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VEHEMENTER NOS

CARTA ENCÍCLICA
Aos nossos diletos filhos François-Marie Richard, Cardeal Presbítero da S.
I. R., Arcebispo de Paris; Victor-Lucien Lecot, Cardeal Presbítero da S. I. R.,
Arcebispo de Bordéus; Pierre-Hector Coullié, Cardeal Presbítero da S. I. R.,
Arcebispo de Lião; Joseph-Guillaume Labouré, Cardeal Presbítero da S. I.
R., Arcebispo de Rennes; e a todos os Nossos Veneráveis Irmãos os
Arcebispos e Bispos, e a todo o Clero e povo francês sobre as Relações
entre a Igreja e o Estado.

Pio X, PAPA

Veneráveis Irmãos, diletos Filhos, Saudação e Bênção Apostólica

Introdução: História do conflito

1. Nossa alma fica cheia de dolorosa solicitude e o Nosso coração enche-se


de angústia, quando sobre vós se detém o Nosso pensamento. E, em
verdade, como poderia ser de outro modo, em seguida à promulgação da
lei que, quebrando violentamente os laços seculares pelos quais a vossa
nação estava unida à Sé Apostólica, cria para a Igreja Católica na França
uma situação indigna dela e para sempre lamentável?

2. Acontecimento, sem dúvida, dos mais graves esse; acontecimento que


todos os bons espíritos devem deplorar, porque ele é tão funesto à
sociedade civil como à religião; mas acontecimento que a ninguém pôde
surpreender, desde que se haja prestado alguma atenção à política
religiosa seguida na França nestes últimos anos. Para vós, Veneráveis
Irmãos, muito certamente não terá ele sido nem uma novidade nem uma
surpresa, testemunhas que tendes sido dos golpes tão numerosos e tão
temíveis alternativamente desfechados pela autoridade pública na
religião. Vistes violar a santidade e a inviolabilidade do matrimônio cristão
por disposições legislativas em contradição formal com elas; vistes laicizar
as escolas e os hospitais; arrancar os clérigos aos seus estudos e à
disciplina eclesiástica, para obrigá-los ao serviço militar; dispensar e
esbulhar as Congregações religiosas e, na maioria das vezes, reduzir os
seus membros à última destituição. Outras medidas legais se seguiram
que todos vós conheceis: ab-rogou-se a lei que ordenava preces públicas
no início de cada sessão parlamentar e na reabertura dos tribunais;
suprimiram-se os sinais de luto tradicionais, a bordo dos navios, na Sexta-
feira Santa; riscou-se, do juramento judiciário, aquilo que lhe fazia o
caráter religioso; baniu-se dos tribunais, das escolas, do exército, da
marinha, de todos os estabelecimentos públicos enfim, todo ato ou todo
emblema que de uma maneira qualquer pudesse lembrar a religião. Essas
medidas e outras mais, que pouco a pouco separavam de fato a Igreja do
Estado, nada mais eram do que marcos colocados com o intuito de chegar
à separação completa e oficial; e os seus próprios promotores não
hesitaram em reconhecê-lo alto e bom som, e múltiplas vezes.

3. Pelo contrário, para apartar calamidade tão grande, a Sé Apostólica


absolutamente nada poupou. Enquanto, de um lado, não se cansava de
advertir os que estavam à testa dos negócios franceses, e repetidas vezes
os conjurava a bem pesarem a imensidade dos males que a sua política
separatista acarretaria infalivelmente, de outro multiplicava para com a
França os testemunhos evidentes da sua condescendente afeição.

4. Assim, tinha ela o direito de esperar, mercê dos laços da gratidão, poder
reter esses políticos no declive e induzi-los finalmente a renunciar aos
seus projetos.

5. Mas atenções, bons esforços, ofícios tanto da parte do Nosso


Predecessor como da Nossa, tudo ficou sem efeito. E a violência dos
inimigos da religião acabou por levar por diante à viva força aquilo que
durante longo tempo eles haviam pretendido, de encontro aos vossos
direitos de nação católica e de tudo o que podiam almejar os espíritos que
pensam sensatamente. É por isto que, numa hora tão grave para a Igreja,
cônscio do Nosso múnus apostólico, havemos considerado como um
dever elevar a Nossa voz e abrir-vos Nossa alma, a vós, Veneráveis Irmãos,
ao vosso clero e ao vosso povo, a vós todos a quem sempre cercamos de
uma ternura particular, mas a quem neste momento, como é bem justo,
amamos mais ternamente do que nunca.

