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A face territorial do desenvolvimento

El faz territorial del desarrollo


The territorial face of the development
José Eli da Veiga
Universidade de São Paulo
Contato: veiga@msh-paris.fr

Resumo: Observa-se, de maneira geral, o emprego cada vez mais freqüente da expressão “desenvolvimento territorial”
ou, por vezes, “desenvolvimento espacial”. Tal tendência pode indicar uma revalorização da dimensão espacial da
economia, mas pode, igualmente, refletir o hábito corrente de se acrescentar adjetivos ao substantivo
“desenvolvimento”. A investigação aqui exposta permite avançar proposições que decorrem dos debates sobre as
tendências da diferenciação espacial cidade/campo, sobre a heterogeneidade espacial do dinamismo econômico e
sobre as iniciativas locais que podem ser cruciais para o desenvolvimento. Procura-se, dessa forma, estabelecer as
principais relações desses debates com a evolução do “planejamento regional”.
Palavras-chave: Planejamento regional; Meio inovador; Desenvolvimento territorial.
Abstract: It is observed, in general, the frequent use of the expression “territorial development” or, some times,
“spacial development”. Such trend can indicate a revalorization of the space dimension of the economy, but it can,
equally, reflect the current habit of if adding adjectives to the substantive “development”. The here displayed research
allows to advance proposals that elapse of the debates on the trends of the space unbundling cidade/campo, on the
space heterogeneidade of the economic dynamism and on the local initiatives that can be crucial for the development.
It is looked, of this form, to establish the main relations of these debates with the evolution of the “regional planning”.
Key words: Regional planning; Innovative medium; Territorial development.
Resumen: Se observa, en general, el uso frecuente de la expresión “desarrollo territorial” o, algunas veces, “desarrollo
spacial”. Tal tendencia puede indicar un revaloriza1ción de la dimensión del espacio de la economía, pero puede
reflejar, igualmente, el hábito actual de agregarse adjetivos al substantivo “desarrollo”. La investigación aquí expuesta
permite avanzar proposiciones decorrientes de las discusiones sobre las tendencias de la diferenciación espacial
cidade/campo, sobre el heterogeneidade espacila del dinamismo económico y sobre las iniciativas locales que pueden
ser cruciales para el desarrollo. Buscase, de esta forma, establecer las relaciones principales de estas discusiones con
la evolución de la “planificación regional”.
Palabras claves: Planificación regional; Medio innovador; Desarrollo territorial.

Introdução campo, mais concentrado entre pesquisa-


dores de temas rurais. Trata-se essencialmen-
Este texto investiga as motivações do te de uma crítica à tendência relativamente
emprego cada vez mais freqüente da expres- comum de se amalgamar desenvolvimento
são “desenvolvimento territorial” (por vezes e urbanização, como fazem os que afirmam
“desenvolvimento espacial”). Seu principal ser impossível que uma área rural se desen-
objetivo é saber se tal tendência indica uma volva sem que se torne automaticamente
revalorização da dimensão espacial da econo- não-rural. A segunda aborda a heteroge-
mia, ou se, ao contrário, não passa de mais neidade espacial do dinamismo econômico,
um prolongamento da infindável mania de mais concentrado entre estudiosos da “eco-
se acrescentar adjetivos ao substantivo ‘de- nomia industrial”. Ela examina a tortuosa
senvolvimento’. A resposta também acabou evolução do debate internacional desenca-
sendo de natureza geográfica: “nem tanto ao deado pelos estudos sobre os distritos indus-
céu, nem tanto à terra”. Ou seja, parece estar triais marshallianos, que acabou dando res-
havendo, de fato, uma revalorização da paldo científico à idéia do ‘desenvolvimento
dimensão espacial da economia; mas tudo local’, isto é, de que as iniciativas locais
indica que tal evolução está longe de permitir podem ser cruciais para o desenvolvimento,
que se considere a expressão “desenvol- pois se tornam importante fator de competi-
vimento territorial” como um conceito tividade ao fazerem dos territórios ambientes
propriamente dito, além de ser muito cedo inovadores. E a terceira procura estabelecer
para conhecer seus efeitos práticos. Mesmo as principais relações desses dois debates
não podendo dar uma resposta mais original com a evolução do “planejamento regional”.
à referida pergunta, a investigação aqui
exposta foi tão frutífera que permite avançar, 1. Da “dicotomia” ao “continuum” rural-
a título de conclusões, dez proposições bem urbano
menos banais. Elas decorrem de uma expo-
sição que está organizada em três partes. Há quem acredite que o meio rural
A primeira aborda o debate sobre as esteja sujeito a um processo de urbanização
tendências da diferenciação espacial cidade/ tão poderoso que a histórica contradição

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Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 3, N. 5, p. 5-19, Set. 2002.
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entre cidade e campo estaria fadada a desa- Nada disso impede, entretanto, que
parecer. Contudo, o que se verifica é a exis- seja muito atraente a crença de que o destino
tência de três tipos de países desenvolvidos do espaço rural será seu desaparecimento
sob o prisma da diferenciação espacial entre por força de avassaladora urbanização. Para
áreas rurais e urbanas. Primeiro, um pequeno seus adeptos, a oposição cidade-campo já
grupo fortemente urbanizado, que reúne seria, inclusive, uma questão inteiramente
Holanda, Bélgica, Reino Unido e Alemanha, superada, uma vez que a ruralidade não
no qual as regiões essencialmente urbanas passaria de mero sucedâneo de uma forma-
ocupam mais de 30% do território e as ção social anterior, condenada pura e sim-
regiões essencialmente rurais menos de 20%, plesmente a sumir, a exemplo do que já teria
sendo que as intermediárias variam entre ocorrido na Holanda, essa vasta metrópole
30% e 50%1. No extremo oposto há um grupo urbana apenas recortada por corredores
maior, formado por quatro países do “Novo verdes onde se misturam espaços recreativos
Mundo” - Austrália, Canadá, Estados e terrenos de uso agrícola. A idéia chegou a
Unidos e Nova Zelândia - mas do qual tam- ser formulada nesses termos pelo secretário
bém fazem parte três nações muito antigas: geral do Observatório Internacional de
Irlanda, Suécia e Noruega. Nesse grupo as Prospectiva Regional, na abertura de um
regiões essencialmente rurais cobrem mais colóquio recentemente patrocinado pelo
de 70% do território e as relativamente rurais Senado francês.
têm porções inferiores a 20%. Finalmente, no Acontece, contudo, que essa visão de
caminho do meio, encontram-se França, convergência para um suposto padrão
Japão, Áustria e Suíça, países nos quais entre holandês, de grande metrópole esverdeada,
50% e 70% do território pertence a regiões não resiste a qualquer tentativa de se encon-
essencialmente rurais e cerca de 30% a trar homogeneidade espacial entre os países
regiões relativamente rurais. mais desenvolvidos, mesmo que se admita o
Qualquer esforço para interpretar os reducionismo de considerar apenas os
fundamentos desses três padrões de diferen- aspectos demográficos da questão. Um dos
ciação espacial do mundo desenvolvido será países desenvolvidos mais densamente po-
forçosamente levado a considerar fatores voados – a Suíça – tem 13% de sua população
naturais objetivos, como o relevo, clima e em regiões essencialmente rurais, 25% em
hidrologia. Rejeitar explicações baseadas no regiões relativamente rurais e 62% em
determinismo natural não significa que se regiões essencialmente urbanizadas. Esten-
possa admitir o puro e simples possibilismo, dendo-se por largas partes do Jura, da Plaine
isto é, a desconsideração de limites físicos e e dos Alpes, as zonas rurais contribuem de
biológicos à ação humana na formação dos maneira significativa à economia nacional,
espaços rurais e urbanos, eludindo, assim, para não falar da imagem do país no
toda a problemática do relacionamento entre exterior. E suas funções de residência, traba-
as sociedades humanas e os meios ditos lho e lazer são consideradas essenciais por
naturais2. Além disso, foi justamente o avan- suas elites.
ço das pesquisas científicas em urbanismo É verdade que só uma ínfima parte dos
que fez emergir o conceito de “ecossistema habitantes de meia dúzia de países do oeste
territorial”, entendido como o espaço sem o europeu reside em regiões essencialmente
qual um ecossistema urbano não pode rurais. Mas o peso das populações nas
exercer o conjunto de suas próprias funções regiões relativamente rurais dessa seleta meia
vitais. Se o ecossistema territorial é composto dúzia de países varia de 15% na Holanda a
tanto de elementos do ambiente físico- 44% na Itália. Nesta última, como no Japão,
biológico, quanto do ambiente construído e não chegam a 50% os habitantes de regiões
do ambiente antrópico, torna-se impossível, essencialmente urbanas, mesmo que 70%
então, recusar todo e qualquer tipo de deter- residam em localidades urbanas. Em países
minismo geográfico para explicar a locali- maiores, como a França e o Canadá, apenas
zação das atividades e das populações, como 29% e 44% dos habitantes estão em regiões
pretendiam os primeiros teóricos da econo- essencialmente urbanas, mesmo que 60%
mia espacial3. residam em localidades urbanas. De resto, a

