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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Bruno Coutinho de Souza Oliveira

“Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão!”


Uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de
Janeiro

Rio de Janeiro
2018
Bruno Coutinho de Souza Oliveira

“Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão!”


Uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de Janeiro

Tese apresentada, como requisito parcial para a


obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof.º Dr. Luiz Antonio Machado da Silva


Co-orientadora: Prof.ª Dra. Mariana Cavalcanti Rocha dos Santos

Rio de Janeiro
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA IESP

O48 Oliveira, Bruno Coutinho de Souza.


“Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão !” :
uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio
de Janeiro / Bruno Coutinho de Souza Oliveira. – 2018.
254 f.

Orientador: Luiz Antonio Machado da Silva.


Co-orientador: Mariana Cavalcanti Rocha dos Santos.
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Estudos Sociais e Políticos.

1. Espaço urbano - Teses. 2. Moradias – Teses. 3. Sociologia –


Teses. I. Silva, Luiz Antonio Machado da. II. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Instituto de Estudos Sociais e Políticos. III. Título.

CDU 378.245

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde
que citada a fonte.

_____________________________________________ _____________________
Assinatura Data
Bruno Coutinho de Souza Oliveira

“Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão!”

Uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de Janeiro

Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção


do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

Aprovada em 5 de abril de 2018.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Luiz Antonio Machado da Silva (orientador)


Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

Profa. Dra. Mariana Cavalcanti Rocha dos Santos (co-


orientadora)
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

Profa. Dra. Eugênia de Souza Mello Guimarães Motta


Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

Profa. Dra. Marcia da Silva Pereira Leite


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Profa. Dra. Adriana Facina Gurgel do Amaral


Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________
Prof. Dr. Sean T. Mitchell
Rutgers University – Newark (EUA)

Rio de Janeiro
2018
DEDICATÓRIA

À Adriana, Miguel e Teresa, pelo amor, por tudo.


AGRADECIMENTOS

Uns dias ensolarados. Outros, debaixo de muitas tempestades (algumas torrenciais).


Agradeço a Natureza por ter me permitido chegar até aqui.
Ao meu orientador, Prof.º Luiz Antonio Machado da Silva por ter aceito o meu projeto
de pesquisa e por ter me dado um voto de confiança, mesmo quando ainda não sabia nada sobre
mim. Ao longo da minha passagem pelo IESP/UERJ suas palavras foram muito importantes
para a reelaboração dos termos da minha pesquisa. Suas indicações e análises ajudaram-me nas
reflexões sobre as questões que eu desenvolvia e me tiraram as certezas das coisas. Estou
reconstruindo entendimentos. Minha participação nos estudos e discussões no Coletivo de
Pesquisadores sobre Violência e Sociabilidade – CEVIS também se deve a ele. Obrigado,
professor.
A minha co-orientadora Prof.ª Mariana Cavalcanti. A conheci, por indicação do Prof.
Machado, quando me matriculei no curso “Antropologia das políticas públicas” em 2014, ainda
na Fundação Getúlio Vargas – FGV. De lá para cá, estabelecemos diálogos importantes para o
amadurecimento do trabalho. Sua leitura, sempre cuidadosa e atenta, desde as primeiras versões
do trabalho, ainda bem preliminares, foram cruciais para que eu chegasse até aqui. Sua
orientação nos últimos dois anos foi de fundamental importância para conclusão da tese.
Obrigado Mariana pelo apoio na fase mais crítica.
Aos professores que compõem a banca avaliadora, cabe uma agradecimento individual.
À Profª. Adriana Facina pela parceria nos projetos de pesquisa e pelo cuidado de sempre no
trato das questões pessoais e profissionais que eu compartilhava em nossas conversas informais.
A Profª. Eugênia pela escuta sempre atenta e pelas palavras de apoio nos momentos mais
difíceis. Ao Prof.º Sean T. Mitchell pela confiança e pela parceria de sempre. A Prof.ª Marcia
Leita pela escuta sempre atenta e generosa das minhas observações, nos nossos breves
encontros, quase sempre nas reuniões do Cevis.
Ao professor Adalberto Cardoso, pelo aceite para participar como suplente nesse banca,
pelas preciosas observações na defesa de qualificação e nos encontros do seminário de tese. Ao
professor André Brandão pelo aceite para compor a banca como suplente e pela parceria desde
os tempos de orientação do mestrado.
As professoras e aos professores do IESP/UERJ com os quais eu tive a oportunidade de
estudar e aprender: Alba Zaluar, Breno Bringel, Carlos Ribeiro Costa, Edmond Preteceille,
Frédéric Vandenberghe, José Maurício e Fabiano Santos.
As professoras e aos professores que admiro muito e tornaram-se grandes parceiros:
Felipe Berocan, Neiva Vieira da Cunha, Christina Vital, Palloma Menezes, Rafael Soares
Gonçalves, Pablo Benetti, Marize Cunha, Leandro Molhano, Wellington Conceição e Diogo
Correa. Obrigado pelos ensinamentos e pela disponibilidade de sempre para ouvir e trocar
ideias.
Aos membros do CEVIS com os quais eu tive oportunidade de conviver naquelas tardes
de discussões e aprendizados: Jussara Freire, Wânia Mesquita e Luis Friedman. Aos membros
do CIDADES (UERJ) representados por Lia Rocha, Frank Davis e Monique Carvalho pelo
convite (e a ótima recepção) para participar do seminário “Pedaços do ‘Rio Olímpico’: olhares
sobre uma metrópole em transformação”. Fiquei muito feliz com a lembrança de vocês. A
Carla Mattos pelo convite para participar do Ciclo de Palestras: Política, Violência e
Sociabilidade Urbana do IESP-UERJ, na mesa “Favela, Saberes e Desenvolvimento Local”. A
Rute Imanish Rodrigues pelo apoio e a contribuição no debate sobre a “gramática da moradia
do Complexo do Alemão”. Dessa parceria nasceu o convite para que eu escrevesse um capítulo
do livro “Vida Social e Política nas Favelas – pesquisa de campo no Complexo do Alemão”.
Um agradecimento especial aos colegas que compõe o Grupo CASA, coordenado pelas
professoras Mariana e Eugênia, do qual eu também faço parte: Marcella Carvalho, Dafne
Velasco, Paulo Magalhães, Danielle Guedes, Heloísa Lobo, Ingrid Gomes, Mariah Queiroz,
Igor Pantoja. Nossas reuniões e debates foram de suma importância para a definição dos rumos
da minha pesquisa.
Aos demais colegas das turmas de sociologia e da ciência política pela amizade,
encontros, conversas e cervejas no “escritório” e nos congressos acadêmicos: Marcos Paulo,
Marco Antonio, Alexander, Daniel, Eric, Diego, Míriam, Andreia Marinho, Andrea, Pablo
Saturnino, Humberto, Gabriel, Jefferson, Raquel, Rosana, Talita. Desses companheiros de
turma, preciso agradecer em especial a duas pessoas: Vanessa Macedo, pela amizade e ajuda lá
no início do doutorado quando precisei viajar e ela se encarregou de entregar minhas resenhas
da disciplina “Estudos Exemplares”; e Cecília Soares, por ter me ajudado de imediato com a
tradução do resumo para o francês. Vocês foram muito importantes nas coisas aparentemente
mais simples. Muito obrigado.
A todos os funcionários do IESP que, com suas tarefas diárias e comprometidas,
permitiram que eu usufruísse de um ambiente sempre organizado, limpo e adequado para
aquelas tardes de estudo. Deixo aqui meu abraço em espacial para o Romário com o qual tive
mais contato.
As companheiras da equipe do projeto “A nova ‘classe média’”: Janine, Pamela, Rita,
Marina, Mayara, Jana, Carolina, Cecília e Maria Eduarda pelas trocas e por terem me inspirado
sempre com o compromisso e bom humor de vocês.
Aos meus amigos de sempre, de todas as horas, de todos os trampos: Marcos
Dominguez, Marco Pantoja, Claudio Batista (em memória), Branca Oliveira, Eustáquio, Victor
Azevedo, Rod Mamede (em memória), e, em especial, Fábio Pacheco, pela ajuda e
disponibilidade de sempre nas pesquisas. Vocês não me abandonaram nunca e em nenhum
momento.
Aos meus irmãos do Instituto Raízes em Movimento. Alan Brum, David Amen, Thiago
Mattioli, Ricardo Moura, Renato Tutsis, “Seu” Sidney. O suporte de vocês afetivo e profissional
por todos esses anos de trabalho foram cruciais para minha chegada até aqui. Aproveito para
agradecer as contribuições valiosas dos membros que formam o “Coletivo de pesquisadores do
Alemão”: Alex Magalhães, Heitor Silva, Priscila Telles, Patrícia Lânes, Tatiana Lima, Heitor
Silva, Pedro da Costa, Natália Fazzioni, Eric da Guia.
Aos irmãos do Grupo social Verdejar, representado pela figura ímpar de Edson Gomes,
na sua luta incansável pela preservação e revitalização da Serra da Misericórdia.
Ao meu amigo Junot pela pronta disposição para revisar a tese.
Ao meu amigo Daniel Silva pela o carinho, o cuidado e a parceria de sempre.
A todos os meus amigos queridos do Complexo do Alemão entre eles: Leonardo
Nascimento (“Bração”), Luanna, o pequeno Lorenzo, Wagner “Russão”, Peçanha, Ninho,
Kevin, Sergio Cidade, Adão, Cajeco, Célia, Taiane, Marcos, Dedé, “Seu” João, Maria,
Andrelina, Célia, Artur, Mari, Cleber, Adriane, Lana, Hector, Helcimar. A todos vocês, meu
muitíssimo obrigado.
A todos os moradores do Relicário que abriram as portas de suas casas para me receber
sempre de maneira generosa e amiga.
A minha família, parte mais firme da minha existência por aqui: meus irmãos e minha
irmã, minhas sobrinhas, meu pai, minha madrinha e meu padrinho, por tudo que representam
de força, bondade e perseverança na vida. Ao meu primo Luciano pela força na pesquisa dos
dados históricos.
A Thely por todo carinho e apoio que me deu direta e indiretamente ao longo desses
anos.
A minha mãe Telma Coutinho e minha avó Luci Coutinho pelo amor e apoio
incondicionais.
Em especial, a família que escolhi, meu coletivo Lopes Coutinho: Adriana, Miguel,
Teresa, Julieta e Estrela. Sem vocês eu simplesmente sou outro. Meu eterno agradecimento a
toda barra e alegria que passamos juntos até aqui.
A Capes, pela bolsa de pesquisa.
RESUMO
Oliveira, B.C.S. “Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão!” Uma
etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de Janeiro. 2018. 254f.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Entre 2008 e 2012, sete conjuntos habitacionais foram erguidos pelo Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC-Favelas) no bairro do Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro.
Esta tese analisa a consolidação e a transformação de um desses conjuntos habitacionais,
considerando as experiências e as representações sociais de seus próprios viventes. A partir de
uma perspectiva etnográfica dialógica e multi-situada dos espaços urbanos, articulei a pesquisa
entre o trabalho de campo e a utilização de questionários semiestruturados para a elaboração de
“entrevistas compreensivas” sobre o cotidiano dos moradores. Em diálogo com os estudos da
sociologia urbana sobre as intervenções urbanísticas, a moradia popular e a vida social nas
favelas, o objetivo desta pesquisa foi compreender de que maneira os moradores passaram a
organizar e a significar esse novo espaço, identificando se havia (ou não) um processo de
segregação socioespacial no bairro decorrente das intervenções do PAC-Favelas. Desse modo,
três aspectos orientaram a pesquisa: 1) a maneira como as pessoas interpretaram a política de
urbanização do PAC-Favelas (e outras políticas em curso como a da segurança pública), bem
como suas atuações na arena participativa do programa; 2) como elas interpretaram os
desdobramentos das intervenções públicas sobre a vida cotidiana a partir da vida no conjunto;
3) como essas interpretações se materializaram nas práticas e nas lógicas de organização dos
espaços internos do conjunto. Sobre o primeiro aspecto, a pesquisa realiza uma leitura
pragmática da ação dos moradores que compuseram a arena da política de urbanização marcada
pela fragmentação, seletividade e personalismo no atendimento das reivindicações locais. Sobre
o segundo aspecto, ainda que não haja uma segregação socioespacial, existem divergências
internas prático-narrativas sobre os significados do morar nos recentes “condomínios do PAC”.
Tais discordâncias decorrem de distintas expectativas geradas em torno da nova moradia e das
diferentes condições materiais e simbólicas ao longo das trajetórias das pessoas. Sobre
o terceiro aspecto, argumento que as divergências vão desencadear uma série de disputas em
torno de diferentes possibilidades de ordenamento e usos internos dos espaços comum,
resultando em um “regime de ordenamentos ajustados”. Por fim, este trabalho aponta algumas
reflexões sobre as consequências das políticas públicas de integração urbana destinadas às
favelas, destacando que os conjuntos residenciais do PAC configurara-se, nos últimos anos
como um novo campo de disputa material e simbólica nos processos de significação dos espaços
de moradia na cidade.

Palavras-chave: Complexo do Alemão. PAC-Favelas. Espaço Urbano. Moradia.


Representação. Disputa
ABSTRACT

Oliveira, B.C.S. “There is no such thing as separation, here is everything Complexo do Alemão!
An ethnography of urban spaces in a residential complex in Rio de Janeiro. 2018. 254f. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Between 2008 and 2012, seven housing complexes were built by Brazil’s Growth Acceleration
Program (PAC-Favelas) in the neighborhood of the Complexo do Alemão, in the city of Rio de
Janeiro. This thesis analyzes the consolidation and transformation of one of these residential
complexes by considering the experiences and social representations of their own residents.
From a dialogical and multi-situated ethnographic perspective of urban spaces, I produced the
research by combining fieldwork and semi-structured questionnaires for the elaboration of
"comprehensive interviews" about the daily life of residents. In line with urban sociology
studies on urban interventions, popular housing and social life in the favelas, the objective of
this research was to understand how the residents came to organize and signify this new space,
thereby identifying whether the PAC-Favelas’ interventions yielded socio-spatial segregation
in the neighborhood. In this sense, three aspects guided this research: 1) the way people
interpreted the PAC-Favelas' urbanization policy (and other ongoing policies such as public
security), as well as its actions in the participatory arena of the program; 2) how they interpreted
the unfolding of public interventions on daily life based on their life in the housing complex; 3)
how these interpretations were enacted in the practices and in the logics of organization of the
internal spaces of the housing complex. About the first aspect, the research makes a pragmatic
reading of the action of the residents who composed the arena of urbanization policy marked
by fragmentation, selectivity and personalism in the fulfillment of local demands. About the
second, although no socio-spatial segregation was noticed, there are narratives and practices
with internal divergences about what are the meanings of living in the recent "PAC housing
complex". Such disagreements arise from different expectations generated around the new
dwelling and the different material and symbolic conditions along the trajectories of the people.
About the third, I argue that the divergences yield a series of disputes around different
possibilities of arrangement and internal uses of common spaces, resulting in “adjusted order
regime". Finally, this study points to some reflections on the consequences of public policies
of urban integration in favelas, noting that the PAC housing complexes, in the recent years,
have become a new field of material and symbolic dispute in the processes of signification of
the spaces of housing and living in the city.

Keywords: Complexo do Alemão. PAC-Favelas. Space urban. Home. Representation. Dispute


RESUMÉ

Oliveira, B.C.S. “"Il n'y a pas de séparation, ici tout le Complexo do Alemão!" Une
ethnographie des espaces urbains dans un complexe résidentiel à Rio de Janeiro. 2018. 254f.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Entre 2008 et 2012, sept HLM ont été bâtis par le Programme d’Accélération de la Croissance
(PAC-Favelas) dans le quartier du Complexo do Alemão, à Rio de Janeiro. Cette thèse analyse
la consolidation et la transformation de l’un d’entre eux, en tenant compte des expériences et
des représentations sociales de ceux qui y vivent. À partir d’une perspective ethnographique
dialogique et multi-située des espaces urbains, on a articulé la recherche entre le travail de
terrain et l’adoption de questionnaires partiellement structurés par des ‘entretiens
compréhensifs’ sur le quotidien des résidents. En dialogue avec les études de la sociologie
urbaine sur les interventions urbanistiques, l’habitation populaire et la vie sociale dans les
favelas, cette recherche eut pour but de comprendre si un processus de ségrégation urbaine était
ou non en train d’avoir lieu dans le quartier, en tant que dédoublement des interventions du
PAC-Favelas. Ainsi, trois aspects ont orienté la recherche : 1) la manière selon laquelle la
politique d’urbanisation du PAC-Favelas (et d’autres en cours, comme celle de la sécurité
publique) a été interprétée, tout comme d’autres agencements dans l’arène de participation du
programme ; 2) comment les gens ont interprété les dédoublements des interventions publiques
sur la vie quotidienne, à partir de la vie dans l’HLM ; 3) comment ces interprétations se sont
matérialisées dans les pratiques et les logiques d’organisation des espaces internes de l’HLM.
En ce qui concerne le premier aspect, la recherche maintient une lecture pragmatique de l’action
des résidents ayant composé l’arène politique de l’urbanisation, marquée par la fragmentation,
la sélectivité et la teneur personnelle dans la réception des réclamations locales. En ce qui
concerne le deuxième aspect, même si une ségrégation spatiale n’est pas en cours, il existe des
divergences internes, de teneur pratique et narrative, entre les résidents, sur ce que veut dire
habiter dans les récents « bâtiments du PAC ». De telles divergences se déplient des espérances
générées autour de la nouvelle résidence et des conditions matérielles et symboliques au long
de leurs trajectoires. En ce qui concerne le troisième aspect, ce travail souligne comment les
divergences déclenchent à leur tour une série de disputes autour des possibilités d’ordre et
d’usages internes, sous ce que j’ai appelé « régime de planification ajusté ». Enfin, ce travail
vise à réfléchir sur les conséquences politiques publiques de l’intégration urbaine destinées aux
favelas. Je conclus que, au long de ces dernières années, les HLM issus du PAC se sont
présentés comme un nouveau camp de dispute matérielle et symbolique dans les processus de
signification des espaces d’habitation en ville.

Mots-clef : Complexo do Alemão. PAC-Favelas. Espace urbain. Maison. Répresentation.


