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VERSÃO DO AMOR

Autora: Camila Raffanti

Tema: Amor

Stela Está em seu ateliê, vê uma sacola de tecido no chão, dá uma olhada por cima e deixa-a.
Mexe no celular e ouve uma notícia.

VOZ: Foi encontrado essa manhã o corpo do apresentador de Tv Marcos Valente, ancoras de
um dos mais populares programas policiais apresentados todas as tardes. O comunicador estava
em um de seus apartamentos na capital paulista com um tiro na cabeça. Segundo funcionários
do prédio Marcos Valencia não morava no prédio, o mesmo era usado por ele para encontros.
Conhecido por seu discurso conservador, Valente que também era líder religioso, preparava-se
para entrar na política e já havia sido sondado por diferentes partidos para concorrer a um cargo
público nas próximas eleições. O delegado responsável pelo caso ainda aguarda análise da
polícia técnica em relação as câmeras de segurança do edifício que indicaram suspeitos do
crime.

MARINA: Bom dia

STELA: Bom dia.

MARINA: Tem café? Estou precisando de um litro.

STELA: Tem sim, eu acabei de fazer. Você viu que mataram o Marcos Valente?

MARINA: Aquele apresentador?

STELA: Acabei de ouvir

MARINA: Nossa, jura? Não ouvi, não.

STELA: Encontraram o corpo dele hoje de manhã em um apartamento que ele tinha para
encontros clandestinos.

MARINA: Que ironia do destino. O cara vivia fazendo discurso moralista de ódio na Tv,
mandando matar bandido, perseguia homossexual e tinha uma vida dupla? Na certa era casado
e tinha uma amante. Clichê total. O idiota não se deu ao trabalho nem de ser original?

STELA: A polícia está investigando. Parece que as câmeras de segurança gravaram tudo.

MARINA: Quer saber? Eu tenho nojo desse cara, mas, sei lá, tomara que peguem o assassino.

STELA: Foi boa a reunião ontem a noite? Eu nem te vi chegar.

MARINA: Foi Ok.

STELA: Foi lá na produtora?

MARINA: Aham. Saí de lá super tarde. Eu tive uma discussão com a produtora executiva, ela
quer que eu corte um monte de coisas. Ela quer que eu faça um documentário imparcial,
asséptico. Uma covarde essa mulher. Mas depois eu te conto, eu preciso ir agora.
STELA: Muito trabalho?

MARINA: Muito, eu vou entrevistar uns caras de jornalismo independente e depois vou pra ilha
trabalhar na montagem.

STELA: Janta comigo hoje?

MARINA: Hum, não sei. Melhor não me esperar, talvez eu volte tarde.

STELA: Eu espero.

MARINA: Sério, não precisa.

STELA: Eu sei que não precisa, mas eu quero. Ai Marina, a gente quase não se encontra mais,
vem jantar comigo, vem?

MARINA: Tá bom mãe, vou tentar voltar mais cedo, tá?

STELA: Quer que eu lave essa roupa?

MARINA: Que roupa? (volta para pegar) Ah não, não. Isso aqui eu vou levar para a lavanderia.
Pode deixar.

Marina sai e Stela vai para o seu laptop.

Marilu, sua assistente, chega com uma garrafa de vinho.

MARILU: Cheguei.

STELA: Entra Marilu.

MARILU: Stela, Stela. Onde tem taça?

STELA: O que é que a gente está comemorando?

MARILU: Tua exposição, os caras toparam.

STELA: Você está falando sério?

MARILU: Claro que tô.

STELA: Marilu, você é incrível, garota. Obrigada.

MARILU: Não foi nada difícil convencer, viu. Você que é incrível. Bem minha amiga, se prepara
por que daqui pra frente a tua vida vai mudar.

STELA: Que bom.

MARILU: Stela, Stelinha, nossa estrela.

STELA: Eu não acredito, Marilu.

MARILU: Tive que conversar com os caras, mas tudo bem.

Serve vinho para as duas.

STELA: Vai lá. Vamos brindar. Tim Tim.

MARILU: Tim Tim.


Stela toma o vinho em um só gole e suspira.

MARILU: O que foi? Não está feliz?

STELA: Estou. Estou sim. Só que...

MARILU: Só que?

STELA: Ah Marilu, é a Marina. Em outros tempos a primeira coisa que eu faria seria ligar pra ela
pra contar da exposição, mas agora, sei lá... Ela está tão distante.

MARILU: Novo amor?

