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OSMUNDO PINHO

CATIVEIRO
ANTINEGRITUDE E ANCESTRALIDADE
CATIVEIRO
ANTINEGRITUDE E ANCESTRALIDADE

1ª edição
2021
314 p.
Este livro está dedicado à memória de meus avós, Dona Regina e Seu Moreno.
SUMÁRIO

PREFÁCIO - VÁCUO ANTOLÓGICO, EXISTÊNCIAS SU- 13


PÉRFLUAS E OBJETO REBELDE - Jaime Amparo Alves

INTRODUÇÃO 21
O REDEMOINHO NA ENCRUZILHADA

I 41
A PESSOA DO ESCRAVO: MORTE SOCIAL E IMAGINÁ-
RIOS POLÍTICOS DA DIÁSPORA AFRICANA NO BRASIL

II 71
ARRASTÃO: DESCOLONIZANDO O GÊNERO E A SE-
XUALIDADE NO PAGODE BAIANO

III 111
“BLACK BORDER”: O CORPO E A LUTA NO AUDIOVI-
SUAL NEGRO

IV 145
“SANGUE ATLÂNTICO”: MORTE SOCIAL E ANCESTRA-
LIDADE EM ALBERT ECKHOUT E AYRSON HERÁCLITO

V 183
A CENA DA OBJEÇÃO: NARRATIVA, ECONOMIA POLÍ-
TICA E PERFORMANCE

POSFÁCIO - VOLTAS E VOLTAS AO REDOR DA PALAVRA 257


- Maria Dolores Sosin Rodriguez

REFERÊNCIAS 268

CITAÇÕES ORIGINAIS EM LÍNGUA ESTRANGEIRA 301


PREFÁCIO
VÁCUO ONTOLÓGICO, EXISTÊNCIAS SUPÉRFLUAS E OB-
JETO REBELDE

Jaime Amparo Alves


Departamento de Estudos Negros
Universidade da California, Santa Bárbara

Eu poderia começar por referir-me ao assassinato de Emilly e Rebecca,


duas meninas negras baleadas em uma favela do Rio de Janeiro, ao lin-
chamento de João Alberto, um homem negro espancado até a morte em
um supermercado gaúcho, à dor de Rute Fiúza consumida por anos em
busca do corpo mutilado e desaparecido do pequeno Davi, ou à morte
prematura de vovó Aurora, na Bahia profunda, uma de tantas mulheres
negras vítimas da violência obstétrica. Mas a referência seletiva a estes
encontros ordinários teriam o efeito sinistro de normalizar a dor trans-
formando o sofrimento negro em excessão e convertendo a aniquilação
ontológica na palatável etiqueta liberal de violação de direitos humanos.
Humano: o dicionário Aurélio define o adjetivo como “relativo ao ho-
mem ou próprio de sua natureza.”1 Como dar visibilidade ao terror escri-
to no corpo quando a alteridade gênero-sexo-racial do titular do corpo
em questão o bane do projeto branco, proprietário, masculino e cisgêne-
ro de Humanidade? Como nos ensina Saidiya Hartman (1997, 4-5), em
sua recusa em detalhar a tortura da escrava Esther, o corpo negro resiste
a inteligibilidade aos olhos da lei e da sociedade civil porque é um objeto
fungível que somente adquire o status de vivente por meio da punição.
Sim, podemos argumentar com Hartman que a comunidade
imaginada branca e o estado de direitos são o domínio biopolítico onde
o corpo negro cativo adquire humanidade somente por meio da sua sub-

1 Dicio. Dicionário Online de Português. Humano [adj]. Em https://www.dicio.com.


br/aurelio-2/

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jeção total: a lei o reconhece como objeto do direito penal. Este é um
biopolitico porque é um espaço jurídico-político da vida civil, da partici-
pação política, do exercício de direitos… em uma palavra, é o espaço do
jogo democrático. Ao mesmo tempo é um espaço necropolítico porque
depende da subjeção negra para a sua afirmação como biópolis. No do-
mínio espaço-temporal da polis brasileira, a morte de Emilly, Rebecca,
Davi, Alberto, as mortes já vividas e as que viveremos podem até gerar
algum protesto e provocar algumas concessões humanistas – uma comis-
são de promoção da diversidade, um relatório-denúncia, uma linha na
imprensa – mas ao fim e ao cabo estas reações não mudam a realidade
trans-histórica da experiência negra. O objeto negro é a não referência
espaço-ontológica que o cativeiro aprisionou no horizonte intransponível
da Outridade total e que, no léxico da filósofa Denise Ferreira da Silva, é
um sujeito marcado pela afetabilidade (o outro racial, “no-bodies,” não-
-corpos, ou ninguém) sempre produzido em relação ao Eu Transparente
do pós-iluminismo. A tese da transparência (e da afetabilidade) autoriza a
subjeção gênero-racial, uma subjeção que produz identidade, que produz
Lei, e que produz a nação brasileira (DA SILVA, 2009, 2007).
Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade é uma intervenção opor-
tuna neste debate. Com maestria e rigor, Osmundo Pinho põem em diá-
logo o projeto de desestabilização do Humano – proposto por intelectuais
negras como Hortense Spillers (1984) e Sylvia Wynter (2003) – e a po-
larização teórica entre afropessimistas/afro-otimistas2 que tem dominado

2 Principais nomes neste debate estão suficientemente discutidos por Pinho nas páginas
que seguem. Não cabe uma revisão neste prefácio. Também me antecipo a qualquer
omissão de autores/autoras que convergem no todo ou em parte com o amplo debate
em questão. De fato, o debate é amplo e intelectuais com afinidades teóricas com os
afropessimistas ou com os afro-otimistas não estão necessariamente de acordo com estas
rotulações redundantes, ainda que a abordagem acadêmica (e o léxico) comum em seus
trabalhos autorize a identificá-los assim. Para referencia conceitual, ver obrigatoriamen-
te Saidiya Hartman (1997), Frank Wilderson (2010), Jared Sexton (2011), João Costa
Vargas (2012, 2017), Fred Moten (2003, 2013), and Christina Sharpe (2016).

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parte dos estudos negros nas últimas décadas. Pinho produz um texto que
reconhece o recente giro ontológico nos estudos negros em uma parte do
mundo, sem perder de vista a longa tradição intelectual feminista negra
que tem denunciado a violência original da escravidão como o nascimen-
to do mundo e o corpo sexualizado/generalizado das mulheres negras
como o “interstício” entre o humano e o não-humano, o corpo e a carne,
a liberdade e a escravidão. Ao trazer Sueli Carneiro, Denise Ferreira da
Silva, Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento (assim como Mara Viveros) a
um debate dominado por uma análise fanoniana muito particular sobre
a condição negra, o autor abre outras possibilidades de interpretação do
drama negro na diáspora africana e, espero, incita novas abordagens sobre
a pós-vida da escravidão. Arrisco a dizer-me que Cachoeira, como espaço
da resistência negra, se posiciona aqui como promessa de uma nova refe-
rência epistemiológica.
Pinho não toma atalhos e não recusa o convite inadiável propos-
to pelos afropessimistas/afro-otimistas, como se convencionou classificar,
quiçá, de maneira apressada, as contribuições recentes sobre a vida póstu-
ma da escravidão explicitada no terror racial paraestatal e na morte civil
negra ordinária. Posicionando-se mais além do falso dualismo que tem
marcado o debate, abraça a denúncia afropessimista com incisividade,
não deixando dúvidas sobre o seu posicionamento nos estudos sobre re-
lações raciais nas ciencias sociais brasileiras. Mostra que o que faz o brasil
Brasil é a violência antinegra,3 que não há mais espaço para a relativização
do racismo antinegro na definição de titulares de direitos de cidadania e
no nosso modelo de sociabilidade cruel. Na pós-escravidão, o cativeiro

