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HUMANIDADES

Índia Asuriní prepara cerâmica: tarefa exclusiva das mulheres

ETNOARQUEOLOGIA

A tecnologia ditada pelo coração


rado em panelas velhas. Assim, todos queologia e a antropologia. O objeti-
Índios do Xingu definem os anos, dedicam-se afanosament~ a vo da etnoarqueologia, em resumo, é
preparar novas panelas de barro obter subsídios para que contextos
seus processos técnicos para garantir o sabor do alimento do arqueológicos possam ser interpreta-
por razões simbólicas grupo, enquanto as panelas do ano dos a partir de contextos etnográfi-
anterior são desprezadas e vão parar cos. A disciplina é também um dos
no lixo. Como esse costume não é recursos usados por Fabíola Andréa
amos imaginar que todos os aplicado a outros tipos de cerâmica Silva, do Departamento de Antropo-
V registras tenham desaparecido
e que, daqui a alguns séculos, um ar-
usados pelo Asuriní, não é de se ad-
mirar que apareçam muito mais ca-
logia da Universidade de São Paulo
(USP), na tese de doutorado que está
queólogo pesquisa as ruínas do local cos de panela-de-fazer-mingau-de- terminando, com base em pesquisas
onde se erguia, no fim do século 20, milho entre os restos que o grupo sobre a produção de cerâmica dos
a aldeia dos índios Asuriní, no Rio está deixando para o futuro. Asuriní e a fabricação de cestos de
Xingu, perto de Altamira, no sul do Esse tipo de contribuição, capaz palha pelos Kayapó-Xikrin, outro
Pará. Provavelmente, ele vai estra- de esclarecer aspectos que a simples grupo que vive no sul do Pará.
nhar o aparecimento de certo tipo de análise de vestígios materiais não As informações obtidas por Fabío-
cerâmica com uma freqüência muito conseguiria resolver, é dada por uma la na região do Xingu estão servindo
maior entre os restos deixados pelo disciplina chamada etnoarqueolo- para sua tese de doutorado, em fase
grupo. Nada demais. As mulheres gia, surgida na década de 1960, de conclusão, As tecnologias e seus sig-
Asuriní acreditam, piamente, que o quando um grupo de arqueólogos nificados: um estudo etnoarqueológico
mingau de milho que cozinham na dos Estados Unidos desenvolveu tra- de sistemas tecnológicos dos Kayapó-
época da colheita do cereal, em mar- balhos que procuravam estabelecer Xikrin e dos Asuriní do Xingu, sob a
ço e abril, não fica gostoso se for prepa- uma relação mais estreita entre a ar- orientação da professora Lux Vidal,