Dispute.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Estrada do Itararé (Complexo do Alemão) ............................................................51


Figura 2 – O “bloco” ............................................................................................................. 80
Figura 3 – Planta-baixa das unidades residenciais (por andar) ............................................. 86
Figura 4 – Circulando no Relicário: fluxos e práticas nos espaços ......................................89
Figura 5 – O portal .............................................................................................................106
Figura6 – Sociabilidade nos “predinhos” ..........................................................................139
Figura 7 – “Galinheiro”: táticas de ocupação .......................................................................191
Figura 8 – Ordens de grandeza: quadro de análise das disputas ...........................................195
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADA – Amigos dos Amigos


BNH – Banco Nacional de Habitação
BOPE – Batalhão de Operações Especiais
CEHAB – Companhia Estadual de Habitação
COHAB – Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara
COTS – Caderno de Orientação do Trabalho Social
CV – Comando Vermelho
DEGASE – Departamento Geral de Ação Socioeducativa
EMOP – Empresa de Obras Públicas
IAP – Instituto de Aposentadorias e Pensão
IAPC – Instituto de Aposentadorias e Pensão dos Comerciários
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
IPEA – Instituto de Pesquisas Aplicadas
MCIDADES – Ministério das Cidades
MMA – Movimento das Mulheres do Alemão
ONG – Organização Não-Governamental
PMCMV – Programa Minha Casa, Minha Vida
PAC – Programa de Aceleração do Crescimento
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PTTS – Projeto de Trabalho Técnico Social
SEGOV – Secretaria de Estado de Governo
SERFHA – Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-Higiénicas
TS – Trabalho Social
TCP – Terceiro Comando Puro
UPA – Unidade de Pronto Atendimento
UPP – Unidade de Polícia Pacificadora
UDAMA – União para Defesa dos Moradores do Morro Alemão
ONU-HABITAT – Organizações das Nações Unidas
ZEIS – Zona Especial de Interesse Social
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................... 18
1 ÉTICO-METODOLOGIA DA PESQUISA ............................................ 27
1.1 Reentradas: entre afetos e (possíveis) ressignificações das
representações ............................................................................................ 27
1.2 Perspectivas etnográficas ........................................................................... 33
1.3 Das entrevistas ........................................................................................... 36
2 NOTAS ETNOGRÁFICAS DE REENTRADAS NO CAMPO .......... 39
2.1 Voltando ao “condomínio” ........................................................................ 39
2.2 Os meninos da marcação ........................................................................... 43
2.3 Os “relíquias” ............................................................................................. 45
3 DOS ARRABALDES AO PAC-FAVELAS: FORMAÇÃO E
TRANSFORMAÇÃO DE UM ESPAÇO SUBURBANO ....................... 52
3.1 A Gramática da Moradia no Complexo do Alemão ............................... 55
3.2 “O Alemão vai mudar”: a urbanização social do PAC .......................... 64
3.3 Participação social: a gênese dos “condomínios do PAC” ..................... 73
3.3.1 As chuvas de abril e o reordenamento da arena do PAC ........................... 75
4 “PREDINHOS” DO RELICÁRIO: UMA ETNOGRAFIA DOS
ESPAÇOS URBANOS .............................................................................. 81
4.1 “Morando” no Relicário ............................................................................ 83
4.2 Circulando: composição dos espaços e seus usos rotineiros ................... 88
4.2.1 Pavimento 1 Parte Baixa ............................................................................ 90
4.2.2 Pavimento 1 Parte Alta .............................................................................. 96
4.2.3 Pavimento 2 Parte Baixa ............................................................................ 98
4.2.4 Pavimento 2 Parte Alta .............................................................................. 102
5 ENTRE O CONDOMÍNIO E A FAVELA: UMA INTERPRETAÇÃO
SOBRE ORGANIZAÇÃO DA MORADIA ........ 107
5.1 Em busca do “enclave”: expectativas e frustrações nos “predinhos” ... 108
5.1.1 Os “encontros de integração” e a preparação para o condomínio .............. 111
5.1.2 A ordem esperada: a condominial .............................................................. 114
5.1.3 A dinâmica da favela e a integração “pra dentro” ...................................... 120
5.1.3.1 “Ninguém respeita a gente”: a associação de moradores do Relicário ...... 125
5.1.3.2 A informalidade dos síndicos e o fim das comissões gestoras .................. 127
5.1.4 Ocupações e o desmanche do (esperado) “condomínio fechado” ............. 130
5.1.5 Divergências e o ajustamento das ordens .................................................. 134
6 REPRESENTAÇÕES DA MORADIA: O COTIDIANO NOS
“PREDINHOS” .......................................................................................... 140
6.1 “Nem muito bom, mas melhorada” .......................................................... 141
6.2 “Complicado no coletivo, cada um só sabe de si próprio” ..................... 150
6.3 “Somos do morro, não saímos da favela” ................................................ 160
6.4 “Cheguei com vontade de mudar, mas cansei” ....................................... 171
6.5 Notas sobre as trajetórias e as narrativas ................................................ 185
7 “ESPAÇOS LIVRES” EM DISPUTA: ENTRE TÁTICAS E
ACORDOS .................................................................................................. 192
7.1 Barracos e trailers: as novas instalações comerciais ............................... 196
7.1.1 “Barzinhos” ................................................................................................ 198
7.1.2 Os trailers ................................................................................................... 203
7.1.2.1 Diferentes espaços: táticas ajustadas .......................................................... 205
7.2 Plantações ................................................................................................... 208
7.2.1 O jardim de Sulamita ................................................................................. 209
7.2.2 As “ocupações verdes” de Moisés e Amós ................................................ 216
7.3 Do salão de festas e sede da Associação ao templo de Sarah ................ 229
7.3.1 Nem salão, nem sede .................................................................................. 232
7.3.2 “Com muita luta, Deus operou aqui” ......................................................... 238
7.3.2.1 Revoltas, acordos e a “vitória” de Sarah .................................................... 246
NOTAS FINAIS ........................................................................................ 253
REFERÊNCIAS ......................................................................................... 258
APÊNDICE A – Roteiro de entrevista ..................................................... 270
Relicário s.m.
(sXIV)
1 caixa, cofre, lugar próprio para guardar relíquias
2 bolsinha ou medalha com relíquias que algumas pessoas trazem ao pescoço,
por devoção; firmal
3 algo precioso, de grande valor

ETIMOLOGIA
lat. reliquĭae,ārum 'restos, resíduo de alguma coisa'
PRÓLOGO

Dia 10 de setembro de 2010. 10:30 da manhã. Caminhando pelas ruas do Complexo do


Alemão, como sempre fazia quando eu chegava ao bairro para trabalhar no Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), observei uma cena que imediatamente me chamou a
atenção: um conflito entre moradores do recém-inaugurado conjunto residencial Relicário e
moradores de uma favela vizinha. Naquele momento, eu desempenhava a função de gestor
territorial e tinha como responsabilidade fazer o acompanhamento institucional das famílias
impactadas pelas obras do programa de urbanização que estava em curso no bairro. Gritos,
insultos, e reivindicações dos dois lados marcavam aquela manhã chuvosa de inverno. Um fato,
no mínimo, curioso. Aproximei-me para tentar entender o que acontecia.
Se eu desconsiderasse as condições e as trajetórias daquelas pessoas até aquele momento
– que eu mesmo tinha vivenciado, pois grande parte daqueles moradores havia recebido as
chaves dos apartamentos na condição de “desabrigado” –, aquele conflito deflagrado entre
vizinhos de muro não evidenciaria nenhum comportamento que fuja a certo padrão de
divergências entre pessoas que vivem na mesma rua, no mesmo condomínio ou no mesmo
bairro. Ao me aproximar, percebi que o motivo da briga parecia girar em torno de uma questão
simbólica: os vizinhos disputavam a manutenção ou fechamento de uma passagem aberta no
muro que separa o conjunto Relicário da favela limítrofe, situado na parte superior do terreno.
De um lado, os novíssimos apartamentos do PAC, dispostos em blocos numerados e
coloridos, em alusão aos condomínios residenciais que observamos em encartes distribuídos e
direcionados à classe média em sinais de trânsito. Do outro lado do muro, uma grande favela
imbuída de todos os seus atributos valorativos construídos e reafirmados constantemente em
mais de um século de existência. A abertura da passagem – diziam os moradores da favela
vizinha –, permitia-os passar pela via interna do conjunto, facilitando o trânsito até o comércio
mais próximo na localidade. Do contrário teriam que percorrer alguns quilômetros em torno do
morro, tendo aquele trajeto reivindicado poucos metros até o destino desejado. Mas, os novos
moradores não recuavam e defendiam o fechamento do muro alegando ser aquele um espaço
condominial privado. Não queriam que “aqueles favelados” (nas palavras de alguns deles)
passassem por dentro do que se convencionou chamar na época de “condomínio do PAC”.
Havia uma grande expectativa sobre a possibilidade de cercamento daquele espaço de moradia.
Muitos dos novos “estabelecidos” desejavam que aquele conjunto de prédios se tornasse um
“condomínio fechado”.
Na época, como gestor do programa, relatei o caso à minha coordenadora. Em seguida,
a mesma retornou-me a ligação informando que o governador do estado do Rio de Janeiro
estava ciente do assunto e encaminhava a seguinte recomendação: ou os moradores da favela
desistiam da reivindicação ou o caso seria resolvido “na força” (palavras dele) com a presença
das forças policiais. Não tinha acordo. A prioridade era dos moradores do “condomínio”.
Estávamos no meio do processo eleitoral no ano de 2010. O então governador buscava sua
reeleição. No meio do conflito, estavam os operários do PAC, muitos deles moradores da
própria favela vizinha ao condomínio. Permaneciam paralisados sem saber como proceder
diante daquela situação, mas com as espátulas e o cimento nas mãos para cumprir a primeira
ordem que viesse de seus superiores.
Quando me dirigi a uma das lideranças do grupo pró-passagem para informar sobre a
decisão do governador, esse revoltou-se e desafiou: “que venha a polícia! Essa passagem vai
ficar aberta! Por que agora tem que fechar? Aqui todo mundo é igual. Esse pessoal que mora aí
nos predinhos acha que é melhor que os outros, mas aqui todo mundo é igual. Essa passagem
vai continuar aberta!”. Sentido que os ânimos exaltavam-se, como mediador pedi que
mantivessem a calma, pois para mim, naquele momento, o embate não ajudava a resolver a
questão. Me enganei. Alguns anos depois, ao retornar ao local, perguntei sobre a questão do
muro: afinal, fecharam ou permaneceu aberto? Aberto. Permanecia assim porque “o tráfico
mandou”, disse-me um morador. Para os “de fora”, uma questão de justiça, afinal, nem todos
“ganharam apartamento”. Para outros, os “de dentro”, uma situação sem solução: “o morro, a
favela, tá aqui, não tem jeito!”.

* * *
INTRODUÇÃO

Quem tem consciência para ter coragem


Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado


Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera.

(Primavera nos dentes. João Apolinário)

Essa tese conta muitas histórias. A mais importante é aquela que inaugura, que abre as
portas das percepções para uma possível interpretação sobre o que se quer investigar. O conflito
em torno da passagem pelo muro é uma dessas histórias inaugurais, uma passagem que expõe
de maneira dramática a maneira como a moradia no conjunto residencial Relicário1, local
definido como campo etnográfico desta pesquisa, se desdobraria ao longo do tempo. Erguido
pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em sua modalidade voltada para
urbanização de favelas, entre os anos de 2009 e 2010, esse conjunto de prédios multicoloridos
simbolizou enfaticamente o processo de transformações recentes do bairro Complexo do
Alemão2. A construção do Relicário pelo programa governamental representou a mudança na
vida de centenas de famílias desabrigadas após as fortes chuvas de abril de 2010. Ao se
mudarem para um espaço do tipo “condominial”, uma série de disputas e conflitos3 se
desencadeou no cotidiano daquela moradia popular na cidade do Rio de Janeiro.
Com as intervenções urbanísticas e as invasões e ocupações militares realizadas pelas
Forças Armadas e o conjunto das polícias civil e militar em novembro de 20104, o Complexo
do Alemão vivenciou uma série de ações de caráter público e privado que remodelaram seu

1
A escolha de um nome fictício para o conjunto de prédios, bem como das pessoas que nele vivem – como será
visto ao longo de todo o texto – tem como objetivo preservar minimamente a intimidade de todos.
2
Em 09 de dezembro de 1993 o prefeito do município do Rio de Janeiro delimitou a XXIX Região Administrativa
do Alemão, apoiado pelo Decreto n. 6011, de 4 de agosto de 1986, definindo o Complexo do Alemão como bairro.
3
Para analisar esse conflito, e os demais eventos de mesma natureza relacional que observei ao longo da pesquisa
dentro desse conjunto residencial – disputas, divergências, desentendimentos, entre outros, parto de uma leitura
otimista da ideia de conflito. Entendo-o como uma forma de interação que se opõe a indiferença e expõe as questões
que possibilitam a busca por entendimentos entre as partes. Obviamente, um conflito pode ter seu lado negativo
quando as partes envolvidas numa disputa objetivam a eliminação do seu opositor. Desta perspectiva sou
radicalmente contrário. Por outro lado, em sua dimensão sociológica, como afirma Simmel (2011 [1964]), um
conflito também pode nos indicar toda a vitalidade e a estrutura orgânica de um grupo. Este foi o ponto de partida
epistemológico que eu segui na construção desta pesquisa.
4
Tanto o PAC quanto a invasão militar no território serão discutidos no capítulo 1.
18
tecido urbano e modificaram as relações de poder entre os grupos organizados locais, bem como
das pessoas em seus espaços cotidianos de convivência comunitária. Composto por uma dezena
de favelas, a localidade passou a ser um dos principais assuntos nas mídias corporativas: tema
não só de reportagens jornalísticas, como também de propagandas e de novelas em um dos
canais, líderes de audiência da TV Brasileira. Retratado como um covil de bandidos, o “QG do
crime organizado”, o “Alemão” como também é chamado passava por um processo de quebra
de paradigmas: um local que saía da barbárie e da violência e adentrava em um novo tempo.
Agora o lugar da esperança, da mudança e da transformação.
Esse tipo de sentimento de renovação também esteve amparado pelo momento político
e econômico pelo qual o País atravessava. Há cerca de dez anos, uma grande parte dos
brasileiros – principalmente os mais pobres – vivia a expectativa de melhora de seus padrões
econômicos de vida. Tal percepção decorreu de uma agenda política formulada em torno de
reivindicações populares históricas, consolidadas na representação política do então Presidente
da república Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006 / 2007-2010) do Partido dos Trabalhadores
(PT). Foi nesse cenário que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é lançado, em
2007, pelo Governo Federal, prometendo transformar o Brasil em um “grande canteiro de
obras”5.
No Rio de Janeiro, foi a partir de 2008, que a modalidade do PAC destinada a
urbanização de favelas, denominada PAC-Favelas6, iniciou suas atividades em três
“complexos” de favelas cariocas: Manguinhos, Rocinha e Complexo do Alemão, com um
orçamento de cerca de R$ 1,3 bi7. Com os investimentos e o conjunto de intervenções em cada
uma dessas localidades, a ideia de “mudança” cresceu e se estabeleceu como mecanismo
discursivo e de “fé”. Faziam parte desses discursos e dessas práticas de transformação, a
formalização da moradia, o acesso ao emprego por meio de projetos de empreendedorismo, os
novos equipamentos públicos e meios de transporte (como o simbólico, Teleférico do Alemão,
um sistema de transportes via cabos suspensos que liga cincos favelas do Complexo do

5
"Eu estou convencido de que este ano [2008] nós vamos transformar as regiões metropolitanas e muitas outras
cidades brasileiras, eu diria, num canteiro de obras, gerando os empregos que nós precisamos gerar e gerando a
distribuição de renda que tanto nós queremos que aconteça no Brasil... nós estamos fazendo aquilo que todo
governante deveria ter feito. E eu trabalho com a perspectiva de que a gente tenha um longo período de crescimento
econômico no Brasil para que a gente apague os 26 anos de baixo crescimento que tivemos". Presidente Lula sobre
o PAC em seu programa semanal de rádio “Café com o Presidente”.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u367453.shtml. Acesso em: 14/04/2011.
6
O programa será apresentado e discutido com mais profundidade no capítulo 1.
7
Trindade (2012)

19
Alemão), entre outras obras e ações de caráter social que propunham o resgate e o
reconhecimento da cidadania, e a integração social à cidade dita “formal”.
Porém, o que parecia novidade, trazia o passivo de experiências semelhantes ao longo
do tempo. Alguns estudos sobre urbanização de favelas e remanejamento de famílias para novas
habitações construídas pelo poder público mostram que o tema, bem como as consequências
que alteram o cotidiano das pessoas mais pobres na sua relação com o espaço urbano, não são
algo novo (BOLAFFI, 1975; VALLADARES, 1978; 1981; FERREIRA DOS SANTOS, 1980;
1981; BLANK, 1980; MACHADO DA SILVA, 1981). Junto com todas essas transformações
da paisagem urbanística, parte das intervenções provocou a remoção e a mudança de centenas
de famílias para os chamados “condomínios do PAC”. Somente no Complexo do Alemão,
foram nove conjuntos residenciais e um aparato de equipamentos públicos que remodelou o
tecido urbano daquela localidade.
Para os fins que marcam essa pesquisa detive-me sobre a experiência do PAC no
Complexo do Alemão, pois, me interessava dar continuidade ao trabalho que havia realizado
no bairro para o mestrado (entre abril de 2010 e fevereiro de 2011), no qual estudei as formas
de participação popular, e sua efetividade, na implementação da política pública de urbanização
do PAC-Favelas8 na localidade. Vale destacar que, naquele momento, eu havia atuado como
“gestor de território”9 no mesmo programa que estudei. Desse modo, pesquisar a avaliação da
política colocou-se como meio para dialogar com as minhas próprias funções operacionais e as
do programa que eu fazia parte, questões que me despertaram para as primeiras reflexões sobre
o que seria a ética no trabalho acadêmico.
No entanto, diferentemente do trabalho anterior, que tinha como objetivo “avaliar as
políticas sociais”10, esta pesquisa teve como objetivo ouvir e compreender como as famílias
que, atualmente, moram no conjunto Relicário significavam seus novos espaços residenciais,
passados três anos desde as suas realocações. Por meio de uma etnografia dos espaços urbanos
(Cf. URIARTE, 2013), realizei observação participante e analisei uma série de narrativas junto
com os moradores e as moradoras do Relicário, buscando entender as novas formas de

8
Dessa pesquisa resultou a dissertação OLIVEIRA, B.C.S. Políticas Públicas e Participação Popular na
implementação do PAC Social no Complexo do Alemão, RJ. 2011. 114f. Dissertação (Mestrado em Política
Social). Departamento de Serviço Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ. 2011.
9
Como será detalhado em parte desta tese, exerci função no “Trabalho Social”: eixo responsável pelo
acompanhamento das famílias impactadas pelos efeitos das obras.
10
A linha de pesquisa criada no programa de pós graduação do Departamento de Serviço Social na qual eu me
filiei naquele momento era intitulado “Monitoramento e Avaliação de Políticas Sociais”. O esforço em última
instância era identificar os “avanços” e as “dificuldades” na implementação das políticas sociais a partir de
governos orientados pela perspectiva social-democrata – governos Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e
Lula (2003-2010).
20
sociabilidade no local. Dito de outro modo, procurei compreender como as pessoas que viviam
em espaços projetados por arquitetos urbanistas sociais significavam e praticavam as suas
próprias moradias. A pesquisa de campo ocorreu, de fato, entre novembro de 2014 e novembro
de 2016, com algumas idas esporádicas durante o ano de 2017.
A partir de uma perspectiva fenomenológica (MERLEAU-PONTY, 1999), passei a
considerar as intencionalidades dos sujeitos por meio de suas movimentações, relações e
experiências no espaço vivido. Ao longo da pesquisa, não só a partir do Relicário, mas
reconhecendo em outros conjuntos residenciais construídos pelo PAC no Complexo do Alemão
por onde passei, observei-os como espaços socialmente compartilhados e construídos
dialeticamente na relação entre os viventes, nos limites da cidade “formal” no curso do tempo
e na relação com o espaço (urbano). Ainda no período de atuação como gestor, já observava
que os “condomínios do PAC” modificavam-se em sua composição físico-espacial articulados
com a dinâmica do bairro, como meio e produto para um tipo de reprodução das relações sociais
na cidade. A paisagem e as funcionalidades pré-concebidas pelos arquitetos urbanistas na
produção daquela habitação, onde a “racionalidade estatal [foi] até o fim” Lefebvre (2001,
p.26), passava a realizar-se na plasticidade dos usos, nas apropriações dos objetos pelas pessoas,
a partir de suas objetividades relacionadas as suas condições de existência e submetidas às
intersubjetividades que compõem as expectativas e os desejos entre aqueles que compartilham
um mesmo espaço de vivência.
Dito isso, vale justificar o porquê da escolha do Relicário entre os oito conjuntos
construídos pelo PAC. Deu-se por dois motivos. Primeiro, por estar localizado em uma área
central do bairro, entre a área dita “formal” da cidade e o conjunto de favelas, nas fronteiras
entre duas representações que compõem aquele tecido urbano. Segundo, com a observação do
conflito em torno da passagem pelo muro, narrado no prólogo desta tese, este caso parecia
fornecer pistas sobre a forma como as pessoas se estabeleceriam naquele espaço, após as
mudanças do espaço. Especificamente sobre esse ponto, o conflito colocou-se como epítome
das transformações de fronteiras socioespaciais provocadas pelo PAC no Complexo do
Alemão.
Assim, principalmente a partir desse segundo motivo, considerei-o como evento-chave
ou inaugural para entender que tipo de sociabilidade estava em curso dentro do conjunto.
Elaborei as seguintes perguntas: por que aqueles novos moradores do conjunto Relicário
diferenciaram-se dos demais moradores favelados, tendo em vista, que todos, até adquirirem

21
seus apartamentos, viviam sob condições muito parecidas? Quais eram as questões que estavam
colocadas por trás daquele desejo de separação?
Dessas perguntas elaborei a primeira hipótese que orientou inicialmente a pesquisa:
estaria ocorrendo um processo de segregação socioespacial dentro do bairro a partir desses
conjuntos residenciais do PAC? Um dupla segregação socioespacial – uma segregação dentro
de um bairro segregado da cidade?
Alguns trabalhos demonstram que a segregação nas cidades contemporâneas está
relacionada com perfis populacionais bastante diferentes, tendo como base analítica a
correlação de fatores como a classe social, a raça, a escolaridade e a ocupação/função no
mercado de trabalho (Cf. PRÉTECEILLE, 2004; SMITH, 1996; PATTILO, 2007; RIBEIRO et
KAZMAN, 2008). Pesquisas como a de Marques (2005) mostram que habitação social
construída pelo Estado pode influir negativamente, materializando processos de segregação
territorial, reforçando a segregação por meio da construção de empreendimentos para os grupos
sociais pobres, em locais já segregados espacial e socialmente. Considerando esse debate,
focalizei o caso do PAC, em que as pessoas foram realocadas para conjuntos residenciais
construídos no próprio território em que já viviam. Nesse sentido, a intervenção estatal na
produção da habitação havia provocado uma diferenciação entre as pessoas: uns haviam sido
contemplados com apartamentos, outros, ficaram de fora, literalmente. Como efeito dessa
diferenciação, como já mencionado, aqueles que buscavam se separar dos demais vizinhos
favelados poderiam estar gerando uma dupla segregação, ou seja, uma segregação dentro de
um espaço já segregado do restante da cidade, como é o caso do Complexo do Alemão.
Duas questões ainda me conduziam a persistir com essa hipótese de uma possível
segregação em curso: a reiteração sistemática do valor da moradia de tipo condominial por meio
dos discursos governamentais no período de implementação do PAC e, como consequência, a
possibilidade de um processo de distinção (BOURDIEU, 2008) a partir da assimilação quase
direta e automática do “gosto burguês” dos condomínios pelos antigos desabrigados. Inspirado
pelo debate de Caldeira (2003), que demonstra que as moradias de tipo condominial destinados
às classes mais abastadas servem também como mecanismo gerador de distinção social,
entendi, inicialmente que um efeito semelhante poderia ocorrer com as classes pobres. Nesse
sentido, aquela prática recente do morar em “condomínio” poderia alimentar nas pessoas um
desejo de separação dos demais vizinhos, ou ainda, uma busca pela “limpeza” do estigma
(GOFFMAN, 2008) do ser favelado com a constituição e reconhecimento de uma “nova”
identidade.

