enguia, não apenas no institucional da arte "liberaria".
sentido já mencionado de ser uma objetificação imediatamente, um grande número de
do conhecimento sobre o comportamento artefatos - até então co nsignados ao
da enguia. como também. de modo mais Naturhistorisches Museum - , reservando­
direto. porq ue ela própria é alongada (eef­ lhes um lugar no Kunsthistorisches Museum
ongaced), fálica, ingestíve l e reprodutora. e assegurando-lhes recepção e audiência
completamente dife rentes, uma vez que . ao
Não poderia haver uma refutação mais
circularem com sucesso como obras de
evidente da tese que relegaria objetos como
arte. esses objetos tornar-se-iam artísticos.
as armadilhas para animais à categoria de
Sei-ia essa mudança um retrocesso?
"meros" artefatos. em comparação com
esculturas de antepassados e coisas Falando como um antropó logo interessado
semelhantes (que os Anga, incide ntalmente. em arte. e não como um crítico de arte ou
não fazem). Se os Anga encarnam seus um porta-voz do Espírito Absoluto, creio
antepassados numa forma fabricad a. é q ue essa tran sformaçã o seria bem-vinda. A
certame nte na forma de armad il has como pior coisa a re speito da "antropologia da
essas (e também em outros artefatos, como arte". tal como está co nstituída, é
templos de iniciação) . Essas armadilhas são precisamente a maneira como ela herdou
"imagens dos antepassado s" no sentido de uma definição reacionária de arte. de tal
que elas contêm. e ncarnam e comu nicam o modo que ela tem que se preocupar com
poder ancestral. Além disso, elas to rnam objetos q ue teriam sido classificados como
possíve l a realização da presença ancestral "arte" ou, mais provável. como "artesanato".
no aqui e agora. como poucas imagens no começo deste sécul o. mas que têm
convencionai s conseguiriam não "a despeito po uco ou nada a ve r com os tipos de
do" fato de que elas també m sejam objetos (instalações. performances) que.
instrumentos úteis para capturar enguias. caracteristicamente. são veiculados como
mas por causa desse fato . Durante séculos. "arte" no final do século 20.
nós, no Ocidente. temos esperado em vão
Efetivamente, a "arte". para a antropologia
por (e fanta siad o a respeito de) estátuas ou
da arte. consiste em determinados tipos de
imagens que se movam ou abençoe m. ou
artefato que só poderiam se r expostos
façam amor. O s Anga. ao contrário. têm
como ta l numa cidade provincia na muito
"imagens" de poder ancestral que. de fato,
so no lenta que se vanglorie (como a maioria
trabalham. de fato, alimentam os que as
de las) de ter uma "galeria" onde podem ser
fabricam e. assim. alcançam um objetivo que
encontradas cerâmicas folclóricas, esculturas
sempre escapou a nossos artistas,
e tapeçarias. se m falar nas inúmeras
prisioneiros da necessidade de representação
naturezas mortas e cenas rurais com
real ística de form as (superficiais).
palmeiras. A trad~ç ão burguesa de arte que
produz e consome essas coisas é.
Con cl usão obviamente. indestrutível. Mas po r que o
Outro etnográfico só deveria ser
Suponha, então. que tal exibição híbrida de considerado um produtor de "arte" caso
armad il has exóticas para animais. produzisse coisas genericamente
entremeada com obras de artes ocidentais semel hantes a tal refugo reacionário, mesmo
relevantes. seja apresentada ao público de se algumas obras de "arte primitiva", assim
galeria. Que implicações isso teria para o especificadas. fossem, de fato, da mais alta
problema com o qual co mecei este ensaio ­ qualidade? A razão para a persistência d esse
a di sputa relativa aos critérios definidores da estado de coisas - que pode. entretanto,
categoria de obra de arte) Espero que eu estar se ndo esclarecido enquanto escrevo