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diferenciação rural/urbana pode ser muito terço dos condados rurais dos Estados
parecida em territórios tão diferentes quanto Unidos (795/2288), pelo menos 20% da
o da França e o dos Estados Unidos. população encontrava-se abaixo do nível de
São bem diversas as combinações entre pobreza em 1990; um problema de difícil
os vários tipos de atividade econômica que solução em 535 deles, quase todos concen-
permitem elevar os níveis de renda, educação trados no sudeste e no sudoeste, mas tam-
e saúde de muitas populações que conti- bém presentes nos Appalaches e em algumas
nuam rurais. As novas fontes de crescimento reservas indígenas do norte e do oeste. Toda-
das áreas rurais estão principalmente ligadas via, mais de 80% da população rural ameri-
a peculiaridades dos patrimônios natural e cana reside em condados que conseguiram
cultural, o que só reafirma o contraste entre desenvolver sistemas produtivos cada vez
os contextos ambientais do campo e da cida- mais baseados em vários tipos de combi-
de. Enfim, a visão de uma inelutável marcha nações de atividades terciárias com as duas
para a urbanização como única via de desen- outras categorias setoriais. Para o conjunto
volvimento do campo só pode ser considera- dos espaços rurais dos Estados Unidos, as
da plausível por quem desconhece a imensa novas fontes de crescimento e emprego estão
diversidade que caracteriza as relações entre nas atividades de serviços ligadas ao lazer,
espaços rurais e urbanos dos países que mais à aposentadoria e ao meio natural, mesmo
se desenvolveram. Não faz sentido, portan- que continuem muito importantes outros
to, amalgamar desenvolvimento e urbani- tipos de serviços, como os financeiros, de
zação, como propõem sem rodeios os que seguros, imobiliários, de comércio varejista,
dizem ser impossível que uma área rural se de restauração, de lavagem a seco, etc.
desenvolva sem que se torne automatica- Enfim, as áreas rurais dos países avan-
mente não-rural4. çados que permanecem subdesenvolvidas
Estão justamente entre as menos urba- são aquelas que não lograram explorar
nizadas as microrregiões rurais dos Estados qualquer vocação que as conecte às dinâ-
Unidos que hoje desfrutam das melhores micas econômicas de outros espaços – sejam
perspectivas de desenvolvimento. São prin- eles urbanos ou rurais – e não aquelas que
cipalmente as do sul e do oeste que dispõem teriam sido incapazes ou impossibilitadas de
de clima agradável, montanhas, lagos, praias, se urbanizar. E como as novas fontes de
podendo atrair muitos aposentados, turistas, crescimento econômico das áreas rurais estão
excursionistas, esportistas, etc. Além desses principalmente ligadas a peculiaridades do
condados já escolhidos por migrantes de alta patrimônios natural e cultural, intensifica-
renda, há muitos outros, principalmente no se o contraste entre campo e cidade
oeste, nos quais a forte incidência de terras Tudo isso quer dizer, então, que a desa-
federais faz com que seu futuro esteja estrei- creditada abordagem “dicotômica” deveria
tamente vinculado à evolução das políticas ser reabilitada? Estaria sendo contrariada a
governamentais relativas ao meio ambiente, abordagem inversa, de “continuum”? Depen-
ao turismo e outros ramos recreativos. De de muito, na verdade, do significado que se
resto, elevadas rendas per capita ocorrem nos atribua a esses vocábulos 6. De qualquer
condados rurais das Grandes Planícies, forma, o que não parece existir é qualquer
porque ali os serviços vinculados a atividades evidência de que esteja desaparecendo a
agroindustriais engendraram baixíssimos histórica contradição entre cidade e campo,
níveis de densidade demográfica. E há muita inclusive no caso holandês, onde os espaços
incerteza sobre as perspectivas socioeconô- rurais tendem a ser caracterizados como
micas de condados rurais da metade oriental meros corredores nos quais convivem ativi-
do país, principalmente no sudoeste, onde os dades agrícolas e recreativas. Em outras
serviços se combinaram a outros tipos de palavras, há uma falsa alternativa sendo
atividades industriais5. proposta nesse duelo entre dicotomia e
Na prática, as desigualdades internas “continuum”. Mas para disso se dar conta, é
às regiões rurais de um mesmo país podem absolutamente necessário sair do isolamento
ser muito mais significativas que as referentes demográfico (ou no máximo sociológico) em
ao contraste rural/urbano. Em mais de um que foi metido esse debate, como se seus

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fundamentos ecológicos e econômicos tives- lidades que desencadeou tantas discussões


sem menor importância. sobre as virtudes dos distritos industriais
O desafio é, portanto, entender as marshallianos para o desenvolvimento; um
várias dinâmicas socioeconômicas, das mais longo debate que acabou dando origem aos
efêmeras às mais duráveis, distinguindo bem amplos programas de pesquisa sobre relações
as reversíveis das irreversíveis, pois algumas das mais diversas entre mutações econômicas
podem ser duráveis sem que sejam necessa- e recomposições espaciais.
riamente irreversíveis. Ninguém ignora que Foi a identificação de “constelações eco-
a proporção das atividades primárias nas nômicas localizadas que venciam a recessão”
economias mais desenvolvidas caiu, neste sé- em áreas relativamente rurais como a Toscana
culo, de metade para um vigésimo. Enquanto e Emilia-Romagna (Itália), Baden-Württemberg
isso, as terciárias subiram de um quarto para (Alemanha), Cambridge (Inglaterra), Smäland,
mais de três quintos, e as secundárias desli- (Suécia), e até essencialmente rurais, como West-
zaram de pouco mais a pouco menos de um Jutdland (Dinamarca), que levou um grupo de
terço. Só que os resultados dessas grandes pesquisadores ligados à OIT a se perguntar, em
tendências foram bem heterogêneos. Entre meados dos anos 1980, se essa virtuosa
os países do primeiro mundo, a parte dos combinação entre eficiência e altos níveis de
serviços varia de 50% a 70%, a das industriais emprego poderia se tornar um modelo para
de 40% a 25%, e a das primárias de 10% a outras regiões.
3% dos ocupados. Idêntica interrogação estava no centro
Mais heterogêneas ainda foram as das preocupações que levaram à formação
repercussões espaciais dessa enorme mudan- simultânea do Grupo Europeu de Pesquisas
ça estrutural. O fato de atividades primárias sobre os Ambientes Inovadores (Gremi), que
estarem forçosamente muito mais presentes se propunha a entender os processos cole-
nas zonas rurais não significa que os outros tivos de aprendizagem. Os desdobramentos
dois tipos sejam necessariamente muito mais do amplo debate que se seguiu foram eviden-
recorrentes nas zonas urbanas. O emprego ciando os limites da noção de “distrito”,
industrial é mais significativo nas regiões fazendo com que paulatinamente fosse dada
relativamente rurais que nas essencialmente preferência à noção mais ampla de “sistemas
urbanas, chegando mesmo a ser muito mais produtivos locais (SPL)” (“Local Productive
rural que urbano em países nórdicos, como Systems”).
a Noruega e a Suécia. E os serviços têm quase
o mesmo peso em regiões essencialmente ur- 2. Do “distrito marshalliano” ao localismo
banas e relativamente rurais, sendo extraor-
dinariamente importantes nas regiões essen- Muitas controvérsias foram se mistu-
cialmente rurais da Bélgica. rando ao debate desencadeado pelos pio-
Não é portanto a composição setorial neiros estudos italianos7, como evidenciam
das economias desenvolvidas que pode expli- as revisões críticas publicadas em quatro es-
car o surgimento, no final do século XX, de pessas coletâneas sobre o assunto8. E os resul-
indícios opostos à chamada “desertificação tados dessa vasta produção científica ainda
rural” que estariam anunciando um certo não explicam satisfatoriamente as razões do
“renascimento rural”. Essa hipótese foi con- maior ou menor dinamismo econômico de
trariada pelos estudos da OCDE que com- cada território, dificultando muito qualquer
pararam as regiões rurais mais dinâmicas às tentativa de síntese. De qualquer forma,
mais letárgicas ou decadentes. Os resultados assim que algumas lições gerais sobre os
mostram que o melhor desenvolvimento de “distritos” começaram a ser tiradas, foram
determinadas zonas rurais tem causas ainda também surgindo muitas dúvidas sobre a
desconhecidas, mas que, com certeza, não possibilidade de que elas pudessem vir a ser
estariam relacionadas a diferenças em suas aproveitadas em contextos muito diferentes.
respectivas estruturas setoriais. No caso italiano, por exemplo, constatou-se
Ora, foi justamente a vontade de en- uma fortíssima correlação entre a distri-
tender quais seriam as fontes geradoras do buição espacial da economia “difusa”, que
maior dinamismo econômico de certas loca- caracterizava suas províncias mais dinâ-