22
No entanto, ao longo da pesquisa, fui percebendo que esse mecanismo individualizado
de distinção/limpeza das identidades explicava apenas, em parte, a dinâmica interna das
relações entre os moradores de dentro e os de fora do Relicário. As representações sobre o lugar
de moradia mostraram-se altamente fragmentadas e concorrentes entre si, variando em suas
interpretações, ora mais positivas, ora mais negativas, de acordo com as instâncias da vida
mobilizadas nas narrativas das pessoas. Além disso, uma outra questão passou a colocar-se
visualmente e nas falas dos moradores de maneira preponderante: a questão da organização e
dos ordenamentos que regulam os espaços internos comuns do Relicário.
A manutenção do portal aberto e a continuidade dos circuitos de trocas de objetos e
compromissos entre pessoas do Relicário e da favela vizinha; as relações comerciais, familiares,
religiosas e de amizade entre, até mesmo, aqueles que estiveram em lados opostos no momento
da disputa em torno do portal; todos esses intercâmbios contínuos desmanchavam no ar a minha
primeira hipótese e as possibilidades de segregação espacial. Ademais, conversando com os
moradores do Relicário, o auto reconhecimento do ser favelado parecia não incomodar os novos
condôminos, como eu imaginava. As práticas que foram projetadas para estar fora do Relicário
continuavam ali. A permanência dos “meninos da marcação” e a ingerência do “tráfico” 11 nas
questões internas do conjunto situava aqueles vinte e dois prédios multicoloridos no
ordenamento da favela. O desejo de condomínio fechado no estilo “enclave fortificado”
(CALDEIRA, 2000) parecia ter se esvaído na dinâmica assimétrica de poder que compõe as
relações entre moradores, diferentes grupos sociais e os grupos armados no bairro.
Mais do que nunca, a questão da ordem do espaço vivido colocou-se como central para
explicar o início de tudo: o conflito em torno da passagem pelo muro. Para uns, deixar o portal
aberto, significava estabelecer simbolicamente a relação de submissão com a ordem “de fora”.
Para outros, reivindicar a manutenção do portal, representava posicionar a “favela” como a
“contra-mola” que resiste aos efeitos dissonantes da política de urbanização. No curso do
tempo, as divergências interpretativas e as disputas internas passaram a se ajustar como
mecanismo de acomodação organizacional dentro do Relicário.

11
Coloco a palavra “tráfico” entre aspas, pois, ao longo da pesquisa, percebi que não se tratava do único termo
utilizado pelos viventes do Relicário. Os moradores, utilizam outras palavras ou nomes como “bandidagem”,
“movimento”, “os meninos” para se referirem a essas práticas. Ademais, vale destacar que pesquisas na área da
criminologia crítica (Cf. Zaffaronni, 1991; Zaccone, 2007; Batista, 2007) têm mostrado como o termo “tráfico de
drogas”, quando usado para se referir ao comércio varejista de substâncias ilícitas nas favelas, serve para reificar
estigmas, aprisionar a juventude negra e favelada ou para justificar a eliminação dessa parcela da população pelas
forças do Estado. Desse modo, todas as vezes que mencionar termos que se referem ao mercado varejista de drogas
na favela, esses aparecerão aspeados – um efeito retórico que busca desnaturalizar os usos dos termos tráfico e
traficante.
23
Dito isso, para melhor expor, detalhar e refletir sobre as questões expostas na
introdução, bem como os desdobramentos de um regime de ordenamentos ajustados, apresento
a partir de agora um resumo dos capítulos que compõem esse trabalho. Convido as professoras
e os professores desta banca a seguirem na leitura, observando as transformações, não só do
espaço urbano do Complexo do Alemão, mas e, sobretudo, das fronteiras que marcaram as
interações entre os sujeitos envolvidos na pesquisa.
Primeiramente, apresento as referências ético-metodológicas do trabalho e,
posteriormente, compartilho três notas etnográficas de reentradas no campo, que irão trazer os
elementos iniciais para os desdobramentos da pesquisa etnográfica que realizei ao longo desses
últimos cinco anos Capítulos 1 e 2 dessa tese.
Em seguida, no Capítulo 3, com base no histórico de transformações dos subúrbios do
Rio de Janeiro, marcados pela urbanização e industrialização de seu espaço, busco mostrar os
processos iniciais de formação do bairro do Complexo do Alemão, identificando padrões e tipos
de arranjos sociais que vão caracterizar uma forma de ocupação e fixação no solo da região.
Em seguida, tendo o bairro, a partir dos anos de 1980, passado por um processo de
desindustrialização e por uma série de mudanças na lógica de organização territorial, busco
analisar a proposta de “urbanização social” do PAC-Favelas, que teve como objetivo integrar o
bairro à cidade dita “formal”. Como um dos resultados do programa federal, estruturado sob
uma perspectiva metodológica hierarquizada, seletiva e fragmentada, mostro como surgem os
“condomínios do PAC”, representados ao longo da implementação do programa como o lugar
da “nova vida” para os moradores de favela.
No Capítulo 4, a partir de um campo de pesquisa já estabelecido, apresento o resultado
da etnografia dos espaços que realizei por dentro do terreno do conjunto Relicário. O objetivo
desse capítulo é compartilhar com o leitor as primeiras impressões visuais e de escuta que
registrei no curso de diversas circulações pelo interior dos espaços do Relicário. Muitas vezes,
ao lado de Paulo, um dos meus principais interlocutores no campo, procurei organizar os
espaços em uma “cartografia social” apontando as principais transformações que observei
daquele lugar e algumas implicações que nasceram com as primeiras disputas em torno dos
espaços.
Partindo do caso do conflito em torno do portal, no Capítulo 5, proponho-me a refletir
sobre as justificativas apresentadas pelos moradores, privilegiando a fala e o posicionamento
de um grupo específico de moradores – os síndicos. Como destacarei no capítulo, esse síndicos
foram lideranças forjadas nas instâncias criadas pelo PAC, onde havia uma “preparação para

24
morar em condomínios”. Nos chamados “encontros de integração”, esses moradores
colocaram-se como grupo crítico ao que chamaram de “continuidade da favela no condomínio”.
Ao mesmo tempo, mostro como as práticas internas consideradas negativas pelos críticos
materializaram-se como expressão de um “modo de vida” no espaço urbano. Tomando por base
conceitos importantes trabalhados nos estudos sobre sociabilidade e rotinas em espaços de
favela, como “sociabilidade violenta” (MACHADO DA SILVA, 2004a; 2004b; 2008),
“coexistência” (CAVALCANTI, 2008) e “favela consolidada” (CAVALCANTI, 2007), esse
capítulo mostra como a projeção do condomínio fechado constitui-se, fundamentalmente,
baseado nas ideias de ordem e segurança. No entanto, a expectativa de condomínio vai se
desmanchando a partir de uma série de interseções entre o conjunto e a favela, indicando
continuidades e rupturas nos processos de formação desses espaços de moradia popular na
cidade.
No Capítulo 6, aprofundo as questões já apresentadas no capítulo anterior, sob a
perspectiva dos seus próprios viventes. Assim, compartilho quatro narrativas que mostram a
maneira como esses moradores representam suas trajetórias de vida até o Relicário com a
profundidade, a complexidade e a fragmentação, características de pessoas que vivem a
intensidade das incertezas e das promessas (políticas e divinas) cotidianas. A partir de uma teia
de interpretações divergentes e disputas narrativas que caracterizam o morar do Relicário, esses
quatro moradores contam suas histórias fornecendo um material importante para a reflexão
sobre o cotidiano da moradia nesse conjunto residencial erguido pelo PAC. Aqui, as narrativas
expõem, detalhadamente, a materialidade das experiências pessoais nos processos
organizacionais, as relações sociais e os arranjos políticos no interior do Relicário, bem como
demonstram as perspectivas individuais e as representações sobre a “nova vida” que surge como
promessa cotidiana no Bairro e no Relicário. A seleção dessas trajetórias considerou os papéis
de caráter mais público que esses atores desempenharam até aquele momento da entrevista e
por considerar suas histórias de vida emblemáticas diante das condições simbólicas e materiais
em que se encontravam no momento de aquisição dos apartamentos. Essas histórias trazem um
rico material para análise sobre as representações, não só do Relicário, mas da vida cotidiana
no bairro do Complexo do Alemão.
Por fim, no Capítulo 7, exponho algumas situações críticas que evidenciam as
dinâmicas de disputa em torno dos espaços de uso comum, que chamarei de “espaços livres”.
Aqui procuro descrever a maneira como os atores traçaram suas “táticas desviacionistas”
(CERTEAU, 2008) para garantir que as suas expectativas e as suas necessidades em relação ao

25
espaço de moradia se realizassem em uma ordem violenta. Por outro lado, utilizo-me da
contribuição da “sociologia da crítica” (BOLTANSKI & THÉVENOT, 1999; 2006) que
reconhece, a priori, a capacidade reflexiva dos atores para elaborar suas “justificações” na
busca por soluções sobre situações críticas de divergências resultantes de diferentes “ordens de
grandeza”.

26
1 ÉTICO-METODOLOGIA DA PESQUISA

Quanto maior o número de causas que


contribuem, simultaneamente, para suscitá-lo,
tanto maior é o afeto
(Ética. Spinoza)

1.1 Reentradas: entre afetos e (possíveis) ressignificações das representações

O período da pesquisa de campo para a tese aconteceu entre setembro de 2014 e


dezembro de 2016. No entanto, desde 2010, minha relação com o bairro e com as pessoas que
vivem no Complexo do Alemão foi frequente em diferentes momentos e formas de atuação e
representação no território.
Minha chegada ao Complexo acontece no dia 06 de abril de 2010 como “gestor
territorial” do PAC-Social – o eixo “social” do programa de urbanização do governo federal
intitulado PAC-Favelas12. O momento era de grande agitação e comoção pública, pois dois dias
antes havia ocorrido uma intensa chuva na região deixando um rastro de destruição, sujeira e
centenas de famílias desabrigadas literalmente da noite para o dia13. Ao longo do período como
gestor exerci o papel de intermediador estatal entre a população afetada pelos empreendimentos
e o governo do estado. Representando o programa anotei e encaminhei pedidos de moradores
dos mais variados possíveis: pedidos de emprego, de cesta básica e de inclusão do nome para
listagens que garantiam a participação em sorteios de unidades habitacionais eram os mais
recorrentes. Da mesma forma, acompanhei vistorias de casas indicadas pelas equipes de
engenheiros e técnicos para remoção, supervisionei atividades socioculturais realizadas por
ONGs locais e ONGs externas, financiadas pelo PAC-Favelas, participei de reuniões que se
propunham compartilhar informações sobre as obras com a população, reuniões que tinham
como meta construir coletivamente agendas propositivas para ações de governo para a região,

12
O programa será apresentado e discutido com mais profundidade no capítulo 1.
13
Os efeitos das “chuvas de abril”, bem como as consequências desse acontecimento na implementação do
programa e na forma como as pessoas – moradores, gestores e lideranças locais – se orientaram no tempo, será
trabalhado ao longo de toda essa tese como um evento-chave, tanto em sua dimensão emergencial (o acontecimento
como propulsor de “crise”), quanto como mecanismo de produção da ação pública dos afetados durante e após o
evento (pela busca de solução e sua materialidade alcançada). A construção e a ocupação dos conjuntos
residenciais construídos pelo PAC tornam-se consequência imediata desse evento-chave, como veremos mais a
frente.

27
entre outras atividades de caráter burocrático. Mesmo com uma atuação parcial – considerando
que a arena pública14 do PAC-Favelas no Complexo do Alemão foi composta por outros
intermediadores representantes de variados órgãos de governos, da iniciativa privada e de
instituições comunitárias com posições e poderes de decisão variados, em uma complexa rede
de articulações políticas locais – a minha imagem como gestor tornou-se algo representativo na
região.
Com a minha saída do PAC-Social, onde trabalhei de abril de 2010 a setembro de 2011,
meus retornos ao bairro ocorreram principalmente via Instituto Raízes em Movimento 15,
instituição que atua no território há 16 anos por meio de diversas ações de caráter sociocultural.
Até o início da pesquisa para o doutorado, minhas idas ao Complexo do Alemão foram pontuais,
participando de eventos organizados pelo instituto nas favelas do bairro. Tais eventos tinham
como objetivo discutir os principais impactos (predominantemente negativos) gerados pelo
PAC-Favelas no bairro. Esses eventos envolviam diversos atores e grupos locais e grupos
externos ao Complexo do Alemão (militantes, intelectuais acadêmicos, lideranças comunitárias
e moradores), sob a perspectiva da multiplicidade de representações sociais e políticas.
Cabe ainda apontar que entre 2011 e 2013, também com o apoio do Instituto Raízes em
Movimento, participei junto com as professoras Adriana Facina (Museu Nacional/UFRJ),
Adriana Carvalho Lopes (IM/UFRRJ) e o professor Daniel do Nascimento e Silva (UFSC) do
projeto “Mapeamento das produções culturais e das práticas de letramento em três favelas do
Complexo do Alemão”. O objetivo foi mapear as principais iniciativas culturais e de práticas
de letramento nas favelas do bairro com o intuito de estimular novas iniciativas de produtores
e artistas locais. A ideia era contribuir para o fortalecimento de uma economia da cultura já

14
Aqui utilizo-me do conceito de “arena pública” sob uma perspectiva pragmática baseado na interpretação de
Daniel Cefai (2012 [2002]). Referenciado pela obra do filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952), Daniel
Cefai concebe uma arena pública como um espaço onde o “público” não é mais monopólio do Estado. Isso quer
dizer que, além de não partir de um pressuposto moral normativo sobre as formas ideais de funcionamento de um
regime democrático ou republicano – presentes nas obras referenciais de Hanna Arendt e Jurgen Habermas – a
dinâmica que forma tal arena está imbuída de um processo permanente de disputas, divergências e controvérsias
entre diferentes atores individuais e coletivos em torno daquilo que se entende como “assuntos públicos”. Sob a
perspectiva pragmática, Cefai recupera as arenas públicas em suas dinâmicas de emergência, focalizando antes de
tudo as atividades práticas sob as situações em que se apresentam. Cefai não desconsidera as relações de poder e
as assimetrias dos atores que constituem as arenas, no entanto, privilegia em sua construção conceitual a
perspectiva da análise sobre como os “atores individuais, organizações e instituições se comprometem em um
esforço coletivo de definição e de controle da situação percebida como problemática. [Como] expressam, discutem
e julgam opiniões; localizam problemas, lançam sinais de alerta ou de alarme, entram em disputas, polímicas e
controvérsias, configuram temas de conflito, resolvem crises e logram compromissos”. (CEFAI, 2012 [2002], pg.
4)
15
www.institutoraizesemmovimento.org.br - acesso em 02/02/2018

28
existente na localidade. Nesse trabalho, minha participação voltou-se mais para a reorganização
dos dados coletados no período da minha pesquisa no mestrado que subsidiassem aquela
pesquisa em curso. No período eu atuava como coordenador na superintendência de gestão da
informação da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão do Governo do Estado do Rio de
Janeiro. Nessa condição, eu não conseguia estar tão presente no Complexo do Alemão.
Com minhas idas esporádicas ao bairro, quase sempre sob uma agenda pública local
voltada para a crítica política do programa no qual eu havia participado de maneira direta, minha
presença era sempre referenciada pelo trabalho que eu desenvolvera como gestor. Mesmo
quando me colocava pública e criticamente em relação as formas como o programa foi
implementado no território – de forma clientelista e autoritária –, inclusive sob uma permanente
autocrítica em relação ao papel que exerci no período, a imagem de gestor parecia resistir na
leitura local sobre mim. Uma passagem que ilustra bem essa situação foi a abordagem de uma
moradora em um desses eventos promovidos pelo Raízes em Movimento. Ao final do encontro,
após tecer uma série de críticas ao programa, essa mesma moradora chegou até a mim e pediu
desculpas pela abordagem negativa que havia construído sobre o PAC. Ela, naquele momento
residente em um dos apartamentos do PAC, disse-me: “meu filho, eu precisava falar sobre os
problemas que eu tive, mas estou feliz no meu apartamento. É pequeno, mas é muito bom,
arrumadinho. Desculpe-me aí qualquer coisa, tá?”.
Ao reentrar no Relicário, praticamente, cinco anos após a minha saída do programa,
percebi que pouco havia se alterado. No entanto, é importante ressaltar que em um primeiro
momento, bem no início da pesquisa, o fato de ter atuado na região como gestor auxiliou-me
nas primeiras reentradas. Os primeiros contatos aconteceram pelo histórico de conhecimentos
que eu tinha dentro do Relicário. Mas, logo o peso da representação governamental ressurgiu
com a força operativa das relações do passado. Pedidos de emprego, de cestas básicas, de vaga
em hospital, escola e creches foram recorrentes. Da mesma forma, alguns moradores chegavam
até a mim para denunciar as rachaduras nos prédios ou mesmo a falta de manutenção, a sujeira,
a “bagunça” – termo recorrente nas falas dos moradores – em que se encontravam dentro do
condomínio. “Fomos abandonados e largados pelo governo aqui”, uma fala que ouvi diversas
vezes e que, no fundo, causava-me desconforto, já que eu havia participado daquele programa.
Algumas pessoas demonstraram receio em falar comigo por medo da “fiscalização do governo”.
Quando eu fazia alguma pergunta quase sempre vinha a primeira resposta: “se eu falar com
você não vou perder meu apartamento não, né?” ou “ele tá aqui pra fiscalizar os apartamentos?”
Como veremos mais a frente, negociações de compra, venda e aluguel dos apartamentos

29
ocorreram desde a inauguração do conjunto residencial, o que por regulação do programa é
vedado. Assim, diante dos efeitos daquela política no bairro era compreensível a postura deles
em relação a mim.
O exercício que fiz a partir desse momento de reentrada foi tentar me descolar da
imagem de “governo”. Estrategicamente, principalmente no inicio, precisei construir uma
imagem de pesquisador. Mesmo com a ajuda momentânea dos conhecimentos do passado,
realizar a pesquisa recorrendo a “fachada”16 (GOFFMAN, 1985) governamental seria correr o
risco de reestabelecer as relações no campo em uma atmosfera clientelista, que havia orientado
a dinâmica participativa da população no PAC do Complexo do Alemão. Assim, à medida que
a pesquisa se desenvolvia, esse descolamento foi ocorrendo de maneira progressiva,
possibilitando a construção de representações mais fragmentadas e multilocalizadas. Nossas
performances foram alterando-se e os nossos compromissos passaram a se estabelecer por um
outro contexto17 de relações. Não estávamos mais em 2010 na arena do PAC-Favelas.
Langdon (2006) explica que a “performance” é um evento situado num contexto
particular, construído pelos participantes. Na linha interpretativa da autora, o termo pode ser
entendido como “um ato de comunicação, mas como categoria distingue-se dos outros atos de
fala, principalmente, por sua função expressiva ou ‘poética’” (LANGDON, 2006, p. 167). Há
sempre papéis e maneiras de falar e de agir que são contextuais e modais, onde a experiência
“é um elemento importante invocado [...] sendo expressado, simultaneamente, através de vários
meios comunicativos” (SULLIVAN, 1986 apud LANGDON, 2006, p. 168). As roupas, os
gestos, as aparências, as práticas foram se ressignificando, a medida em que nos situávamos em
um outro momento no tempo/espaço.
Com o passar do tempo e o desenvolver da pesquisa, o caráter imperativo da
representação estatal foi diminuindo e a minha presença no campo foi se multifacetando em