188

--------------------------- -------------
(vide Weiner 21 ) - res ide na intluên cia seus seguidores. Os objetos de arte
pro lo ngad a da noção "estética" de obra de conceitual aparenteme nte "arbitrários" só o
arte sobre a mentalidade antropo lógica,22 são aparentemente, e t o do s e les funci onam ,
vist o que essa é a definição que assegura se é que fun cionam, porque têm resso nâncias
que só esc ulturas, pinturas, potes, panos, etc. ico nográficas e hi stó ricas complexas
"est eticamente agradáveis" devem ser (danto escas), das quais o público de galeria
considerados "arte ". est á, em maio r ou men or extensão, ciente.
Trata-se de objet os que demandam um
A mudança que defendo diz respeito ao exame minuci oso, enquant o veícu los de
abandono da noção estética de o bra de idé ias complexas, e que evocam ou
arte pela antropo logia da arte,23 único significam algo interessante, difícil, alusivo,
procedimento capaz de permitir o tipo de complicado de reali za r, et c. Eu de finiria
confro ntação direta, desc rito acima, entre os como candidato a o bra de arte qualquer
artefatos dos povos nã o ocidentais e a o bjeto ou performance que recom pense,
produção artística pós-Duchamp, ou seja, o potencialmente , tal exame, pois encarna
confro nto com a tradição central da arte intencionalidades que são comp lexas ,
co ntemporânea, propriamente dita, e não exigem atenção e são difíceis de
com o ersatz, que pode se r visto em galerias recon struir plenam e nte 2~
de artesanat o provincianas. Deve-se acei tar
a prem issa em essê ncia libe rtadora da teoria Ass im, é preci so mais pa ra fazer uma obra
institucio nal da arte, que surgiu de arte pós-du champiana do que a simp les
precisamente para acomoda r o fato exposição em um a galeria: um co ntexto
histórico de que as obras de arte ocidentai s interpretativo também precisa ser
já não têm mais uma "assi natura" est ética e desenvo lvid o e disse minado. Desse ponto
podem consistir em objetos inteiramente de vista, a t eoria puramente institu cional da
arbitrários, como tubarões mortos em arte é menos do que sati sfatória, porque
tanqu es de formol, por exem plo. nada tem a dizel- sobre os critérios que
gove rnam a criação dos tip os de
Isso significa que qualquer objeto fabri cado ressonânc ias context uai s ao s quais o público
pelo homem pode ser ve ic ulado como o bra ed ucado de ga le ria é sensíve l. Nessa medida,
de arte? É isso que a teo ria "instituciona l" da Danto está certo ao afirmar a imp ortância
arte implica? Potencialmente, talvez sim, mas da inte rpretabil idad e para o processo de
essa é uma idéia banal, em termos de t eo ria constituição da ob ra de arte. O que está
da arte contemporânea, desde 19 I7, quando e rrado em sua teor ia. pelo menos no que
Duchamp exibiu seu notório urin o l (ou diz res peito à distinção entre o bra de arte e
Fontaine). Fo i no t e mpo de meu avô e dos artefato, é sua dep endência em relação a
bisavós dos artist as de hoje, como Dami e n uma distinção superid ealizada entre
Hi rst. Caso selecionar e expor objetos artefatos "funcio nais" e ob ras de arte
arbitrários como "arte" fosse suficiente para "significat ivas". Esse é um legado dos
de finir a tradição de arte pós-Ducham p, fil ósofos pós-iluministas, co mo Hege l. que
pouco poderíamos espe rar de la nesta fase obsc urece a compreensão de qual quer
ta rdia. Na verdade, as co isas não são ·bem mun do artístic o distinto daqu e le que Hegel
assim. Os ready-made de Du champ foram tinha especificamente em me nt e. Talvez as
cuidadosamente selecio nados e firmeme nte obras de arte das galerias contemporâ neas
integrados, tem atica mente, a do is de seus não fa çam nada além de evocar sign ificado,
principais projetos (o Large G/ass , de 19 I5­ mas a maioria das ob ras de arte tem
23, e a Waterfa/l, de 1944-66). O aspecto funções políticas, re ligiosas e o utras. Essas
mais inte ressante a respeito dos ready-made funç ões são "práticas" nos termos das
de Duchamp nunca foi os objetos em si, concepções locais acerca do mundo e da
mas as razõ es de Ducham p para selecio ná­ man ei ra como os seres humanos podem
los (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida interferir em se u funci onamento, de modo a
performática de strip-tease) e o mesmo é t irar o melho r proveito poss íve l dele. O bras
válido para a arte produzida por muitos de