3 A referência óbvia a Roberto da Matta busca questionar sua interpretação do Brasil


como o país da sociabilidade excepcional. Segundo este autor, o jeitinho, a malandra-
gem o sincretismo seriam prova do nosso ethos nacional único. Sobre uma interpretação
alternativa sobre a centralidade da violência antinegra na sociabilidade brasil e no fazi-
mento do Brasil, ver Alves e Vargas (2020) e Wink (2020).

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continua sendo o nomos da democracia. Cidadania negra? No máximo,
furtiva!
Isto posto, o livro resiste ao nihilismo e reposiciona o objeto ne-
gro na modernidade ontológica brasileira. Se na crítica afropessimista o
porão do navio negreiro é a referência epistemológica, Pinho resgata a
centralidada do quilombo e do terreiro como os espaços alter-nativos
para conceitualizar um ser negro que resiste a objetificação. Esse ser negro
insurgente e contraditório que muitos/as de nós temos identificado em
distintas formas que o protesto negro assume na democracia racial brasi-
leira – no quilombo, no movimento de mães de vítimas do terror policial,
na rebeldia dos rolezinhos, no mundo do crime, nas práticas educativas
dos pré-vestibulares comunitários, nas reinvenções cotidianas das quebra-
das, na economia subterrânea das biqueiras – o autor identifica nas for-
mas contra-hegemônicas que jovens negras e negros articulam para viver
suas identidades e práticas afetivas. Tomando a performance negra como
uma praxis ontólogica (e aqui o palco é a vida e a audiência é a polícia,
a sociedade civil branca, os modelos terrocráticos de interpelação racial!)
nos é oferecida uma análise contundente das práticas culturais negras no
teatro de rua, no audiovisual, nos paredões. Como a leitora verá, o que
sobresai da análise é uma interpretação das políticas de resistência na qual
raça e sexualidade aparecem como locus da agência negra. Os sujeitos “su-
jos” e “indignos” da vida brasileira abraçam a abjeção por meio de “mo-
delos alternativos de sexualidade e corpo, masculinidade e feminilidade,
de sexualidade e identidades sexuais, que seriam a base a partir da qual
uma alteridade epistêmica moderna de corpos e povos coloniais poderia
ser identificada (p. 57).” Se a polícia e as agruras da vida cotidiana empa-
redam a negritude em cativeiros raciais, o paredão (assim como o terreiro,
a rua, o funk, a performance do Mardi Gras e do Negro Fugido) aparece
como uma recusa a ser aprisionado.
Fazendo jus à crítica evocada por Fred Moten (2008) no contexto

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estadunidense, o livro propõem, então, entender a fungibilidade em duas
perspectivas convergentes: na direcão proposta pela crítica afropessimista
segundo a qual o corpo negro é objeto fungível/permutável não apenas
do ponto de vista da economia política, mas também a partir de uma
economia libidinal que alimenta incessantemente a catividade, permuta-
bilidade e despossessão ontológica (daí a incomensurabilidade da expe-
riência negra) e na direção afro-otimista segundo a qual o objeto negro
se rebeldia e não aceita ser definido apenas pela negação e pela morte.
Ainda que resumir o projeto afropessimista à obcessão com a morte seja
forçar a barra – como o parece fazer Moten –, é imprescindível interrogar
até que ponto é politicamente útil reduzir a condição negra ao terror
da escravidão e a subjetividade negra aos mundos de morte. Concordo
com Pinho que somos mais que “desonra crônica” e mais que cativeiro, e
atrevo-me a dizer o óbvio: o ser negro socialmente morto é politicamente
vivo. A questão é se estamos dispostos a entender a pós-vida do escravo
ou ficaremos apenas na vida-póstuma da escravidão. Se considerássemos
por um instante que a vida negra nos contextos de precariedade urbana
como os analisados aqui somente é possível por meio da insurgência on-
tológico-espacial, seja “roubando” eletricidade, evadindo a tarifa de água
e a catraca do transporte coletivo, ocupando terras públicas ou partici-
pando no mundo do crime (ALVES, 2018, p. 13-14), talvez pudésse-
mos abraçar sem temor ambas posições neste debate intelectual. Não são
mutuamente exclusivos denunciar o trauma histórico (e o terror racial
contemporâneo) que complica narrativas ingênuas sobre a agência negra,
e reconhecer a rebeldia que produziu Palmares e que se reafirma a cada
dia no grito de protesto. “Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de
novo !”4

4 Quilombos. Poeta José Carlos Limeira. Repertório, Salvador, no 17, p.195-197,


2011.2 Disponível em https://periodicos.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFi-
le/5741/4147

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Portanto, uma maneira de conceber Cativeiro: Antinegritude e
Ancestralidade é tê-lo como um convite a abraçar o que Pinho chama
de “vácuo ontológico”; um vazio que assusta e desespera e que ao mes-
mo tempo cria condição de possibilidade para um projeto utópico de
vida negra – esse projeto alternativo é concebido pela militância negra
como quilombo, afrópolis/negrópolis, zona de refúgio – que reposicione
o objeto no espaco geo(onto)antrológico da nação brasileira. No contex-
to desesperador em que o livro vem a público (e o país é governado pela
aberração política e abominação ético-moral cujo nome indizível somen-
te o é pela evocação aos neologismos guimarães-rosanos para descrever o
não-sei-que-diga, o tristonho, coisa-ruim), a curiosidade intelectual por
estes imaginários de rebeldia é ainda mais urgente. Mas todo o cuidado é
pouco para não se cair na falsa periodização que transforma a norma em
excessão! O Nêgo Fugido que habita em nós nos alerta, com Joy James
(2000, p. xxxv), que democracia é um regime de plantação (casa gran-
de) que reatualiza e reitera a condição escrava a cada eleição. É por isso
que nos falta um léxico político alternativo para dar conta da experiência
negra: racismo estrutural, direitos humanos, violência policial, inclusão
social, humanidade… tudo colapsa frente a um corpo que habita a geo-
-ontologia da necrópolis brasileira. Se seu status não-humano e portanto
sua vida supérflua dá coerência e afirma concepções de justiça, cidadania
e vida honrada, quais os desafios e possibilidades para uma existência ne-
gra plena na cidade antinegra? Leitura obrigatória, a análise de Osmundo
Pinho aponta uma saída!

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Referências

ALVES, Jaime (2018). The Anti-Black City: Police Terror and Black
Urban Life in Brazil. University of Minnesota Press.
________.; VARGAS, João Costa (2020). “The spectre of Haiti:
structural antiblackness, the far-right backlash and the fear of a
black majority in Brazil.” Third World Quarterly 41(4): p. 645-662.