Separar a Igreja do Estado é um erro pernicioso

6. Que seja preciso separar o Estado da Igreja, é esta uma tese


absolutamente falsa, um erro perniciosíssimo. Com efeito, baseada nesse
princípio de que o Estado não deve reconhecer nenhum culto religioso ela
é, em primeiro lugar, em alto grau injuriosa para com Deus; porquanto o
Criador do homem também é o Fundador das sociedades humanas, e
conserva-as na existência como nos sustenta nelas. Devemos-lhe, pois,
não somente um culto privado, mas um culto público e social para honrá-
lo.

7. Além disto, essa tese é a negação claríssima da ordem sobrenatural. De


feito, ela limita a ação do Estado à simples demanda da prosperidade
pública durante esta vida, a qual não passa da razão próxima das
sociedades políticas; e, como que lhe sendo estranha, de maneira alguma
se ocupa da razão última delas, que é a beatitude eterna proposta ao
homem quando esta vida, tão curta, houver findado. E, no entanto,
achando-se a ordem presente das coisas, que se desenrola no tempo,
subordinada à conquista desse bem supremo e absoluto, não somente o
poder civil não deve obstar a essa conquista, mas deve ainda ajudar-nos
nela.

8. Essa tese subverte igualmente a ordem muito sabiamente estabelecida


por Deus no mundo, ordem que exige uma harmoniosa concórdia entre as
duas sociedades. Essa duas sociedades, a sociedade religiosa e a
sociedade civil, têm, com efeito, os mesmos súditos, embora cada uma
delas exerça na sua esfera própria a sua autoridade sobre eles. Daí resulta
forçosamente que haverá muitas matérias que elas ambas deverão
conhecer, como sendo da alçada de ambas. Ora, venha a desaparecer o
acordo entre o Estado e a Igreja, e dessas matérias comuns pulularão
facilmente os germes de contendas, que se tornarão agudíssimos dos dois
lados; a noção da verdade será, com isso, perturbada, e as almas ficarão
cheias de grande ansiedade.

9. Finalmente, essa tese inflige graves danos à própria sociedade civil, pois
esta não pode prosperar nem durar muito tempo quando não se dá nela o
seu lugar à religião, regra suprema e soberana senhora quando se trata
dos direitos do homem e dos seus deveres.

Os Pontífices sempre condenaram a separação entre a Igreja e o Estado

10. Por isto, não têm os Pontífices romanos, segundo as circunstâncias e


segundo os tempos, cessado de refutar e de condenar a doutrina da
separação entre a Igreja e o Estado. Notadamente o Nosso ilustre
Predecessor Leão XIII várias vezes e magnificamente expôs o que,
consoante a doutrina católica, deveriam ser as relações entre as duas
sociedades. Entre elas, disse ele, "cumpre necessariamente que uma sábia
união intervenha, união que se pode, não sem justeza, comparar à que
reúne no homem a alma e o corpo. Quaedam intercedat necesse est
ordinata colligatio (inter illas), quae quidem conjunctioni non immerito
comparatur, per quam anima et corpus in homine copulantur". E
acrescenta ainda: "As sociedades humanas não podem, sem se tornarem
criminosas, comportar-se como se Deus não existisse, ou recusar
preocupar-se com a religião, como se esta lhes fosse coisa estranha ou
que de nada lhes pudesse servir... Quanto à Igreja, que tem por autor o
próprio Deus, excluí-la da vida ativa da nação, das leis, da educação da
juventude, da sociedade doméstica, é cometer um grande e pernicioso
erro. Civitates non possunt, citra scelus, gerere se tanquam si Deus omnio
non esset, aut curam religionis velut alienam nihilque profuturam,
abjicere... Ecclesiam vero, quam Deus ipse constituit, ab actione vitae
excludere, a legibus, ab institutione adolescentium, a societate domestica,
magnus et perniciosus est error" (Immortale Dei, 1. XI. 1885. D. P. 14, n.
19, 11 e 39).