16
Sob a interpretação de Goffman (1985) a “fachada” seria a “parte do desempenho do indivíduo que funciona
regularmente de forma geral e fixa com o fim de definir a situação para os que observam a representação”
(GOFFMAN 1985, p. 29), ou seja, a fachada metaforiza a representação social a partir das práticas desempenhadas
diante de seu interlocutor e sua “platéia”. Formadas por “estímulos”, para o autor a fachada estaria dividida em
duas dimensões: a da “aparência” e a da “maneira“. O primeiro refere-se aos estímulos que funcionam no momento
da interação para nos revelar o status social ou o estado ritual temporário do ator, ou seja, o empenho numa
atividade social formal, um trabalho ou qualquer atividade exercida perante o outro. O segundo, a “maneira”,
Goffman define como os estímulos que evidenciam o papel que o ator espera desempenhar na interação e quais os
tons os atores enfatizam nas relações com seus interlocutores, sendo este um movimento recíproco.
17
A ideia de “contexto” está aqui, sob a lente das metamorfoses pelas quais as cidades inscrevem-se. Para Lefebvre
(2008, p.61) o contexto é “a vida cotidiana, as relações imediatas, o inconsciente do ‘urbano’, aquilo que não se
diz mais e que se escreve menos ainda [...] aquilo que está acima [grifo do autor] desse texto urbano (as instituições,
as ideologias)”. Nesse sentido, o contexto é uma inter-relação de circunstâncias que formam uma situação, tendo
como base as condições materiais e simbólicas que as pessoas encontravam-se em um dado momento.
30
representações mais fragmentadas e multilocalizadas. Outras expressões das nossas
individualidades foram se interconectando como partes de um todo em reconstrução – pai,
professor, pesquisador, trabalhador, marido, músico, suburbano, “playboy” – em um universo
de representações que se expandia cotidianamente, de um lado (o meu) e do outro (meus
interlocutores). Ao mesmo tempo, o que eu aparentemente representei para um grupo não se
desdobrou automaticamente para outros grupos dentro do Relicário. Em cada grupo ou pessoa
que eu me relacionava, uma dessas partes foi ressaltada de acordo com os compromissos que
estabelecíamos em nossas conversas e ações
Na prática, dentro do Relicário, nesse novo contexto de interações, nossos
compromissos passaram a se estabelecer não mais na relação entre “aquele que pede ao
governo/aquele que deve atender como governo”, mas em um misto de representações que
embaralhava as dicotomias “visitante/anfitrião” ou o “pesquisador/pesquisado”. Em última
instância, as práticas e os conteúdos relacionais chegaram a se inverter, pois, diferente dos
tempos do PAC, quem passou a fazer pedidos no campo foi eu – entrevistas, acompanhamento
para circulação dentro do Relicário, de documentação dos apartamentos, de registros de
participação no PAC, etc.
Cabe destacar ainda que, de maneira complementar e dialógica ao que ocorria dentro do
Relicário, um outro movimento influenciou a desconstrução da imagem governamental que
faziam de mim na região (ou pelo menos certa relativização): minha maior inserção e presença
nas atividades do Instituto Raízes em Movimento. Desde o início da pesquisa, participei de
diversas atividades promovidas por e com eles, o que me proporcionou inclusive fazer parte do
corpo gerencial e administrativo do instituto a partir de junho de 2016.
O conjunto de atividades tanto no Relicário, quanto no Raízes em Movimento, tornaram
minha circulação no Complexo do Alemão mais fluida, fazendo com que minha presença fosse,
de alguma forma, mais naturalizada com o passar do tempo. Ser membro do Raízes em
Movimento, dentro do Relicário, auxiliou-me de maneira significativa no processo de
permanência e circulação interna no conjunto residencial. Muitos conheciam e admiravam os
trabalhos e as atuações públicas do “Professor Alan” (diretor do instituto/educador) e do David
Amen (presidente executivo do instituto/artista plástico e grafiteiro), membros fundadores do
instituto. Esse foi um ponto importante no processo de reentrada no conjunto residencial
Relicário. Desde então, tenho estabelecido relações de amizade e profundo respeito com
diversas grupos e pessoas que compõem aquele corpo comunitário.

31
Como pode ser visto, desde as primeiras reentradas a necessidade de renegociação das
identidades foi permanente em um processo contínuo de reconstruções representacionais. Aqui
trabalho a ideia de representação, a partir da definição de Mary Jane Spink (1993), como
conhecimento processual do outro ou de qualquer objeto sendo

produto de determinações tanto históricas como do aqui-e-agora e construções que


têm uma função de orientação: conhecimentos sociais que situam o indivíduo no
mundo e, situando-o, definem sua identidade social – o seu modo de ser particular,
produto de seu ser social (Op.cit, p. 8).

Sá (1998), de maneira complementar, nos ajuda a pensar o processo de formação das


representações quando atribui à práxis o mecanismo formador e organizador da própria
representação social. Para o autor, as representações “emergem das práticas em vigor na
sociedade e na cultura.[...] perpetuando-as ou contribuindo para a sua própria transformação”
(SÁ, 1998, p.40). São as práticas cotidianas que redimensionam as dinâmicas relacionais e
constituem as representações no contexto em que elas se desenvolvem. Aqui, nessa experiência
relatada, o contexto tornou-se um elemento estruturante desses processos de significação e
ressignificação das representações nas relações estabelecidas.
Com a mesma intensidade, de maneira processual, no dia a dia do trabalho que me
propunha a realizar, outras formas de afetos passaram a situar-me diante dos meus
interlocutores e vice-versa. Favret-Saada (2005) diz que ser afetado é aproximar-se e
experimentar o lugar do outro; é deixar-se “enfeitiçar”, participando, ativamente, de um sistema
de atribuições que ordenam o mundo do outro. Para colocar-se no lugar do outro é necessário
compartilhar práticas. A maneira como passei a me situar diante dos moradores do Relicário
contribuiu significativamente para um outro tipo de compromisso dentro do conjunto. Ao longo
dessa empreitada da pesquisa vivi intensos dramas familiares – como o falecimento do filho
recém-nascido de uma pessoa bem próxima a mim no Relicário, participei de festejos
comunitários, de encontros entre vizinhos com churrasco, música, banho de mangueira, funk e
cerveja na mesa.
Por fim, sem esse exercício de ressignificação da imagem do gestor, teria sido difícil que
um “estrangeiro” (SIMMEL, 1983) com as minhas características e em um contexto de grande
desconfiança circulasse com mais desenvoltura por ali e, consequentemente, conseguisse fazer
as observações, as escutas e as anotações no campo que me propus realizar. No final da
pesquisa, já não me associavam mais a qualquer representação de instituição governamental e
os compromissos passaram a se estabelecer em outra ordem de interações. Assim, sentir e

32
experimentar o lugar do outro, sem que eu me fizesse o próprio outro, fizeram parte de um
mesmo processo de ressignificação das representações, de ambas as partes da relação.

1.2 Perspectivas etnográficas

Em consonância com Geertz (1989), entendo que o ato de etnografar não se refere
somente a uma questão de método, como um conjunto de técnicas aplicáveis a uma
investigação. O autor afirma que praticar a etnografia é mais que “estabelecer relações,
selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um
diário, e assim por diante”, pois não são as técnicas que definem o empreendimento. O que
define o esforço intelectual da etnografia é o “risco elaborado para uma ‘descrição densa’”.
(GEERTZ, 1989, p. 15). Tal risco da densidade descritiva deve levar em consideração uma
“hierarquia estratificada de estruturas significantes” onde uma série de manifestações locais são
produzidas, percebidas e interpretadas. (Op.cit., p.17). O que está em jogo é justamente como
tais manifestações podem ser significadas no campo. Uma mesma ação pode ter diversos
significados em um mesmo espaço-tempo, como por exemplo o ato de piscar, que pode ser
apenas tique nervoso, como o ensaio da farsa da imitação de piscar, como exemplificou Geertz
(1989, p.16).
Esse é um ponto importante da pesquisa que realizei, pois como veremos mais a frente (
– principalmente nos capítulos 4 e 5), os diferentes sentidos das narrativas sobre uma mesma
questão são apresentados pelos meus interlocutores de dentro do Relicário. Por exemplo, a
forma como a atuação dos síndicos na gestão dos prédios do conjunto, bem como os processos
de ocupação dos espaços livres no interior do conjunto revelaram diferentes entendimentos
sobre os mesmos contextos vivenciados. Uma divergência hermenêutica sobre os significados
do espaço vivido, referenciada, primordialmente, nas ações dos atores que compunham aquela
vida compartilhada, deflagrou-se ao longo de todo o trabalho. Fato que me exigiu um trânsito
interno e uma capacidade de escuta que eu ainda não havia experimentado ao longo da minha
trajetória acadêmica.
Nesse sentido, cabe ressaltar que a construção dessas interpretações sobre o universo do
outro esteve, intimamente, relacionada com a forma como nossas interações se estabeleceram.
Ela esteve permeada por relações de poder nem sempre evidenciadas no dia a dia da pesquisa,
mas que interferiram diretamente no resultado de escuta e observação no campo. James Clifford
(1995) argumenta que “autoridade etnográfica”, ainda que muitas vezes escamoteada, interfere
no resultado da pesquisa. O antropólogo destaca a necessidade de se considerar e problematizar
33
a monofonia muito comum em escritas etnográficas que, recorrentemente, reafirmam uma
perspectiva colonial sobre a representação do outro e de sua cultura. Para que essa escrita
interpretativa não se torne unilateral é preciso reconhecer que os informantes são pessoas com
nomes próprios reais, que escrevem, legitimamente, suas próprias histórias, enredados por um
universo extremamente polifônico, postura indispensável na produção desse tipo de
conhecimento. Desse modo, Clifford (Op.cit, p. 45) destaca a necessidade da construção de um
tipo de etnografia baseada em um “processo de diálogo em que os interlocutores negociam
ativamente uma visão compartilhada de mundo”; uma dialogia que busca desafiar a autoridade
etnográfica, mesmo que, ao final, a voz do pesquisador seja aquela que estabelece a escrita
definitiva.
Essa foi uma questão que me acompanhou permanentemente tanto no processo de
registro do material primário (o que eu deveria anotar e considerar), quanto no próprio momento
da escrita (o que escrever?). Uma questão atravessou minhas reflexões: de que maneira iria
expor os dados construídos e qual o formato seria utilizado para montar esta tese de doutorado.
Diante dessa “arriscada” dinâmica de interpretação negociada, passei a encarar minha escrita
de forma “alegórica”, ou seja, “uma interpretação que interpreta a si mesma” (CLIFFORD,
1995, p. 65), pois não há mais a possibilidade de se definir uma só versão ou um olhar unilateral
sobre o outro e as coisas. Assim, reconhecer que a escrita etnográfica é alegórica significa dizer
que retratos realistas, na medida em que são “convincentes”, são no fundo metáforas extensas,
padrões de associações que apontam para hegemonias interpretativas. Logo, perceber a alegoria
das escritas etnográficas nos evidencia o caráter narrativo das representações culturais e o que
está em jogo é, exatamente, o resultado dessas visões de mundo e suas construções.
Assim, uma escrita etnográfica aponta para uma questão fundamental na construção das
representações: a necessidade de se pensar a etnografia como uma “prática generalizada”, ou
seja, como a produção de conhecimento sobre o outro que deve ser estabelecida e restabelecida,
negociada e renegociada, a partir da construção de um mundo de experiências partilhadas com
o próprio pesquisador. Surge assim um campo de possibilidades interpretativas onde não há “a
verdade” a ser encontrada, mas uma certa realidade socialmente construída, como já indicaram
Berger e Luckmann (1985). Como bem nos alerta Clifford (1989), ao mesmo tempo em que
etnografamos o “nativo”, esse também nos etnógrafa, produzindo uma etnografia da etnografia.
Logo, o trabalho etnográfico passa a se constituir como instrumento epistemológico que nos
permite acessar o possível, o que está ao alcance de nossas possibilidades de apreensão, sempre
como resultado das nossas interações e relações, mais ou menos duradouras, com o outro.

34
Todo esse esforço de reflexão sobre o meu lugar e dos meus interlocutores na produção
de qualquer entendimento sobre os formatos da moradia no Relicário leva em consideração
todo o meu processo de entradas e reentradas no Complexo do Alemão. Como apontei acima,
o fato de ter iniciado essa jornada muito antes da pesquisa para o doutorado, ainda como gestor
e, logicamente, imbuído de certa postura de intervenção sobre a realidade, obrigou-me a fazer
essa reflexão que considero importante compartilhar aqui nesse espaço introdutório do trabalho.
Não poderia deixar de problematizá-la, mesmo sabendo que ao longo do texto alguns “deslizes”
podem vir a ocorrer.
Além disso, em uma dimensão mais ampliada da análise etnográfica e de caráter
complementar, coube-me também considerar com atenção a multidimensionalidade
etnográfica, uma vez que as experiências estão conectadas aos arranjos políticos e econômicos
que excedem as ações e as decisões locais. A partir da perspectiva da etnografia multisituada
de George Marcus (1991; 1995), propus-me a pensar como as representações são construídas
entre os borrados limites local/global em uma etnografia no e do sistema mundo (MARCUS,
1995). Logo, tornou-se fundamental reconhecer diante dessa perspectiva teórico-metodológica
que não se pode mais desconsiderar que o local está imbricado em uma ampla rede de
significados que desdobram-se em agências, símbolos e práticas cotidianas, mesmo quando
expressadas em paisagens com configurações locais diferentes.
Estar multisituado é considerar, antes de tudo, que o pesquisador juntamente com seus
interlocutores está imerso em contextualizações locais permeadas e formadas pela lógica do
sistema mundial, de um regime capitalista de organização comunitária. O global é uma
dimensão constitutiva do local e todas as implicações da modernidade – individualidades,
racionalismos, seletividades e fragmentações – compõem o universo compartilhado entre as
pessoas. No caso do Complexo do Alemão, a experiência da urbanização e da construção e
ocupação de moradias populares do PAC exemplifica de maneira categórica essa perspectiva
epistemológica. Tanto as práticas, quanto o conteúdo do programa implementado no bairro
estão intimamente relacionados com a dinâmica prático-discursiva das intervenções
urbanísticas ocorridas em um mesmo período no tempo em cidades do chamado “capitalismo
periférico”, como Medellín (Colômbia), La Paz (Bolívia) e Caracas (Venezuela) com um viés
altamente objetificado e fragmentado das ações, como veremos mais a frente no capítulo 118.

18
A relação entre as intervenções urbanísticas ocorridas em diferentes cidades latino-americanas nos últimos 15
anos é problematizada em dissertação de mestrado de César García Gonzaléz (2015) no que ele definiu como o
surgimento de “um novo paradigma de intervenções urbanas”, baseada em um processo de cooperação entre
cidades do “sur”. Seu trabalho relaciona experiências nas cidades da América Latina evidenciando as proximidades
35
Ao mesmo tempo, a perspectiva multisituacional da etnografia pós-colonial de George
Marcus, permitiu-me pensar sobre uma rede de significados entrelaçados sobre aquele conjunto
residencial, situado em uma multiplicidade de representações do espaço vivido. “Favela”,
“conjunto habitacional”, “condomínio do PAC”, “predinhos”, “condomínio popular”, entre
outras denominações sobre o Relicário que surgiram em narrativas, ao longo da pesquisa,
exemplificaram a fragmentação das traduções e das associações entre lugares e significados.
Enquanto “condomínio do PAC” foi amplamente utilizado por gestores públicos para
caracterizar a nova moradia da “nova classe média” que surgia, os “predinhos” foram a
denominação encontrada pelos próprios moradores para marcar as diferenças entre aquele
conjunto residencial e as demais construções do bairro. Esse fato reafirma o lugar da observação
e da escuta dos interlocutores como uma dimensão da compreensão dos processos de
constituição dos espaços. Em outras palavras, é o lugar situado dos atores que determina o tipo
de interpretação a ser feita e a forma como a materialidade dos espaços é percebida e vivenciada.
Assim, diante da multisituacionalidade da presença no campo – aqui expandindo ainda
mais os limites entre o olhar, o sentir e o escrever – pensar a produção de certo conhecimento
por meio de uma densidade etnográfica foi antes de tudo refletir sobre a necessária autocrítica
sobre os lugares de observação tanto de quem pesquisa quanto de quem é pesquisado. Entender
a observação participante formulada em termos hermenêuticos, como uma dialética entre a
experiência e a interpretação, ou seja, como o resultado da relação entre os sentidos apreendidos
no campo, por meio das interações cotidianas, e as formulações compreensivas resultantes
dessas mesmas interações. As páginas que se seguem são o resultado desse permanente
exercício da alteridade na produção compartilhado dos conhecimentos construídos sobre nós –
em sentido amplo.

1.3 Das entrevistas

De forma a complementar as observações e as anotações no/do campo, realizei vinte


(20) entrevistas semiestruturadas com moradores de dentro e de fora do Relicário. Entrevistas
que consegui registrar no circuito e nos grupos que tive acesso ao longo do trabalho de campo.
Todas as entrevistas foram agendadas no momento dos primeiros encontros, nas conversas19

entre o “Proyecto Urbano Integral” aplicado nas Comunas 1 e 2 em Medellin e do PAC no Bairro Complexo do
Alemão/RJ.
19
Durante minhas circulações pelo interior do Relicário, nas ruas, nos bares ou em qualquer lugar que eu tivesse
um acesso mínimo no bairro procurei conversar com as pessoas presentes. A prática da conversa como meio para
aproximação das pessoas foi algo recorrente e necessário na pesquisa. Michel De Certeau (2008) diz que
36
possíveis no campo ou, em seguida, por telefone, principalmente, pelo aplicativo Whatsapp. As
primeiras entrevistas originaram-se das indicações dos primeiros contatos em uma espécie de
encadeamento de encontros afetivos. Nasceram de conversas mais abertas, sem direcionamento
específico. Com a marcação e o acontecimento da entrevista, procurei realizar entrevistas em
profundidade baseado no que J. Claude Kaufmann (1996) definiu como “entrevistas
compreensivas” (KAUFMANN, 1996). Segundo o autor, essa perspectiva metodológica
permite abordar, de um modo privilegiado, o universo subjetivo do ator. Possibilita identificar
as representações e os significados que atribui ao mundo que o rodeia e aos acontecimentos que
relata como fazendo parte da sua história. Essa subjetividade seria para o autor não um mero
reflexo da individualidade do ator, mas de um processo de socialização e de partilha de valores
e práticas com outros, ou seja, que resulta de uma intersubjetividade (KAUFMANN, 1996 Apud
LALANDA, 1998, p. 875).
Com o objetivo de organizar um conjunto interpretativo sobre as experiências do morar
no Relicário, utilizei como base para a análise as narrativas de trajetórias de vida elaboradas
pelos meus interlocutores. Como meio para captar esses dados elaborei um modelo de entrevista
semiestruturada20 a partir de três momentos: 1) o lugar de origem no bairro, 2) a participação
no PAC, formas de negociação e aquisição dos apartamentos, e 3) a vida no tempo presente
(cotidiano do conjunto). A ideia foi identificar, por meio das narrativas, em que medida as
experiências das pessoas até a chegada ao conjunto Relicário incidia sobre suas representações
sobre o espaço vivido e sobre as suas formas de organização socioespacial. Cabe ressaltar, que
algumas dessas pessoas eu conhecia dos tempos de trabalho no PAC, logo a negociação dessas
entrevistas exigiu certo ajustamento de “fachada” (Goffman, 1985) entre os interlocutores. Na
pesquisa, alternavam-se as funções e as representações das pessoas envolvidas. Assim, o que
cada interlocutor poderia colocar, publica ou reservadamente, para o outro passou por um
intenso e paulatino processo de transformação.
Sobre o uso das narrativas como instrumento de análise da pesquisa inspiro-me nas
reflexões de Walter Benjamin (1994). Para esse filósofo, as narrativas carregam poderosas

“conversas” são “práticas transformadoras ‘de situações de palavras’, de produções verbais onde o entrelaçamento
das posições locutoras instaura um tecido oral sem proprietários individuais, as criações de uma comunicação que
não pertence a ninguém. A conversa é um efeito provisório e coletivo de competências na arte de manipular
‘lugares comuns’ e jogar com o inevitável dos acontecimentos para torná-los ‘habitáveis’”. (CERTEAU, 2008, p.
50). Monroy (2015, p.08), utilizando-se das definições de Trajano (1984) define “conversa” como “uma troca de
ideias onde circula um maior número de informações entre os interlocutores”. Na conversa estão presentes “olhares
provocadores, sorrisos intrigantes, gestos agressivos e silêncios”.
20
Os questionários semiestruturados aplicados encontram-se nos anexos desta tese.

37
histórias que remontam trajetórias e histórias de vida. Narrativas não revelam verdades, mas
sim versões, visões e percepções sobre experiências vividas; essas carregam a oralidade da vida
e da memória. A narrativa é uma “construção artesanal” e o narrador tem a capacidade de se
tornar dono de sábios conselhos a partir de suas “raízes no povo” (BENJAMIN, 1994, p. 200).
Como coloca Benjamin, diferentemente de um “romancista” moderno que busca um lugar
neutro e um olhar onisciente, não tenho a pretensão de segregar-me das histórias que escutei e
que vivi.
De uma maneira geral, todas as narrativas remontam trajetórias pessoais,
principalmente, a partir dos desdobramentos do PAC-Favelas na região, seus processos de
participação e aquisição dos apartamentos. Parte desse material das entrevistas subsidiou a
formulação do capítulo 4. Como informado na introdução, quatro histórias nos indicam com
maior profundidade a complexidade das percepções sobre atual realidade vivida, sob uma teia
fragmentada de interpretações e disputas narrativas que caracterizam aquele espaço do morar.
A seleção dessas narrativas considerou os papéis de caráter mais público que esses atores
desempenharam até aquele momento da entrevista e por considerar suas histórias de vida
emblemáticas diante das condições simbólicas e materiais em que se encontravam no momento
de aquisição dos apartamentos.