DA MATTA, Roberto (1984). O que faz o brasil, Brasil?. Rio de


Janeiro: Rocco.

DA SILVA, Denise Ferreira (2009). No-bodies: Law, raciality, and the


territory of justice. In: Griffith Law Review 18 (2): p. 213–236.
________. (2007). Toward a Global Idea of Race. Minneapolis:
University of Minnesota Press.

HARTMAN, Saidiya. (1997). Scenes of Subjection: Slavery and Sel-


f-Making in 19th America. Oxford Press, p. 17-79.

JAMES, Joy (2000) States of Confinement: Policing, Detention and


Prisons. New York, NY: St.

MOTEN, Fred (2008). “The case of blackness.” Criticism 50(2): p.


177-218.

SPILLERS, Hortense (1984). “Interstices: A small drama of words.”


Pleasure and danger: Exploring female sexuality (4): p. 73-100.

WINK, G. (2020). “Jeitinho revisited.” In: BRANDELLERO, Sara;


PARDUE, Derek; WINK, Georg (eds.) Living (il) legalities in Bra-
zil: Practices, Narratives and Institutions in a Country on the Edge.
Routledge, 2020.

WYNTER, Sylvia. (2003) “Unsettling the coloniality of being/po-


wer/truth/freedom: Towards the human, after man, its overrepresen-
tation—An argument.” In: The new centennial review 3.3 (2003):
p. 257-337.

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“Eu sou um velho
Filho de um guerreiro e curandeiro
Pelo Sertão da Bahia
Pelo Chapadão Mineiro
É Dandá, eu vivi
Os tempos do cativeiro”

Seu Marujo
INTRODUÇÃO
O REDEMOINHO NA ENCRUZILHADA

“Depois que meus inimigos estiverem satisfeitos, na vida ou na morte, voltarei a


vocês para servi-los como já servi anteriormente. Na vida serei o mesmo; na morte,
serei o terror para os inimigos da liberdade do negro. Se a morte tem poder, então
conte comigo na morte, para ser o verdadeiro Marcus Garvey que eu gostaria de
ser. (…)
Procure por mim no redemoinho”i1
Marcus Garvey, “First Message to the Negros of the World from Atlanta Prison”,
1925.

O projeto deste livro surgiu logo após o meu retorno, em de-


zembro de 2014, de um período de 13 meses na Universidade do Texas,
em Austin, mas especificamente no African and African Diaspora Depar-
tament Studies (AADS), onde, graças a uma bolsa Estágio Sênior conce-
dida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) do Governo Federal Brasileiro, desenvolvi um projeto sobre
masculinidades negras, conectado ao Projeto Brincadeira de Negão: Sub-
jetividade e Identidade de Jovens Homens Negros (BN), desenvolvido,
naquele momento, com uma equipe de estudantes de graduação e pós-
graduação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em Cachoei-
ra no estado da Bahia.

Como discuto melhor nos capítulos que seguem, me impressio-


nou profundamente, não apenas a paisagem segregada e árida da cidade
sulista (e minha memória do primeiro inverno aparece desbotada, como
o cinza do céu, emoldurando os galhos retorcidos de árvores desfolha-

1 Todas as traduções em língua estrangeira, salvo explícita indicação ao contrário, foram


feitas pelo autor. Os trechos na língua original se encontram ao final deste volume.

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das, sob o grito estridente dos corvos e o ronco sombrio dos automóveis
nas ruas desertas), mas principalmente o contato com a obra de autores
como Frank Wilderson III, Jared Sexton, Lewis Gordon, Fred Moten,
Hortense Spillers, Saidiya Hartman e João H. C. Vargas, que me recebeu
em Austin e com quem organizei em 2016 a coletânea “Antinegritude:
O Impossível Sujeito Negro na Formação Social Brasileira”. (PINHO &
VARGAS, 2016) Esses autores, e outros, mais ou menos identificados
com o afropessimismo, defendido mais explicitamente por Wilderson,
atordoaram minha imaginação com um conjunto de categorias explo-
sivas e com uma atitude intelectual que fazia enorme sentido, diante da
percepção, já circulante no Brasil, e incorporada à nossa própria reflexão
em Cachoeira, da centralidade política e heurística da violência estatal
antinegra, do genocídio do povo negro e do lugar político que a morte
negra ocupa na estabilização do projeto nacional brasileiro. O movimen-
to social negro e o movimento dos atingidos pela violência do Estado,
assim como, principalmente, a obra de Abdias do Nascimento, de um
lado, e de Achille Mbembe, de outro, já haviam me alertado sobre o sig-
nificado da violência, na circunscrição da subjetividade e da política ne-
gra na modernidade ocidental e no Brasil. O contato com estudantes em
Cachoeira, muitos oriundos de comunidades atravessadas pela violência,
pela despossessão e pela morte, nas periferias urbanas ou em quilombos
rurais, outros assiduamente conectados com o movimento negro e com a
cultura hip-hop, além, obviamente de minha experiência pessoal e a forja
de minha própria subjetividade, temperada nas margens sociais e nos
interstícios urbanos dos guetos raciais-sexuais de cidades brasileiras como
Salvador, Recife, Campinas e Rio de Janeiro, prepararam, talvez possa di-
zer, prospectivamente minha sensibilidade para o choque afropessimista.

E de um choque efetivamente se trata, porque, como veremos,


a leitura que Wilderson faz de Frantz Fanon e de Orlando Patterson co-

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locava como categoria central para a imaginação política da negritude (a
princípio norte-americana) a morte social, e seus corolários, a exclusão
do negro do mundo e da esfera pública, e a antinegritude, o antagonismo
geral que sustenta a incompatibilidade do negro com o mundo tal qual
o conhecemos. O mundo moderno criado pela expansão europeia, pelo
colonialismo e pela modernidade. Nesse mundo, não há lugar para o
negro e a negritude não pode ser outra coisa que a incorporação da mais
radical negatividade, que, como muitas vezes iremos discutir nesse livro,
define a condição negra como fundamentalmente identificada à posicio-
nalidade do escravo. E, obviamente, esse foi o grande choque. Porque
tudo que a enorme mobilização política, crítica, historiográfica, estética
e cultural que os principais protagonistas da resistência negra promo-
veram, não apenas no Brasil, mas em outras partes da América Latina,
negava com todas as forças essa identificação entre a pessoa do negro e o
escravo. Como na afirmação muitas vezes repetida de Makota Valdina2,
líder religiosa afro-brasileira, “não sou descendente de escravos, mas de
seres humanos que foram escravizados”. Como na reivindicação de Bea-
triz Nascimento, discutida no Capítulo I, e seu incômodo com a fixação
historiográfica no escravo e na escravidão. Ora, não apenas o afropessi-
mismo sustenta a identidade entre negritude e escravidão, como faz dessa
identidade, o lugar de edificação de uma ontologia definida, como em
Saidiya Hartman, pelo látego, pela violência mais pura, pela identidade
com a mercadoria, com a despessoalização. Depois entendi que, no con-
texto norte-americano, a memória da escravidão e a insistência em, por
lado a lado, as condições de vida, ou de morte, com a escravidão, são re-
correntes na experiência comum e na sensibilidade afro-americana, algo
muito diferente do que ocorre no Brasil, onde a africanidade é a matriz

2 Valdina de Oliveira Pinto, falecida em 2019, foi líder religiosa, educadora anti-racista
e makota, auxiliar da mãe-de-santo, do terreiro Angola Tanusi Junsara, localizado na
comunidade do Engenho Velho da Federação em Salvador.

