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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de educação
Sociologia da educação

Gabriel Felipe Gonçalves Só

A hipocrisia da inserção da Música Contemporânea na Academia enquanto se


exclui a música experimental orgânica e de origem negra e Popular

Belo Horizonte
2023
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Introdução:

Acatando a sugestão que foi dada nas instruções que regem a escrita desse trabalho eu
me propus a vivenciar uma experiência artística que não tenho costume de vivenciar. Dito
isso, para facilitar a minha escolha do ponto de vista de encontrar essas manifestações
que não tenho costume de vivenciar resolvi escolher algo que não gosto, afinal, se não
gosto de uma forma de expressão artística provavelmente não a consumo com frequência
Dito isso, resolvi me adentrar no campo da arte contemporânea e a princípio eu iria a uma
exposição de arte. Num dado momento me dei conta de que já estava compulsoriamente
exposto a arte contemporânea, mais especificamente a música contemporânea e que isso
seria mais adequado ainda visto que curso licenciatura em música. Quando digo que
estou inserido nesse contexto de forma compulsória é porque no terceiro período temos
uma matéria cujo título é “Educação musical e contemporaneidade” que, de acordo com a
ementa fornecida pelo colegiado, deveria versar sobre os desafios educacionais
contemporâneos porém, a professora que lecionava essa matéria aposentou e ela foi
realocada a dois outros professores que deram aula em conjunto. Por conveniência os
dois resolveram isolar a palavra contemporaneidade e dar aula sobre música
contemporânea já que gostam e é objeto de estudo de um deles cujas aulas foram
verdadeiros monólogos.

"A música contemporânea refere-se à música composta no século XX e início do século


XXI, frequentemente caracterizada por uma preocupação com a experimentação,
inovação e a rejeição de convenções estabelecidas. O termo é usado para descrever uma
ampla gama de estilos e práticas musicais, incluindo música erudita, música experimental,
música eletroacústica, música minimalista, música serial, entre outros." (Fonte: Oxford
Reference)
Me propus a realmente ouvir e tentar apreciar, inclusive um CD de música improvisada
que foi oferecido numa aula de um convidado que eles trouxeram e que foi feito com
verba pública. Ter essa disciplina me trouxe revolta não somente pelo desrespeito à nossa
ementa e por ter sido ministrada com desleixo mas porque me trouxe diversas indagações
sobre o motivo de uma arte dita experimental e improvisada ganhar tanto enfoque na
academia enquanto as camadas mais populares sempre tiveram que experimentar para
criar sua arte, não por diversão mas por necessidade já que via de regra não têm
orçamento para investir em infra estrutura. Enquanto surgiam tantas perguntas me dei
conta que essa situação pode ser analisada à luz das ideias de Pierre Bourdieu e Hannah
Arendt.

Bourdieu argumentou que o campo artístico é um espaço de disputa pelo capital cultural,
onde certas formas de arte são valorizadas e reconhecidas como legítimas, enquanto
outras são marginalizadas. A arte popular, muitas vezes associada a comunidades
marginalizadas, é desvalorizada e não encontra espaço na academia devido à falta de
capital cultural e à ausência de reconhecimento por parte das instituições dominantes
(Bourdieu, 1984).

Já Hannah Arendt, por sua vez, destacou a importância da esfera pública como um
espaço de participação política e compartilhamento de ideias. A exclusão da arte popular
da academia é uma negação da participação dessas comunidades no discurso público,
impedindo a valorização de suas contribuições culturais o que gera um loop. Ao
marginalizar a arte popular, priva-se os artistas e suas comunidades da oportunidade de
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influenciar o discurso cultural e participar ativamente da construção da identidade coletiva


(Arendt, 1958).

Essas perspectivas teóricas nos ajudam a compreender que a exclusão da arte popular
na academia está enraizada em desigualdades estruturais e na falta de
representatividade. É necessário questionar e transformar as normas estabelecidas,
buscando uma maior inclusão e valorização das expressões artísticas populares.
Somente assim poderemos superar a exclusão e promover uma visão mais ampla e
diversificada da arte, reconhecendo as ricas contribuições da cultura popular para o
cenário artístico contemporâneo.