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micas, e a intensidade das formas familiares lariam os graus relativos em que o fenômeno
de agricultura (e portanto de razoável distri- se manifesta. É sabido, entretanto, que ele
buição de renda). Além disso, a organização também nunca ocorre de forma homogênea
municipal específica do Centro-Norte da entre as regiões de uma mesma nação.
Itália, cuja origem remonta à Idade Média, Comparando-se extremos, percebe-se que em
mostrou que essas comunidades locais certas regiões da Alemanha surgem mais do
haviam estabelecido há muito tempo uma que o dobro de novas firmas do que em
boa divisão territorial do trabalho entre outras. A mesma relação se aproxima do
cidade e campo, uma organização muito triplo na Itália, na Suécia e no Reino Unido,
articulada da sociedade urbana, e uma rede chegando a girar em torno do quádruplo na
muito densa de comunicações. França e nos Estados Unidos10.
Em áreas como o Mezzogiorno, histori- Tudo indica que essas divergências espa-
camente fundadas em formas patronais de ciais da criatividade empreendedora corres-
agricultura, não existe a mobilidade e a pondem ao chamado fenômeno de “clustering”
articulação social que engendram a criação (formação de “feixes” ou “cachos”). Segundo
de um grande número de flexíveis PMEs. uma das definições mais aceitas, “cluster” é uma
Também não existe essa organização espa- concentração geograficamente delimitada de
cial que permite evitar uma fratura entre negócios independentes que se comunicam,
cidade e campo. Como enfatiza o economista dialogam e transacionam para partilhar cole-
industrial italiano Gioacchino Garofoli, não tivamente tanto oportunidades quanto amea-
se trata de um processo com vocação a ças, gerando novos conhecimentos, concor-
ocorrer em qualquer lugar, pois está ligado rência inovadora, chances de cooperação, ade-
a alguns pré-requisitos da própria formação quada infra-estrutura, além de freqüentemente
socioeconômica de cada território9. também atraírem os correspondentes serviços
Mas se as heranças institucionais de especializados e outros negócios correlacio-
uma economia baseada na agricultura nados. E os estudos sobre a relação existente
familiar são condições necessárias, elas estão entre a formação desses feixes e o “empreen-
muito longe de ser suficientes. Para que muitas dedorismo” acabam sempre por enfatizar os
empresas e muitos empregos possam ser fatores culturais que às vezes são compactados
criados em regiões não privilegiadas pela na sedutora noção de “capital social”: um
velha obsessão de “pólos” ou “eixos” urbano- complexo de instituições, costumes e relações
industriais, também é preciso que elas dispo- de confiança que geram a “atmosfera” neces-
nham de um mínimo de condições favoráveis sária a seu estímulo11.
em termos de comunicações e de serviços e, São muito ilustrativas as conclusões dos
sobretudo, de condições que estimulem o balanços feitos em paralelo pelo suíço Denis
“empreendedorismo”. Afinal, são os empre- Maillat e pelo italiano Giacomo Becattini, res-
endedores os principais agentes da mudança pectivamente fundador do Gremi e principal
econômica, pois são eles que geram, disse- expoente dos distritólogos12. As abrangentes
minam e aplicam as inovações. Ao procu- pesquisas empíricas do Gremi levaram Maillat
rarem identificar as potenciais oportunidades a concluir que os ambientes inovadores
de negócios e assumirem os riscos de suas (milieux innovateurs) se manifestam em
apostas, eles contribuem tanto para um maior condições territoriais e produtivas das mais
uso dos recursos disponíveis, quanto para a diversas: podem ser especializados ou mul-
expansão das fronteiras da atividade econô- tifuncionais, industriais e turísticos, urbanos
mica. Mesmo que muitos não tenham sucesso, e rurais, de alta tecnologia ou de tecnologia
é sua existência que faz com que uma socie- tradicional. Dá para afirmar quais são as
dade tenha constante geração de novos mudanças possíveis e identificar empiri-
produtos e serviços. camente as que já estão em curso. Mas não se
Infelizmente, não se sabe muito bem sabe o que realmente faz com que deter-
quais são os determinantes do “empreende- minado território seja capaz de gerar um
dorismo”, apesar de sua crucial influência novo modo de organização e de produção.
sobre o crescimento econômico. Sequer existe A principal conclusão de Becattini é
acordo sobre os indicadores que melhor reve- que uma política industrial só pode ser