38
2 NOTAS ETNOGRÁFICAS DE REENTRADAS NO CAMPO

Só ao homem é dado, diante da natureza,


associar e dissociar, segundo o modo e a
intensidade especial em que um supõe saber
sobre o outro… Num sentido imediato assim
como simbólico, corporal e espiritual, a cada
instante somos nós que separamos o que está
ligado ou voltamos a unir o que está separado.

(A ponte e a porta - George Simmel)

2.1 Voltando ao “condomínio”

Março de 2014. Minha reentrada ocorre por meio de contatos resgatados do período em
que trabalhei pelo PAC-Favelas. Era de meu conhecimento prévio que um dos coordenadores
do programa federal, responsável pelo atendimento dos moradores pela Secretaria de Estado de
Governo (SEGOV) no período de implementação do PAC-Favelas, estava “de frente”21 na
condução política de um centro educacional de formação técnico-profissional dentro do
Relicário. Da mesma forma, soube por moradores do bairro que uma antiga assessora sua ainda
trabalhava com ele, naquele momento como coordenadora desse centro educacional. Procurei-
a na minha lista de contatos no Facebook. Achei seu número de telefone, liguei e agendei uma
visita ao local.
Comum nos dias que fecham o verão carioca, a temperatura ambiente estava alta: trinta
e oito graus às dez horas da manhã. O sol parecia guardar sua força para aquele momento de
retorno ao Relicário. Saltando do ônibus, logo observei um comboio formado por cinco carros
da policia militar subindo uma das principais avenidas do bairro. Como em outras ocasiões, não
havia sirenes ligadas em som e luz. Todas as janelas das viaturas policiais, abertas, ostentavam
os canos dos fuzis. As pessoas na rua pareciam pouco se importar com a cena como em outras
partes da cidade do Rio de Janeiro. Atravessei a rua. Um sentimento de insegurança me
consumia ao olhar para uma das entradas do Relicário que davam acesso ao Centro
Educacional. Teria que subir sozinho.

21
Esse é um termo muito utilizado em bairros populares e favelas para designar aquele que ocupa uma determinada
posição de comando em uma organização ou ação que envolve uma ou mais pessoas. Por exemplo, ser o “chefe
da boca”, ou seu o “número 1” na hierarquia do tráfico na favela é ser o “frente do morro”.

39
Ao chegar, reconheci Jussara, profissional que atuou na equipe do “Trabalho Social do
PAC” e moradora do Complexo e que, naquele momento, trabalhava como secretária no Centro
Educacional. Lembrou-se de mim. Começamos a conversar. Ofereceu-me um café. Mas, antes
de sentarmos em uma sala mais reservada, fez questão de mostrar as instalações internas do
Centro. Em um corredor de mais ou menos um metro e meio de largura, havia salas de reunião,
salas de aula (onde aconteciam naquele momento aulas de informática), sala de estudos e dois
banheiros bem instalados. Tudo dividido por divisórias de MDF, mas com boa proteção
acústica.
Em sua sala, falou entusiasmada daquele equipamento de formação técnica no bairro.
De maneira quase ensaiada, afirmou que orgulhava-se de fazer parte do “grande trabalho que o
governo do Estado tinha feito no Complexo do Alemão”. Nas palavras de Jussara “nunca antes
um governo tinha feito tanto para a população do Alemão”, referindo-se ao governo do então
governador Sergio Cabral. “No início do centro de formação, fomos para as ruas fazer
divulgação. Em cada beco, viela [...] em cada pedaço do Alemão nós fizemos a divulgação dos
cursos”.
Como o centro está instalado dentro do Conjunto, perguntei se os moradores do
Relicário buscavam os cursos ofertados. Ela respondeu:

Pessoal daqui não quer nada! Pessoal acomodado. Tá vendo como esse
lugar está sujo? As pessoas não cuidam, não se importam. A Comlurb22
vem, limpa, mas logo depois tá tudo sujo novamente. É sofá, colchão,
tudo aí. E esse som alto que atrapalha os cursos.? E esses fios
pendurados aí no alto dos prédios? Tudo cheio de gato! Tem jeito não!
(Jussara)

Naquele momento, sua visão sobre os moradores do conjunto foi extremamente


negativa. Disse-me que a maior parte dos “interessados” vinha “de fora do Alemão”. Muitos,
segundo Jussara, já tinham aberto seu próprio negócio e “estavam indo muito bem”. Com
orgulho compartilhou que um aluno egresso tinha se formado e com sua empresa já realizava
manutenção em todos os sistemas de refrigeração dos supermercados da região.
Ao final da conversa, trocamos números de telefone e combinamos novas conversas, até
mesmo, uma palestra minha para os alunos do centro, o que nunca se realizou. No fundo, mesmo
que iniciado, eu não queria continuar a pesquisa via órgão governamental. Queria construir
novos caminhos, outros percursos etnográficos, desencarnar a veste estatal! Assim, saí do

22
Companhia Municipal de Limpeza Urbana
40
centro vocacional e caminhei sem muita direção pelos espaços internos do conjunto,
observando a movimentação naquela manhã. Logo, deparei-me com um grupo de quatro
policiais no galpão do Centro Educacional. A viatura policial trazia escrito em sua lateral “UPP
Alemão”. Permaneceram no local, parados, por toda a manhã. À frente, dois técnicos da
concessionária de energia elétrica, sob uma tenda de plástico, sentados à mesa. Um cartaz
indicava: “Plantão Light – tire suas dúvidas sobre o consumo de energia elétrica”.
Desde o início da ocupação dos apartamentos, a empresa responsável pela distribuição
de energia elétrica doméstica realizou uma série de encontros com os novos moradores com o
objetivo de “educá-los” para o “uso consciente” da energia elétrica, que a partir daquele
momento seria tarifada. O entendimento por parte dos técnicos, com os quais eu conversei
diversas vezes, era de que aquelas pessoas, por historicamente não pagarem contas de luz no
morro, não sabiam fazer o uso correto da energia elétrica. As contas passaram a chegar com
valores altíssimos. Os moradores, recorrentemente, atribuíam os altos valores aos problemas
nas leituras dos medidores e defeitos nos equipamentos de medição. Diante desses impasses,
muitos técnicos percorriam os nove conjuntos do PAC realizando plantões de atendimento ao
morador. Até hoje as discordâncias ocorrem com certa frequência, principalmente relacionadas
a maneira como os técnicos da empresa medem o consumo de energia elétrica nos conjuntos:
“de qualquer jeito”, disse-me um morador. Desde o início, o uso de “gatos” (ligações
clandestinas de energia elétrica) passou a ser utilizado como ação contra as tarifas consideradas
“abusivas”. Cabe ressaltar, que não havia nenhum morador sentado nas mesas postas pelos
técnicos da empresa para atendimento naquele momento.
Sem saber ao certo como dar continuidade aquela primeira visita, desci uma ladeira,
segui por um corredor que dá acesso a parte central conjunto habitacional. Ao virar o corredor
encontrei duas moradoras que acompanhei no período em que estive como gestor do PAC. Dona
Olga, a “Vó”, como é chamada por outros moradores estava na sacada da sua sala, no primeiro
andar do Bloco O, olhando as crianças correrem na sua frente, enquanto seu marido varria a
sala, sem levantar a cabeça. Perguntei se estava tudo bem e como ela vivia naquele apartamento
depois de quatro anos. Disse que gostava, mas afirmou brava: “tá tudo caindo aos pedaços, meu
filho. O governo abandonou a gente aqui. Ninguém olha mais pra gente aqui. O PAC veio,
botou a gente aqui e sumiu!”
Repentinamente, no meio da conversa com Dona Olga, escuto um grito: “Bruno, quero
falar com você! Peraí!” Correndo em minha direção surge Dandara, uma mulher com quem eu
tive muito contato no período do PAC. Ela não me via há, pelo menos, quatro anos, mas parecia

41
ter me encontrado na semana anterior, como se eu ainda trabalhasse pelo governo do estado.
Subiu as escadas reclamando que estava sem dinheiro, desempregada e que precisava de um
emprego. Reclamou da conta de luz, do calor, disse que ia processar a Light como tinha feito
com as Casas Bahia (e ganhou) e, que, logo, entraria com pedido de seguro desemprego.
Entramos no Bloco O para fugir do sol de quase meio-dia e começamos a conversar. Perguntei
se ela gostava de morar no Relicário. Disse que sim e que não pretendia sair. Completou
afirmando que “quem tinha recebido o apartamento como desabrigado não saía de lá”. Mas,
em seguida, afirmou que, se tivesse que vender seria por “pelo menos R$150 mil e olhe lá!”.
Dona Olga balançou a cabeça concordando e emendou dizendo que corretores de imóveis da
região já tinham abordado moradores, especulando sobre possíveis vendas de unidades
habitacionais, mesmo sabendo que os moradores sequer haviam recebido os termos de
autorização de ocupação.
Perguntei as duas moradoras se havia algum tipo de dificuldade da parte delas em morar
no Relicário, se sentiam muita diferença em morar ali em comparação as suas antigas casas.
Afirmaram categoricamente: “não!” Conheciam e se davam bem com todos. Disse Dona Olga:

[...] aqui no condomínio todo mundo sabe da vida de todo mundo. Isso
aqui é igual a favela, quando a fofoca rola é do bloco A ao V. Não tem
diferença nos blocos”. Em seguida, perguntei se no bloco que elas
moravam havia síndico, taxa condominial, se faziam manutenção nos
prédios, toda a estrutura de organização condominial. Respondeu: “aqui
não tem nem síndico, não deu certo. Quando a gente tem que consertar
alguma coisa todo mundo dá uma parte e fazemos o que tem que ser
feito”. Para ela, “não precisa de síndico, a gente resolve”. Ou seja, um
certo padrão de sociabilidade permanecia atuando nas relações. (Dona
Olga)

Naquele momento, o relógio marcava 13h30min. Duas moradoras desciam as escadas


com baldes e tapetes enrolados embaixo dos braços. Dandara ofereceu-se para lavar em troca
de algum pagamento. As moradoras riram e concordaram. Marcaram para a próxima vez que a
lavagem fosse necessária. Dandara, mais uma vez, queixava-se da falta de emprego e dinheiro
sempre acompanhado de um pedido de ajuda, “arruma alguma coisa pra mim fazer, Bruno?!
Qualquer coisa, uma faxina, tomo conta de criança, qualquer coisa”. Respondi que não tinha
como ajuda-la naquele momento, mas que se eu soubesse de alguma coisa, de alguma
oportunidade não me esqueceria dela.
Em um papo mais descontraído, Dona Olga falou de uma “pastora” que havia “tomado”
o salão de festas dos moradores para ela. E disse, “essa pastora chegou aqui do nada, se juntou
42
com os bandidinhos aí de cima e tomou o único lugar que a gente tinha pra fazer festa”.
Imediatamente foi repreendida por Dandara. Com o dedo na boca indicando silêncio Dandara
retrucou, “Vó tem coisas que a gente não fala. Coisas complicadas a gente deixa quieto”. Dona
Olga, contrariada, concordou e completou, “é melhor deixar quieto mesmo, não quero
problema”.
Senti que algo a mais desdobrava-se naquela conversa. Um sinal claro que o campo que
se iniciava naquele momento precisava ser pensado e acessado de maneira muito cuidadosa.
Minha representação como gestor do PAC ainda falava alto em suas interpretações sobre mim
naquele espaço. Resolvi ir embora. Agradeci o tempo delas e prometi voltar em breve para mais
umas conversas. Perguntei se as duas se disponibilizariam em me conceder entrevistas com
mais tempo. A Vó, entusiasmada, respondeu que sim. Dandara, de maneira mais contida,
também confirmou. Me despedi.
Logo ao lado de onde eu me encontrava, estava uma dupla de funcionários da
concessionária de energia elétrica entregando folhetos educacionais sobre “uso consciente de
luz” a um grupo de quatro moradoras. Me aproximei perguntando se esta essa era uma prática
constante da empresa. Responderam que era a primeira vez que estavam naquele “condomínio”
fazendo esse tipo de trabalho. Afirmaram que muitos moradores estavam recebendo contas altas
que não haviam sido emitidas pela empresa. A suspeita dos técnicos era de fraude na emissão
de contas e de “gatos” nas instalações elétricas do Relicário. Um deles se recordou de mim do
período em que fazíamos “ações de conscientização” pelo trabalho social do PAC em outros
conjuntos habitacionais da região. Mais uma vez, disse que não trabalhava mais no governo.
Algumas pessoas nas janelas do primeiro andar dos blocos observavam e escutavam a conversa.
Desejei-lhes bom trabalho e segui para o ponto de ônibus.

2.2 Os meninos da marcação

Uma semana depois retornei ao Relicário. Como no primeiro retorno tudo havia corrido
bem, tinha encontrado D. Olga e Dandara, achei que o campo estava encaminhado. Fui sem
fazer qualquer contato prévio. Logo na chegada, ao entrar no conjunto, observei algumas
pichações nas paredes que narravam uma rotina marcada pela disputa conflagrada pelo domínio
territorial em favelas “pacificadas” entre policiais e operadores do tráfico. “UPP vai ter que
ralar”, “Trem sem freio” e “CV” foram algumas das inscrições que observei de imediato.
Entrando, no momento em que subia os degraus, observei um grupo de meninos com
idade aparentando entre 10 e 15 anos. Passei por eles, cumprimentei-os de forma discreta e

43
segui em busca de alguma outra cara conhecida. Nesse momento, acreditei que o fato de ter
trabalhado como gestor me garantiria certa autonomia para circular no Relicário. Engano total.
Ao virar a curva na rua do pavimento superior fui abordado por um menino negro que me
perguntou, com as mãos postas atrás do corpo, de maneira incisiva: “Aí, vai aonde? Vai falar
com quem?” Olhei para trás e observei a movimentação de tantos outros garotos que
performativizavam a contenção territorial comuns nas subidas de favelas, que possuem, em suas
dinâmicas espaciais, a organização do comércio varejista de drogas. Agitados, andavam, de um
lado para o outro, olhando para mim.
Respondi ao garoto que me abordou que iniciava uma pesquisa para a universidade e
que entrevistaria daqui para frente alguns moradores do Relicário. Demonstrando certo
nervosismo e irritação, o garoto abriu minha bolsa, pegou meu gravador e perguntou: “O que é
isso aqui?! O que é isso?! O que vai fazer com isso?! Tu é jornalista?! Tá fazendo algum tipo
de investigação aqui?!”. Estávamos somente ele e eu. Ninguém por perto. Fiquei em silêncio
por alguns segundos, sem reação. Na sequência, sem saber ao certo o que responder, disse que
era professor e que gostaria de escrever um livro sobre o Relicário, sobre como eles percebiam
suas vidas, desde a mudança de endereço, há cinco anos atrás. Que eu gostaria de conversar
com os pais dele e com outros adultos que participaram do PAC no Complexo do Alemão.
Naquele momento da abordagem, eu usava óculos escuros. A intensidade do sol era
forte e distrai-me por trás daquelas lentes que escondiam meus olhos. Este fato tornou aquele
encontro ainda mais tenso. Ele não me enxergava. Assim que percebi a situação, rapidamente
retirei os óculos do rosto. Olhei firme naqueles olhos de garoto que aparentava ter uns 12 anos.
Sua postura rígida recuou. Seu olhar acalmou ao me olhar nos olhos. Voltou a ser um garoto
como tantos outros na saída da infância. Sorriu e pediu desculpas pela abordagem. Disse: “Sabe
como é, né tio, a gente tem que fazer isso, mas tá suave, segue aí. Qualquer parada, tamo aê”.
Agradeci e dei meia volta. Dirigi-me ao ponto de ônibus de volta para casa pensando no que
tinha acabado de acontecer. O cenário era outro de anos atrás. As crianças haviam crescido e a
“pacificação” não se desdobrava da maneira que eu imaginava. Logo, teria que conhecer
alguém que me inserisse no campo como pesquisador, entendesse e aceitasse, minimamente,
minha proposta e possibilitasse um trânsito por dentro sem maiores contratempos.

2.3 Os “relíquias”

Depois da última visita, percebi que não podia me garantir em um crachá que não existia
mais. As coisas haviam mudado sensivelmente. Não podia chegar sozinho e ir solicitando
44
entrevistas a pessoas que nunca tinham me visto. Ao mesmo tempo, o clima de tensão com
tiroteios a todo instante tornou-se um agravante23. Pensava a todo instante o que fazer para
mudar aquela situação. Para uma proposta etnográfica eu precisava entrar e olhar de dentro.
Mas, como fazer?
Um dia, de maneira despretensiosa, encontrei uma chamada no Facebook que convidava
os moradores do Complexo do Alemão para participarem da “reinauguração da Academia
Relicário”. Era um espaço com aparelhos de musculação, criado por um banco privado, logo
após a invasão militar de 2010, localizado bem em frente a uma das entradas do conjunto.
Acreditei que essa seria uma oportunidade para uma “nova” reentrada no campo e para conhecer
outras pessoas. Seria a minha terceira visita ao conjunto e eu ainda não havia conseguido
construir internamente uma estabilidade mínima no campo de pesquisa. Dandara e Dona Olga
eram contatos do período do PAC, mas senti que eu teria que ampliar minha rede interna diante
daquele ambiente de considerável desconfiança. Até que, naquele sábado à céu aberto,
encontrei um outro caminho de entrada para o conjunto Relicário: o caminho dos “Relíquias”.
A reinauguração estava marcada para às 10h. Saltei do ônibus e logo avistei uma faixa
de tamanho médio pendurada na frente da academia anunciando o evento. Atravessei a rua.
Busquei um rosto conhecido. Encontrei Mateus. Como em outras situações de reencontros no
conjunto, após quatro anos, ele me reconheceu de imediato com um olhar que demonstrava um
misto de surpresa e desconfiança, “Você por aqui?!”, disse-me. Nos cumprimentamos. Em
seguida, apresentou-me Tomé, Fui recebido como “parceiro da prefeitura”. Mateus ainda tinha
sobre mim uma representação de gestor público. Nos conhecemos no período em que ele esteve
alojado na Vila Olímpica, após o desastre das chuvas de abril de 2010. Mateus foi um
importante articulador entre os moradores desabrigados e o governo na busca por inclusão na
lista para sorteio das unidades habitacionais do PAC. Naquele momento das apresentações,
optei pelo silêncio. Aguardei o momento menos festivo para tentar me apresentar novamente e
esclarecer o meu novo lugar de interlocução.