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histórico-subjetiva-política da negritude ou afro-brasilidade, e isso tudo
faz parte da experiência comum, corriqueira de negros brasileiros. Lem-
bro de uma discussão, com um grupo de intelectuais afro-americanos
sobre o significado da escravidão e da importância de garantir a memória
dessa instituição peculiar, algo que para eles todos parecia óbvio e para
mim, na verdade, desconcertante.

Ora, é desse choque então que surge um conjunto de questiona-


mentos que se articularam como o projeto desse livro. Um esforço tanto
para considerar a (in)comensurabilidade da experiência negra nas duas
maiores nações escravistas das Américas, como para desenvolver catego-
rias críticas em um escopo comparativo, que reflitam a natureza histó-
rica da produção de sujeitos, sensibilidades, formas estéticas, estruturas
narrativas, cenários sociais. O afropessimismo do lado afro-americano, e
o que estou chamando nesse livro de pensamento da ancestralidade do
lado brasileiro. Porque, nesse segundo caso, a ancestralidade parece ser a
categoria central da imaginação política e não a morte social.

Do ponto de vista afropessimista, ou da teoria da antinegritude,


o negro é o escravo, a negra é a escrava. Ainda que “ser”, nesse caso, sig-
nifique ser “como uma coisa entre outras coisas”, porque seguindo essa
perspectiva seguimos flutuando, torturados, sobre um vácuo ontológico.
Do ponto de vista da ancestralidade, entretanto, o negro é o africano, a
negra, a africana. Assim, o afropessimismo assume o ponto de vista do
mundo antinegro para definir quem somos, escravos, e a ancestralidade
assume o ponto de vista do mundo negro, dos candomblés, dos batuques,
do quilombo, para reconhecer em nosso fundamento, subjetivo e políti-
co, o africano.

Com as contradições, mediações e nuances que discuto nos ca-


pítulos subsequentes. Porque é quase como se o africano não vivesse em

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um mundo antinegro, construído pelo colonialismo, pela escravidão e
pela supremacia branca. Como se não fosse esse o nosso mundo. Entre-
tanto, vemos em Denise Ferreira da Silva, em Sylvia Winter e em outros
autores (SILVA, 2019; WINTER, 2003), como o pensamento (e a má-
quina de guerra) ocidental produziu/exigiu o negro, ou como o negro
como sujeito (coisa/nada) é dependente do pensamento ocidental e da
supremacia branca, como fica tão óbvio na análise das narrativas escravas
que desenvolvo no Capítulo V. Enquanto que no pensamento da ances-
tralidade a ontologia do negro já está dada e independe do Ocidente – o
africano preexiste ao encontro colonial, e trata-se de uma contingência
transitória e inessencial a escravização e a colonização. Podemos ver en-
tão que temos aqui um problema sociológico e histórico, estético, ético
e político. Porque sob o risco de um resumo algo caricatural poderia
dizer que o afropessimismo assume o ponto de vista do porão do navio
negreiro, e a ancestralidade, o ponto de vista do quilombo e do terreiro.

E é justamente nesse sentido que invoco o “cativeiro” e suas


categorias. Cativeiro é a forma popular, tradicional, êmica, com que es-
cravizados e seus descentes se referem à instituição escravista e mais es-
pecificamente à experiência sob a escravidão. Como na epígrafe desse
livro e em inúmeras canções de samba, ladainhas de capoeira e pontos de
macumba. Cativeiro é o modo como os próprios escravos históricos se
referiam à própria escravidão. O que quer dizer que nesse livro busquei
assumir um ponto de vista que se comunique com essa experiência, que
em um sentido muito difícil de ser suportado também é minha. O cati-
veiro é a condição, mediada pela passagem do meio e pela transposição
atlântica no porão do navio negreiro, a que foram conduzidos sujeitos
e saberes africanos, ancestrais. E que, como categoria, busca refletir essa
passagem ou alternância inconclusa e reversível (porque transtemporal)
entre o escravo e o africano. Nesse livro busco assim desenvolver o es-
copo do cativeiro através de outras categorias, incorporadas em diversas
instâncias.

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Primeiro a ideia, encontrada em Fred Moten, da resistência do
objeto, uma perspectiva próxima, mas não totalmente identificada ao
afropessimismo, porque reconhece na fungibilidade escrava, na sua iden-
tificação com a mercadoria, uma localização para a ontologia política do
negro. Essa identificação, entretanto, não obstaculiza categoricamente a
resistência, a subversão, a invenção, ou a objeção, como Moten e Harney
desenvolvem em “Undercommons” (2013). A ideia de resistência do ob-
jeto, e de objeção, conduz à consideração das estruturas históricas, socio-
lógicas e formais para a resistência, basicamente configuradas sob a pre-
valência da performance como forma cultural privilegiada em oposição a
outras modalidades representacionais, “logocêntricas”, ou cartesianas de
produção de vida e sentido. A performance, como forma não-representa-
cional, imanente, permite a resistência do objeto, sem recair ou retomar
estruturas e epistemologias ocidentais, antinegras. Ora, a performance
desenvolve uma cena – mediada pelo “repertório”, pela experiência, pela
transcendência e pela dissidência epistemológica – que reage em meio
e contra cenários institucionalizados pelo “arquivo” e que operam para
fixar, esvaziar, codificar a experiência trans-histórica da objeção negra.
Entre a cena e o cenário da objeção negra, em meio – ou contra – o
mundo antinegro, transita a morte social em suas metamorfoses, tanto
no campo estruturado de padrões sociais genocidas como nas alegorias
coloniais representacionais, e nas formas performáticas que exorcizam a
passagem do meio e a escravidão, como o Nego Fugido do Acupe ou os
Mardi Gras Indians em Nova Orleans. Contra a morte social, a objeção
invoca os ancestrais e a “boa morte”, como forma de impor simbolização
ancestral ao que permaneceria sem sentido, como um fantasma selvagem.
A cultura negra, performada na cena da objeção, não pode, entretanto,
ser representada, e em Lewis Gordon, encontramos razões para negar a
metáfora e insistir na irrepresentabilidade da cultura negra e da própria
negritude.

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Essas categorias atravessam este livro de diversas formas e nos
diversos capítulos que se seguem. Em um sentido ou ritmo que pode
parecer ao leitor eventualmente repetitivo ou redundante, mas que na
verdade pretende ser fractal e espiral. Retomando em contextos e con-
figurações diversas conceitos e autores, de modo a expandir e testar a
rentabilidade crítica conceitual desse aparato em sua recorrência. Como
de certa forma diz Fredric Jameson:

...num certo nível de concretude a coisa propriamente


dita - ... – pode ser descrita em qualquer um dos inúmeros
códigos alternativos, pode ser rearticulada em qualquer
uma das numerosas dimensões diferentes: como estrutura
literária, como uma verdade vivida de uma determinada
organização social, como um certo tipo de relação sujei-
to-objeto, como uma certa distância entre a linguagem e
o seu objeto, como um determinado modo de especiali-
zação ou divisão do trabalho, como uma relação implícita
entre as classes. (JAMESON, 1985, p. 270)

Ora, a “coisa” em questão aqui, nesse caso, é a morte social – e


suas transformações – como categoria central.