A França, Filha primogênita da Igreja

11. E, se, separando-se da Igreja, um Estado cristão, seja qual for, comete
um ato eminentemente funesto e censurável, quanto não é para deplorar
que a França haja enveredado por essa trilha, quando, menos ainda do
que todas as outras nações, jamais deveria ter entrado nela! A França,
dizemos Nós, que, no correr dos séculos, foi, da parte desta Sé Apostólica,
o objeto de tamanha e tão singular predileção; a França, cuja fortuna e
cuja glória sempre estiveram intimamente unidas à prática dos costumes
cristãos e ao respeito da religião!

12. Bem razão tinha, pois, de dizer o mesmo Pontífice Leão XIII: "A França
não pode esquecer que o seu destino providencial a uniu à Santa Sé por
laços sobejamente estreitos e sobejamente antigos, para que ela queira
algum dia quebrá-los. Dessa união, com efeito, saíram as suas verdadeiras
grandezas e a sua glória mais pura... Perturbar essa união tradicional seria
tirar à própria nação uma parte da sua força moral e da sua alta influência
no mundo" (Alocução aos peregrinos franceses, 13. IV. 1888).

A Concordata...

13. Os laços que consagravam essa união deviam ser tanto mais
invioláveis quanto assim o exigia a fé jurada dos tratados. A Concordata
firmada entre o Sumo Pontífice e o Governo francês, como aliás todos os
tratados do mesmo gênero que os Estados concluem entre si, era um
contrato bilateral que obrigava dos dois lados.

... compromisso bilateral...

14. O Pontífice romano de uma parte, o chefe da nação francesa da outra,


comprometeram-se, pois, solenemente, tanto por si como por seus
sucessores, a manter inviolavelmente o pacto que assinavam. Daí
resultava que a Concordata tinha como regra a regra de todos os tratados
internacionais, isto é, o direito das gentes, e que de maneira alguma podia
ela ser anulada por iniciativa de uma só das dias partes contratantes. A
Santa Sé sempre observou com fidelidade escrupulosa os compromissos
por ela subscritos e em todos os tempos reclamou que o Estado desse
prova da mesma fidelidade. É esta uma verdade que nenhum juiz
imparcial pode negar.

... ab-rogado pelo Estado...

15. Ora, hoje o Estado ab-roga por sua única autoridade o pacto solene
que havia firmado. Transgride, assim, a fé jurada. E, para romper com a
Igreja, para se libertar da sua amizade, não recuando diante de coisa
alguma, não hesita em infligir à Sé Apostólica o ultraje que resulta dessa
violação do direito das gentes, como não hesita em abalar a própria
ordem social e política, visto que, para a segurança recíproca das suas
relações mútuas, nada interessa tanto às nações como uma fidelidade
inviolável no respeito sagrado dos tratados.

16. A grandeza da injúria infligida à Sé Apostólica pela ab-rogação


unilateral da Concordata aumenta ainda - e de maneira singular - quando
se considera a forma pela qual o Estado efetuou essa ab-rogação.

... sem notificação anterior...

17. Princípio admitido sem discussão no direito das gentes, e


universalmente observado por todas as nações, é que a ruptura de um
tratado deve ser previamente e regularmente notificada, de maneira clara
e explícita, à outra parte contratante, por aquela que tem a intenção de
denunciar o tratado.
18. Ora, não somente nenhuma denúncia desse gênero foi feita à Santa
Sé, mas nem mesmo qualquer indicação lhe foi dada a esse respeito. De
sorte que o Governo francês não hesitou em faltar, para com a é
Apostólica, às atenções ordinárias e à cortesia de que os governos não se
dispensam mesmo para com os Estados mais pequenos.

19. E os seus mandatários, que era entretanto os representantes de uma


nação católica, não se arrecearam de tratar com desprezo a dignidade e o
poder do Pontífice, chefe supremo da Igreja, quando deveriam ter tudo
para com esse poder um respeito superior ao que inspiram todos os
outros poderes políticos, e tanto maior quanto, por um lado, esse poder
trata do bem eterno das almas, e, por outro, estende-se, sem limites, a
toda parte.