STELA: Não sei. Talvez. Seria tão bom.

MARILU: É, ia ser muito bom pra ela. Já está na hora da Marina sair dessa depressão. Depois de
tudo que aconteceu com Helena.

STELA: É verdade, mas tomara que seja mais simples.

MARILU: Em que sentido?

STELA: Todos.

MARILU: Ué, por que você não pergunta pra ela?

STELA: Tem razão, talvez seja melhor mesmo. Eu vou perguntar.

MARILU: Ei, eu tenho razão sempre.

Elas riem.

MARILU: Tem uma coisinha pra comer aí?

STELA: Tem, pode pegar. Você viu a história do Marcos Valente?

MARILU: Vi, hoje cedo na internet.

STELA: Pois é, que merda né?

MARILU: Uhum, mas tem muita gente comemorando, viu.

STELA: Eu acho tudo isso uma merda. Eu sei, o cara era um monstro, tudo bem, mas comemorar
o assassinato de uma pessoa é cruel demais.

MARILU: É complicado. Enquanto era só um maluco falando coisas na Tv, ok. Mas a partir do
momento em que o cara começa a entrar para a política, fazendo discurso de ódio, aí a coisa
fica séria. A quantidade de casos de agressão a negros e gays aumentou muito depois que esse
cara entrou pra Tv. Enquanto era só, lugar de bandido é na cadeia, ok. Dizem que ele mesmo
estava envolvido numa série de escândalos sexuais e a polícia não está facilitando nada, está
cada vez mais violenta. E não é só com bandido não, com todo mundo. Pra mim esse Marcos
Valente era tão perigoso quanto o assassino dele. É uma merda comemorarem? É claro que é,
mas eu acho que eu entendo o que essas pessoas estão sentindo.

STELA: Não Marilu, crime é crime.


MARILU: Mas Stela, olha só. Se alguém tivesse matado o Hitler, antes dele fazer tudo que fez,
teria ido pra cadeia, é crime e ponto. E iria ficar lá mofando, mas teria salvado milhões de vidas
e ninguém nunca iria ficar sabendo. Ia ser só mais um assassino apodrecendo na cadeia.

STELA: Quer dizer, o assassino seria preso por ter feito a coisa certa, certo?

MARILU: Isso é o que você está falando.

STELA: Sabe que essa história de crime me deu uma ideia. Vai ser a minha próxima série.

MARILU: Como?

STELA: Lembra do Célio? Aquele cara com quem eu saia que era perito digital da polícia?

MARILU: Mais ou menos.

STELA: Eu estou pensando em falar com ele e pedir pra ele arrumar as imagens da câmera de
segurança desse caso. Aí eu vou fazer uma intervenção em todos os frames do vídeo. Vai ser a
primeira da série “Assassinos de Assassinos”. O que é que você acha?

MARILU: Acho que quem ia gostar bastante disso é a sua filha.

STELA: A Marina?

MARILU: Até hoje ela não se conformou com a morte da Helena. Que horror, só por que ela era
trans?

Marilu pega um pote na mesa.

STELA: Não, não, esse não. Hoje a noite eu vou cozinhar pra Marina e eu quero servir isso de
entrada.

MARILU: Ok, ok.

STELA: Isso te incomodava?

MARILU: O que? A Helena ser trans? Claro que não e a você?

STELA: Claro que não. Mas incomodava muita gente.

MARILU: Bem minha amiga, eu já vou. Passei aqui só pra te contar a novidade, aliás acho que
merecemos uma festinha lá em casa para comemorar a exposição, o que você acha?

Stela faz positivo com a cabeça.

MARILU: Maravilha. Ótimo.

Marilu está saindo quando para e fala:

MARILU: Stela, quanto aquela coisa da Marina que anda te preocupando. Fala com a tua filha.
Tudo que ela passou foi muito difícil, fala com ela.

STELA: Pode deixar.

MARILU: Te amo amiga.

STELA: Eu também.

Black out
Marina e Stela estão terminando de jantar

STELA: Está tudo bem?

MARINA: Está mãe, por que?

STELA: Parece que você nem ficou feliz com a minha exposição.

MARINA: Claro que eu fiquei, mãe. Essa exposição é só o começo, agora esse mundo vai ser seu.

Silencio. Fica um clima no ar.

STELA: Quer sobremesa?

MARINA: Não, obrigada. Nossa, eu estou muito cansada. Acho que vou tomar um banho e
dormir.