O Contexto da Música Experimental e sua Origem:


A música experimental é um campo que permite a exploração de novas ideias, técnicas e
sons. Historicamente, artistas marginalizados, como negros e pessoas de origens
populares, encontraram na música experimental uma forma de expressão artística que
possibilitava a criação de novas sonoridades, devido à falta de acesso a recursos
financeiros e instrumentos sofisticados. Essa criatividade nasceu da necessidade de
superar limitações e construir uma identidade sonora única (Théberge, 2004).

Aproveito para falar brevemente sobre o samba que surge no início do século XX assim
como a música (dita) contemporânea que nasce por volta de 1910 com um movimento
chamado impressionismo, dominado por músicos franceses.

O samba teve seu início nas comunidades afrodescendentes do Rio de Janeiro,


especialmente nas áreas urbanas conhecidas como "morros" e nas regiões portuárias.
Esses espaços foram importantes locais de encontro e interação entre pessoas de
diferentes origens étnicas, e foi nesse contexto que o samba começou a se desenvolver
como uma forma musical distinta (Vianna, H).

O samba, como forma musical, surgiu nas primeiras décadas do século XX,
especialmente nas áreas urbanas do Rio de Janeiro, como os morros e as regiões
portuárias. Ele se desenvolveu como uma expressão cultural que unia elementos
musicais africanos, indígenas e europeus, refletindo a diversidade étnica e cultural do
Brasil. Conforme Vianna (1995) afirma, "o samba é um fenômeno cultural que emergiu
nas camadas populares cariocas, marcado por sua originalidade e potencial de expressão
artística".

No início do samba, os instrumentos musicais eram frequentemente improvisados devido


à falta de recursos financeiros e ao acesso limitado a instrumentos convencionais. Os
músicos utilizavam objetos do cotidiano e materiais disponíveis em suas comunidades
para criar sons e ritmos. Sandroni (2001) destaca que "os instrumentos do samba eram
frequentemente improvisados a partir de objetos simples, como latas de metal, varas de
madeira e pedaços de metal, sendo adaptados e transformados em tambores, reco-recos,
chocalhos".

O contexto socioeconômico do início do samba, principalmente nas comunidades


carentes do Rio de Janeiro, influenciou o uso de instrumentos improvisados. A falta de
recursos financeiros e a dificuldade de acesso a instrumentos musicais formais levaram
os músicos a encontrar soluções criativas para a prática musical. Além disso, as
influências culturais africanas também desempenharam um papel fundamental no uso de
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objetos do cotidiano como instrumentos musicais, uma vez que essa prática era comum
nas tradições musicais africanas. McCann (2004) afirma que "a tradição africana de
improvisação e adaptação de instrumentos musicais influenciou fortemente o
desenvolvimento do samba, levando ao uso de objetos simples e disponíveis para criar
sons e ritmos característicos".

Limitarei a exemplificar apenas com o samba dada a natureza sucinta desde artigo.
Considerada a definição de música contemporânea dada anteriormente o samba se
enquadraria perfeitamente como um tipo de música contemporânea, por isso faço o
seguinte questionamento: Por que não tem espaço na academia e sequer é referenciado
nessa seara? Por que a arte negra e periférica não encontra espaço na academia
enquanto que uma arte que se diz transgressora das regras e padrões europeus pré
estipulados ganha todo o crédito por esse papel de revolução?

"A cultura erudita e a alta cultura se beneficiam [...] do poder que lhes confere o
monopólio do ensino e das instituições culturais, e impõem suas próprias definições de
cultura legítima" (Bourdieu, 1984, p. 86)

A Hipocrisia na Academia:
Apesar das características experimentais presentes na música produzida por artistas
negros e de origens populares, essas formas de expressão frequentemente foram
marginalizadas e excluídas do contexto acadêmico. A academia muitas vezes adota uma
visão estreita e elitista da música, baseada em critérios eurocêntricos e padrões estéticos
predefinidos, deixando de reconhecer as contribuições valiosas e inovadoras desses
artistas e até mesmo quando se propõe a quebra desses padrões ela se dá através de
uma manipulação feita pelos próprios que estipularam os padrões (a academia) e
embasada também por eles. Essa exclusão está enraizada em desigualdades de capital
cultural, onde as formas de expressão cultural que não se enquadram nos padrões
dominantes são subvalorizadas e consideradas inferiores (Bourdieu, 1984).