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do Departamento de Antropologia resse na história do desenvolvimento Tarefa feminina: Entre os Asuriní, fa-
da USP. O objetivo do trabalho, que tecnológico das sociedades indígenas zer cerâmica é trabalho de mulher.
conta com recursos da FAPESP para e na análise da maneira como tecno- Até mesmo a extração da argila para
auxílio à pesquisa de R$ 10.780,00, é logia, meio ambiente e comporta- a fabricação dos vasilhames é tarefa
o de debater o papel desempenhado mento se relacionam nesses grupos:' exclusiva do sexo feminino. Mulheres
pelas necessidades de adaptação e pe- grávidas e menstruadas não podem
los aspectos simbólicos na escolha Entender o comportamento: Fabíola participar da extração. O grupo acre-
dos processos tecnológicos adotados Andréa Silva destaca que, em etnolo- dita que isso estragaria o depósito e,
pelos índios da região. gia, arqueologia e etnoarqueologia, a além disso, os vasilhames resultantes
discussão teórica não chega a ser mui- seriam danificados durante uma das
Além da prática: Tecnologia, no to diferenciada. "O interesse geral de fases da produção. A fabricação em
caso, é entendida de uma maneira todas essas disciplinas é o mesmo, larga escala do japepaí, a panela usa-
bem ampla. ''A tecnologia não é
apenas uma estratégia de adaptabi-
lidade ou de aproveitamento de
energia, como se diria no senso co-
mum': diz Lux Vidal. "O evolucio-
nismo e o economicismo já falaram
muito sobre tecnologia e divulga-
ram a tese de que a necessidade é a
mãe da invenção", prossegue. "Não
discordo totalmente disso. Mas a
natureza das escolhas tecnológicas e,
conseqüentemente, a definição dos
estilos tecnológicos são muito diversi-
ficadas. Elas passam por esferas que
transcendem as razões práticas:'
As duas influências, acha Lux, de-
vem ser ponderadas sem que nenhuma
exclua ou se mostre totalmente supe-
rior à outra. Pesquisas etnológicas
como as que são realizadas em socie- Lux Vida! (à esq.) e Fabíola Silva: passado ilumina presente
dades indígenas têm grande valor, pois
todo o processo tecnológico, da esco- entender o comportamento huma- da para preparar o mingau de milho,
lha da matéria-prima aos procedimen- no", afirma. No caso de seu estudo.. durante a fase da colheita, faz com que
tos de produção, pode ser seguido no havia também o interesse na relação esse tipo de cerâmica seja muito mais
local, ao lado de variáveis culturais entre o homem e o seu mundo mate- comum na aldeia que os outros tipos.
como a organização social, a divisão rial. "A diferença entre as disciplinas Isso, diz Fabíola, pode ajudar na
do trabalho por sexos, a época do ano está na natureza dos dados que cada elaboração de propostas arqueológi-
em que se realizam as atividades. As- uma tem à sua disposição para anali- cas sobre restos de cerâmica e mesmo
pectos cosmológicos também podem sar", prossegue. "A etnologia tem os estabelecer modelos para explicar o
ser levados em conta. grupos vivos e a arqueologia apenas tempo de ocupação de um assenta-
Tudo isso poderá levar a novos os vestígios materiais. Por isso, prati- mento. "A quantidade de deposição
modelos, mais adequados, para a pes- ca-se a etnoarqueologia, por meio da de um determinado item material
quisa arqueológica. E poderá, tam- qual se tem acesso a aspectos opera- num sítio pode nem sempre estar as-
bém, dar uma grande contribuição tórios de produção de itens materiais sociada diretamente com o tempo de
para o grande debate que, de acordo que não podem ser resgatados ape- ocupação do local", afirma a pesqui-
com Lux Vidal, ocorre atualmente nas nos contextos arqueológicos." sadora. "Pode ter mais a ver com a in-
sobre a tecnologia. "A fronteira entre Na sua pesquisa, Fabíola adotou os tensidade e a sazonalidade da produ-
o orgânico e o mecânico e tecnológi- princípios metodológicos da chama- ção", acrescenta. A panela japepaí
co está sendo discutida até em termos da living archaeology. "As observações transformou-se, entre os Asuriní, no
evolutivos, pois queremos entender o e registras seguem os pressupostos de símbolo do alimento. É o único tipo
que é o ser humano hoje", comenta. uma pesquisa de campo antropológi- de cerâmica usado pelo grupo para ir
"Estão em pauta questões filosóficas ca, mas a orientação e a direção partem ao fogo e preparar alimentos.
relacionadas com a tecnologia e por do olhar, problemas e estratégias de uma Fabíola acredita que as questões
isso é natural que se revigore o inte- pesquisa arqueológica", explica ela. soClals e de gênero envolvidas no

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processo de produção da cerâ- de produção, entre outras ati-
mica apresentam os dados fun- vidades."
damentais para que seja desen- Os Kayapó-Xikrin fazem
volvida uma arqueologia do cestos seguindo dois tipos de
grupo de residência, ou house- produção. Um, chamado pelos
hold archaeology, cuja ênfase é especialistas de cestaria expe-
a organização do trabalho do- diente, leva a produtos sim-
méstico. "Na arqueologia, sem- ples, de confecção rápida, qua-
pre houve uma posição muito se sempre descartados depois
centrada no papel do homem, do uso imediato. O outro, a
mas o papel da mulher é muito cestaria de curadoria, leva a
importante na household ar- produtos mais elaborados, de fa-
chaeology", afirma Lux Vidal. Trabalho de cestaria dos Kayapó-Xikrin: bricação sofisticada, melhores
"No caso Asuriní, a confecção prerrogativa e obrigação dos homens e mais duradouros que os ou-
da cerâmica pelas mulheres é tros. Como no caso das panelas
parte de um conjunto de atividades pois irá começar a trabalhar com pa- dos Asuriní, esses registras podem
muito mais amplo", prossegue. "Sua lha, mas sempre sob a supervisão do levar a comparações importantes. E,
importância está relacionada não mais velho. sem dúvida, facilitar o trabalho dos
apenas com a sobrevivência do grupo Fabíola acredita que as restrições arqueólogos, atuais e futuros. •
doméstico do qual elas fazem parte, impostas ao aprendizado da técnica
mas também à dinâmica da vida so- refletem relações de poder entre di- PERFIS
cial e ritual." versas categorias dentro do grupo, mas
só parcialmente. "Quem sabe pode o Lux VIDAL é professora do Depar-