23
Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), no ano de 2014 forma registradas
1215 ocorrências e, no ano de 2015, 578 ocorrências, nas quatro áreas do Complexo do Alemão com UPPs
instaladas: Nova Brasília, Fazendinha, Alemão e Adeus/Baiana. Os registros estão agrupados em seis conjuntos
de crimes tipificados: vítimas de crimes violentos, vítimas de crimes de trânsito, vítimas de mortes com tipificação
provisória, registros de crimes contra o patrimônio e produção policial. Chama a atenção o número de registros de
vítimas de crimes violentos para o período: 408. Entre os tipos mais recorrentes são: lesão corporal (257), tentativa
de homicídio (126), homicídio doloso (11) e estupro (14). Obviamente, esses números não revelam a totalidade
de crimes violentos, se considerarmos que há atos violentos que, por uma série de razões, não são sequer
registrados.
45
À medida que o evento acontecia, algumas pessoas chegavam e cumprimentavam-me
como um certo ar de surpresa. Era um ambiente onde as pessoas se conheciam bem. Eu era,
naquele momento, o penetra da festa. Ao mesmo tempo, de forma muito receptiva e cordial
ofereceram-me bolo, refrigerantes, salgadinhos, biscoitos, e tudo o que estava lá para o “café
da manhã comunitário” na academia. Um pequeno grupo mais destacado de três pessoas me
observou durante toda a manhã com semblante fechado. Demonstraram desconfiança com a
minha presença no local. Além de ser estranho à maioria dos convidados presentes nesse dia,
estava com a barba bem grande, vestia uma bermuda com bolsos nas laterais, tênis, camiseta e
boné. Um tipo de vestimenta que referenciava certa representação sobre mim, que, mais tarde
fora revelado por um dos meus principais interlocutores do Relicário. Segundo ele, estava “tipo
policial civil à paisana”. No entanto, como era dia de festa, eles também estavam presentes
como convidados, aguardaram o evento terminar para “saber qual é”.
No decorrer da manhã, enquanto Mateus ajustava a caixa de som com microfone, Tomé
conversava com um vereador de fora do Complexo do Alemão filiado ao Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Esse foi apresentado aos demais presentes como a pessoa que viabilizaria os
“projetos” da academia. Sob muitas palavras de agradecimento e gratidão, o vereador prometeu
realizar diversas ações com e para os moradores do conjunto Relicário. Em um dado momento
pediu para Mateus e Tomé reunirem todos os jovens presentes. Depois de distribuir convites
que davam acesso ao camarote de uma popular casa de espetáculos na cidade de Duque de
Caxias (Região Metropolitana do Rio de Janeiro), anunciou que construiria uma quadra de
futebol dentro do conjunto, uma reivindicação antiga de alguns moradores. Mateus sempre
alegou que somente no Relicário não havia uma quadra quando comparado aos outros conjuntos
construídos ou adquiridos pelo PAC, via governo do estado (cabe ressaltar que até o presente
momento a quadra não saiu do mundo das promessas políticas).
Chegando ao final do evento, um jovem rapaz que eu ainda não havia observado no
local aproximou-se de mim, sentou-se na grade da academia e perguntou: “fala mano, tu é da
onde?”. Era Paulo, aproximadamente 25 anos, branco, de bermuda jeans, sem camisa, com seu
filho de 1 ano e meio no colo, que chegava de surpresa para “saber qual era a minha”. Já não
fui tão surpreendido como naquela primeira abordagem que havia sofrido pelo menino. Disse
que fazia uma pesquisa para a “faculdade”24 sobre os conjuntos construídos pelo PAC. Estava

24
Esse foi um termo que percebi ser mais acessível para a compreensão deles do meu lugar de interlocução.
Diferente de termos como “universidade”, “UERJ”, “faculdade” revelou-se como expressão mais conhecida e que
dava sentido ao que eu estava realizando no Relicário. Ao longo da pesquisa, algumas pessoas, principalmente, os
mais jovens falavam de sonhos e um deles era “entrar para a faculdade”.
46
na reinauguração da academia porque tinha visto a chamada no Facebook. Emendei informando
que conhecia o Mateus e mais algumas pessoas do Relicário. Com um semblante mais amistoso
do que as pessoas do grupo que ainda me observava, perguntou onde eu morava. Pressentindo
o que poderia ocorrer, respondi que morava em Copacabana. Imediatamente, Paulo riu alto e
perguntou: “Mano, tu é doido? Podia tá agora na praia tirando onda e tu vem pra favela? Porra,
tu é playboy!”. Na fala de Paulo, a representação do “playboy” marcava claramente a distinção
econômica e social entre espaços na cidade. “Tu mora em lugar de bacana, mano!”, disse-me
diversas vezes ao longo do dia.
Naquele momento (e mesmo depois em diversas ocasiões de maior aproximação entre
nós), eu fui para ele alguém que estava em uma situação social privilegiada, que morava em um
lugar valorizado na cidade (oposto da favela), branco, que “só estudava” e não necessitava
trabalhar, que tinha acesso privilegiado e vivia sob um regime de conforto permanente.
Diferente da representação de um morador de favela, marcado recorrentemente no imaginário
da cidade ora pela imagem do trabalhador informal – aquele que ocupa postos de trabalho que
exigem pouca escolaridade formal, alto grau de informalidade na relação entre empregado e
empregador e baixa remuneração –, ora pelo estigma do bandido/traficante –, aquele “playboy”
na favela gerou um estranhamento ampliado, como alguém que não deveria estar naquele lugar
e naquela hora.
Meu constrangimento foi grande e percebido. Tentei mobilizar outras representações
que pudessem dissuadir aquela primeira imagem de “morador da zona sul”. Disse que realizava
trabalhos em parceira com o Instituto Raízes em Movimento (organização que atua há 15 anos
no Complexo do Alemão), que conhecia Alan Brum, David Amen (diretores do instituto) e que
estava para dar continuidade ao trabalho que desenvolvia no Complexo do Alemão. Argumentei
(inutilmente) que eu não “era” de Copacabana, somente “morava” lá. Afirmei minha origem
suburbana: nascido e criado no bairro de Padre Miguel! Internamente não admiti ser chamado
de “playboy”. Mas, não adiantou absolutamente nada minha “indignação”. O fato de um sujeito
morador da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e estar naquele local, dentro do Complexo do
Alemão, marcava o meu lugar naquela interação com os moradores do Relicário atravessada
pelas desigualdades e segregações do espaço urbano da cidade.
Passado o impacto da primeira apresentação, passamos a conversar sobre outros
assuntos, como filhos e família. Paulo era casado e estava com seu bebê de 1 ano no colo.

47
Comentei que também era casado e tinha dois filhos. Disse-me que queria ir embora do
Complexo do Alemão, que queria “tranquilidade para criar seu menino”. Como “chefe de
família”, disse-me que se sentia muito responsável pelo bem estar da família. Naquele
momento, nossa identificação mútua de pais e “chefe de família” colocou-nos em outro estágio
de interação.
No decorrer do meu diálogo com Paulo, ele me ofereceu um copo de cerveja. O calor
era forte e logo fui convidado por Paulo a me juntar ao mesmo grupo que minha observara por
toda a manhã para “beber umas geladas”. Sentado em torno de uma mesa de plástico, sentia que
passava agora para um outro estágio da visita e que iria estabelecer uma relação de confiança
mínima. No primeiro momento, o cumprimento entre nós foi frio. Não conhecia absolutamente
ninguém. Era uma mesa formada por homens com idade média de 35 anos. Brancos, pardos e
pretos. Dois dos presentes ainda demonstravam uma atitude de grande desconfiança com a
minha permanência no local.
Nesse momento, o evento já havia terminado. Mateus e Tomás chegaram até a mim e
agradeceram minha presença. Mateus foi embora. Tomás permaneceu e sentou-se junto ao
grupo. Agora, no total, erámos sete pessoas reunidas. Paulo, sob sua costumeira sensibilidade,
como quem percebia o “clima” de tensão, de repente levantou-se empolgado e afirmou: “Vamos
brindar! Agora só tem relíquia! Só os crias! Só os relíquias ficam até o final!”. A medida em
que o isopor de gelo era reposto com litros e mais litros de cerveja, as histórias sobre os “bons
tempos” surgiam como falas que buscavam reafirmar uma “identidade de grupo” no Complexo
do Alemão. O conteúdo das conversas variou incialmente entre o tempo de criança e das
brincadeiras no morro, as conquistas amorosas, os trabalhos ou a situação de desemprego e,
principalmente, em torno dos desdobramentos decorrentes das “falcatruas do PAC” no
Complexo do Alemão. A entonação dos relatos remetia a algo que os identificava mutuamente:
“Mano, a gente viu esse lugar aqui crescer, mudar, tá ligado? Agora, com o PAC, tem gente
aqui que botou muito dinheiro no bolso. Tem gente aí que ganhou vários apartamentos. Quem
precisava mesmo ficou sem nada! Injustiça!”. A todo instante, entre um conto e outro, surgia a
fala reiterada: “Mano, só a gente que é relíquia sabe o que a gente já passou aqui, só os relíquias
mesmo.”.
Inicialmente, nos contos postos à mesa, o termo “Relíquia” foi mobilizado para liga-los,
aproximá-los a um passado comum. Semelhante ao termo “crias da favela”, ou seja, pessoas
que compartilham entre si um histórico entrecruzado de experiências comuns, de laços afetivos
em um lugar de dificuldades de toda ordem, ou melhor, pessoas que resistem, protegem e

48
permanecem fieis aos seus lugares de origem. Lyra (2013), em sua pesquisa com a juventude
proveniente das favelas, destaca que “cria da favela” é sempre uma expressão de orgulho, nunca
de resignação” (LYRA, 2013, p. 149). Era exatamente o que os “Relíquias” (como se
intitularam) tentaram afirmar durante toda a tarde em que estive reunido com eles.
Com o decorrer do papo, considerando que eu permanecia como o único “estrangeiro”
no grupo – aqui no sentido simmeliano do termo, isto é, alguém que condensa a dialética entre
proximidade e distância, que está dentro e fora do grupo, evidenciando assim uma “distância
social” (SIMMEL, 1983) –, também passaram a mobilizar o termo “Relíquia” para autodesignar
uma espécie de grupo de “veteranos de guerra do Complexo do Alemão”. Muitos deles haviam
ocupado os postos na organização do Comando Vermelho. Exaltavam à mesa, com energia, os
relatos de passagens de sobrevivência, diante de diversos confrontos armados, que participaram
contra a Polícia Militar e contra os “inimigos” (grupos de facções rivais); falavam de quando
esses tentavam “invadir o morro” e as inúmeras incursões que realizaram em favelas distintas,
em tentativas de “tomada das bocas”. Alguns haviam cumprido penas por “associação ao
tráfico”. Outros haviam simplesmente saído do “mundo do crime” para começar uma nova vida.
Dos seis presentes naquele momento, todos realizavam algum tipo de atividade profissional.
Três atuavam como pedreiro no setor de construção civil, um como segurança privado, um
como entregador, um como rentista de imóveis alugados na favela e na região metropolitana do
Rio de Janeiro. Todos tinham mais de um filho em fase escolar. Algumas dessas crianças
brincavam ao redor da mesa.
Nesse momento, o primeiro contato de total desconfiança havia diminuído de maneira
sensível. Mas, não havia sido superado. Um dos relíquias foi direto ao ponto: “E aí mano, fala
aí o que que tu faz aqui na favela!” Já um pouco mais à vontade tentei explicar, rapidamente, o
meu trabalho de pesquisa. Todos permaneceram em silêncio, atentos a cada palavra que eu
mencionava. Ao final da explicação, o silêncio permaneceu por mais alguns instantes. Paulo
interrompeu o silêncio, positivando minha presença no local: “Porra, o cara sai lá de
Copacabana pra beber cerveja aqui no Complexo! Não é qualquer um que faz isso não! Tamo
junto, mano. Pode contar com a gente. O que a gente puder fazer pra te ajudar é só falar.”
Todos, rapidamente, reafirmaram o compromisso posto na roda por Paulo. Uma
intervenção espirituosa que aliviou a pressão daquele estranhamento inicial e me colocou de
vez dentro do conjunto Relicário. Uma virada no campo acabava de acontecer em um contexto
profundamente marcado pelas desconfianças nascidas das inúmeras e variadas intervenções

49
governamentais no bairro. Ao mesmo tempo, sob a generosidade de quem, mesmo sob o risco
do desconhecido, decidiu dar um voto de confiança ao “Playboy”.

Figura 1 – Estrada do Itararé (Complexo do Alemão)

50
Fonte: Próprio autor

51
3 DOS ARRABALDES AO PAC-FAVELAS: FORMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DE
UM ESPAÇO SUBURBANO

“A forma de uma cidade muda mais rápido,


infelizmente, do que o coração de um mortal"

(As flores do Mal. Charles Baudelaire)

“Aqui era tudo mato, meu filho!” ou “moro nos predinhos, bem ali onde era a fábrica
da Relicário”. Essas são frases que remontam um longo processo de sucessivas transformações
do espaço urbano, e que caracteriza não só a história do bairro do Complexo do Alemão, mas,
de uma forma geral, os antigos subúrbios industriais da cidade do Rio de Janeiro.
As origens históricas que retratam a emergência da moradia popular no Complexo do
Alemão, localizado no Subúrbio da Leopoldina25, datam do final do século XIX26. Com a virada
do século, as ocupações na região ocorreram sob forte influência das sucessivas reformas
urbanas no centro da cidade que marcaram o início do século XX27 e pelo intenso processo de
urbanização e industrialização dos subúrbios que desenvolveu-se por toda primeira metade
desse mesmo século.
A primeira fase de ocupação do Complexo do Alemão, bem como dos subúrbios
cariocas, anteriormente caracterizados pelo ar bucólico das grandes fazendas e chácaras, pode
ser entendida, em grande medida, como o resultado de um conjunto de fatores sociais,
econômicos e ideológicos (ABREU, 2013; PEREIRA DA SILVA, 2010; FERNANDES, 2011)
que desencadearam um contínuo movimento de povoamento e permanência na região, como
por exemplo: a crise habitacional que se instaura na cidade devido ao rápido crescimento

25
Essa região da Zona Norte do Rio de Janeiro passa a ser conhecida como “subúrbio da Leopoldina” com a
inauguração da Estrada de Ferro Leopoldina, inaugurada em 1858, com trechos que passavam por dentro da malha
urbana no seu trajeto de escoamento da produção de café e interligação com estado de Minas Gerais. Essa estrada
de ferro foi considerada um dos principais vetores indutores de crescimento populacional e econômico da região.
Outra rede de trilhos fundamental para a composição e a construção dos subúrbios (material e simbólico) é a
Estrada de Ferro Central do Brasil, inaugurada em 1859, que ligava o estado do Rio de Janeiro a São Paulo e
originou o chamado “subúrbio da Central”. (El-Kareh, 2010)
26
Miyasaka (2011) afirma que freguesia rural de São Thiago de Inhaúma, criada em 1743, hoje o bairro limítrofe
do Complexo do Alemão e chamado somente de Inhaúma, em 1890 já possuía uma população de 17.448
habitantes. Em 1906 já passava de 67.478 residentes. (Idem, p. 15)
27
Há consolidado um conjunto de obras sobre as causas complementares que originaram a ocupação dos morros
do centro e da zona sul do Rio de Janeiro. Além das medidas do governo municipal e federal voltadas para a
demolição dos cortiços com fins a higienização do centro da cidade, há também como mito de formação das favelas
o retorno de soldados de seus fronts de batalha (como o “mito” da Guerra de Canudos [1896-1897] e a ocupação
do Morro da Favella, e a Guerra do Paraguai [1865-1870]) já amplamente difundido pelos trabalhos de Lícia
Valladares (2005), Alba Zaluar (2006), Burgos (2006), Gonçalves (2013) entre outros pesquisadores.

52
populacional provocado pelos efeitos da abolição da escravatura e da intensa migração de
estrangeiros28; os incentivos econômicos dados pelos governos do período à iniciativa privada
para a construção das primeiras “vilas operárias”29; o forte impulso gerado pelas instalações das
primeiras fábricas da região30; a expansão da rede de transporte ferroviário31; e a “enorme
inundação de terrenos baratos e vendidos a prazo para as classes trabalhadoras”, o que denota
a constituição de um vultuoso mercado imobiliário na região (FERNANDES, 2011, p.184).
Mais tarde, em meados dos anos 1940, ocorre um segundo fluxo migratório para a região
em decorrência da facilidade de circulação de pessoas, matéria-prima e produtos proporcionada
pela abertura de importantes vias rodoviárias como a Avenida Presidente Vargas (1944) e a
Avenida Brasil (1946), bem como uma segunda onda de industrialização. As sucessivas
reformas urbanas e regulações governamentais sobre as determinações para construções
prediais e o uso do solo em diferentes áreas urbanas – como o Decreto 6000/1937 que
especificou as zonas norte e oeste como zoneamento industrial da cidade (ABREU, 2013;
MIYASAKA, 2011) – também foram determinantes para o crescente povoamento dos
subúrbios. Abreu (2013) chega a afirmar que, entre 1946 e 1960, se estabelece, de fato, uma

28
Gonçalves (2013) mostra que somente entre os anos de 1872 e 1920, a população do Rio de Janeiro passou de
274.972 para 1.157.873 – um crescimento de 421% no período.
29
Kowarick (1979) nos indica que “nos primórdios da industrialização e basicamente até os anos 30, as empresas
resolveram em parte o problema da moradia da mão-de-obra através da construção de ‘vilas operaria’, geralmente
contíguas às fábricas, cujas residências eram alugadas ou vendidas aos operários. O fornecimento de moradia pela
própria empresa diminuía as despesas dos operários com sua própria sobrevivência, permitindo que os salaries
fossem rebaixados” (Idem, p. 30).
30
De acordo com Márcio Piñon de Oliveira (2011), o processo de industrialização do Rio de Janeiro, ou melhor,
o “primeiro surto industrial brasileiro” inicia sua primeira etapa de instalações em meados do século XIX. Entre
os anos de 1849 e 1891, foram instaladas nos “arrabaldes” do Rio de Janeiro – que abrangiam o que hoje é a
Baixada Fluminense – cerca de vinte (20) fábricas, todas indústrias têxteis. A mais antiga foi instalada em Santo
Aleixo (1849), atualmente distrito do município de Magé (Oliveira, 2010, p. 95). No entanto, é a partir dos anos
1920, em uma segunda etapa da industrialização brasileira, que ocorre a instalação de dezenas de fábricas no
subúrbio da zona norte da cidade. De acordo com Abreu (2013[1987]), reflexo da ampla utilização das linhas
férreas da Leopoldina, Rio D’Ouro e Linha Auxiliar, fábricas como Companhia Nacional de Tecidos Nova
América (Del Castilho/1924), General Electric (Maria da Graça/1921), Cisper e Marvim (Jacarezinho/1917 e 1921,
respectivamente) fomentaram um forte movimento de produção industrial e ocupação da região.
31
No que se refere ao meios de transporte, sendo esse um vetor que afeta sensivelmente a capacidade de
mobilidade, logo a fixação e a estabilização das pessoas e suas vidas em variadas partes da cidade, Abreu (2013,
p. 43) nos indica que essa expansão da ocupação das áreas suburbanas (que ele chama de “freguesias”) começa
com a inauguração da Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Central do Brasil) em 1858, o que permitiu, a partir
de 1861, a ocupação acelerada da áreas por lá atravessada. A partir de 1868, as linhas de bondes puxados por
burros passam a fomentar ainda mais a expansão da cidade para as zonas norte. Segundo o autor “controlados pelo
capital estrangeiro, trens e bondes tiveram um papel indutor na expansão física da cidade… não apenas sobre o
padrão de ocupação de grande parte da cidade, como também sobre o padrão de acumulação do capital que aí
circulava, tanto nacional como estrangeiro… proveniente de grande parte dos lucros da aristocracia cafeeira, dos
comerciantes e financistas... capital estrangeiro [que] teve condições de se multiplicar, pois controlava as decisões
sobre as áreas que seriam servidas por bondes, além de ser responsável pela provisão de infra-estrutura” (ABREU,
2013, p.44)

53
zona industrial na região do Subúrbio da Leopoldina. Inúmeras fábricas instalaram-se nos
bairros que circundam o que seria o Complexo do Alemão entre elas a fábrica Coca-Cola, Tuffy
e Poesi. A primeira e a de maior destaque na região foi o Curtume Carioca32.
Nesse “duplo processo” (LEFEBVRE, 2001, p. 16) de ocupação e de transformação de
antigas zonas rurais – onde a rápida expansão da indústria nascente com toda a sua estrutura
produtiva que necessitava de recursos naturais abundantes em regiões fora dos centros para o
crescimento e a produção econômica, conjugada com a crescente urbanização, sob um quadro
grave de crise habitacional, surgida já no século XIX e de direcionamentos das intervenções
públicas e das normas urbanas configuradas num modelo segregador da cidade –, desenvolveu-
se um complexo tecido urbano submetido a uma grande especulação no mercado informal de
terras e imóveis. As disputas pela terra e as relações políticas e comerciais entre agentes
públicos e privados em torno da ocupação do solo urbano desdobraram-se em situações
“problemáticas” (Idem, p. 17) nessa parte da cidade, tendo como efeito um amplo e contínuo
processo de expansão dos espaços suburbanos. Foi nesse movimento que as favelas do
Complexo do Alemão “nasceram”, resultado de um intenso processo de loteamento e comércio
de terras que permitiu o povoamento dessa região tanto para moradia, quanto para os negócios.
Couto e Rodrigues (2013) afirmam que, diante desse modelo de desenvolvimento
urbano, o povoamento do Complexo do Alemão foi estruturado, sob um padrão de ocupação
informal de terras com as mais variadas modalidades de fixação no solo e com diversos arranjos
de negociação entre atores em distintas posições sociais e condições econômicas. Essas
ocupações – principalmente em encostas e nos topos dos morros – ocorreram sob um intenso
processo de negociações entre atores públicos e privados que, permaneceu como modus
operandi ao longo do tempo. Tal forma de organização servirá como base e justificativa para
uma série de intervenções do poder público com fins de regularização, de formalização e de
integração do tecido social do Complexo do Alemão ao conjunto da cidade “formal”.
Assim, com base nesse histórico de transformações dos subúrbios do Rio de Janeiro,
esse capítulo busca mostrar os processos iniciais de formação do espaço urbano do Complexo
do Alemão, objetivando identificar padrões e tipos de arranjos sociais que vão caracterizar uma
forma de ocupação e fixação no solo da região. O objetivo é mostrar que as recentes mudanças
no interior do conjunto Relicário, principalmente relacionadas às ocupações e construções
informais nos terrenos, podem ser interpretadas como o resultado de processos históricos

32
Segundo informação de moradores, a fábrica Curtume instalada no bairro da Penha, vizinho ao Complexo do
Alemão, chegou a ser, nos anos de 1950, a primeira maior indústria de curtição e fabricação de produtos de couro
das Américas e, a segunda indústria do mundo, empregando cerca de 3.000 pessoas.
54
marcados, não só pelas condições materiais e simbólicas de trabalhadores e pessoas pobres,
mas por uma práxis do morar. Desse processo de formação e transformações desse espaço
urbano consolidou-se uma “gramática da moradia do Complexo do Alemão” (COUTO e
RODRIGUES, 2013) que permanece como elemento constituinte daquele lugar.