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sistemática e racional se estiver apoiada num Isso acontece em todo tipo de localidade,
tableau das relações socioeconômicas “histori- desde as de tipo mono-industrial até as
camente determinadas”, isto é, numa repre- marcadas por uma grande quantidade de
sentação da trama de sistemas produtivos pequenos negócios mais ou menos similares.
locais que não isole as relações técnico-econô- O que as diferencia é a maneira pela qual as
micas das relações socioculturais e institu- firmas e a população estão envolvidas na
cionais, como faz a matriz input-output. A divisão do trabalho. Uma regionalização
revisão dos estudos e debates sobre os distri- funcional da Itália - feita a partir de dados
tos industriais marshallianos acabaram por censitários de 1981 sobre os fluxos de deslo-
convencê-lo de que os verdadeiros recursos camento entre residência e trabalho (journey-
críticos de uma economia nacional são os to-work flows) - permitiu a identificação de
sistemas locais: organismos de formação 955 Áreas de Mercado de Trabalho Local
lenta e difícil, que constituem um patrimônio (LLMAs: Local Labour Market Areas), que
a ser reconhecido, conservado e fortificado. foram agrupadas em 15 tipos de sistemas
Assim, para superar a ignorância reinante locais mediante uma análise de suas estru-
sobre a importância dos SPL, Becattini con- turas socioeconômicas.
sidera necessária a adoção de uma estratégia Essa importante contribuição de Sforzi
de pesquisa com três linhas de orientação: foi, infelizmente, distorcida pela divisão
a) redefinição de uma grande parte do setorial. Sua principal motivação era com-
aparato teórico da economia e de outras parar os 61 distritos industriais marshallianos
ciências sociais; b) trabalho de campo que (como os de Carpi e Prato), enquanto subca-
explore as similaridades e diferenças e não tegoria das 161 LLMAs de industrialização
evite as conexões entre fenômenos que leve, a outros três tipos: a) as 76 LLMAs do
pertencem a campos disciplinares diversos; norte e do centro dominadas por indústrias
c) uma caracterização atenta dos SPL, na e serviços (como as de Milão e Florença); b)
linha de trabalho explorada por seu colega as 64 LLMAs do sul, dominadas princi-
Fabio Sforzi13. palmente pelos serviços (como as de Nápoles
O principal mérito de Sforzi foi tentar e Palermo); e c) as 96 LLMAs industriais do
superar as distorsões impostas pelo uso das norte (como as de Lumezzane e Valdagno).
fronteiras de caráter político-administrativo Ao selecionar as categorias que consi-
como unidade espacial de análise. Afinal, derou “comparáveis”, Sforzi misturou todos
apenas uma parte das localidades perten- os sistemas locais extra-urbanos baseados no
centes às províncias que formavam a famosa turismo ou em atividades consideradas
“Terceira Itália” tinham o dinamismo da “semi-rurais” ou “rurais”. Pior, essas nove
economia “difusa” presentes em distritos categorias extra-urbanas foram atiradas
marshallianos. Além disso, fenômeno idên- numa mesma gaveta com as “marginais” e
tico também ocorria no noroeste (“Primeira as “deprimidas” do sul. Assim, 11 tipos de
Itália”). Era portanto necessário encontrar sistemas locais - reunindo 558 das 955
uma unidade espacial de análise empírica LLMAs - foram amalgamados na única
que não fosse tão distante dos marcos con- categoria considerada “residual” e
ceituais das análises econômicas de Giacomo denominada “Resto da Itália”.
Becattini, Sebastiano Brusco ou Gioacchino Ora, quando se examina com atenção
Garofoli e das abordagens sociológicas de as tabelas organizadas para fazer essa
Arnaldo Bagnasco, Carlo Trigilia ou Vittorio comparação, percebe-se que no período
Capecchi. A contribuição de Fabio Sforzi foi considerado – 1971/81 – a categoria “Resto
justamente a de tomar o “sistema de locali- da Itália” gerou proporcionalmente mais
dades interligadas” como padrão espacial de empregos no agregado do que qualquer uma
análise do processo de industrialização e do das outras quatro, embora sempre tenha sido
desenvolvimento socio-econômico em geral. superada por alguma delas em quase todas
A base do argumento é que o desen- as divisões setoriais específicas. Ou seja, sem
volvimento ocorre localmente quando uma pretender, essa contribuição de Sforzi é uma
indústria e uma população têm a mesma excelente ilustração do potencial gerador de
área comum de interação social e econômica. empregos que também existe em sistemas

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locais extra-urbanos e menos especializados. tempo, precisa ser evitado o risco de serem
Reforça a hipótese de que nesses sistemas criadas tantas novas noções quantas forem
locais extra-urbanos e extra-industriais as situações diferenciadas. Daí a vantagem
podem existir efeitos sinérgicos de geração de da noção de “sistemas produtivos locais”
empregos comparáveis até aos que se mani- (“local productive systems”) que acabou, aliás,
festam nessa espécie de vanguarda consti- entrando no subtítulo da publicação dos anais
tuída pelos distritos industriais marshallianos. dessa conferência da OCDE sobre “Sistemas
Mas como eles foram todos embutidos numa Locais de Pequenas Empresas e Criação de
única e extremamente heterogênea categoria, Emprego”.
formada por 60% das Áreas de Mercado de Nos Estados Unidos, 60% das ativi-
Trabalho Local, incluindo até as duas mais dades econômicas puderam ser atribuídas a
“deprimidas” e as 41 “marginais”, fica um total de 380 “clusters” em diversas fases
impossível separar “o joio do trigo”. de amadurecimento, e depois classificados
Esse forte viés “industrialista” foi man- em apenas quatro tipos de origens: a) recur-
tido na atualização feita com os dados censi- sos naturais estratégicos, como nos casos de
tários de 1991, apresentada na conferência Chicago (agroalimentar); b) fontes de novas
sobre “Sistemas Locais de Pequenas Empre- tecnologias, como o Vale do Silício (micro-
sas e Criação de Emprego”, organizada pela eletrônica); c) mercados de trabalho espe-
OCDE em junho de 199514. Os sistemas locais cializado, como Dalton, na Georgia (tapetes)
sem concentração de emprego fabril foram ou Tupelo, no Mississippi (móveis); e d) opor-
outra vez empacotados numa categoria tunidades mercadológicas, como Buffalo, em
“residual”, desta feita denominada “não- New York (meio ambiente), ou mesmo New
industrial”. O resultado ficou ainda mais York City (jóias).
estranho, pois nos anos 1980 houve redução Todos os que procuraram entender
generalizada do emprego no setor industrial, qual é a relação existente entre a formação
em flagrante contraste com seu aumento no desses feixes e o empreendedorismo acaba-
setor terciário, particularmente entre as ram por enfatizar os mesmos fatores
empresas de “serviços não-tradicionais”. E culturais presentes em todas as caracte-
a inevitável conclusão foi, evidentemente, a rizações de “distritos” ou “SPL”. Como já
de enfatizar que, “no mundo real”, as fron- foi dito, a única diferença é que esses fatores
teiras entre a indústria e os serviços estão culturais são muitas vezes compactados na
sendo progressivamente removidas... sedutora noção de “capital social”, relan-
Os trabalhos apresentados na referida çada com muita perspicácia pelas pesquisas
conferência da OCDE marcaram uma clara coordenadas por Robert Putnam sobre as
ruptura com a tendência anterior de atribuir diferenças de desempenho institucional das
apenas à indústria a glória pelo bom desem- diversas províncias da Itália. Muitas vezes,
penho econômico de determinadas áreas o capital social é entendido como um com-
geográficas. Os participantes preferiram plexo de instituições, costumes e relações de
chamar a atenção para as ligações entre as confiança que alavancam a cooperação.
empresas em geral e sua capacidade de criar Outras vezes, essa expressão “capital social”
redes (“business links and networking”) ou, de é expressamente evitada e substituída por
maneira ainda mais abrangente, para os longas considerações sobre misteriosos
sistemas locais de PMEs (“local systems of processos formadores de atitudes culturais
SMEs”). E própria idéia de “distrito” chegou que afetam não somente a disposição a
a ser completamente “desindustrializada” cooperar com outros, mas, sobretudo, as
na contribuição holandesa sobre o ‘distrito estruturas institucionais que influenciam o
floricultor de Keukenhof’ (“the flower- empreendedorismo.
growing district of Keukenhof”). Uma excelente síntese da questão foi
Pode-se dizer, portanto, que a redesco- feita por Sebastiano Brusco ao apontar as três
berta da noção marshalliana de “distrito” foi lições essenciais que devem ser tiradas da
certamente muito enriquecedora, mas que ela experiência italiana: a) a necessidade de
não pode dar conta da complexidade e combinar concorrência com cooperação; b) a
diversidade dos sistemas locais. Ao mesmo necessidade de combinar conflito com parti-