... por uma lei de várias medidas odiosamente restritivas

20. Se agora examinarmos em si mesma a lei que acaba de ser


promulgada, achamos nela uma razão nova para Nos queixarmos ainda
mais energicamente. Já que, rompendo os laços da Concordata, o Estado
se separava da Igreja, como conseqüência natural deveria ter-lhe deixado
a sua independência, e permitir-lhe gozar em paz do direito comum, na
liberdade que pretendia conceder-lhe. Ora, em verdade nada foi menos
feito: efetivamente, notamos na lei várias medidas de exceção que,
odiosamente restritivas, colocam a Igreja sob o domínio do poder civil.

21. Quanto a Nós, foi-Nos uma dor bem amarga o ver o Estado fazer assim
invasão em matérias que são da alçada exclusiva do poder eclesiástico; e
tanto mais gememos com isto quanto, esquecido da equidade e da justiça,
ele criou dessarte para a igreja da França uma situação dura, adversa e
opressiva dos seus direitos mais sagrados.

A nova lei é contrário à constituição hierárquica da Igreja

22. As disposições da nova lei são, com efeito, contrárias à constituição


segundo a qual a Igreja foi fundada por Jesus Cristo. A Escritura nos
ensina, e a tradição dos Padres no-lo confirma, que a Igreja é o corpo
místico de Cristo, corpo regido por Pastores eDoutores (Ef 4, 11ss) -
sociedade de homens portanto, no seio da qual se acham chefes que têm
plenos e perfeitos poderes para governar, para ensinar e para julgar (Mt
28, 18-20; 16, 18-19; 18, 17; Tito 2, 15; 2 Cor 10, 6; 13, 19). Daí resulta que
essa Igreja é por essência uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade
que abrange duas categorias de pessoas, os Pastores e o rebanho, os que
ocupam uma posição nos diferentes graus da hierarquia, e a multidão dos
fiéis. E essas categorias são tão distintas entre si, que só no corpo pastoral
residem o direito e autoridade necessária para promover e dirigir todos os
membros ao fim da sociedade; quanto à multidão, essa não tem outro
dever senão o de se deixar conduzir e, rebanho dócil, seguir os seus
Pastores.

23. S. Cipriano, mártir, exprime esta verdade de maneira admirável


quando escreve: "Nosso Senhor, cujos preceitos reguladores da dignidade
episcopal e do modo de ser da sua Igreja devemos venerar e observar, diz
no Evangelho, dirigindo-se a Pedro: Ego dico tibi quia tu es Petrus, etc. Por
isto, através das vicissitudes das idades e dos acontecimentos, a economia
do Episcopado e a Constituição da Igreja desenrolam-se de tal sorte, que a
Igreja repousa sobre os Bispos e toda a sua vida ativa é governada por
eles: Dominus noster, cujus praecepta metuere et servare debemus,
Episcopi honorem et Ecclesiae suae retionem disponens, in Evangelio
loquitur et dicit Petro: Ego dico tibi quia tu es Petrus, etc. Inde per
temporum et successionum vices Episcoporum ordinatio et Ecclesiae ratio
decurrit, ut Ecclesia super Episcopos constituatur et omnis actus Ecclesiae
per eosdem praepositos gubernetur" (Epístola 27, ad lapsos). S. Cipriano
afirma que tudo isso é fundado numa lei divina, divina lege fundatum.
Contrariamente a estes princípios, a lei de separação atribui a
administração e a tutela do culto público, não ao corpo hierárquico
divinamente instituído pelo Salvador, mas a uma associação de pessoas
leigas. A essa associação impõe ela uma forma, uma personalidade
jurídica, e, para tudo o que tange ao culto religioso, ela considera-a como
tendo só direitos civil e responsabilidades a seus olhos. Por isto, a essa
associação é que caberá o uso dos templos e dos edifícios sagrados, ela é
que possuirá todos os bens eclesiásticos móveis e imóveis; ela é que
disporá, embora apenas de maneira temporária, dos bispados, dos
presbíteros e dos Seminários; ela, enfim, é que administrará os bens,
regulará as coletas e receberá as esmolas e os legados destinados ao culto
religioso. Quanto ao corpo hierárquico dos pastores, faz-se sobre ele
silêncio absoluto. E, se a lei prescreve que as associações culturais devem
ser constituídas conformemente às regras de organização geral do culto
cujo exercício elas se propõem assegurar, por outra parte bem cuidado se
tem de declarar que, em todos os dissídios que possam nascer
relativamente aos bens delas, só o Conselho de Estado será competente.
Essas próprias associações culturais estarão, pois, em face da autoridade
eclesiástica, e isto é manifesto, não mais terá sobre elas poder algum. O
quanto todas essas disposições serão humilhantes para a Igreja e
contrárias aos seus direitos e à sua constituição divina, não há ninguém
que não o perceba ao primeiro lance de olhos. Sem contar que a lei, neste
ponto, não é concebida em termos claros e precisos, e se exprime de
maneira muito vaga e que se presta largamente ao arbítrio, de modo que,
dessarte, recear-se pode ver surgir, da sua própria interpretação, maiores
males.

