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Discriminação por gênero e sexualidade não é um problema nas culturas indígenas

Registros antigos mostram que os povos indígenas originários das Américas viviam sem discriminação de
gênero ou orientação sexual. Ainda hoje é possível  identificar marcas desse passado de mais de 500 anos entre os
indígenas, mesmo que o país carregue o título de lugar onde mais ocorrem crimes LGBTfóbicos no mundo.
A sigla LGBTQIA+, que vem sofrendo alterações não oficiais [mas não menos legítimas] nas últimas décadas , é
apontada por alguns ativistas com mais de 14 elementos, que estariam representados pelo “mais”, que aparece ao
final. Dentre os símbolos, o número 2 se destaca no conjunto de letras para representar a categoria “dois-espíritos”
[two spirits]. O termo é utilizado atualmente por indígenas nativos norte-americanos para descrever os ameríndios
que desempenham um dos muitos papéis de gênero mistos que é possível encontrar nas tribos nativas do país.
O termo foi instituído e aplicado pelos próprios ameríndios LGBTQIA+ e pode não se encaixar na realidade das
diversas tribos nativas do Brasil. Mesmo assim, a diversidade de gêneros também é uma realidade entre os povos
que vivem aqui.

O coordenador do Núcleo de Estudos sobre Etnicidade da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),


Renato Athias, explica que a noção de espírito que há no Brasil não cabe para os povos indígenas porque está
baseada em fundamentos cristãos . “Entre os índios com os quais eu trabalho, não é possível falar de espíritos, por
exemplo. Para eles, existem três situações ou substâncias que o corpo humano se coloca, a sexualidade é uma delas,
mas não é a mais forte, depois a ideia de um bem-estar e também uma ideia de desequilíbrio. Tudo o que entra e sai
pela boca e pelos orifícios tem um significado. Algo que, muitas vezes, não é compreendido na sociedade ocidental”,
afirma. “Porque não três ou quatro espíritos? Cada povo indígena tem seu entendimento e relação com o que
poderíamos chamar de espíritos, mesmo essa ideia de espírito sendo algo fora da realidade indígena, sobretudo do
ponto de vista das mitologias”. Ainda assim, o pesquisador ressalta a existência de mitos indígenas que ajudam a
perceber que existem, entre eles, mais de dois gêneros, mais que “homem” e “mulher.

“A ideia de [apenas] dois sexos é completamente ocidental. Masculino e feminino fazem parte de uma série de
criações que foram colocadas dentro das sociedades. Em certos mitos indígenas, há várias situações em que essa
diferença entre masculino e feminino deixa de existir ou se torna uma forma diferente de olhar essas relações
sexuais definidas entre um e outro. Podemos dizer que não são só existem dois, mas três, quatro sexos, se
analisarmos bem”, afirma o antropólogo.

Perceber essas outras formas de ser e existir podem ser dificultadas por algumas questões. A primeira delas
é a influência de outras culturas, a partir da colonização europeia. Para Athias, nos últimos 521 anos de contato com
outros grupos sociais, muita mudança aconteceu nos modelos de organização social e na forma de pensar das
sociedadesindígenas. “Os povos indígenas originários evidentemente têm uma continuidade histórica nos povos
indígenas atuais aqui no Brasil, mas não são os mesmos. As identidades de gênero sempre foram respeitadas entre
os grupos indígenas e sempre serão. Contudo, à medida que determinado povo esteja mais fortemente cristianizado
[como consequência da colonização], hoje pode haver um outro tipo de relação”, opina o professor.

“A ideia de desrespeito e de tornar as relações sexuais um pecado vêm muito da ação cristã missionária em relação a
todos os povos. A doutrina cristã em relação ao corpo foi terrível, condenando inclusive muita gente à fogueira,
muitas vezes porque as pessoas modificavam seus corpos, produziam fórmulas com o próprio corpo”, acrescenta.
A sexualidade também é encarada pelos povos indígenas de forma mais simplificada e, de forma geral, não há
estruturas fortes do machismo, baseado em papéis ou funções destinados socialmente aos gêneros.
“Para as sociedades indígenas, a orientação sexual não é algo tão complicado como é para a sociedade ocidental. A
arqueologia tem colaborado muito com a antropologia, no sentido de podermos perceber as diversas formas
[existentes]. Por isso, hoje, é possível estudar melhor essas questões”, comenta o professor. “Em geral, não existe
hierarquia ou poder ligado a identidades de gênero entre os povos indígenas. As relações sociais e de parentesco
costumam ser extremamente muito bem resolvidas – inclusive nas formas de prescrição dos casamentos ou para
não-casamento, que é uma relação muito importante para os povos indígenas e para a reprodução social”, enfatiza.

No livro “São Tibira do Maranhão, 1614-2014, Índio Gay Mártir”, o professor da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) e fundador da organização não-governamental Grupo Gay da Bahia (GGB) Luiz Mott resgata a história
do primeiro índio gay, como descreve, a ser assassinado no Brasil como mártir em 1614. Até hoje, esse é o registro
mais antigo de homofobia no país.
Entre os tupinambás, a palavra tibira é destinada para índios que se relacionam sexualmente com outros índios do
mesmo sexo. O frade capuchinho francês Yves D'Évreux descreveu um dos tibira em seu diário “Viagem ao Norte do
Brasil feita nos anos de 1613 e 1614”, dizendo que, por fora, era “mais homem”, mas  que era “hermafrodita” e
tinha “voz de mulher”. Para ele e os colonizadores, isso já caracterizava o pecado de sodomia contra Deus e já
justificava qualquer punição.