STELA: Marina, eu quero falar um pouco com você sobre a morte da Helena.

MARINA: O que?

STELA: Você acha que é bom você fazer esse documentário? Você não acha que isso é mexer
demais nessa sua ferida?

MARINA: Não, o que mexe na ferida não é isso, mãe. É o silêncio das pessoas. Helena foi morta
por um bando de brutamontes não tem nem 6 meses. Ninguém mais fala nisso, nem a gente.

STELA: Mas a polícia...

MARINA: A polícia encerrou o caso, mãe. Arquivou por falta de provas, não é isso que eles
falam? Por que? Por que ela era uma transexual.

STELA: E você acha que com esse documentário você vai...

MARINA: Claro que não, mãe. Eu sei muito bem os limites, ou melhor, a ineficácia da arte. Você
esqueceu que eu sou sua filha? O mundo não ficou menos violentos por causa dos seus
trabalhos, ficou? Eles só interessam a você e a quem compra achando que vai comprar um
pouquinho de paz para o mundo. Desculpa, desculpa.

STELA: Desculpa eu ter tocado nesse assunto.

MARINA: Eu estou muito nervosa com esse trabalho...

STELA: Na verdade eu só queria saber como é que você está... deixa pra lá.

MARINA: Eu vou tomar um banho.

STELA: Eu só quero te proteger... Na verdade, Marina, eu estou com muita saudade das nossas
conversas.

MARINA: Logo eu vou terminar esse documentário e eu vou com você para NY nessa exposição,
tá bom? Eu te prometo.

STELA: Vai ter uma festa na casa da Marilu para comemorar a exposição, você não quer ir?

MARINA: Quero. Pronto. Aliás eu a vi saindo do metrô ontem a noite, eu estava passando de
moto e ela nem me viu.

STELA: Ué, mas ontem a noite você não estava na reunião?


MARINA: (confusa) Antes de ontem, então. Não me lembro. Eu vou tomar um banho.

Marina sai e Stela fica pensativa.

Black out

Stela entra e encontra um bilhete em cima da mesa.

STELA: (lendo) Não quis te acordar, te vejo à noite.

Stela vai até seu laptop. Procura algo e digita um número no celular.

STELA: Bom dia, o meu nome é Marina, eu trabalho em uma produtora aí no prédio de vocês, a
Luneta Filmes. Anteontem a noite eu estive em uma reunião aí e eu acho que na saída eu deixei
a minha carteira cair na recepção. Será que o vigia da noite não encontrou? Ah eu gostaria sim,
obrigada.

Ela aguarda no telefone.

Black out

Marilu já está com Stela. Ela está nervosa.

MARILU: Mas ele tem certeza disso?

STELA: É claro que tem, ele checou todos os registros. Não passou ninguém lá naquela noite,
não teve reunião nenhuma.

MARILU: Calma Stela.

STELA: Como ela pôde olhar nos meus olhos e mentir pra mim? Como ela pôde mentir assim?

MARILU: Só por que ela mentiu sobre a reunião? Você está encanada com o que?

STELA: Que ela tenha se metido numa enrascada.

MARILU: Tipo?

STELA: Se eu soubesse não estava assim, né Marilu.

MARILU: Mas Stela, ela já está melhor da depressão, já está até trabalhando.

STELA: Marilu, o Franco ainda mexe com aquelas coisas?

MARILU: Sei lá, eu falo tão pouco com o meu irmão, mas... acho que é a única coisa que ele sabe
fazer. Por que? Ah não Stela, jura que você quer fazer isso?

STELA: Ele consegue hackear o WhatsApp dela fácil, não consegue?

MARILU: O que pro mundo é impossível, pra ele é possível.

STELA: Liga pra ele, Marilu. Por favor.

Marilu pega o celular e disca.

Black out

As duas aguardam. O celular de Marilu faz um sinal sonoro.

MARILU: É o meu irmão.


STELA: E aí?

MARILU: Ele mandou uns prints.

STELA: (tirando o celular das mãos de Marilu) Posso ver?

Ela lê e tem um suspiro de alívio.

MARILU: Deixe-me ver, Stela?

Stela entrega o celular à Marilu.

STELA: Ainda bem. Na noite que ela disse que estava na reunião, ela tinha ido encontrar uma
menina. A menina ainda disse pra ela deixar a moto no estacionamento e ir andando até a casa
dela e entrar pelas portas dos fundos pra não chamar a atenção.

MARILU: Viu?