É contrária à liberdade da Igreja

24. Além disso, nada é mais contrário à liberdade da Igreja do que essa lei.
Com efeito, quando, em conseqüência da existência das associações
culturais, a lei de separação impede os pastores de exercerem a plenitude
da sua autoridade e do seu cargo sobre o povo dos fiéis; quando atribui ao
Conselho de Estado a jurisdição suprema sobre essas associações, e as
submete toda uma série de prescrições fora do direito comum, as quais
dificultam a formação delas, e ainda mais a sua manutenção; quando,
depois de proclamar a liberdade de culto, restringe-lhe o exercício por
múltiplas exceções; quando despoja a Igreja da polícia interior dos
templos para investir dela o Estado; quando entrava a pregação da fé e da
moral católicas, em que o arbítrio pode facilmente exercer-se, que faz ela
então senão colocar a Igreja numa sujeição humilhante, e, a pretexto de
proteger a ordem pública, roubar a cidadãos pacíficos, que formam ainda
a imensa maioria na França, roubar-lhes o direito sagrado de ali
praticarem a sua própria religião? Por isto, não é somente restringindo o
exercício do seu culto, ao qual a lei de separação reduz falsamente toda a
essência da religião, não é só assim que o Estado fere a Igreja; é, ainda,
criando obstáculos à sua influência, sempre tão benéfica, sobre o povo, e
de mil maneiras diferentes paralisando-lhe a ação. Foi assim que, entre
outras coisas, não lhe bastou arrancar a essa Igreja as Ordens religiosas,
suas preciosas auxiliares no sagrado ministério, no ensino, na educação,
nas obras de caridade cristã, senão que a priva ainda dos recursos que
constituem os meios humanos necessários à sua existência e ao
cumprimento da sua missão.

É contrária ao direito de propriedade da Igreja


25. Além dos prejuízos e das injúrias que até aqui salientamos, a lei de
separação viola ainda o direito de propriedade da Igreja e calca-a aos pés.
Contrariamente a toda justiça, ela esbulha essa Igreja de grande parte de
um patrimônio que, todavia, lhe pertence a títulos tão múltiplos quanto
sagrados; suprime e anula todas as fundações pias legalmente
consagradas ao culto divino ou à oração pelos falecidos. Quanto aos
recursos que a liberalidade católica constituíra para a manutenção das
escolas cristãs ou para o funcionamento de diferentes obras de
beneficência culturais, ela transfere-as para estabelecimentos leigos onde,
ordinariamente, debalde se procuraria o menos vestígio de religião. Coisa
em que ela não viola somente os direitos da Igreja, mas ainda a vontade
formal e explícita dos doadores e dos testadores.

26. Extremamente doloroso é-Nos também que, com desprezo de todos


os direitos, a lei declare propriedade do Estado, dos departamentos ou
das comunas todos os edifícios eclesiásticos anteriores à Concordata. E, se
a lei concede às Associações culturais o uso indefinido e gratuito deles,
cerca esta concessão de tantas e tais reservas, que na realidade deixa aos
poderes públicos a liberdade de dispor deles.

27. Temos, ademais, os receios mais veementes no que concerne à


santidade desses templos, asilos augustos da majestade divina e lugares
mil vezes caros, por causa das suas recordações, à piedade do povo
francês. Porque, se eles caírem em mãos leigas, estão certamente em
perigo de ser profanados.