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cipação; e c) a necessidade de combinar o trativos nacionais de “planejamento regio-


conhecimento local e prático com o científico. nal” (ou “ordenamento territorial”), que não
Essas três lições fazem com que a interrogação podiam se basear em qualquer experiência
central passe a recair, portanto, sobre as acumulada em países capitalistas. As raras
condições que permitem a emergência de tentativas anteriores haviam sido todas
instituições mais favoráveis a essas três restritas a uma determinada região, além de
combinações. E a resposta - como não poderia pertencerem ao contexto inverso, isto é, o da
deixar de ser - é afirmação de que o desen- contração da economia mundial durante o
volvimento depende essencialmente do papel entre-guerras. Foi nos anos 1930 que a expe-
catalisador que desempenha um projeto riência do New Deal com a TVA (Tennessee
elaborado por atores locais. Valley Authority) incentivou o governo
Nota-se, portanto, que nessa tortuosa britânico a dar um tratamento diferenciado
evolução do debate internacional desenca- a suas áreas de mineração muito afetadas
deado pelos estudos sobre os distritos indus- pela crise, e estimulou o governo italiano a
triais marshallianos, ganhou forte respaldo adotar medidas que pudessem reduzir a
científico uma perspectiva contrária à que miséria do Mezzogiorno. Antes disso houve
predominou durante muito tempo nas esfe- imenso desprezo pelo fator espacial, tanto
ras governamentais e nas organizações nas políticas econômicas, quanto na ciência
internacionais que procuram influenciar os na qual pretendem se inspirar. No capita-
rumos das políticas econômicas nacionais. lismo anterior a 1929, talvez só possam ser
Com muito atraso, estas começaram a citadas as propostas dos saint-simonianos e
levar a sério proposições sobre desenvolvi- a obra teórica de Von Thünen como as
mento “endógeno”, desenvolvimento “de exceções que confirmam a regra.
baixo para cima”, e até sobre “ecodesen- Duas reações ao “marasmo” econô-
volvimento”15, acabando por admitir que as mico que se seguiu à “era de ouro”, a partir
iniciativas locais podem ser cruciais para o dos anos 1970, pressionaram muitos desses
desenvolvimento, pois se tornam importante recentes aparatos de planejamento (ou
fator de competitividade ao fazerem dos terri- ordenamento) a redefinir sua missão. Uma
tórios ambientes inovadores. Evidentemente, delas foi a forte vaga de “descentralização”
não demoraram tanto a aparecer as limitações baseada na idéia de que as distorções que
inerentes às resultantes políticas do “desen- produziam as disparidades regionais desa-
volvimento local”, o que acabou por estimular pareceriam por si só, caso as administrações
debates dos mais bizantinos sobre as relações locais tivessem mais liberdade, poder e meios
entre o “local” e o “global” no processo de de ação. Outra foi o impulso para uma maior
desenvolvimento, nos quais costumam até a integração supra-nacional, que se manifestou
se levar a sério ridículas disputas entre o principalmente no oeste europeu, mas que
“glocalismo” e o “lobalismo”... vem tendo desdobramentos semelhantes em
outras regiões dos continentes americano e
3. Do planejamento regional ao asiático. E foi como resultado dos mais
desenvolvimento territorial evidentes dessa dupla pressão que se deu o
deslize semântico para “desenvolvimento
Durante a “era de ouro” (1948-73), a espacial” e, principalmente, para “desenvol-
preocupação de minorar as distorções espa- vimento territorial”.
ciais fatalmente provocadas pelo crescimen- As vantagens das palavras “espaço” e
to econômico levou à montagem de estru- “território” são evidentes: não se restringem
turas administrativas cuja principal missão ao fenômeno “local”, “regional”, “nacional”
seria a de “planejar” ou “ordenar”o povoa- ou mesmo “continental”, podendo exprimir
mento (ou ocupação) de territórios nacionais simultaneamente todas essas dimensões. A
mediante determinadas orientações de UE vinha elaborando há quatro anos sua
investimentos públicos em infra-estrutura e “perspectiva” ou “esquema” de “desenvol-
várias formas de incentivos e regulamenta- vimento espacial”16, quando a OCDE criou
ções sobre os investimentos privados. Surgi- um novo serviço com a missão de levar seus
ram então vários tipos de arranjos adminis- países membros a elaborar suas próprias con-

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A face territorial do desenvolvimento 13

cepções de “desenvolvimento territorial”17. Uma das principais ambições do ESDP


Muito mais significativas, entretanto, parecem é tornar mais coerentes as quatro políticas co-
ser as motivações que levaram ao progressivo munitárias de “significativo impacto espacial”
uso do substantivo “desenvolvimento” para que foram substancialmente fortalecidas, em
substituir os fora de moda “planejamento” e 1992, tanto pelo Tratado de Maastricht, como
“ordenamento”. pelo subseqüente Conselho Europeu reunido
Na França, foi uma comissão intermi- em Edinburgh: a) a agrícola (PAC), reforma-
nisterial “de ordenamento do território” que da nesse mesmo ano; b) a dos “Fundos Estru-
preparou um projeto de lei de orientação turais”, ao qual foi juntado o novo “Fundo
“para o desenvolvimento do território”. Tal de Coesão”; c) a de transportes e comuni-
fato é considerado marco simbólico de uma cações, agrupadas sob a sigla “TENs” (“Trans-
virada, mesmo que do debate parlamentar European Networks”); e d) a política ambiental.
tenha resultado, em 4 de fevereiro de 1995, O serviço de desenvolvimento territorial
uma lei que acabou conservando os dois da OCDE só foi criado por seu Conselho no
vocábulos (“l’aménagement et le développement início de 1994, quase um ano depois da
du territoire”). Basicamente porque o ordena- apresentação formal do projeto pelo Secre-
mento seria algo “consentido, outorgado e tário Geral. Com o firme apoio da repre-
redistribuitivo”, enquanto o desenvolvimen- sentação austríaca, ele propôs o agrupamen-
to seria “desejado, partilhado e produtor de to de quatro unidades até ali dispersas em
riquezas”. Ou ainda, porque se pretende outras divisões: os grupos especializados em
cruzar, num mesmo espaço, uma política questões urbanas, desenvolvimento rural e
“descendente (ordenamento) com uma desenvolvimento regional, mais o programa
política ascendente (desenvolvimento)”18. de ação e cooperação sobre iniciativas locais
A “perspectiva” européia de desenvol- de criação de emprego21. Baseou tal proposta
vimento espacial (UE/ESDP) tem dois obje- em duas justificativas, uma de ordem política
tivos essenciais: aumentar a capacidade com- e outra de ordem operacional:
a) As zonas urbanas, suburbanas e rurais são
petitiva de territórios cuja integração no pro-
cada vez mais interdependentes e os problemas
cesso concorrencial é inadequada, e limitar de uma delas também interferem nas outras.
os efeitos negativos de uma concorrência Por exemplo, os fenômenos de aglomeração e
exacerbada. Nos dois casos, a abordagem de congestão urbana são inseparáveis da
espacial procura uma melhor combinação debilitação de certas regiões e do êxodo rural.
Além disso, os efeitos de proximidade tornam
entre competição e cooperação, de forma que ainda mais manifesta a necessidade de uma
o conjunto do território europeu possa atingir abordagem política coordenada, que possa
um nível ótimo de competitividade, refor- integrar o conjunto dos aspectos do desenvol-
çando, ao mesmo tempo, sua coesão econô- vimento. Assim, na escala local, os problemas
de emprego, de harmonia social, de qualidade
mica e social. Para atingir esses objetivos, os da vida – para tomar apenas alguns exemplos –
meios foram agrupados em três conjuntos são indissociáveis [...].
operacionais: a) um sistema policêntrico de b) O desenvolvimento harmônico do tecido
cidades, com uma nova relação urbano/ econômico está no centro dos trabalhos dos
grupos que tratam de assuntos urbanos, locais,
rural; b) uma paridade de acesso à infra- rurais e regionais. Isso se traduz por ações que
estrutura e ao conhecimento; c) uma gestão visam encontrar, para uma determinada zona,
mais prudente das heranças natural e um equilíbrio entre o fortalecimento de sua
cultural19. Para tanto, os vetores do desenvol- capacidade concorrencial e a melhoria da quali-
dade de vida de seus habitantes. Atingir esse
vimento espacial europeu20 foram triados em objetivo exige a criação de novas formas de
termos de forças, fraquezas, oportunidades parcerias entre os atores envolvidos, quer eles
e ameaças (“SWOT analysis”) sendo sejam públicos, privados, nacionais, regionais ou
identificado um conjunto de 13 principais locais. Estímulo a projetos, iniciativa rural, ação
urbana, tudo isso decorre da mesma idéia,
tendências (3 demográficas, 4 econômicas e segundo a qual as contribuições locais permitem
6 ambientais), destacando-se o fato da econo- operar mudanças significativas na paisagem
mia e do emprego europeus se tornarem cada socioeconômica territorial22.
vez mais dependentes das pequenas e médias Durante o primeiro debate dessa pro-
empresas (PMEs) como a mais importante posta, três outras delegações - Austrália,
das tendências econômicas. Canadá e Noruega - juntaram-se à da Áustria