Dessa forma, no Capítulo I, “A Pessoa do Escravo: Morte So-


cial e Imaginários Políticos da Diáspora Africana no Brasil”, discuto, a
partir da intervenção da historiadora e ativista Beatriz Nascimento na
Quinzena do Negro na USP, realizada em 1977, e registrada no filme
“Ori – Cabeça e Consciência Negra”, de Raquel Guerber, a crítica à ob-
sessão com a escravidão na historiografia acadêmica e a subsequente pro-
posição da África e do quilombo como paradigmas imaginativos para a
subjetividade política negra no Brasil. Um aspecto conectado à invenção
da “cultura negra” como cultura africana, processada com vigor criativo
e político, por meio do Signo-África, no âmbito das reinvenções reafri-
canizantes da tradição, no contexto afro-baiano dos anos 1970 e 1980. E
com profundo impacto para toda a imaginação política diaspórica do ati-

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vismo negro brasileiro e de suas subjetividades e sensibilidades associadas.

Na medida em que Beatriz se refere à “pessoa do homem ne-


gro”, retraço criticamente a genealogia da “pessoa” tal como discutida na
antropologia clássica para confrontá-la ao “espaço da morte” colonial,
como solo ou horizonte de onde emerge a construção de posicionalida-
des coloniais marcadas pela morte social, pela violência paroxística e pela
escravidão. Dessa forma, defino a morte social em sua conexão à supres-
são da pessoa do escravo na configuração de um campo de pensamento
crítico definido pela antinegritude, como elemento do antagonismo geral
antinegro, assim como aponto o campo alternativo de pensamento críti-
co, configurado na tradição afro-brasileira como o pensamento da ances-
tralidade. Nesse sentido, as transições entre o “escravo” e o “africano” se
manifestariam como metamorfoses e não como dualidades.

No Capítulo II, “Arrastão: Descolonizando o Gênero e a Sexua-


lidade no Pagode Baiano”, tenho oportunidade de discutir a prerrogativa
da performance no campo de uma teorização crítica da negritude como
experiência social, histórica e vernácula. A partir da tradução da oposição
consagrada em Diana Taylor entre o repertório (corporal e performáti-
co) e o arquivo (letrado e institucional), transfigurados como a oposição
entre a cena, imanente e irrepetível, e o cenário, fixado e centralizado
como uma estratégia de poder, busco explorar a ideia de cena da objeção,
encontrada em Moten. O locus da discussão é o chamado pagode baiano,
entendido como o conjunto performado de práticas, categorias e formas
estéticas reproduzido no curso da história de objeção e resistência de sujei-
tos racializados e gendered no ambiente colonial brasileiro. Discuto, dessa
forma, primeiro esse ambiente colonial e sua articulação com processos
de sujeição apoiados na produção racializada do gênero e da sexualidade,
no registro das moralidades coloniais e da miscigenação, como ideologia
central para a invenção da cultura nacional como um aparato discursivo

28 CATIVEIRO | OSMUNDO PINHO


de poder heteropatriarcal. Em segundo lugar, busco me valer do corpus
etnográfico desenvolvido no âmbito do Projeto Brincadeira de Negão
para explorar, do ponto de vista dos sujeitos, categorias e estruturas de
sentimento, sustentadas entre i) o “tiroteio” do Estado, ii) dispositivos
de subjetivação, como o paredão de pagode e iii) performances mascu-
linas como o “botando a base”; para considerar ao final a produção de
uma cena de rebelião (de gênero, raça e sexualidade) no pagode baiano.

No Capítulo III, “Black Border: O Corpo e a Luta no Audio-


visual Negro”, o conceito de “border”, proposto originalmente por Pau-
la von Gleich, aqui é experimentado para interrogar as possibilidades e
aporias para a representação da negritude e da cultura negra, tendo em
mente a densa discussão encontrada em Lewis Gordon e Frantz Fanon
sobre a coisidade, e consequente irrepresentabilidade da negritude e do
sujeito negro. (GLEICH, 2017; FANON, 1983; GORDON, 1999) Se
o negro é por definição não-simbólico, o que a cultura negra pode re-
presentar? Levo o debate para o campo do audiovisual negro, discutindo
impasses éticos e estéticos na leitura de quatro filmes, os clássicos “Alma
no Olho”, de Zózimo Bubul, e “Now!”, de Santiago Alvarez, onde a
natureza formal da representação visual é tensionada pela relação entre
conteúdos determinados e as gramáticas propostas para encená-los; as-
sim como também discuto dois filmes, ou registros, contemporâneos,
“Notícias de uma Guerra Racial Subnotificada”, da Campanha Reaja
ou será Morta, Reaja ou será Morto, e “Experimentando o Dilúvio em
Vermelho”, de Musa Matiuzzi, nesse casos limites éticos são atravessados
e transfigurados pela materialidade da carne (flesh) negra. A coisidade ou
nothingness da negritude que obstaculiza a simbolização de um ponto de
vista mais radicalmente fanoniano e fenomenológico, parece encontrar
uma saída temporária e precária na fugitiviness dos undercommons como
está em Moten e Hearney. É justamente como um limite ou borda, ins-

CATIVEIRO | OSMUNDO PINHO 29


transponível, mas manejável, que a possibilidade de realização de um
conteúdo representacional – e ético – negro parece poder se realizar sob
essas formas tão instáveis e radicais.

No Capítulo IV, “’Sangue Atlântico’: Morte Social e Ancestra-


lidade em Albert Eckhout e Ayrson Heráclito”, sigo discutindo a arte, ou
a representação, negra, sob o signo de uma impossibilidade categórica
fundamental, estabelecida pela passagem do meio como evento históri-
co-estrutural para a mediação entre posicionalidades associadas à morte
social e/ou à africanidade, nesse caso discutindo representações visuais
definidas em dois momentos muito distintos e por artistas tão diferen-
tes como o pintor neerlandês Albert Eckhout, integrante da comitiva
de Mauricio de Nassau-Siegen, governador do Brasil holandês no século
XVII e Ayrson Heráclito, um dos artistas afro-brasileiros mais bem su-
cedidos contemporaneamente. Enquanto Eckhout, ao produzir sua série
etnológica sobre os tipos raciais da colônia, e em especial o espantoso
quadro “Guerreiro Africano”, produz, no registro alegórico, representa-
ções sobre a raça e o gênero com recurso a epistemologias visuais mar-
cadamente coloniais, não apenas por seu conteúdo, mas principalmente
porque baseadas na representação, Heráclito, recusando o mimetismo
da arte e a política metafórica das representações, propõe sua obra como
uma intervenção material, baseada não no símbolo, na representação ou
na metáfora, mas na manipulação imanente de materiais, como o azeite
de dendê, reconfigurando a relação entre o sagrado, a arte e a vida por
meio do reconhecimento da agência, no sentido de Alfred Gell, de obje-
tos de arte, análogos ao fetiche, como propõe, por sua vez, J. L. Matory.
(GELL, 2018; MATORY, 2018) A discussão em perspectiva comparada
dos dois artistas deve permitir-nos abordar, por outro lado, duas for-
mas epistemológicas para a produção da arte negra, em sua ambiguidade
como arte do negro e arte sobre o negro, uma baseada na representação, e

30 CATIVEIRO | OSMUNDO PINHO


nesse sentido alienada, alegórica e colonial, e outra baseada na imanência,
e nesse sentido coerente com a dissidência epistemológica, que retira o
negro e a negritude do espaço da morte ocidental e assume a ancestrali-
dade como paradigma epistemológico/cosmológico.