28. Quando, suprimindo o orçamento dos cultos, a lei exonera em seguida


o Estado da obrigação de prover às despesas cultuais, ao mesmo tempo
viola um compromisso contraído numa convenção diplomática e fere
muito gravemente a justiça. Sobre este ponto, com efeito, nenhuma
dúvida é possível, e os próprios documentos históricos dão testemunho
disso de maneira a mais clara: se o Governo francês assumiu na
Concordata o encargo de assegurar aos membros do clero um tratamento
que lhes permitisse prover, de maneira conveniente, à sua manutenção e
à do culto religioso, não o fez a título de concessão gratuita: obrigou-se a
isso a título de indenização, parcial ao menos, para com a Igreja, de cujos
bens o Estado se apropriara durante a primeira Revolução. Por outra parte
também, quando, nessa mesma Concordata e por amor da paz, o Pontífice
romano se comprometeu, em seu nome e no dos seus sucessores, a não
incomodar os detentores dos bens que assim haviam sido roubados à
Igreja, é certo que só fez essa promessa com uma condição: a de que o
Governo francês se comprometesse, perpetuamente, a dotar o clero de
maneira conveniente, e a prover ao custeio do culto divino.

É contrária aos próprios interesses da França

29. Enfim - e como poderíamos Nós calar-nos sobre este ponto? - afora os
interesses da Igreja que ela fere, a nova lei será também das mais funestas
para o vosso país. Efetivamente, não há nenhuma dúvida de que ela
arruíne lamentavelmente a união e a concórdia das almas. E, no entanto,
sem essa união e sem essa concórdia nenhuma nação pode viver ou
prosperar. Eis aí por que, sobretudo na presente situação da Europa, essa
harmonia perfeita forma o voto mais ardente de todos aqueles que, na
França, amando verdadeiramente o seu país, ainda têm a peito a salvação
da sua pátria. Quanto a Nós, a exemplo do Nosso Predecessor, e herdeiro
da sua predileção toda particular pela vossa nação, sem dúvida nos
havemos esforçado por manter a religião de vossos avós na posse integral
de todos os seus direitos entre vós; porém, ao mesmo tempo e sempre
tendo diante dos olhos essa paz fraternal cujo vínculo mais estreito dos
olhos essa paz fraternal cujo vínculo mais estreito é certamente a religião,
temos trabalhado para vos consolidar a todos na união. Por isto, não
podemos, sem a mais viva angústia, ver que o Governo francês acaba de
praticar um ato que, atiçando no terreno religioso paixões já excitadas de
maneira sobejamente funesta, parece de molde a transtornar
completamente funesta, parece de molde a transtornar completamente o
vosso país. É por isto que, lembrando-nos do Nosso múnus apostólico, e
cônscio do imperioso dever que Nos incumbe de defender contra todo
ataque e de manter na sua integridade, absoluta os direitos invioláveis e
sagrados da Igreja, em virtude da autoridade suprema que Deus Nos
conferiu, pelos motivos acima expostos Nós reprovamos e condenamos a
lei votada na França sobre a separação entre a Igreja e o Estado, como
uma lei profundamente injuriosa para com Deus, a quem renega
oficialmente, erigindo em princípio não reconhecer a República nenhum
culto. Reprovamo-la e condenamo-la como violando o direito natural, o
direito das gentes e a fidelidade pública devida aos tratados; como
contrária à constituição divina da Igreja, aos seus direitos essenciais e à
sua liberdade; como postergando a justiça e calcando aos pés os direitos
de propriedade que a Igreja adquiriu a títulos múltiplos e, ademais, em
virtude da Concordata. Reprovamo-la e condenamo-la como gravemente
ofensiva para a dignidade desta Sé Apostólica, para a Nossa Pessoa, para o
Episcopado, para o clero e para todos os católicos franceses.

Protesto solene contra a lei de separação

30. Em conseqüência, solenemente e com todas as Nossas forças


protestamos contra a proposição, contra o voto e contra a promulgação
dessa lei, declarando jamais poder ser ela alegada contra os direitos
imprescritíveis e imutáveis da Igreja, para infirmá-los.