INTERAÇÕES
Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 3, N. 5, Set. 2002.
14 José Eli da Veiga

para considerar o novo serviço como “primei- Um dos fatores que fez brotar no inte-
ra etapa lógica” de um processo que deveria rior da OCDE a idéia de juntar sob o lema do
permitir à OCDE uma abordagem analítica “desenvolvimento territorial” seus núcleos
mais horizontal das questões relativas ao voltados aos problemas urbanos, rurais e
desenvolvimento econômico, social e ecológico regionais foi, com certeza, mais de um decênio
de seus países membros. Em seguida, as dele- de experiência com o programa dedicado à
gações da Holanda e da Suíça foram ainda geração de empregos mediante estímulos ao
mais longe, chegando a propor, inclusive, a “desenvolvimento local”. Esse programa de
“completa fusão dos órgãos subsidiários dos ação e cooperação sobre iniciativas locais de
quatro grupos”. Mas tanto entusiasmo esbar- criação de emprego - que hoje se chama
rou na resistência das delegações do Japão, “LEED – Local Economic and Employment
da Bélgica e do Reino Unido, e numa certa Development” - foi criado em 1982, e deu
hesitação por parte dos representantes da origem a uma vasta rede de intercâmbio que
Irlanda e da Espanha. Muitas dessas reticên- divulga análises e relatos de experiências
cias eram de ordem orçamentária, mas tam- concretas por meio de “notebooks” e de uma
bém foi mencionado o temor de que o novo “newsletter” intitulada Innovation &
serviço viesse a reforçar a concentração da Employment, que chegou a ser editada em
OCDE em “questões de desenvolvimento parceria com a União Européia.
econômico e industrial em detrimento dos Em maio de 1993, o comitê diretor
problemas ambientais, do turismo e da desse programa decidiu fazer uma série de
cultura”23. Como tais “dúvidas” não foram avaliações nacionais das políticas e práticas
completamente superadas, elas voltaram a se de desenvolvimento local. O foco desses estu-
manifestar em 1998. Mas, até o momento, dos anuais deveria estar justamente nas rela-
nada disso alterou a natureza do “TDS”, que ções entre as políticas nacionais, regionais e
continua a ser apresentado da seguinte forma: locais, de tal forma que se pudesse discutir a
Fatores espaciais são elementos importantes na coerência dos programas de desenvolvi-
‘real’ organização da atividade econômica, mas mento local de cada país. O primeiro a se
continuam fora do escopo dos atuais macro candidatar a esse tipo de avaliação foi o
referenciais. Esses dois mundos – o dos gestores
da política macroeconômica e o das localidades,
governo austríaco, numa iniciativa conjunta
cidades e regiões – continuam bem indepen- de sua ‘Chancelaria Federal’ e do seu ‘Serviço
dentes um do outro, mesmo quando muitas de Mercado de Trabalho’. Além de quatro
questões consideradas ‘locais’ têm revelado um funcionários da OCDE e de dois repre-
caráter cada vez mais ‘transfronteiriço’. De resto,
sentantes de países membros (Holanda e
distorções econômicas e sociais continuam a
afetar a alocação espacial de recursos e de renda Canadá), o grupo de trabalho encarregado
– assim como o papel do setor público – não dessa avaliação contou com a colaboração
podendo, portanto, ser ignoradas pelas de dois especialistas convidados: Michael
abordagens mais gerais sobre o crescimento e o Piore, do MIT e Alvaro Espina y Montero,
ajuste estrutural.
Contra esse tipo de herança, a OCDE reforçou assessor especial do Ministro da Economia
seu trabalho sobre as relações entre políticas da Espanha.
governamentais de caráter urbano, rural, Como logo no início dos anos 1970 a
regional e local, mediante o agrupamento dessas Áustria foi drasticamente atingida pela crise
atividades em um único Serviço de Desenvol-
vimento Territorial. Uma preocupação central é
do padrão de crescimento da “era de ouro”,
entender como as políticas desses quatro núcleos ela foi um dos primeiros países a experimen-
relacionados ao espaço podem efetivamente tar as opções de “reestruturação industrial”
contribuir para reformas estruturais e funcio- discutidas no âmbito das organizações inter-
namento das forças de mercado, e particu-
nacionais ao longo dos anos 1980, e que
larmente para a capacidade de geração de
empregos produtivos, de adequado aprovei- acabaram convergindo para a idéia central
tamento de recursos humanos, de melhoria do de promover o “desenvolvimento local”. Isso
padrão e da qualidade de vida, de resposta à teve um claro impacto no “Conceito Aus-
crescente demanda de amenidades, e de tríaco de Planejamento Regional”, reelabo-
prevenção contra a marginalidade social e a
degradação ambiental; enfim, todos os com-
rado a cada dez anos por uma “Conferência
ponentes indispensáveis ao bom funcionamento sobre Planejamento e Políticas Regionais
das localidades, cidades e regiões24. (ÖROK)”, presidida pelo chanceler federal

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A face territorial do desenvolvimento 15

e formada por vários ministros, gover- Espanha. E as disparidades regionais dentro


nadores das Länder e representantes das de cada país eram ainda mais importantes.
comunidades locais. A principal diferença Também se deve ao REMI a demons-
entre os “conceitos” de 1981 e de 1991 foi tração de que o sucesso e o insucesso em criar
que o último não visa diretamente a redução novas oportunidades regionais de emprego
das diferenças regionais de padrão de vida, não estão estritamente correlacionados aos
nem a criação/atração de novas empresas graus de urbanidade ou de ruralidade. A
em áreas menos favorecidas mediante incen- ruralidade não é deficiência, e também não
tivos financeiros. O texto de 1991 procurou, é sinônimo de declínio; tanto quanto urbani-
ao contrário, definir com clareza o potencial dade e aglomeração não garantem automa-
de cada região para um desenvolvimento ticamente um próspero desenvolvimento.
“endógeno”, dando origem, no âmbito Em vez de comparar apenas as diferenças
federal, ao “Programa para o Desenvolvi- entre áreas rurais e urbanas, tornando impli-
mento Regional Endógeno (FER)”. citamente o urbano como modelo para o
Ao tirar as lições da experiência aus- rural, o REMI preferiu se dedicar a compa-
tríaca de “ajustamento local à reestruturação rações entre regiões mais e menos dinâmicas.
industrial”, o relatório do grupo avaliador Principalmente porque as regiões rurais mais
da OCDE fez uma leve crítica a essa evo- dinâmicas podem ser melhor referência para
lução, enfatizando que o grande perigo da similares mais atrasadas do que o seriam as
abordagem do desenvolvimento local é a urbanas. E foi a partir desse tipo de compa-
simples agregação de programas, sem uma rações realizadas pelo REMI que o programa
estratégia que de fato possa mobilizar o de desenvolvimento rural da OCDE passou
conjunto das comunidades. Ou ainda, que a ganhar consistência.
“a estratégia de desenvolvimento local é O eixo dos poucos trabalhos sobre
particularmente válida como um comple- questões rurais feitos durante os anos 1980
mento do desenvolvimento regional no era a necessidade de melhorar sua gestão
âmbito de uma estratégia maior baseada no pelos aparelhos de administração governa-
conceito de ‘desenvolvimento territorial’ – a mentais. Como a elaboração de políticas para
combinação de políticas governamentais des- o meio rural depende de um amplo e hete-
cendentes com iniciativas de desenvolvi- rogêneo conjunto de entidades públicas, os
mento endógeno”25. principais desafios convergiam sistematica-
Outro fator que certamente contribuiu mente para a necessidade de realizar um
para que a OCDE decidisse criar um serviço trabalho cooperativo. Não é de se estranhar,
de desenvolvimento territorial foi quase um portanto, que a palavra-chave dessa fase
decênio de experiência com o programa de tenha sido “parceria”. Nessa linha, diversas
desenvolvimento rural, particularmente o atividades que juntaram responsáveis nacio-
Projeto sobre Indicadores de Emprego Rural nais pelas políticas de desenvolvimento rural
(“REMI Project”). Foi ele que deixou claro o com estudiosos do assunto, revelaram o
quanto podem ser enganosas as compara- quanto era precário o entendimento da im-
ções cronológicas de indicadores de emprego bricação dos problemas rurais com as mais
para uma mesma área, e o quanto podem amplas tendências socioeconômicas, am-
ser instrutivas as comparações espaciais em bientais e políticas. Isto é, a necessidade de
um mesmo momento. Apesar da base uma “uma abordagem mais global, e inclusive
estatística da OCDE ser uma das que melhor territorial, da política rural”26.
permite comparações entre países – isto é, Além disso, processos de reforma das
territórios - até o início dos anos 1990 essa políticas agrícolas estavam em curso em
organização só dava atenção às séries tem- muitos países membros e, principalmente, na
porais de cada país membro. No entanto, as Comunidade Européia. Tudo isso certamen-
diferenças cronológicas das taxas de desem- te ajudou para que, em 1991, o Conselho da
prego, por exemplo, são muito menos signi- OCDE resolvesse criar um programa voltado
ficativas que as disparidades entre os países especificamente para o fenômeno rural, tendo
membros. Em 1995, essas taxas variavam de como primeira tarefa a elaboração de um
menos de 3% no Japão a mais de 23% na relatório, só publicado em 1993 com o