Proibição ao s jovens: No caso dos negociar mais facilmente bens e ser- tamento de Antropologia da Uni-
Kayapó-Xikrin, o trabalho de cesta- viços': declara. "Mas seria mais ade- versidade de São Paulo (USP).
ria é prerrogativa e obrigação dos quado falar em prestígio social, reco- Obteve o bacharelado no Sarah
homens. Mas não de todos os ho- nhecimento e construção do eu, para Lawrence College, no Estado de No-
mens. Os mais jovens não podem me- si e para os outros, o que é mais fun- va York, nos Estados Unidos, e espe-
xer em certas matérias-primas sem damental entre os índios", diz. Lux cializou-se em Antropologia, com
autorização expressa e estão proibi- Vidal tem opinião parecida. "Existe a mestrado e doutorado pela USP.
dos de fazer certos produtos. A pena questão da hierarquia e do poder o FABfOLA ANDRÉA SILVA tem 35
para a desobediência, segundo o nessas práticas", afirma. "Mas a rigi- anos. É doutoranda em Antropo-
grupo, é o envelhecimento precoce, dez de aspectos como interditar o logia Social no Departamento de
doenças, fadiga dos olhos e, em ca- acesso a uma matéria-prima ou à Antropologia da USP.
sos extremos, até mesmo a morte. produção de um bem material a l}m Projeto: As Tecnologias e Seus Signi-
Quando alguém quer aprender a fa- sexo ou faixa etária está vinculada a ficados: Um Estudo Etnoarqueológi-
zer cestos, primeiro simplesmente diversos fatores, como a estruturação co de Sistemas Tecnológicos dos Ka-
observa o trabalho de um velho arte- social, a progressividade do apren- yapó-Xikrin e dos Asuriní do Xingu
são, sem mexer no material. Só de- dizado e a preservação dos processos Investimento: R$ 10.780,00

sembarque, em frente ao posto da das com sua subsistência. Para os


Sinais de pedra Funai, e em locais destinados aos Asuriní atuais, as pedras com as
banhos da comunidade. marcas de Mayra caíram do céu,
Desde que começou a pesqui- Os Asuriní chamam as bacias há muito tempo.
sar os Asuriní na aldeia do Posto de polimento de Mayra enewa, o Além dos sítios próximos à al-
Indígena Kuatinemu, na margem banco de Mayra, e os amoladores deia, Fabíola encontrou mais sete,
direita do Rio Xingu, em 1996, a dou- de machados de Gapypapera, as num igarapé próximo a uma anti-
toranda Fabíola Andréa Silva veri- pegadas dele, referindo-se a May- ga aldeia usada pelo grupo.
ficou a presença de vários materiais ra. O nome Mayra significa o an- Fabíola também encontrou
arqueológicos na região. Entre os cestral mítico e criador dos Asu- restos de cerâmica que não foi
mais importantes estão sítios líticos riní e do gênero humano. Ele produzida pelos Asuriní num dos
em afloramentos rochosos nas também criou os animais e obje- sítios líticos, na antiga aldeia e na
margens do rio. Esses locais exis- tos culturais e ensinou aos Asuri- aldeia atual. A datação dos cacos
tem, inclusive, no porto de de- ní as técnicas e atividades envolvi- revelou uma idade de 650 anos.

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