Por fim, no Capítulo IV, “A Cena da Objeção: Narrativa, Eco-


nomia Política e Performance”, retorno à questão da pessoa do homem
negro, desdobrada em um diálogo com campos diversos e com outras
categorias como personhood [pessoalidade]3 e subjetividade. Para tanto,
interrogo três campos ou corpus, primeiro uma seleção de algumas das
mais conhecidas e influentes autobiografias ou narrativas escravas, como
as de Frederick Douglass e Harriet Jacobs, discutidas ao lado de tex-
tos ficcionais, uma vez que é possível reconhecer na imaginação, e na
imaginação histórica, uma forma de situar o sujeito negro no âmbito da
modernidade antinegra; em seguida, discuto aspecto problemático e de-
terminado da historiografia do negro no Brasil, notadamente a discussão
sobre o ser social do escravo, disputado entre as perspectivas do escravis-
mo colonial de Jacob Gorender, e leituras acadêmicas estabelecidas como
as de Florestan Fernandes e Roberto Slenes, que discutem justamente o
significado da pessoa do escravo, de sua agência, de sua capacidade his-
tórica e subjetiva de construir laços familiares e continuidade cultural, o
que seria em tese negado pelas definições de escravidão encontradas tanto
em Orlando Patterson quanto em Claude Meillassoux (PATTERSON,
2008; MEILASSOUX, 1995); finalmente, na quarta seção do capítulo, e
última do livro, retomo o debate sobre performance e a cena da objeção,
para argumentar que se o negro pode ser em algum lugar sujeito de sua
própria representação no mundo antinegro, esse lugar é a performan-

3 Na antropologia brasileira contemporânea a categoria personhood, encontrada em


Marilyn Strathern e em outros autores, tem sido traduzida por personitude. Aqui, en-
trento, estou traduzindo por pessoalidade para marcar uma distinção relativa com rela-
ção a esse campo conceitual. Ver por exemplo VIVEIROS DE CASTRO, 2018.

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ce socialmente instituída, e para tanto discuto, muito resumidamente,
duas tradições performáticas da diáspora negra, o Nego Fugido do Acupe
no Recôncavo da Bahia e os Mardi Gras Indians em Nova Orleans. Se
no caso das narrativas o sujeito negro necessita da máscara branca das
convenções literárias e da intercessão de seus mediadores brancos, se no
espectro da economia política escravista o negro pôde exercer agência
subjetiva, apenas em meio às contradições estabelecidas, através de sua
redução à condição de mercadoria, no campo da performance, na cena
da objeção, o negro pode dispensar recursos e epistemologias ocidentais
para constituir a si mesmo no espaço transtemporal e mitopoético da rua
e da encruzilhada, domesticando a morte social pelos meios simbólicos e
materiais que estão disponíveis na tradição.

Os capítulos deste livro, resumidos acima, têm origens hetero-


gêneas, descrevê-las me permitirá também agradecer a pessoas e institui-
ções que favoreceram de formas diversas a consecução de meus objetivos,
delineados há seis anos.

O capítulo I foi escrito como um paper para apresentação no


Instituto Tepoztlán para História Transnacional das Américas, um se-
minário multidisciplinar que ocorre todos os anos na bela cidadezinha
de Tepoztlán, no estado mexicano de Morelos. O instituto tem sido,
ao longo dos anos que tenho participado, um espaço fundamental de
reflexão crítica, de um apaixonado diálogo multidisciplinar e transnacio-
nal em um ambiente muito intensivo, muito democrático e muito rico.
Devo a minha experiência em Tepoztlán o contato com diversos autores
e autoras que se tornaram referências fundamentais na elaboração das
ideias reunidas neste livro. A apresentação do trabalho ocorreu em 2018,
agradeço particularmente nesse caso a Micol Siegel, que me apresentou
ao Instituto pela primeira vez em 2015, a David Kazanjian, dominatrix,
ou seja, coordenador na linguagem de Tepoztlán, da sessão em que apre-

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sentei e a Megan Spencer e Tito Mitjans Alayón que foram debatedores
nesta mesma sessão.

O Capítulo II tem uma história mais longa e heteróclita. A pri-


meira seção foi escrita originalmente para esse livro, apesar de fazer refe-
rência a um trabalho publicado em inglês sobre o “rolezinho”, inédito
em português (2018) e apresentado em 2014 no New Sexualities Seminar
do Interdisciplinary Humanities Center da Universidade da California,
em Santa Barbara, e no Global Moral Panics Symposium ocorrido tam-
bém em 2014 na Universidade de Indiana, em Bloomington. Agradeço a
Paul Amar, Mireille Miller-Young, Justin Perez, Steven Osuna, Jennifer
Tyburczy e Micol Seigel pelos convites, comentários e sugestões; a segun-
da seção é uma versão bastante modificada de um ensaio nunca publicado
e que foi base para uma conferência realizada no Congresso Internacional
Epistemologias do Sul: Perspectivas Críticas II, que ocorreu na Universi-
dade Internacional da Integração Latino-americana (UNILA), em 2017,
agradeço a Angela Souza, Marcos de Jesus Oliveira e Waldemir Rosa,
colegas antropólogos da UNILA pelo convite e pela amável interlocução
naquela ocasião; a terceira seção deste capítulo resume dados e reflexões
publicadas anteriormente em outros lugares (PINHO, 2015; 2016), as-
sim como reflete discussões e apresentações realizadas em distintas oca-
siões, no “Queering Paradigms V”, em Quito, no Equador, em fevereiro
de 2014; no “FRONTERAS 2014: Encuentro Interdisciplinario de In-
vestigación en Géneros y Sexualidades”, em agosto de 2014, em Bogotá;
no “Quebrando Tudo II: O Pagode e os Discursos em Torno de uma
Produção Cultural Periférica”, em julho de 2015, em Cachoeira; no Se-
minário Consciência Negra em Debate – Epistemologias da Resistência,
em novembro de 2015, em Brasília, assim como na “Brown Bag Series”
do African and African Diaspora Department Studies, da Universidade
do Texas, em fevereiro de 2014, em Austin, e, por fim, no “Seminário