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16 José Eli da Veiga

provocativo título “Que futuro para os nossos culturais, do que da exploração dos velhos
campos?” (“What Future for Our Countryside?”, trunfos baseados na exploração da fertilida-
“Quel avenir pour nos campagnes?”). E talvez de dos solos, ou no aproveitamento de van-
tenha sido justamente por mostrar a dificul- tagens de localização industrial. E quando
dade de se encontrar respostas convincentes se consegue estabelecer uma sinergia entre
a essa grande interrogação, que esse trabalho preservação de “amenidades” e dinamismo
tenha contribuído, não só para a criação do econômico – como acontece, por exemplo,
Serviço de Desenvolvimento Territorial, mas, no caso da trilha de fronteiras suíça, ou no
sobretudo, para que se investisse em ‘estudos dos parques naturais franceses – fica simples-
de caso’ e ‘oficinas de trabalho’ que pudessem mente impossível dizer se a atividade é
trazer novos “insights”, mesmo que não “primária”, “secundária” ou “terciária”.
trouxessem conclusões generalizáveis. A idéia de que os países membros da
Essa linha mais empírica de trabalho OCDE devem dar alta prioridade à capita-
foi tão fecunda que torna impossível qual- lização do valor das “amenidades rurais” foi
quer pretensão a uma síntese que lhe faça a principal conclusão da oficina de trabalho
justiça. Mas há três pontos que não podem realizada em setembro de 1997 no Japão, na
deixar de ser registrados: a) a matriz dos qual foram analisados estudos de caso
principais bens e serviços que aproveitam as referentes a doze países (Austrália, Áustria,
vantagens competitivas do meio rural (que Bélgica, Canadá, Finlândia, França, Grécia,
resultou de investigações sobre a equivocada Japão, Luxemburgo, Noruega, Suécia e
noção de “nichos de mercado”); b) as razões Suíça). E as resultantes recomendações
da lentidão do processo de aproveitamento sugerem a adoção de dois tipos básicos de
dessas vantagens competitivas; e, sobretudo, políticas: a) políticas que estimulem a direta
c) a crescente evidência de que estão nos pa- coordenação entre os provedores e os benefi-
trimônios natural e cultural (“rural amenities” ciários das amenidades (apoio à ação coleti-
ou “aménités rurales”) as principais vanta- va e à valorização comercial); b) políticas que
gens competitivas dos espaços rurais. ajudem a mudar certas regras econômicas
Ao selecionar os estudos de caso, a ên- (regulamentações e incentivos financeiros).27
fase recaiu sobre os bens e serviços que usam
recursos mais freqüentes nas áreas rurais. Em Conclusões
seguida fez-se uma classificação segundo
três características – recursos naturais, O próprio caráter da exposição feita
heranças culturais e tradicionais, e recursos nos três tópicos anteriores impede que dela
ambientais – e dois critérios econômicos – se tirem verdadeiras conclusões (isto é,
bens e serviços – da qual resultou uma sínteses de confirmações ou refutações de
“matriz” com seis janelas que ilustram muito hipóteses). Mas permite que sejam formu-
bem a diversidade da economia rural. Depois ladas dez proposições em torno das quais
foi feita uma lista dos oito obstáculos que mais deve se organizar o debate que permitirá o
dificultam um aproveitamento econômico avanço das pesquisas sobre a face territorial
mais rápido desses recursos, com ênfase do desenvolvimento:
especial para a distância que existe entre a a) É errado abordar as relações entre
realidade de formações sociais ainda cidade e campo nos termos em que se desen-
“agrárias” e a própria natureza das moder- rola o debate sociológico, isto é, de “dicotomia
nas atividades de “marketing”. x continuum”. O aumento da densidade
O que mais chama a atenção nas seis demográfica nas zonas “cinzentas” - que
janelas da matriz da diversidade rural é que deixaram de ser propriamente rurais e que
todas elas estão umbilicalmente ligadas ao não chegam a ser propriamente urbanas - não
aproveitamento econômico do que se con- significa que esteja desaparecendo a contra-
vencionou denominar “amenidades”. Ou dição material e histórica entre o fenômeno
seja, em sua etapa mais avançada, o desen- urbano e o fenômeno rural. Em termos
volvimento rural depende muito mais das econômicos e ecológicos, aprofundam-se, em
possíveis maneiras de tornar rentável a vez de diluírem-se, as diferenças entre esses
preservação de peculiaridades naturais e dois modos de relacionamento da sociedade

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A face territorial do desenvolvimento 17

com a natureza. Européia), tende a substituir a tradicional


b) Também é errado opor uma ten- expressão “desenvolvimento regional”, pois
dência de “ressurreição rural” à velha tese permite uma referência simultânea ao
da “desertificação rural”. Em termos estri- desenvolvimento local, regional, nacional, e
tamente demográficos, há áreas rurais que até continental (no caso da Europa).
continuam se esvaziando e outras que se recu- f) Mas essa retórica do “DT” também
peram. Mas as possibilidades de dinamismo deve muito à evolução paralela dos debates
econômico dessas áreas não estão necessa- da “economia industrial”, da “economia
riamente correlacionadas às tendências demo- rural” e da “economia regional e urbana”.
gráficas, uma vez que as mais promissoras Nos últimos quinze anos houve nessas três
vantagens competitivas das áreas rurais são disciplinas uma forte valorização da escala
“amenidades” que dependem de heranças “local”, logo seguida (ou acompanhada) da
naturais e culturais, podendo ser até melhor necessidade óbvia e imperiosa de não isolá-
aproveitadas por movimentos apenas tempo- la das escalas superiores que vão até a
rários de população. “global”.
c) O processo de aproveitamento das g) A retórica do “DT” é certamente
novas vantagens competitivas tem sido melhor que a do “desenvolvimento local”,
muito lento porque depende dos inúmeros e mas ambas estão longe de engendrar uma
pouco conhecidos determinantes do “empre- ‘teoria & prática’ que venha, de fato, superar
endedorismo”. A ênfase no caráter endógeno as divisões setoriais (primário, secundário e
de tais determinantes - que está embutida terciário) e também permitir um tratamento
no uso cada vez mais freqüente da noção de integrado da divisão espacial (cidade e
“capital social” - não deve, todavia, levar a campo).
pensar que possam ser menos interessantes h) As mudanças semânticas do debate
os determinantes exógenos que resultam da público sempre revelam um sentimento cole-
importância que o conjunto da sociedade dá tivo de que noções utilizadas até determi-
ao patrimônio natural e cultural de seus nado momento não mais dão conta da per-
espaços rurais. cepção que se tem dos problemas enfren-
d) Fatores supranacionais – como a tados, nem exprimem direito o que se gosta-
integração européia ou, de forma mais ria ou pretenderia fazer em seguida. Ou seja,
ampla, a regionalização internacional e a são mudanças que refletem as hesitações
“mundialização” ou “globalização” – têm intrínsecas ao enunciado de novos projetos
provocado uma heterogênea evolução das sociais, e, por isso mesmo, as novas noções
políticas governamentais. A crescente expo- em torno das quais se organiza o debate
sição ao comércio internacional e à acele- público costumam ser sempre muito impre-
ração do progresso tecnológico exigem mu- cisas, fluidas e ambíguas.
danças estruturais que permitam remover i) Não há, portanto, muito interesse em
obstáculos ao crescimento e ajudem a apro- saber qual pode ser a utilidade de cada um
veitar novas oportunidades. Muitas dessas dos inúmeros adjetivos que têm sido acres-
mudanças estruturais são de caráter sub- centados ao substantivo “desenvolvimento’
nacional, mostrando a pertinência de uma conforme evolui o debate público sobre essa
abordagem territorial, para a qual os quadros grande utopia dos últimos cinqüenta anos.
dirigentes estão, contudo, despreparados. Por isso, em vez de comparar o valor relativo
Sabem que o principal desafio é identificar das inúmeras maneiras pelas quais se pode
os fatores que permitiriam ampliar as opor- subjetivamente qualificar o desenvolvimento
tunidades de desenvolvimento das regiões como objetivo central das políticas públicas,
menos dinâmicas, mas também não ignoram o que interessa é discutir a real relevância da
que a resposta depende de uma explicação dimensão territorial do processo objetivo de
ainda muito precária sobre as razões desse desenvolvimento.
menor dinamismo. j) É muito cedo para saber se, além de
e) O uso cada vez mais freqüente da um indiscutível progresso retórico, a noção
noção “DT: desenvolvimento territorial” (ou “desenvolvimento territorial” traz algo de
“espacial”, como prefere a Comissão realmente novo para um eventual desen-