STELA: Agora, eu não sei por que ela escondeu isso de mim.

MARILU: É, não faz sentido.

STELA: Essa menina, parece que ela é muito boa, ela é assistente de direção do documentário
que a Marina está fazendo, é ótima. Até deu uns contatos de uns líderes de grupos envolvidos
nessa causa. Isso é bom, né Marilu? Mostra que ela está se recuperando.

MARILU: É. Não falei que você estava encanada à toa? Agora eu posso ir embora em paz?

STELA: Vai. E a festa sábado, está de pé?

MARILU: Confirmadíssima.

STELA: A Marina diz que vai.

MARILU: Ah, maravilha.

STELA: Bom, acho que vou subir, tomar um banho e agora acho que vou poder trabalhar um
pouco. O Célio, o perito, mandou uns arquivos da câmera de segurança lá do crime.

MARILU: Nossa, que rápido. Eficiente esse Célio, não?

Marilu sai.

Black out.

Stela entra após o banho e vai até o laptop. À medida que vê o vídeo vai se assustando e entrando
em pânico. Ela abre uma maleta de Marina e encontra uma pasta. Ela coloca os documentos
sobre a mesa e analisa tudo.

Black out.

Stela está aguardando quando Marina chega.

MARINA: Ai que susto, mãe. O que você está fazendo aí sozinha, no escuro?

STELA: Estava te esperando. Quer alguma coisa pra beber?

MARINA: Não, obrigada.

STELA: Tem alguma coisa que você deixou de me contar, Marina?


MARINA: Não, por que?

STELA: Cadê a roupa?

MARINA: Que roupa?

STELA: A que você levou pra lavanderia?

MARINA: Ah. É... não tive tempo de passar pra buscar.

STELA: Eu sei que você não estava em nenhuma reunião.

MARINA: O que?

STELA: Eu sei que você não estava. Por que você inventou essa história de reunião?

MARINA: Mãe, eu estou muito...

STELA: E eu sei também por que você não estava.

MARINA: Sabe?

STELA: Você não estava por que você estava aqui comigo. Entendeu? Você estava aqui comigo
comemorando a minha exposição e combinando a viagem que nós vamos fazer para Nova
Iorque. Entendeu? Nós conversamos a noite inteira e você não saiu daqui naquela noite,
entendeu?

Stela pega um balde, uma caixa de fósforo.

MARINA: O que você está fazendo, mãe?

STELA: (pegando a pasta de documento e colocando dentro do balde) O mesmo que você fez
com aquela roupa. Destruindo tudo. Não foi isso que você fez com aquelas roupas?

MARINA: Eu não queria fazer aquilo, eu juro...

STELA: Aquilo o que? Você não fez nada.

MARINA: Era pra ser só um escracho. Eu cheguei e o cara começou a falar um monte de merda.
Foi um puta escroto, eu não sei... eu perdi a cabeça.

STELA: Não aconteceu nada. Presta atenção. Amanhã você vai embora desse país e você nunca
mais vai voltar, entendeu? Você não vai dizer pra mim e nem pra ninguém onde você está.

MARINA: Foge comigo.

STELA: Não, eu não vou fugir por que não aconteceu nada.

MARINA: Você não precisa fazer isso... você sabe né? Você não precisa fazer isso, tá bom?

STELA: Eu sei que eu não preciso, mas eu quero.

MARINA: Meu Deus...

STELA: Você é minha filha.

Black out.

Reportagem na TV.
REPÓRTER: A artista plástica Stela Pinheiro continua presa acusada de envolvimento no
assassinato do apresentador de Tv Marcos Valente e por obstrução de justiça por destruição de
provas. Segundo o Ministério Público e as investigações, a filha dela Marina Coelho, é a principal
suspeita do crime. De acordo com a polícia, após o assassinato da sua namorada, a transexual
Helena, vitimada por intolerância, Marina pouco a pouco se aproximou a um grupo de
extremistas que promovia ataques a líderes conservadores.

Black out.

Marina liga para Marilu

MARILU: Alô

MARINA: Alô Marilu. Aqui é Marina.

MARILU: Marina? Marina onde você está?

MARINA: Eu quero me entregar, Marilu.

MARILU: Marina, me fala onde você está.

MARINA: De volta. Eu quero encarar tudo isso.

MARILU: Marina, você vai ser presa.

MARINA: Eu sei. Mas eu quero contar pra todo mundo a minha versão dessa história.

MARILU: Que versão, Marina?

Black out.

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