CATIVEIRO | OSMUNDO PINHO 33


Brincadeira de Negão 2.0”, realizado em agosto de 2014 na UFRB, em
Cachoeira. Agradeço também nesse caso a Franklin Gil Hernandez, Luz
Gabriela Arango (in memorian) e Ana Flauzina, pelos convites para os
encontros em Bogotá e Brasília, e a João H. Costa Vargas, Dora Santana,
Gustavo Mello, Agatha Oliveira, Luciane Rocha, Daniela Gomes e Maria
Andrea dos Santos Soares, pela discussão e todo o apoio em Austin. Este
capítulo reflete basicamente o nosso trabalho no Projeto Brincadeira de
Negão, que é ligeiramente anterior às preocupações que deram origem a
esse livro. Na verdade, o BN e o projeto desse livro foram se desenvolven-
do de modos relativamente paralelos, e nesse sentido as questões ligadas
à discussão sobre masculinidade e antinegritude foram construídas em
diálogo, e em grande parte, durante minha estadia nos Estados Unidos,
em 2014, o que se reflete nas apresentações que fiz nesse período, assim
como se reflete na perspectiva geral que informa a discussão etnográfica
nesse capítulo. Dessa forma, também o espaço construído no âmbito do
BN e a interlocução com os estudantes, integrantes da equipe, foram fun-
damentais para o desenvolvimento de muitas ideias aqui presentes, dessa
forma quero agradecer a todxs os que em diversos momentos integraram
essa equipe: Paulo Roberto dos Santos, Gimerson Roque, Valdir Alves,
Jefferson Parreira, Amanda Dias, Maiana Brito, Lucas Santana, Beatriz
Giugliani, Thais Gomes Machado, Julio Cesar Cerqueira Araujo e Israel
Cerqueira.

O Capítulo III foi concebido originalmente como um comen-


tário à mostra “Corpos em Luta”, integrante do CachoeiraDoc, o festival
de cinedocumentário que tem ocorrido todos os anos na cidade de Ca-
choeira sob organização de Amaranta Cesar e Ana Rosa Marques, profes-
soras do curso de graduação em Cinema e Audiovisual e minhas colegas
na UFRB, em Cachoeira. Amaranta foi uma das curadoras da Mostra
Corpos em Luta e agradeço o seu convite para discutir o programa de

34 CATIVEIRO | OSMUNDO PINHO


filmes selecionado. Agradeço também ao diálogo com Aline Nzinga, da
Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto! que dividiu co-
migo os comentários desse programa no dia 09 de setembro de 2017. Os
comentários, posteriormente convertidos em um ensaio, foram publica-
dos originalmente, e em versão ligeiramente diferente, como um capítulo
na coletânea “Desaguar em Cinema: documentário, memória e ação com
o CachoeiraDoc”, organizado por Amaranta Cesar, Ana Rosa Marques,
Fernanda Pimenta e Leonardo Costa, e publicada pela Edufba. Agradeço
aos organizadores a gentil autorização para republicação aqui.

O Capítulo IV está sendo publicado aqui pela primeira vez


aqui, e também foi elaborado como um paper para apresentação no Ins-
tituto Tepoztlán, desta vez no ano de 2019. Agradeço a David Kazanjian,
novamente dominatrix na sessão em que apresentei, assim como a Ana
Pohlenz de Tavir e Christen Mucher que foram debatedoras. Paulo Ra-
mos, Julio Cesar Cerqueira Araujo, Christen Smith e Anderson da Mata
contribuíram para a discussão com sugestões e críticas, pelas quais sou
a eles muito grato. Uma versão mais reduzida do mesmo trabalho, que
excluía a discussão sobre a obra de Ayrson Heráclito, foi apresentada no
Workshop: Future Africa - Visions in Time, organizado pelo Progra-
ma de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA e pelo
Bayreuth Academy for Advanced African Studies, em Salvador da Bahia,
também em 2019. Luis Felipe Ortega leu e comentou uma das versões
deste capítulo, desde o ponto de vista das artes visuais, lhe agradeço os
comentários e sugestões.

O Capítulo V foi redigido originalmente para este livro e esteve


até o presente momento inédito.

Além das pessoas e instituições citadas acima quero agradecer a


Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

CATIVEIRO | OSMUNDO PINHO 35


que me concedeu, em 2013, Bolsa Estágio Sênior, que permitiu a mi-
nha viagem e estadia em Austin, fundamental para o desenvolvimento de
meu trabalho e para o florescimento das ideias reunidas aqui. O Conse-
lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Governo
Federal (CNPq) e a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bah-
ia (FAPESB), em diferentes momentos ente 2014 e 2019, concederam
bolsas de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado, que permitiram
aos estudantes integrantes do BN desenvolverem adequadamente as suas
atividades, inclusive permitindo que alguns trabalhos de conclusão de
curso de graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorados se
realizassem no âmbito do Projeto. Parte da discussão apresentada no Ca-
pítulo IV fundamentou o projeto que submeti em 2019 à seleção para a
Richard E. Greenleaf Library Fellowships da Biblioteca Latinoamericana
da Universidade de Tulane, em Nova Orleans. Ter ganho a bolsa, além
de me permitir o aprofundamento na pesquisa sobre representações vi-
suais da negritude no Brasil colonial, oportunizou o meu contato, breve
mas impactante, com os Mardi Gras Indians e com literatura relevante
sobre essa prática performática, que informa a discussão da seção final do
Capítulo V. Em Tulane, onde permaneci durante os dois primeiros me-
ses de 2020, tive o apoio institucional da Biblioteca Latinoamericana e
agradeço profundamente a Hortensia Calvo, sua diretora, e a maravilho-
sa equipe da biblioteca: Rachel Stein, Penelope Ojeda, Verónica Sanchez
e Christine Hernandez. A disponibilidade, a amabilidade e a extrema
competência dessa equipe foram decisivas para o melhor aproveitamento
de minha temporada em Tulane. Christopher Dunn, Marc Perry e Kim
Butler foram em Nova Orleans interlocutores constantes e generosos me
apresentando, e discutindo, diversos aspectos da história e da vida cultu-
ral da comunidade negra na Big Easy e tornando minha permanência na
cidade ainda mais aprazível com sua hospitalidade. Por fim, mas nenhum
pouco menos importante, agradeço a Eder Boaventura, companheiro,

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amigo, cúmplice, comparsa. Pela paciência, alegria e todo o amor.

Uma vez que nos dias que correm o “lugar de fala” parece ser
algo tão importante, julgo que seria adequado, por fim, falar algo sobre
o meu próprio nesse momento. A discussão levada a cabo recentemente
por Djamila Ribeiro já está consagrada, e reivindica sua filiação ao femi-
nismo negro de Patricia Hill Collins e de Lélia Gonzalez para enfatizar
a importância do reconhecimento do locus social do sujeito do discurso,
para compreender como hierarquias sociais se convertem em privilégios
epistêmicos, usualmente acionados pela invisibilização desse mesmo vín-
culo, entre uma posição sociológica de poder – vivida no mundo da vida
e definida por estruturas sociais históricas – e uma prerrogativa de enun-
ciação. Assim, por exemplo, a sobrerrepresentação de homens brancos
em posições de poder na sociedade conduziu a uma situação qual que o
cânone do pensamento acadêmico brasileiro sobre o negro fosse produzi-
do por sujeitos que viam, em seu cotidiano, o negro como Outro. Então,
não se trata de que brancos não possam falar de negros, mas de que negros
não podem ser reduzidos a objetos mudos, sendo descritos e explicados
em terceira pessoa. Ou seja, a questão é o privilégio branco de falar sobre
o negro, o que tem, é claro, e isso às vezes é mal entendido, reflexos no
tipo de conhecimento produzido. Quando Nina Rodrigues julgava que
os descendentes de africanos seriam incapazes, como povo, de progresso
social e de moralidade individual ele confundia sua experiência e ponto
de vista pessoal, eivado de preconceitos, sustentados na ordem objetivada
da sociedade, com a objetividade científica. Como Fanon já disse, aliás,
“para o colonizado a objetividade está sempre voltada contra ele”. Porque
a objetividade objetivada, digamos assim, do mundo colonial é uma or-
dem de opressão, violência e negação, que cria um espaço de morte para
o sacrifício da humanidade do “nativo” racializado.