31. Devíamos fazer ouvir estas graves palavras e dirigi-las a vós,


Veneráveis Irmãos, ao povo da França e ao mundo cristão inteiro, para
denunciar o fato que acaba de produzir-se. Certamente, como já
dissemos, profunda é a Nossa tristeza quando de antemão medimos com
o olhar os males que essa lei vai desencadear sobre um povo por Nós
ternamente amado. E ainda mais profundamente Nos comove o
pensamento das penas, dos sofrimentos, das tribulações de todo gênero
que vão incumbir-vos a vós também, Veneráveis Irmãos, e ao vosso clero
todo. Mas, para, no meio de solicitudes tão esmagadoras, Nos
resguardarmos contra toda aflição excessiva e contra todos os desalentos,
Nós temos a lembrança da Providência Divina, sempre tão misericordiosa,
e a esperança, mil vezes confirmada, de que Jesus Cristo não abandonará
a sua Igreja, de que jamais a privará do seu indefectível apoio. Por isto,
bem longe estamos de experimentar o menos receio por essa Igreja. A sua
força é divina como sua imutável estabilidade: a experiência dos séculos
vitoriosamente o demonstra. De feito, ninguém ignora as calamidades
inúmeras, e mais terríveis umas que outras, que sobre ela hão desabado
durante essa longa duração; e, lá onde toda instituição puramente
humana necessariamente teria tudo de ruir, a igreja sempre hauriu nas
suas provações uma força mais vigorosa e uma mais opulenta
fecundidade.

Esperança no futuro

32. Quanto às leis de perseguição dirigidas contra ela, leis forjadas pelo
ódio, ensina-nos a história e, em tempos mais próximos, nos prova a
própria França que elas acabam sempre por ser ab-rogadas com
sabedoria, quando manifesto se torna o prejuízo que delas decorre para
os Estados. Deus queira que aqueles que, neste momento, estão no poder
na França sigam em breve, sobre este ponto, o exemplo dos que ali os
precederam! Queira Deus que, com os aplausos de todas as pessoas de
bem, não tardem eles a restituir à religião, fonte de civilização e de
prosperidade para os povos, restituir-lhe, com a honra que lhe é devida,
também a liberdade.

33. Até lá, e por tanto tempo quanto durar uma perseguição opressiva,
"revestidos das armas de luz" (Rom 13, 12), devem os filhos da Igreja agir
com todas as suas forças em pró da verdade e em pró da justiça; é esse o
seu dever sempre, é esse o seu dever hoje mais do que nunca.

Apelo

a) aos Bispos

34. Nessas santas lutas, Veneráveis Irmãos, vós, que deveis ser os mestres
e os guias de todos os outros, haveis de por todo o ardor desse zelo
vigilante e infatigável de que, para seu louvor, o episcopado francês tem
fornecido, em todos os tempos, provas tão conhecidas de todos. Mas,
acima de tudo - pois é coisa de importância extrema, - Nós queremos que
em todos os projetos que empreenderdes par a defesa da Igreja vos
esforceis para realizar a mais perfeita união de coração e de vontade.
Estamos firmemente resolvidos a dirigir-vos, em tempo oportuno,
instruções práticas, para que vos sejam uma regra de conduta segura no
meio das grandes dificuldades da hora presente. E de antemão estamos
certo de que a elas vos conformareis muito fielmente. Prossegui,
entrementes, a obra salutar que fazeis; reavivai o mais possível a piedade
entre os fiéis; promovei e vulgarizai cada vez mais o ensino da doutrina
cristã; preservai todas as almas que vos são confiadas dos erros e das
seduções que hoje em dia elas encontram de tantos lados; instrui,
preveni, animais, consolai o vosso rebanho; desobrigai-vos, enfim, para
com ele, de todos os deveres que vos impõe o vosso múnus pastoral.
Nesta obra, sem dúvida alguma, tereis como colaborador infatigável o
vosso clero. Ele é rico em homens notáveis pela piedade, pela ciência, pelo
apego à Sé Apostólica, e Nós sabemos que ele está sempre pronto a, sob a
vossa direção, dedicar-se sem limite em pró do triunfo da Igreja e em pró
da salvação eterna do próximo.