TR ADUÇAo . A L F RED GE LL 189


a/e R E V 1ST A DD P R D G RA M A DE PÓS - G R A o U A ç Ao EM A RT E S V I SUA I S E BA • U FRJ • 2 oo I

de arte também podem capturar enguias, relevantes (como as que foram elaboradas
como vimos, ou cultivar inhames. 2s A por Boyer. Hugh-Jones. Lemonnier, aqui
"interpretação" de tais obras de arte mencionadas) e em parte pela descoberta
inseridas na realidade "prática" está de conexões entre as intencionalidades
intrinsicamente ligada a suas características complexas presentes em obras de artes
como instrumentos que cumprem outros ocidentais e os tipos de intentionalidades
propósitos além da incorporação de encarnadas em obras de arte e artefatos
"significado" autônomo. (agora recontextualizados como obras de
arte) provenientes de outros lugares. Do
Uma espécie de meio do caminho entre as
ponto de vista do fazer artístico, essa seria
teorias "institucional" e "interpretativa"
uma transação unilateral. no sentido de que
parece-me a melhor opção. A teoria
conceitos de "arte" essencialmente
institucional da arte é sensível à idéia de
metropolitanos, e não indígenas. estariam
que obras de arte podem ser "artefatos"
em jogo. Contudo, como Thomas 26
que atendam a diferentes propósitos
demostrou, os objetos são "promíscuos" e
humanos, desde que. ao mesmo tempo. eles
podem mover-se livremente entre domínios
sejam considerados interessantes, como
culturais/transacionais sem ser essencialmente
arte. por um público de arte. Mas a teoria
comprometidos. Eles só podem fazer isso
institucional é problemática, porque não é
porque, de fato. não têm nenhuma essência,
clara a respeito dos critérios que
só uma gama ilimitada de potencialidades.
determinam que objetos serão ou não
selecionados como artisticamente Nesse sentido, seria a "rede" de Vogel uma
"interessantes". A concepção danto-hegeliana obra de arte? Acredito que os freqüentadores
de um Geist da arte autônomo não de galerias de Nova York que a tomaram
enquadra nessa categoria senão um como tal não estavam enganados. Nem
conjunto estreito e não representativo de estavam completamente influenciados pelo
produções humanas. Como conseqüência, mero fato de ter sido institucionalmente
deixa de explicar a relativamente bem­ convidados a vê-Ia como tal. pela
sucedida candidatura a obra de arte da organização da galeria e pelas semelhanças
"rede" de Vogel, exceto como o resultado de casuais entre a rede Zande e o trabalho de
um erro categórico por parte do público. artistas conceituais ocidentais conhecidos.
Uma noção mais ampla de como Jackie Windsor. Não tenho dúvidas de
interpretabilidade, abarcando a objetificação que eles estavam respondendo à própria
de "intencional idades complexas" em modos noção de "rede" e ao modo paradoxal pelo
pragmáticos e técnicos. bem como o qual essa própria rede tinha sido capturada
projeto de comunicar significado simbólico e firmemente presa dentro de uma segunda
autônomo, parece-me superar os problemas rede. Essa metáfora recursiva de captura e
contidos em ambas as teorias. contenção já seria, por si só. suficiente para
"interpretativa" e "institucional". da arte. fazê-los pararem, detê-los na passagem e
induzi-los a olhar fixamente, como o
A "antropologia da arte" deveria tratar, em
condenado chimpanzé de Boyer.Toda obra
minha opinião, de fornecer um contexto
de arte que funcióna é, assim, uma
crítico que liberasse os "artefatos" e
armadilha ou um ardil que impede a
permitisse sua veiculação como obras de
passagem. E o que seria uma galeria de arte
arte, exibindo-os como encarnações ou
senão um lugar de captura, armado com o
resíduos de intencionalidades complexas. A
que Boyer chamou de "armadilhas do
antropologia deveria ser parte da própria
pensamento" que mantêm as vítimas, por
criação artística, na medida em que a
algum tempo, em suspensão? A rede de
criação artística, a história e a crítica de arte
Vogel foi armada com cuidado. e, nela. a
são, hoje em dia, um único
antropóloga capturou, além de vários filósofos
empreendimento. Isso seria garantido, em
e antropólogos - incluindo este -, grande
parte. pela realização de etnografias
parte da questão sobre "o que é arte?"