Essa hipocrisia está relacionada à falta de representatividade e diversidade no sistema


acadêmico, que tende a reforçar o status quo e perpetuar a exclusão de vozes
marginalizadas. O sistema privilegia certas formas de música que estão alinhadas com as
tradições estabelecidas e consideradas culturalmente legítimas, enquanto ignora as
experiências e perspectivas das comunidades negras e populares, que têm contribuído
para uma rica tradição de música experimental no Brasil. Isso reflete a distribuição
desigual de capital cultural e a tendência de valorizar e legitimar apenas certas formas de
expressão artística (Bourdieu, 1986).

As ideias de Hannah Arendt, filósofa política, podem nos ajudar a compreender a


exclusão da música experimental de origem negra e popular na academia. Arendt
destacou a importância do espaço público e da participação política como condições para
a plena realização humana. Ela argumentou que a exclusão de determinados grupos da
esfera pública leva à desvalorização de suas contribuições culturais e sociais.

Nesse contexto, podemos interpretar que a falta de representatividade desses artistas no


espaço público acadêmico é uma forma de privação do acesso ao discurso e à influência
cultural. Ao negar-lhes a oportunidade de compartilhar suas experiências e perspectivas
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únicas, perpetua-se a marginalização e a desvalorização de suas contribuições (Arendt,


1958).

Consequências da Exclusão:
A exclusão da origem negra e popular da academia tem implicações profundas. Em
primeiro lugar, nega-se o reconhecimento e a valorização dessas formas de expressão
artística (dentro da academia, porque os populares já se valorizam e por vezes isso basta.
Perdemos nós que fazemos parte da academia), perpetuando uma hierarquia de
conhecimento que marginaliza vozes importantes. Isso resulta na perda de perspectivas
enriquecedoras e na falta de representatividade no ambiente acadêmico. A exclusão
também limita o acesso desses artistas a recursos, oportunidades e redes de apoio que
são facilitadores para o desenvolvimento (Radano, 2003).

Além disso, afeta a forma como a cultura musical é estudada, compreendida e


transmitida. A academia deve estar aberta a uma variedade de abordagens musicais,
reconhecendo e valorizando as contribuições históricas e contemporâneas de artistas
negros e de origens populares, em vez de perpetuar uma visão restritiva e elitista da arte
(Ferreira, 2019).

Conclusão:
A hipocrisia da arte contemporânea na academia, ao dar espaço para a música
experimental, mas excluir a música de origem negra e popular que sempre apresentou
características experimentais devido ao baixo orçamento, reflete desigualdades
estruturais e a falta de representatividade no sistema educacional. É crucial promover a
diversidade, a inclusão e a valorização das vozes marginalizadas na academia,
reconhecendo e oferecendo espaço para a música experimental e inovadora produzida
por artistas negros e de origens populares no Brasil.

É necessário um esforço coletivo para questionar e transformar as normas estabelecidas,


a fim de criar um ambiente acadêmico mais inclusivo e representativo, que valorize a
riqueza e a diversidade das expressões musicais. Somente assim poderemos alcançar
uma verdadeira equidade e reconhecimento para todos os artistas e suas contribuições
valiosas para a música contemporânea.

Referências:
• Arendt, H. (1958). The Human Condition. University of Chicago Press.
• Bourdieu, P. (1984). Distinction: A Social Critique of the Judgment of Taste.
Routledge
• Bourdieu, P. (1986). The Forms of Capital. In J. G. Richardson (Ed.), Handbook of
Theory and Research for the Sociology of Education (pp. 241-258). Greenwood
Press.
• Ferreira, I. (2019). Experimentando em música, experimentando a vida: A música
popular e a reinvenção da tradição. In A. Gasparini, R. Versuti, & T. M. R. Siqueira
(Eds.), Cenas da Música Popular Brasileira (pp. 163-185). Alameda.
• Radano, R. (2003). The Sound of the City: The Rise
• OXFORD REFERENCE. Música contemporânea. In: Dicionário de Música. Oxford
University Press
• Vianna, H. (1995). O Mistério do Samba. Jorge Zahar Editor
• Sandroni, C. (2001). Feitiço Decente: Transformações do Samba no Rio de Janeiro
(1917-1933). Jorge Zahar Editor.
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• McCann, B. (2004). Hello, Hello Brazil: Popular Music in the Making of Modern
Brazil. Duke University Press.

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