b) ao Clero
35. Muito certamente também, os membros desse clero compreenderão
que, nesta tormenta, devem ter no coração os sentimentos que foram
outrora os dos apóstolos; rejubilar-se-ão de terem sido julgados dignos de
sofrer opróbrios pelo nome de Jesus: Gaudentes... quoniam digni habiti
sunt pro nomine Jesu contumeliam pati (At 5, 41). Reivindicarão, pois,
valentemente os direitos e a liberdade da Igreja, mas sem ofender
ninguém. Muito mais: cuidadosos de guardar a caridade, como o devem
sobretudo ministros de Jesus Cristo, responderão à iniqüidade pela justiça,
aos ultrajes pela doçura, e aos maus tratos por benefícios.

c) aos fiéis

36. E agora é a vós que Nos dirigimos, católicos da França; chegue-vos a


todos a Nossa palavra como testemunho da terníssima benevolência com
que não cessamos de amar o vosso país, e como um conforto no meio das
calamidades terríveis que ides ter de atravessar. Sabeis o fim que se
propuseram as seitas ímpias que curvam as vossas cabeças sob o seu jugo,
pois elas mesmas o proclamaram com cínica audácia: "descatolicizar" a
França. Elas querem arrancar dos vossos corações, até à última raiz, a fé
que cumulou de glória vossos pais, a fé que tornou vossa pátria próspera e
grande entre as nações, a fé que vos sustenta na provação, que mantém a
tranqüilidade e a paz no vosso lar, e que vos abre o caminho para a eterna
felicidade. É de toda vossa alma, bem o sentis, que vos cumpre defender
essa fé. Mas não vos equivoqueis: trabalho e esforços seriam inúteis se
tentásseis repelir os assaltos que vos serão desferidos, sem estardes
fortemente unidos. Abdicai, pois, todos os germes de desunião, se acaso
eles existissem entre vós. E fazei o necessário para que, no pensamento
como na ação, a vossa união seja tão firme como deva sê-lo entre homens
que pugnam pela mesma causa, mormente quando essa causa é daquelas
para cujo triunfo deve cada um, de bom grado, sacrificar algo das suas
próprias opiniões. Se, no limite das vossas forças e como é de vosso dever
imperioso, quiserdes salvar dos perigos que ela corre a religião dos vossos
antepassados, de toda necessidade é que em larga medida ostenteis
valentia e generosidade. Essa generosidade, tê-la-eis, estamos certo; e,
mostrando-vos, assim, caridosos para com os seus ministros, haveis de
inclinar Deus a mostrar-se cada vez mais caridoso para cada um de vós.

37. Quanto à defesa da religião, se quiserdes empreendê-la de maneira


digna dela, e prossegui-la sem desvios e com eficácia, duas coisas
importam antes de tudo: primeiramente, deveis moldar-vos tão fielmente
pelos preceitos da lei cristã, que os vossos atos e a vossa vida toda
honrem a fé de que fazeis profissão; depois, deveis ficar
estreitissimamente unidos com aqueles a quem pertence como coisa
própria o velar neste mundo pela religião: com os vossos sacerdotes, com
os vossos Bispos, e sobretudo com esta Sé Apostólica, que é o centro da fé
católica e de tudo o que se pode fazer em nome dela. Assim armados para
a luta, marchai sem temos em defesa da Igreja; mas tende bem cuidado
de que a vossa confiança se funde toda no Deus cuja causa sustentais, e,
para que Ele vos socorra, implorai-o sem vos cansardes.

38. Quanto a Nós, por tanto tempo quanto tiverdes de lutar contra o
perigo, estaremos de corpo e de alma no meio de vós; e, dirigindo ao
mesmo tempo ao Deus que fundou a Igreja e que a conserva as nossas
preces mais humildes e mais instantes, suplicá-lo-emos a baixar sobre a
França um olhar de misericórdia, a arrancá-la às ondas desencadeadas em
torno dela, e a restituir-lhe em breve, pela intercessão de Maria
Imaculada, a calma e a paz.

39. Como presságio desses benefícios celestes, e para vos testemunhar a


Nossa predileção toda particular, é de todo coração que vos damos a
Nossa bênção apostólica, a vós, Veneráveis Irmãos, ao vosso Clero e ao
Povo francês todo.

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 11 de fevereiro de 1906, terceiro do


Nosso Pontificado.

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