Em Djamila, como em larga medida para o feminismo negro


brasileiro e afro-americano, a questão da identidade é essencial, porque

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revela a conexão entre uma determinada posição social, o pertencimento
a um grupo construído historicamente como Outro, e experiência sub-
jetiva da opressão e do silenciamento. Assim, por exemplo, a pobreza a
que estão eventualmente submetidas mulheres quilombolas, as condições
de trabalho e de vida doméstica que as oprimem, e a negação de suas
capacidades intelectuais, beleza e estima própria, podem fazer sentido do
ponto de vista de um sujeito em particular, uma mulher concreta, com
nome e endereço, que reencontra as fontes da opressão que lhe afligem,
não em alguma suposta inferioridade inata, como mulher e negra, como
lhe ensinaram, mas em uma estrutura social injusta e desigual que tem
uma história pelo menos tão longa quanto a história da sociedade nacio-
nal. Daí a autoestima, daí o cuidado e o autocuidado, daí a beleza negra e
outras categorias que politizam a experiência. Mas ora, há, entretanto, às
vezes, como resultado algo inesperado desse discurso, uma certa inflação
da subjetividade, que, se é legítima diante da negação da pessoalidade do
negro e da negra como veremos, não pode servir de escusa para a aderên-
cia irrefletida a padrões e modelos de subjetividade e entendimento que
apenas simulam ser críticos. Essa inflação não tem exatamente a ver com
o lugar de fala, mas com o lugar do sujeito e de sua experiência, tomada
como intrínseca e autônoma na relação de um indivíduo com seu lugar
social. Por que é tão importante falar de si? Por que é mais importante fa-
lar de si do que escutar o outro? Poque a minha dor e martírio são tão re-
levantes? Senão por que essas dores e martírios não dizem respeito exclu-
sivamente a mim mesmo? O indivíduo, como usualmente o conhecemos,
é uma artefato ideológico sócio-histórico. Um dispositivo do bio-poder.
Pleno em sua autorreferencialidade, julga encontrar os fundamentos da
própria subjetividade, e as categorias para descrevê-los nessa identidade
entre o mundo e sua experiência nele, desprezando grossas camadas de
historicidade e o labiríntico edifício de categorias e configurações episte-
mológicas que permitem que alguém diga “eu sou”. Que permitem re-

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conhecer um projeto emancipatório apenas quando ele emancipa a mim
mesmo e faz com que alguém encontre o seu “verdadeiro eu”. Uma vez,
faz muitos anos, perguntei a um amigo, negro como eu: “Por que você é
contra o racismo?” A resposta dele me faz pensar até hoje, porque ele res-
pondeu: “Porque o racismo me afeta”. Então, às vezes, onde imaginamos
encontrar um projeto emancipatório encontramos a afirmação do velho
projeto burguês, individualista, não meramente no sentido que se opõe
ao coletivismo, mas no sentido que vê no indivíduo – tomado como enti-
dade singular, original, indivisível e a-histórica – o alfa e o ômega da vida
social, o parâmetro e paradigma para emissão de juízos ou plataforma
para reinvindicação política.

E digo tudo isso para explicar certo desconforto em falar de


mim, ou sobrevalorizar a minha experiência como parâmetro para meu
juízo. E isso não significa que eu desconheça meu lugar de fala – como
poderia? –, ou que subestime as contingências pessoais que fazem de mim
alguém que nasceu em uma cidade e não em outra, filho de certos pais e
não de outros, habitante de uma época histórica e não de outra. Mas que,
na verdade, minha experiência e biografia não são assim tão importantes,
para além do que delas eu possa converter em um ponto de vista, ou
de partida, para o trabalho intelectual crítico. Não que eu não tenha as
minhas próprias histórias de luto e de exclusão e que não tenha também
chorado sozinho lágrimas amargas em ruas escuras, coagido pelo racismo
e aterrorizado pela homofobia. Não que eu não conheça o amargor do
sangue na boca ao ser ofendido e humilhado. Negado e invisibilizado.
Tratado como um animal exótico ou demônio de estimação. Mas porque
tudo isso seria tão importante diante de oceanos de desolação e brutali-
dade que acompanharam meus ancestrais? Às vezes, invejo alguns, em
geral, os mais jovens. As certezas são fáceis, o inimigo inconfundível e
unificado. Com uma exuberante loura ao seu lado, de terno, gravata e

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relógio importado, a busca pelo sucesso individual e pela ostentação do
progresso material não trazem constrangimento ou remorso. A celebra-
ção da própria individualidade, ou a indubitável fé revolucionária em
si próprio, que lhes faz sentirem-se como porta-vozes da verdade e da
justiça, contra todos os outros que não pensam exatamente do mesmo
modo. O mundo em que vivem esses deve ser um mundo mais simples,
onde não há contradição entre a verdade e a justiça, o poder e o saber, o
sujeito e seus desejos. Os deuses e os homens. A História e a própria vida.

Eu, intratável, não encontro, todavia, repouso em deixar in-


questionado o meu próprio “eu”, e sob o signo da negação e não da iden-
tidade reconheço ou sou empurrado à própria condição de construção
de um lugar de fala que é um lugar de negação. Toda a negação, e cada
“não” que me define é um marco que localiza a minha situação, que é
certamente muito privilegiada em relação à maioria dos homens negros
da diáspora, mas certamente não o suficiente para me salvar do cativeiro.
Tudo que não sou e não posso ser define a condição de produzir um lugar
de fala e uma posição de sujeito. Não sou heterossexual. Não tenho a pele
retinta. Não sou de candomblé. Não sou comunista. Não vim da favela.
Não sou um artista. Não dirijo um carro do ano. Não sou filiado a um
partido ou a organizações políticas. Não sou um homem como os outros.
Sou exatamente um homem como qualquer outro. Talvez, na verdade,
seja apenas um pouco igual a você ou ao cortejo de todos os meus ante-
passados sem nome.

Tudo aquilo que somos, tudo aquilo que sou, entretanto, pare-
ce frágil, combalido, cheio de ambições fúteis num mundo em desagre-
gação. Tudo aquilo que que imaginamos ser ou viver parece destinado à
diluição impessoal, como a voz de um fantasma, em meio ao redemoi-
nho, em uma encruzilhada deserta à meia-noite.

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