3.1 A Gramática da Moradia no Complexo do Alemão

Couto e Rodrigues (2013) realizaram uma pesquisa no Complexo do Alemão, no ano


de 2012, cujo o objetivo foi levantar o histórico fundiário do bairro. As pesquisadoras
privilegiaram o olhar sobre a questão da moradia, tendo como princípio metodológico a
consulta de diversas fontes documentais da região (recibos de aluguel, compra e venda de
terrenos, ata de reuniões das associações de moradores) que remontam a trajetória urbana desde
início do século XX, bem como realizaram trabalho de campo sob perspectiva etnográfica,
conjugado com a aplicação de entrevistas semiestruturadas33. O resultado foi a apresentação de
uma série mudanças nos arranjos fundiários na localidade, a partir de diversas modalidades de
fixação no solo que as pesquisadoras definiram como a “gramática da moradia no Complexo
do Alemão” (Op.cit, p.13).
Para as pesquisadoras o processo de ocupação dos espaços no Complexo do Alemão foi
o resultado de “práticas relacionais” (Op. cit p. 45) marcadas por profundas desigualdades
socioeconômicas com uma multiplicidade de atores que compuseram diversas arenas de
disputas e negociações em torno do solo urbano, tanto do seu valor de uso, quanto do seu valor
de troca, ao longo do tempo. Dentre as formas de ocupação, as autoras especificaram diversas
modalidades de apropriação do solo, sendo as seguintes práticas mais recorrentes: 1) o
loteamento dos terrenos para o aluguel de casas e de terra, para o arrendamento rural e “aluguel
de chão” para moradia; 2) as “invasões” e ocupações de terrenos comprados pelo Estado para
a construção de conjuntos residenciais, financiados pelos Institutos de Previdência e Pensão
(IAPs).
O primeiro conjunto de práticas de ocupação remonta uma relação comercial direta entre
proprietários de terra e pessoas que chegavam em busca de oportunidades de emprego e moradia
– a maior parte migrantes de outras regiões do País, como do estado da Paraíba e do interior do
estado de Minas Gerais. Dentre as modalidades de fixação na terra mais recorrentes estavam:

33
Segundo as coordenadoras, de modo a complementar as informações oriundas de dados secundários, a equipe
aplicou oitenta (80) entrevistas semiestruturadas considerando os seguintes critérios: antiguidade (tempo de
moradia); a importância e/ou reconhecimento social local; e a atuação comunitária (lideranças). O objetivo foi
registrar as narrativas que pudessem compor um conjunto de memórias de seus próprios viventes.
55
aluguel de barracos de madeira, arrendamento de terras para cultivo e pequena produção
agrícola e o “aluguel de chão”. Dessas três modalidades, predominou como formato principal
o “aluguel de chão”, ou seja, o pagamento de valores fixos ao dono da propriedade para o direito
de uso do solo, sem que, necessariamente, houvesse casa construída. Era o inquilino quem
construía a casa com recursos financeiros próprios. Uma espécie de arrendamento da terra para
moradia.
Ainda de acordo com Rodrigues e Couto (2013), essa modalidade de fixação no solo foi
amplamente praticada na região no período de 1920 a 1960. No Morro do Alemão, ocorrem as
primeiras negociações e ocupações já no início dos anos de 1920, quando o então imigrante
polonês chamado Leonard Kaczmarkiewicz chegou, comprou, loteou e alugou suas terras para
trabalhadores recém-chegados. Muitos “contratos” de compra e venda ou mesmo locação dos
lotes eram feitos “de boca”, sem registro em cartórios da cidade. Em diversos depoimentos,
moradores afirmam que os acordos eram mediados por representantes dos proprietários, ou seja,
acordos mediados por terceiros, sob a legitimidade e a ordem pessoal do dono da terra. Ao
pagarem os valores estipulados tinham como única garantia para permanência no local recibos
de aluguel feitos “a mão”. Além disso não havia registro cartorial para a negociação ou qualquer
outra comprovação de caráter mais formal. As negociações davam-se basicamente por meio das
relações de confiança ou na informalidade.
Proprietários de terra (fazendeiros), representantes governamentais, empresários,
lideranças comunitárias locais, população migrante e não-proprietários compunham um corpo
de atores do que pode ser entendido como a primeira arena de disputas em torno do solo
Complexo do Alemão, no tempo em que a ruralidade ainda marcava o cotidiano das áreas mais
afastadas do centro do Rio de Janeiro (EL-KAREH, 2010). Somente nos anos de 1990, a
composição dessa arena sofreria uma drástica mudança com o surgimento e a consolidação de
outras representações e lideranças locais, outros atores que se impuseram sobre as disputas em
torno dos espaços e do ordenamento territorial, como os operadores do comércio varejista de
drogas e os “donos do morro”.
O segundo conjunto de práticas relacionais destacado pelas autoras realiza-se por meio
das ocupações de lotes vendidos para os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) para a
construção dos primeiros conjuntos residenciais na localidade, que mais tarde serviriam
inclusive como instrumento prático e discursivo para elaboração de políticas e ações
governamentais alternativas à moradia nas favelas (BONDUKI, 1999; VALLADARES, 1978,
2005; RODRIGUES, 2013). No Complexo do Alemão, parte desses lotes foi vendido para os

56
Institutos de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC) tendo como público-alvo não
só funcionários do setor de comércio, mas também de outras categorias profissionais, todas
formalizadas. No entanto, como a produção de unidades habitacionais esteve sempre aquém
das expectativas e das urgências por moradia, gerando não só um grande acúmulo de terras
urbanas ociosas, como também e restringindo normativa e economicamente o acesso de grande
parte das pessoas que encontrava-se fora do mercado de trabalho formal34, dois tipos de ação
passaram a ocorrer de maneira sistemática como saída para a questão da moradia: “ocupação
consentida” e a “invasão coletiva”.
As “ocupações consentidas” apontam para uma série de regras que pautaram as relações
e os acordos entre atores públicos e a população local, em sua ampla maioria formada por
migrantes. Com os terrenos ociosos à espera do início das construções, algumas pessoas passam
a “tomar conta da área” e a responder formalmente em nome do IAPC. Investidos de certa
autoridade institucional esses “vigias” – a maior parte funcionários contratados de órgão
públicos que atuavam na área – passam a fixar-se nesses mesmos terrenos e a controlar o acesso
aos terrenos do Instituto. Consequentemente, passam a definir as regras de quem pode entrar e
estabelecer moradia. Toda a avaliação sobre o perfil do recém-chegado, se seria ou não
adequado para permanecer no terreno, era feita sob o critério pessoal desse “responsável pelo
terreno”. Esses mesmos “vigias” passam a conceder cartas de concessão para moradia escritas
de próprio punho, caracterizando mais uma vez (como nos “aluguéis de chão”) a informalidade

34
De caráter compulsório – com o foco na regulamentação das condições de reprodução da força de trabalho
(formalização do mundo do trabalho) – e fragmentário de intervenção – por categoria profissional, sendo seis:
marítimos, bancários, comerciários, industriários, condutores de veículos e empregados de empresas de petróleo e
estivadores, cada uma com uma regulação própria –, a produção da habitação social baseado na carteira prediais
do IAPs acabou por restringir a ação pública e passou a estimular a busca pela própria população de soluções
informais para o problema habitacional. Conforme nos indica Bonduki (1999), os IAPs, criados entre 1933 e 1938
por Getúlio Vargas, tiveram um posicionamento ambíguo ao longo do tempo: “ora... ligado a ideia da seguridade
social, plena, ora como mero instrumento de capitalização dos recursos captado e, portanto, desprovido de fins
sociais”. Assim, “essa ambiguidade presente durante o período populista, devido à impossibilidade política de se
alterar a estrutura previdenciária criada nos anos 30 [baseado na contribuição tripartite entre empregado,
empregador e Estado], tornou-se um entrave à formulação de uma política consistente de habitação social” (Idem,
p. 101). Além disso, os institutos privilegiaram um olhar “empresarial” da gestão, cuja “principal preocupação
eras a manutenção da estabilidade econômico-financeira das instituições previdenciárias, o que limitava as
aplicações imobiliárias destinadas a possibilitar o acesso à casa à classe trabalhadora ao montante da verba que
não comprometesse o equilíbrio financeiro dos IAPs” (Idem, p. 105). Bonduki afirma que os IAPs passaram a
financiar construções de todo tipo – “de asilos a indústria” – mas foram o edifícios de classe média e alta a
principais inversões, atingindo cerca de 80% do total (FARAH, 1983 Apud BONDUKI, 1999). Mais tarde, os
institutos adotaram medidas que privilegiavam a locação dos conjuntos residenciais transformando-se numa
espécie de “rentistas estatais”. Todo esse processo explicaria grande parte do crescimento das autoconstruções que
ampliariam o número de favelas pelo Brasil.

57
da fixação da moradia no terreno. Eram “contratos de boca” que não implicariam em qualquer
reconhecimento formal da moradia. (Op.cit, p. 21)
No entanto, para receber tal “consentimento”, o acordo tinha que atender a certas
exigências impostas pelos vigias no ato de instalação e construção das moradias. Era preciso
seguir um “código de conduta”, um ordenamento da área definido por eles. Relatos de
moradores revelam que uma dessas exigências muito comuns na época era a da “invisibilidade
dos barracos”, isto é, para que os novos residentes mantivessem sua moradia no terreno
“consentido” era necessário que as construções estivessem nos topos e nas grotas dos morros
dificultando a visualização e o acesso dos atores governamentais de fiscalização.
No entanto, em um determinado momento, quando os topos dos morros já encontravam-
se “apinhados de barracos”, conforme nos indica Rodrigues e Couto (2013, p.28), os
“consentimentos” passam a não valer mais como critério para a ocupação e fixação no solo.
Passam a ocorrer “invasões coletivas”35 nas partes baixas dos terrenos do IAPC sem qualquer
tipo de solicitação de permissão aos vigias. Pelo contrário, as pessoas passaram a agir de
maneira tática – individual e coletivamente – construindo barracos durante as madrugadas,
horário que não havia qualquer tipo de fiscalização. Como nos escreve Michel de Certeau
(2008) são essas “táticas desviacionistas” que passam a desobedecer a lei do lugar e introduzem
um outro conjunto de modos de ação, definindo inclusive novas maneiras do habitar
(CERTEAU, 2008, p. 92). Aqueles que invadiam e ocupavam apostavam que, ao amanhecer
do dia, com os barracos construídos e as pessoas dentro, seria mais difícil retirá-los do local, o
que não ocorria. A polícia e os vigias sempre que podiam derrubavam as construções, mas,
deparavam-se mais tarde com novas construções, mantendo a resistência na ocupação e a
permanência da moradia.
Como indicam Rodrigues e Couto (2013), e outros trabalhos que investigam o processo
de formação industrial dos subúrbios (FERNANDES, 2011; OLIVEIRA, 2010;
CAVALCANTI e FONTES, 2011) com mais possibilidades e oferta de empregos nas indústrias
da região o fluxo migratório aumentou e a demanda por moradia cresceu de maneira
significativa36, fazendo com que pessoas com moradia estabelecida nos terrenos passassem a

35
Reproduzo aqui termo cunhado pelas autoras Couto e Rodrigues (2013) para discorrer sobre esse tipo de ação,
pois trata-se nesse caso de ações que indicam uma disputa sob viés do enfrentamento e do conflito direto entre
não-proprietários e proprietários de terra, sem mediações ou acordos. As autoras reiteram que esse termo foi
bastante utilizado por suas interlocutoras.
36
Abreu (2013 [1987]) indica que a maior concentração de favelas ocorre nessa região da zona norte da cidade
chamada de “zona suburbana”. No censo de 1948, do total de 138.837 habitantes e das 105 favelas existentes, 44%
das favelas e 43% dos favelados concentravam-se nesta zona da cidade, seguida da Zona Sul (24% e 21%
respectivamente) e da Zona Centro-Tijuca (22% e 30%). A Zona Bangu-Anchieta, mais distante dos principais
58
receber familiares oriundos de outras regiões, ampliando as ocupações e construções nos
espaços livres. Essas táticas eram postas em prática em um arranjo comunitário que envolvia
uma rede de solidariedade que extrapolava o universo circunscrito da família nuclear, como nos
casos dos mutirões noturnos de construção de barracos. Estabelecia-se assim um compromisso
de família estendida em torno de um objetivo comum: construir e estabelecer a moradia. Favelas
como a Nova Brasília e a Grota em meados de 1950 já constituíam-se como espaços
consolidados de moradia após um série de invasões e ocupações estratégicas – como os
mutirões para construção de barracos durante a madrugada em terrenos públicos, horário com
menor fiscalização de funcionários públicos e batidas policiais.
Além disso, as ações governamentais para a remoção de favelas que marcaram os anos
de 1960 e 197037, em diferentes áreas do Rio de Janeiro, as desapropriações de terrenos feitas
pelos governos para a implementação de políticas de habitação de interesse social, bem como
pontuais ações de urbanização, incidiram de maneira significativa sobre a formação de outras
favelas em outras partes da cidade. É nesse período, como afirma Rodrigues (2015), que há
uma outra forte expansão de ocupações e de formação das favelas na localidade. A exceção
nesse período é a construção de dois conjuntos habitacionais com oitocentos e oitenta e quatro
(884) unidades habitacionais distribuídos em cento e quarenta e seis prédios (146) de cinco (5)
andares38 realizada pela Companhia de Habitação do estado (COHAB) 39. Algumas pessoas no
bairro contam que muitos moradores desses conjuntos são oriundas de favelas do Jacaré,
desabrigadas em decorrência das chuvas que ocorreram naquele período.
O processo contínuo de consolidação das favelas como espaço de moradia na cidade
possibilitou o surgimento de atores e grupos mais organizados dentro desses espaços que

postos industriais de emprego, tinha participação menos significativa (11% e 10%). (ABREU, 2013, pp. 106 ,
107).
37
Marca dos governos de Carlos Lacerda (1960-1964) e dos sucessivos governos ditatoriais do regime militar
(1964-1985) esses ações (caráter sempre violento) tinham como objetivo remover e extinguir favelas de áreas sob
forte valorização do mercado imobiliário, como a Lagoa Rodrigo de Freitas, onde estavam as favelas da Praia do
Pinto, Catacumba, Ilha das Dragas, etc. Na região do Complexo do Alemão Segundo Valladares (1978) nesse
período que marca mais de uma década de políticas de remoção no Rio de Janeiro (1961 a 1974) cerca de 80
favelas foram atingidas na cidade, sendo 26.193 barracos removidos e 139.218 pessoas retiradas de suas casas.
(Op. Cit, p. 39)
38
Compõem a totalidade dessas unidades habitacionais o Conjunto Residencial Itararé-Aquários e Conjunto
Residencial Jardim do Ipê. O primeiro possuí seiscentos e sessenta e oito (668) apartamentos distribuídos em cento
e trinta e dois (132) blocos. O segundo são duzentos e vinte e quatro (224) apartamentos distribuídos em catorze
(14) blocos.
39
Com a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro em 1975, a gestão da questão habitacional, que antes
era da COHAB-GB, ficou sob responsabilidade da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (CEHAB-
RJ).

59
passaram a utilizar o movimento de ocupação para mercantilizar a “posse” da terra. Os
“faveleiros” (COUTO e RODRIGUES, 2013, p. 31), como ficaram conhecidos os atores desse
mercado informal de terras, aproveitaram-se das ações de ocupação e apossaram-se de partes
dos terrenos para em seguida vendê-las em um mercado de grilagem40 que surgiu com a busca
permanente das famílias por um espaço para moradia.
Paralelo aos grileiros, as recém-criadas associações de moradores, a partir dos anos de
1960, tiveram um papel importante na mediação em torno das ocupações. As três primeiras
associações de moradores do bairro foram criadas no início dos anos 1960: o Centro Social
Joaquim de Queiroz (Grota), União para Defesa dos Moradores do Morro do Alemão
(UDAMA) e a Associação de Moradores da Nova Brasília. Essa última seria a primeira
associação forjada no processo de luta pela permanência das famílias que ocuparam uma das
terras do IAPC em 1957, após ações de despejo impetradas pelo órgão proprietário. (COUTO
e RODRIGUES, 2013; PERLMAN, 2002).
Com o reconhecimento formal da representação comunitária pelos órgãos
governamentais, como o SERFHA41, as Associações de Moradores assumiram um papel
institucional importante dentro das favelas e passaram a regular as ocupações de novos
migrantes. Em um primeiro momento passaram a vender “cavas de terra” – terrenos literalmente
cavados (capinados, limpos e demarcados) nas encostas dos morros para trabalhadores recém-

40
O termo “grilagem” pode ser entendido como a “ocupação irregular de terras, a partir de fraude e falsificação
de títulos de propriedade. O termo tem origem no antigo artifício de se colocar documentos novos em uma caixa
com grilos, fazendo com que os papéis ficassem amarelados (em função dos dejetos dos insetos) e roídos,
conferindo-lhes, assim, aspecto mais antigo, semelhante a um documento original.” A grilagem é um dos principais
instrumentos de domínio e concentração fundiária no meio rural brasileiro.
http://www.incra.gov.br/oqueegrilagem. Acesso em 01/11/2017.
41
Criado em 1956 pelo governo municipal, o Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-
Higiênicas (SERFHA) tinha como objetivo articular o controle político nas e das favelas, tendo como princípio a
elaboração de uma proposta de pauta mínima de direitos sociais referente a infraestrutura das favelas. Teve atuação
modesta até 1960, apoiando basicamente as ações de duas instituições da Igreja Católica, a saber: a Fundação Leão
XIII (1946), cuja a finalidade estava atrelada a busca por uma cristianização das massas, mas com um incentivo a
vida associativa nas favelas baseada no diálogo e na formação de lideranças tradicionais; e a Cruzada São Sebastião
(1955), que trazia os preceitos da Fundação Leão XIII, mas acionava o discurso e mobilizava recursos em torno
da ideia de urbanização concreta e pedagogia cristã. A partir de 1960, mais precisamente entre 1961 e 1962, o
SERFHA, sob comando de José Arthur Rios, passa a aproximar-se das favelas com o objetivo de estimular a
formação das associações de moradores onde elas ainda não existiam. Rios justificou esse trabalho como forma
de “capacitar o morador como tal a ganhar certa independência para tratar com as autoridades estatais em vez de
ter de depender de favores políticos” (LEEDS & LEEDS, 1978, p. 212). Até maio de 1962 criaram cerca de setenta
e cinco associações. Para Zaluar e Alvito (2006), no fundo, essa foi uma forma manter a relação de subordinação
das lideranças nascentes sob a “moeda de troca da promessa de urbanização [como] controle político das
associações pelo Estado” num arranjo de caráter híbrido – Igreja e Estado – que criava uma “cumplicidade entre
lideranças locais e o poder público, situação favorecida pelo fato de que o Estado optara por iniciar seu trabalho
em favelas que ainda não estavam politicamente organizadas” (ZALUAR & ALVITO, 2006, p. 31)
60
chegados. Depois, vendendo42 essas terras e concedendo registros de posse, sem que esses
fossem, na maior parte dos casos, reconhecidos legalmente.
A partir dos anos de 1970, as associações de moradores estabilizaram sua representação
comunitária perante o poder público como mediadores dos interesses da população local e dos
representantes governamentais. As associações protagonizaram o papel de legítima
representação das favelas e tiveram papel importante nos movimentos de urbanização que se
seguiram no Complexo do Alemão, que passou por mudanças significativas em seu tecido
urbano. Obras de saneamento, conjuntos habitacionais, estruturação de redes de distribuição de
energia elétrica e de água ocorreram com maior intensidade.
Com o processo de redemocratização do Brasil em curso, o enfraquecimento das
políticas de remoção de favelas postas em prática desde os anos de 1960 e o retorno do exílio
de políticos com grande identificação popular – como Leonel Brizola – , as favelas foram postas
no centro do debate político sobre ordem urbana, mas sob a perspectiva da inclusão via
urbanização e participação social (MATTIOLI, 2016). Fundamentadas pelo princípio da justiça
social, políticas de concessão de título de propriedade em habitações e loteamento nas favelas
são postos em prática, como o programa “Cada família, um lote” que garantia a consolidação e
a segurança jurídica das posses nas favelas (GONÇALVES, 2013). Outras favelas surgem no
bairro como, o Morro da Baiana e o Morro das Palmeiras. No decorrer dessas ações, as
associações de moradores compuseram uma forte representação local perante o poder público,
perdendo somente parte de sua legitimidade ordenadora do espaço mais tarde para os grupos
armados ligados ao “Comando Vermelho”43 que passaram a controlar os territórios de favelas
por meio da consolidação de um mercado varejista de drogas ilícitas.
Com o crescimento exponencial das construções informais, as sucessivas crises
econômicas a partir dos anos de 1970 e a crescente militarização no conflito entre operadores
do Comando Vermelho e policiais, que marcaram fortemente o cotidiano do Complexo do
Alemão no início dos anos de 1990, a região passou a ser lida quase que, exclusivamente, como
lugar do crime e da violência. Dito de outro modo, um lugar onde se consolidou um conjunto
de práticas ligadas a um grupo social em desconformidade com a ordem institucional-legal