São mais de 800 mil índios, 305 etnias que falam 274 diferentes tipos de línguas.
78 mil pessoas se declararam de outra raça, mas se consideram indígenas por conta de tradições, costumes e
antepassados.
274 é o número total de línguas indígenas faladas no Brasil.
Região com maior número de indígenas: Norte – 342,8 mil.
Região com menor número de indígenas: Sul – 78,8 mil.

Tradicionalmente, os Wari' afirmam que quase todas as doenças graves e mortes são decorrentes de
ataques intencionais ao espírito e corpo humano por agentes externos. Para os Wari', as pessoas, e alguns animais,
têm um espírito (jamixí) que reside no corpo, estando este intimamente identificado com a consciência, o
autoconhecimento e a percepção. Se o espírito separa-se do corpo (um processo denominado ka jamü wα), o
indivíduo perde a consciência ou experimenta somente o que seu espírito está vivenciando. Um espírito infeliz pode
deixar seu corpo voluntariamente. Mais comumente, a separação entre espírito e corpo ocorre involuntariamente,
principalmente quando o indivíduo é vítima de feitiçaria. Outra forma de ataque ao espírito humano ocorre quando
espíritos de animais ou da natureza apossam-se dele, devorando-o ou matando-o. Determinados animais chamados
irí karawa têm jamixí (espíritos) que podem atacar as pessoas, e causar doenças (Conklin, 1989; Meireles, 1986;
Vilaça, 1992). Os espíritos destes animais são visíveis somente para os xamãs, que possuem uma espécie de "visão
raio-x" que os capacita a enxergar através do corpo da vítima e detectar a presença de espíritos e objetos mágicos
em seu interior. Há inclusive alguns xamãs que consideram seus poderes superiores aos dos médicos ocidentais, pois
estes necessitam de instrumentos para "ver" a doença. A etnomedicina Wari' está intimamente relacionada àqueles
princípios de sua religião que dizem respeito às formas de equilíbrio e reciprocidade entre seres humanos e animais.
A caça de animais é contrabalanceada pela morte de seres humanos, provocada por doenças animais (Conklin, 1989:
379-84). Na mitologia Wari', os seres humanos e animais compartilham as mesmas origens. Aos olhos dos xamãs, os
animais irí karawa parecem humanos, têm moradia, terras, ferramentas, fogo e linguagem, tal como as pessoas.
Homens e animais apresentam uma percepção inversa em relação ao outro, na caça ou na produção de doenças.
Isto é, quando caçando, os Wari' vêem sua iríkarawa como a de animais e não como de humanos. Igualmente,
quando um espírito animal ataca uma pessoa, ele se vê como ser humano e encara a vítima como um animal a ser
caçado, ou um inimigo (wijam) a ser morto. Quando os espíritos de animais e da natureza provocam doenças, agem
habitualmente sob a forma humana e atingem as pessoas com flechas mágicas que produzem dor, febre e
interrompem a circulação sangüínea. Além de lançar flechas sobre suas vítimas, outros espíritos animais também
podem agir sob a forma de animais propriamente ditos. Neste caso, penetram no corpo da vítima, comem seus
órgãos internos ou nele depositam alimentos, certos objetos ou partes de animais (ossos, garras, pêlos, penas)
capazes de causar doenças. Os espíritos podem atacar sem motivo aparente ou em retaliação a ofensas cometidas
pelas vítimas ou seus parentes. Alguns xamãs dizem que, quando um espírito animal devora partes do corpo de sua
vítima, esta assume gradualmente características animais. Alguns doentes Wari costumam emitir grunhidos e
gemidos, que são interpretados como evidências de que o espírito do doente está se transformando em um animal.
As pessoas comuns podem tratar certas doenças, mas somente os xamãs podem curar aquelas provocadas por
ataques de espíritos. Poucos xamãs possuem poder suficiente para salvar vítimas de feitiçaria, mas todos podem
tentar expulsar espíritos de animais e/ou retirar partes de animais do corpo dos doentes. Quando um xamã olha o
interior de um corpo e nele localiza flechas ou outros objetos, remove-os e mostra-os à família do paciente. O xamã
também interage diretamente com o espírito do animal para expulsá-lo do corpo da vítima. Cada um dos espíritos de
xamã está relacionado a uma determinada espécie animal. Uma das estratégias no tratamento de pacientes
atacados pelo espírito de um animal é agir em oposição a este (Meireles, 1986:367-68). Por exemplo, quando o
ataque é devido ao espírito de um peixe, um xamã associado ao espírito do porco-do-mato pode capturar e expulsar
o espírito do peixe. Isto porque, segundo os Wari', porcos comem peixe. Mais comumente, os xamãs não agem em
oposição ao espírito do animal transgressor, mas em sistema de aliança. Já que os animais causam doenças quando
não reconhecem seres humanos como "pessoas" (Wari'), a estratégia mais importante dos xamãs para prevenir e
curar os ataques dos espíritos é persuadi-los a encarar suas vítimas como seres humanos, não como presas de caça

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