INTERAÇÕES
Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 3, N. 5, Set. 2002.
18 José Eli da Veiga

13
volvimento das regiões sem dinamismo eco- Cf. Becattini e Rullani (1995, p. 188-190).
14
nômico, que também costumam ser chama- Cf. Sforzi (1996).
15
cf. Friedmann e Weaver (1979); Sachs (1980); Stöhr
das de periféricas ou atrasadas. Por exemplo, (1981).
se estão melhorando as chances de uma 16
Chamada de “European Spatial Development
região como o sul da Itália (“Segunda Itália”) Perspective (ESDP)” ou “Schéma de Développement
romper com a estagnação, mesmo que não de l’Espace Communautaire (SDEC)”.
17
possa deixar de ser periférica e atrasada em O “Territorial Development Service” (TDS) foi criado
em 1994.
comparações com as regiões mais dinâmicas. 18
Leurquin (1998, p. 196).
Não apenas porque a abordagem territorial 19
Cf. UE/ESDP (1997).
só começou a engatinhar em meados dos 20
Sendo 5 relativas às estruturas urbanas; 2 relativas à
anos 1990, mas também porque é muito mudança do papel das áreas rurais; 7 relativas às mu-
difícil avaliar se as transformações positivas danças nos transportes, comunicações e conheci-
mento; e 4 relativas à contínua pressão sobre as
que estão ocorrendo no Mezzogiorno 28 heranças natural e cultural.
poderão vir a ser, de fato, favorecidas por 21
Esse programa, cuja sigla original era “ILE”, passou
essa nova abordagem. depois a ser denominado “LEED: Local Economic and
Employment Development”.
Este texto, que é parte do primeiro relatório de andamento 22
Tradução livre de trechos do parágrafo 11 da “Nota
da pesquisa que o autor está realizando na Europa com
auxílio da FAPESP, já incorpora alguns dos comentários do Secretário Geral” C(93)83, de 29/06/93.
23
gentilmente enviados pelos colegas Ademir Cazella, Eduardo Estas observações resultam de uma leitura do processo
Ehlers, Ignacy Sachs, e Ricardo Abramovay. verbal da reunião do Conselho, um documento
“reservado” da OCDE.
24
Tradução livre do tópico “Territorial Development”
Notas:
da brochura The OECD in the 1990s, p. 40-41.
1 25
Conforme tipologia da OCDE baseada na proporção Cf. OCDE (1995, p. 77).
26
da população regional que vive em localidades rurais, Cf. OCDE (1993, p. 46).
27
isto é, com menos de 150 hab/km2. ‘Essencialmente Cf. OCDE (1999:32-34).
28
Rurais’ são as regiões nas quais mais de 50% das Fala-se mesmo de uma “grande svolta”. Ver a propósito
localidades são rurais; ‘Relativamente Rurais’ são as Bodo e Viesti (1997).
regiões nas quais entre 15 e 50% das localidades são
rurais; ‘Essencialmente Urbanas’ são as regiões nas Referências bibliográficas
quais menos de 15% das localidades são rurais. Ver a
propósito Abramovay (1999a). ABDELMALKI, Lashen; Claude Courlet (eds.). Les
2
Um excelente discussão desse problema está em Nouvelles Logiques du Développement. Paris, L’Harmattan,
Bertrand (1975). 1996.
3
Ver sobre este assunto o interessante artigo de ABRAMOVAY, Ricardo. Do setor ao território: funções
Larceneux (1996). e medidas da ruralidade no desenvolvimento
4
“It is impossible for a rural area to develop without contemporâneo. Relatório de Pesquisa IPEA, (BRA/97/
automatically becoming non-rural” (Saraceno, 1994, 013), 1999a, 46 p.
p. 468).
5 _____. O capital social dos territórios: repensando o de-
Cf. OCDE (1997).
6 senvolvimento rural. IV Encontro da Sociedade Brasileira
Parafraseando Jean Rostand, vale lembrar que é muito
de Economia Política, Porto Alegre, 01-04/06/99.
mais fácil se entender com quem fala outra língua do
que se entender com quem dá outros sentidos às BAGNASCO, Arnaldo; TRIGILIA , Carlo (dir.). Società e
mesmas palavras... Politica nelle Aree di Piccola Impresa, Venezia, Arsenale
7
Realizados desde o final dos anos 1970 pelos Editrice, 1984.
economistas Giacomo Becattini, Gioacchino Garofoli, BECATTINI, Giacomo. Dal ‘settore industriale’ al
Sebastiano Brusco e Fabio Sforzi e pelos sociólogos ‘distretto industriale’. Alcune considerazioni sull’unità
Arnaldo Bagnasco, Carlo Trigilia e Vittorio Capecchi. d’indagine dell’ economia industriale, L’industria. Rivista
8
Benko e Lipietz (1992); Rallet e Torre (1995); Abdelmalki di Economia e Politica Industriale, n. 1, 1979.
e Courlet (1996); e Pecqueur (1996). BECATTINI, Giacomo; RULLANI, Enzo. Système local
9
Cf. Garofoli (1996, p. 370). Ou seja, deve ser impossível et marché global. Le district industriel. In: Alain Rallet;
a ocorrência dessa economia “difusa” em vastas áreas André Torre (coord.). Économie Industrielle et Économie
do território brasileiro, embora ela seja não só possível, Spatiale, Paris, Economica, p. 171-190, 1995.
como muito provável, no norte gaúcho, em Santa
Catarina, no sudoeste do Paraná, em algumas BENKO, Georges; LIPIETZ, Alain (dir.). Les Régions qui
mesorregiões do Sudeste e do Nordeste, e até em Gagnent; Districts et réseaux: les nouveaux paradigmes
certas microrregiões do Centro-Oeste e do Norte. de la géographie économique, Paris, PUF, 1992.
10
Cf. OCDE (1998). BERTRAND, Georges. Pour une histoire écologique de
11
Sobre a noção de “capital social”, ver Abramovay la France rurale. In: Georges Duby; Armand Wallon
(1999b). (dir.). Histoire de la France Rurale, Paris, Éditions du Seuil,
12
Cf. Maillat (1995) e Becattini e Rullani (1995). vol I (Ouverture), p. 39-118, 1975.

INTERAÇÕES
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(brochura)

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