190
Quando morreu, em 1997,Alfred Gell era Professor de 21 Weiner, J, (ed.), Aesthetics is a Cross-cultural Category,
A ntropologia na London SchooJ of Economics e Political Graup for Debates in Anthropological Theory,
Science e membro da British Academy. Entre os diversos
Manchester University, Department of Anthropology,
artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da
arte, destacam-se Wrapping in Jmag es: Totooing in Po/ynesia
1994.
(1993) e Art on d Agency: An An'hropologicol Theory ( 1998).
22 Maquet, Jacques. The Aesthetic Experience:An
Tradução: Marcia Martins Campos e Laura Bedran . Anthropologist Looks at the Visual Arts. New Haven,
Revisão Técnica : Kátia Maria Pereira de Almeida. CT: Yale University Press, 1986,

23 Gell, Alfred. The Technology of Enchantment and the


Enchantment ofTechnology, in Jerem y Coote and
Notas Anthony Shelton (eds.). Anthropology, Art and
Aesthetics. Oxford: Oxford University Press, 1992.
I Ver Dickie, George , Are and Aesthetics, Ithaca, Nova
York: Cornell University Press, 1974 e Dickie, 24 Cf, a noção de Kant de "livre jogo dos poderes
George, The Art Circfe: a Theory ofArt, New York: cognitivos".
Havens, 1984.
25 Gell, op. cie.: 60.
2 Bourdieu, Pierre. Distinction: A Social Critique of
Judgements ofTaste, trad, Richard Nice. London: 26 Thomas, Nicholas, Enwngled Objects. Cambridge, MA:
Routledge & Kegan Paul, 1984, Harvard University Press, 1991.

3 Faris, james. ArtlArtifact: on the Museum and


Anthropology, Currene AnÚlropology 29(5), 1988:775-9.

4 Faris, op. cit.:776.

5 Danto, Arthur, Artifact and Art , in Art/Artifacc: African


Art in Anthropology Collections. Catálogo da
exposição. Nova York: Center for African Art and
Prestei Verlag, 1988.

6 Danto, Arthur. The Artworld journal of Philosophy,


Journal of Philosophy, 61, 1964: 57 1-84.
7 Dickie, 1974, op. cir.

8 Ver Danto, Arthur, The Tran sfJguration o{ the


Commonplace, Cambridge, MA: Harvard University
Press, 1981 e Danto, 1988, op, cir.

9 Danto, 1981, op. cir.

10 Faris, op, cir.: 778,

I I Clifford, james, The Predicament of Culcure. Cambridge,


MA: Harvard University Press, 1988,

12 Danto, 1988, op. cit.:31.

13 Danto, 1988, op. cir.: 29.

14 Boyer, Pascal. Barricades mystérieuses et Pieges à

Pensée: introduction à I'analyse des épopées Fang.

Paris: Societé d'Ethnologie, 1988.

15 Boyer, op. cie.: 55-6,

16 Morphy, Howard. Ancestral Connections: Art ando an

Aboriginal Syseem o{ Knowledge. Chicago: Chicago

University Pness, 1991 .

17 Strathern, Marilyn. Partial Connections. Savage, MD:

Rowman Littlefield, 1991.

18 Wind, Edgard. Pagan Mysteries in the Renais sance ,

Oxford: Oxford University Press, 1957.

19 Roth, Walter, 38th Annual Report ofthe American

Bureau of Ethnology, 1924.

20 Lemonnier, Pierre, The Eel and the Ankave-Anga:


Material and Symbolic Aspects ofTrapping, 1992,
esboço de artigo ainda inédito.

TRADUçAO AlFRED GEll 191

- - _ ._ - -­

Você também pode gostar