42
Não havia um valor fixo sobre os pedaços de terra. Segundo relatos de interlocutores no campo, o valor do
terreno variava de acordo com a condição financeira do comprador.
43
Junto com o Terceiro Comando Puro (TCP) e o Amigos dos Amigos (ADA), o Comando Vermelho (CV) é uma
das três facções que controlam o mercado varejista de drogas ilícitas baseado no controle territorial dos espaços
de favelas no Rio de Janeiro. Nos últimos anos, as milícias – grupos formados por atores estatais como policiais,
bombeiros, militares reformados e guardas municipais – vem compondo esse conjunto de organizações criminosas
que disputam o controle de territórios da cidade, bem como a oferta de serviços e produtos aos moradores dessas
localidades.
61
instituída que promove “à padronização dos comportamentos, estruturalmente condicionados e
estruturantes e à apreensão desses padrões através da transmissão social e de codificações
simbólicas”. (GRILLO, 2013, p. 95). A representação simbólica de todo o Complexo do
Alemão foi impregnada nos/pelos meios de comunicação com os sentidos do chamado “mundo
do crime”.
Em grande medida, parte dessa leitura esteve associada aos desdobramentos dessa
conjuntura visível. O conjunto de ruínas e espaços vazios que tornaram-se as fábricas agora
fechadas, as explosões demográficas de décadas de desenvolvimento industrial e urbanização,
os altos índices de desemprego, de analfabetismo e doenças na região, entre outros indicadores,
passaram a ser o material substantivo para a reiteração de estigmas e preconceitos. Na trajetória
secular interpretativa sobre os espaços das favelas na cidade do Rio de Janeiro, aquele antigo
bairro outrora visto como o habitat do novo proletariado (LEFEBVRE, 2001) passou a ser
construído no imaginário social e veiculado, sistematicamente, na imprensa como o lugar da
criminalidade, da pobreza, da falta e da negação de vida.
Atualmente, circundando os bairros suburbanos da Penha, Olaria, Ramos, Bonsucesso
e Inhaúma, o bairro do Complexo do Alemão é formado por dezenas de favelas 44. Seu tecido
urbano é formado por uma diversidade de órgãos e de equipamentos públicos (escolas, creches,
postos de saúde), de instituições privadas e de caráter comunitários (como organizações não-
governamentais, institutos de pesquisa, associações de moradores), de comércio variado –
supermercados, bancos, lojas diversas – em uma densa composição urbana. A região hoje é
considerada uma das mais populosas do município, com mais de 100 mil habitantes45 com
características demográficas, econômicas, sociais e culturais atuais que nos remetem a uma

44
Atualmente, a definição de quantas favelas e áreas internas compõem o Complexo do Alemão varia de acordo
com a fonte pesquisada. Durante a implementação do PAC, o Governo do Estado trabalhou com o número de 12
“comunidades” (Morro da Baiana, Morro do Alemão, Itararé/Alvorada, Morro do Adeus, Morro da Esperança,
Matinha, Morro dos Mineiros, Nova Brasília, Palmeiras, Fazendinha, Grota, Reservatório de Ramos e Casinhas).
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) utilizou como referência em recentes trabalhos 14 “favelas”
(acrescentou a lista acima Pedra do Sapo e Canitar). Representações locais nomeiam 31 “lugares” (Grota; Areal;
Sabino; Chuveirinho; Cava; Canitar; Te contei, São José, Mineiros, Pedra do Sapo, Central, Alemão, Relicário,
Matinha, Coqueiro, Rua 2, Alvorada, Sem saída, Praça do samba, Largo da Vivi, Praça do cruzeiro, Fazendinha,
Zona do medo, Casinhas, Nova Brasilia, Loteamento, Aterro, Reservatório de Ramos, Morrão, Inferno verde, Área
5).
45
O número total de habitantes do Complexo do Alemão é controverso. O Censo Demográfico de 2010 (IBGE)
contabilizou 60.583 pessoas distribuídas em 18.442 domicílios Algumas instituições locais afirmam que há cerca
de 200.000 pessoas morando na localidade. Em 2008 o Escritório de Gerenciamento de Projetos do Governo do
Estado do Rio de Janeiro (EGP-Rio) realizou do Censo das Favelas indicando 90 mil habitantes distribuídos em
28.000 domicílios somente para a área objeto da intervenção do PAC. Porém, tal área não é totalmente coincidente
com o território do bairro Complexo do Alemão. Sobre os dados do EGP-Rio estes estão em
http://www.emop.rj.gov.br/wp-content/uploads/2014/06/Apresentacao-Censo.pdf
62
típica cidade brasileira de médio porte46. Atualmente, parte desse complexo urbanístico está
relacionado com uma série de intervenções recentes do poder público do bairro, como o
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em sua modalidade voltada para periferias e
favelas dos grandes centro urbanos – o PAC-Favelas.

* * *

Em 2010, quando eu cheguei no Complexo do Alemão, ainda marcado pelo estigma da


violência e da precariedade, o “clima” no bairro era de “mudança”. Com o PAC, os governos
municipal, estadual e federal envolvidos na implementação do programa prometeram
transformar o Alemão. O que parecia caso perdido, naquele instante ganhou corações e mentes
sob o signo da esperança. Era chegada a hora da transformação. Paulo, recentemente, em uma
de nossas conversas, declarou: “mano velho, os caras meteram a mão no nosso dinheiro, mas
vou te falar: isso aqui mudou muito! Tem banco, Casas Bahia, Teleférico... pô, a favela mudou,
mas podiam ter feito muito mais... se não fosse essa ladroagem toda aí...”.

46
Segundo o IBGE as cidades de médio porte possuem entre 100 001 e 500 000 habitantes.
63
3.2 “O Alemão vai mudar”: a urbanização social do PAC

Esse foi o slogan utilizado pelo PAC-Favelas no Complexo do Alemão. Tratores,


caminhões, engenheiros e gestores governamentais transitavam pelas ruas e ecoavam as
inúmeras promessas de transformação daquele lugar. Cartazes coloridos pendurados nos postes
de luz e chamadas em carros de som anunciavam a chegada de lideranças políticas para as
próximas inaugurações dos equipamentos públicos que ficavam prontos a medida em que o
calendário eleitoral se aproximava. Espaços institucionais foram montados pelas empresas de
Trabalho Técnico Social para receber e anotar os pedidos, as reivindicações e até os elogios de
moradores do programa. Estavam sempre cheios em um fluxo contínuo de entrada e saída de
moradores. Coordenadores e técnicos do governo com cadernos e canetas em punho
registravam praticamente tudo o que era relatado pela população afetada pelas obras. Os
canteiros das obras mantinham-se cheios de capacetes brancos e jalecos azuis das empresas.
Alguns moradores afirmam hoje que 80% do quadro de operários foi formado por moradores
da região. “Todo mundo trabalhou no PAC, mano!”, disse-me Carlos, morador de uma das
favelas do Complexo.
O PAC foi lançado em 2007 pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que
prometeu transformar o Brasil em um “grande canteiro de obras” com fins a melhorar os
indicadores econômicos e promover de forma sustentável o crescimento da economia nacional.
O foco do programa estava nos investimentos em infraestrutura e no estímulo ao crédito e ao
financiamento, principalmente, voltado para obras públicas. Em 2008, o governo federal em
conjunto com prefeituras e governos dos estados propuseram o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) em sua modalidade voltada para áreas periféricas dos centros urbanos,
denominada “PAC-Favelas”47. Todas as obras foram executadas por consórcios de empreiteiras
com a fiscalização das empresas de obras públicas. No Rio de Janeiro, foram três as
empreiteiras que formaram o “Consórcio Rio Melhor” sob o acompanhamento da EMOP. O

47
Denominação dada pelo Ministério das Cidades para versões do programa em “áreas urbanas que apresentam
baixos índices de desenvolvimento humano”. Entre os principais critérios definidos pelo Ministério das Cidades
estavam: ser integrante das Regiões Metropolitanas de Belém/PA, Fortaleza/CE, Recife/PE, Salvador/BA, Rio de
Janeiro/RJ, Belo Horizonte/MG, São Paulo/SP, Campinas/SP, Baixada Santista /SP, Curitiba/PR e Porto
Alegre/RS; estar em municípios de grande porte, cuja população total seja superior a 150 mil habitantes ou que,
por sua atividade econômica ou infraestrutura logística, possuam raio de influência regional; tenha articulação e
integração no território, cuja área de abrangência e execução envolvam mais de um agente institucional - estado e
município, mais de um município; e mitigação de danos ao meio ambiente, causados por assentamentos irregulares
em áreas de mananciais, de preservação ambiental, de preservação permanente. (Manual de Instruções / Ministério
das Cidades, 2007:3). Ver em OLIVEIRA, Bruno C. S.. Políticas públicas e participação popular na
implementação do PAC Social no Complexo do Alemão, RJ. 2010. 121 f.. Dissertação (Mestrado em Política
Social) – Escola de Serviço Social – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2010.
64
PAC-Favelas foi implementado nas favelas da Rocinha, de Manguinhos, de Pavão-Pavãozinho
e do Complexo do Alemão. Nesse último, as ações iniciaram-se no final de 2007.
Para as favelas e regiões periféricas dos centros urbanos, o PAC-Favelas foi colocado
como um instrumento de desenvolvimento socioeconômico cujo o objetivo foi a urbanização
dos chamados “assentamentos precários”, o acesso ao saneamento ambiental, à regularização
fundiária e à moradia “adequada”. Esse conjunto de ações conformavam parte do que entendiam
como o processo de “inclusão social”. Para o Complexo do Alemão e demais áreas de atuação
do PAC-Favelas, a proposta do governo federal foi a de criar possibilidades de permanência ou
mudança dessa população em sua região de origem tanto por meio das indenizações em
dinheiro, quanto pela inclusão das pessoas em sorteios para recebimento de unidades
habitacionais (processo que abordarei mais a frente).
Baseado no Estatuto das Cidades48 (2013), “área de reassentamento deverá estar situada
o mais próximo possível da antiga área ocupada, para possibilitar a manutenção das relações de
vizinhança e emprego estabelecidas, bem como a proximidade com os equipamentos públicos
já utilizados” (CAIXA ECONÔMICA SOCIAL, 2013, P.11). Na época em que trabalhei como
gestor pude observar, que, discursivamente, os agentes do estado defendiam essa proposta como
a “inovação do programa”, pois, para eles, tal política diferenciava-se das remoção anteriores,
em que os moradores eram encaminhados para áreas distantes de sua realidade de vida. No
entanto, cabe ressaltar que políticas de urbanização de favelas muito anteriores ao PAC-Favelas
já haviam adotado a prática de manter os moradores em seus locais de origem, como o caso da
experiência de Brás de Pina, onde os moradores não só podiam permanecer, como também
havia a oportunidade de pegar um empréstimo para comprar material de construção (BLANK,
1980; FERREIRA DOS SANTOS, 1981), ou mesmo a experiência da Cruzada São Sebastião,
construída entre os anos de 1955 e 1960, que mobilizou recursos para urbanizar cerca de 12
favelas, executar projetos de redes de luz e erigir o conjunto da Cruzada na antiga praia do
Pinto, sendo esta a primeira experiência de alocação nas proximidades da própria favela
(VALLADARES, 1978; SIMÕES, 2008).

48
Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001 que estabelece diretrizes gerais para a política urbana, o Estatuto das
Cidades regulamenta parâmetros para a condução de políticas públicas urbanas e de ordenamento das cidades
definidas na Constituição Federal de 1988. Mais que a busca pela integração sociourbanística de espaços
periféricos das cidades, o Estatuto estabelece princípios como a participação da população nos processos
deliberativos sobre reformas urbanísticas, a necessidade de regulação do “uso da propriedade urbana em prol do
bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. O Estatuto resulta de
uma ampla mobilização da sociedade civil em torno de questões e problemas históricos do meio urbano, que
remetem a um ideal de sustentabilidade da vida nas cidades. A questão da habitação no Estatuto, enfim, conquista
a regulamentação, principalmente no que se refere a promulgação de legislações específicas que instrumentalizam
os processos de regularização fundiária e de reconhecimento dos direitos de posse.
65
No entanto, cabe aqui chamar atenção para uma dimensão importante do PAC-Favelas:
a criação do chamado PAC Social. Proposto pela equipe do trabalho social da Caixa Econômica
Federal como instrumento de gestão social, o PAC Social tinha como função operacionalizar a
proposta do programa que estava baseado no Caderno de Orientação do Trabalho Social
(COTS). O objetivo era subsidiar a elaboração e acompanhar a execução do Projeto de Trabalho
Técnico Social (PTTS) pelo agente executor do Trabalho Social (TS) no território baseado nos
seguinte itens: ações informativas, mobilização e organização comunitária e/ou condominial,
educação sanitária e ambiental, educação patrimonial, capacitação profissional e geração de
trabalho e renda, e trabalho técnico socioambiental – articulados de forma interdisciplinar,
especificando detalhadamente as ações de cada um, conforme diretrizes do COTS (2007).
Ao mesmo tempo, o PAC Social deveria articular as ações de cunho “social” com o
tempo da execução das obras de infraestrutura. Por meio de um conjunto de práticas rotineiras
e instrumentos técnico-burocráticos definiam todo o caminho a ser percorrido pelo morador –
cadastramento das pessoas, encaminhamento para negociação da indenização e mudança – cujo
o objetivo era acompanhar as pessoas impactadas pelas obras, que em determinado momento
seriam removidos e encaminhados para obter uma indenização.
No entanto, todo esse arcabouço operacional do “social” esteve amparado sob a ideia
de “participação” da população local como mecanismo capaz de “adequar as intervenções às
necessidades e demandas dos grupos sociais envolvidos”. Segundo as normativas, o programa
buscava
viabilizar o exercício da participação cidadã e promover a melhoria de qualidade de
vida das famílias beneficiadas pelo projeto, mediante trabalho educativo, favorecendo
a organização da população, a educação sanitária e ambiental, a gestão comunitária e
o desenvolvimento de ações que, de acordo com as necessidades das famílias,
facilitem seu acesso ao trabalho e melhoria da renda familiar. (INSTRUÇÃO
NORMATIVA / anexo 2, 2007, p.3).

E, além disso, a participação possibilitaria um outro tipo de envolvimento da população


com a moradia. Segundo a orientação do governo federal (COTS, 2007, p.03),

a participação dos beneficiários promove uma melhor adequação das intervenções


às necessidades e demandas dos grupos sociais envolvidos, apresentando-se como
contribuição significativa para a sustentabilidade do empreendimento, (pois)
compromete os beneficiários, levando-os a exercerem seus direitos e deveres,
propiciando a compreensão e a manifestação da população atendida acerca das
intervenções, permitindo a afirmação da cidadania e transparência na aplicação dos
recursos públicos.

66
Em um primeiro momento, a ideia de participação da população nos processos de
implementação das políticas públicas foi utilizado como mecanismo aglutinador de interesses
entre gestores públicos, lideranças comunitárias e a população diretamente afetada pelas
intervenções. Participação como valor democrático tornou-se elemento capaz de capitanear os
mais diversos interesses postos em uma arena diversa e radicalmente assimétrica como foi a do
PAC-Favelas no Complexo do Alemão. Isso foi uma questão chave para compreender como a
construção discursiva sobre o PAC envolveu uma gama significativa de atores e grupos locais
em torno de solicitações e reivindicações ao longo da execução do programa no território.
Participar significava a possibilidade de interferir, opinar, sugerir, “fazer diferente” – expressão
muito usada por alguns moradores.
Desde o início de sua implementação do programa, o PAC-Favelas prometera
transformar a vida dessas pessoas por meio de um conjunto de projetos e ações que
possibilitariam o desenvolvimento econômico e social do bairro, bem como o acesso aos
variados equipamentos e serviços públicos disponibilizados pelo programa, incluindo, nesse
pacote urbanístico, o recebimento de novas residências formalizadas e regularizadas. Todo esse
aparato de técnicas urbanísticas, permeado por valores democráticos da “participação” ficou
conhecido como “urbanismo social”. Esse modelo de tinha como proposta o desenvolvimento
socioterritorial de espaços segregados da cidade com “inclusão social participativa” de
moradores e “regularização da situação fundiária” das moradias, como constata-se na definição
do arquiteto urbanista e idealizador do projeto49:

Urbanismo social, no sentido aqui sustentado, significa a consideração das condições


de vida urbana em primeiro lugar, por sobre qualquer outra perspectiva, econômica
ou técnica [..] urbanismo para inclusão social, adequada relação entre cidade-
urbanidade-espaço público, e iniciativas para a geração de trabalho e renda (incluída
aqui a questão da habitação e dos equipamentos sociais) [...] articular construção de
cidade (não só de habitação, mas também da habitação com seus complementos de
equipamentos e serviços sociais: educação, trabalho, transporte, saúde, cultura) com
condições de urbanidade e espaço público. O urbanismo social deve ser concebido na
perspectiva da mobilização produtiva do território (detecção de potenciais) e os
projetos de impacto urbano devem ser elaborados sob a ótica da eco-eficiência no
campo dos recursos tanto materiais quanto humanos.” (IPEA – Revista
Desenvolvimento - Out./Nov. 2010, pg. 39).

49
O projeto de urbanização proposto para o PAC-Favelas do Complexo do Alemão foi desenvolvido por Jorge
Mario Jáuregui, arquiteto e urbanista, pesquisador associado da Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo
da Universidade de Buenos Aires. Atuou em conjunto com as equipes técnicas das empreiteiras e do governo do
Estado nos processos de formulação dos projetos relacionados ao PAC das Favelas no Rio de Janeiro. Em seu site
(http://www.jauregui.arq.br/) há uma série de trabalhos, projetos e publicações desenvolvidos a partir de suas
atuações em várias cidades e favelas no mundo.

67
A antropóloga colombiana Suly Roldán (2011) sugere que o conceito “urbanismo
social” começa a circular como prática discursiva no período do governo do Prefeito de
Medellín Sergio Fajardo (2004-2007), para se referir a um conjunto de ações que vão desde
intervenções físicas no espaço à ações de desenvolvimento social. Em sua pesquisa sobre as
práticas de urbanização de favelas desta cidade colombiana, a autora chama a atenção para
rápida difusão que os ideários do urbanismo social adquiriram, dando força institucional às
ações implementadas pela prefeitura da cidade colombiana. O Plano de Desenvolvimento
Municipal de Medellín (2008-2011) define o urbanismo social como

um modelo de intervenção do território que compreende, simultaneamente, a


transformação física, a transformação social, a gestão institucional e a participação
comunitária; buscando promover a equidade territorial, privilegiando a ação do Estado
nas zonas periféricas da cidade, com menores índices de desenvolvimento humano e
qualidade de vida50 (Alcaldía de Medellín, 2008 apud Roldán, 2011, p. IX, tradução
nossa).

Desde o início do PAC, as cidades do Rio de Janeiro, mais especificamente o bairro do


Complexo do Alemão e Medellín (Comunas 13 e Santo Domingo) foram, reiteradamente,
aproximados pelos gestores públicos brasileiros que buscavam não só semelhanças geográficas,
como também similaridades entre as trajetórias e as composições urbanas dessas duas
localidades como uma forma de justificar e planejar as ações de urbanização em áreas de favelas
no Rio de Janeiro. Ao longo do tempo, diversos representantes do governo do Estado do Rio
de Janeiro realizaram diversas visitas a cidade de Medellín (Colômbia) para observar as ações
empreendidas pelo governo local em espaços considerados de baixo desenvolvimento social e
urbano – como os distritos mencionados acima.
Para o então governador do estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, “as experiências
colombianas [podiam] servir de modelo para novas ações do Governo do Estado do Rio de
Janeiro nas [...] comunidades carentes”51. O projeto do teleférico, que em grande medida ditou
o ritmo das obras no Complexo do Alemão, foi copiado52 da experiência em Medellin. Por ele

50
O trecho correspondente na tradução é: “un modelo de intervención del territorio que comprende
simultáneamente la transformación física, la intervención social, la gestión institucional y la participación
comunitaria; buscando promover la equidade territorial, privilegiando la acción del Estado en las zonas periféricas
de la ciudad, com menores índices de desarrollo humano y calidad de vida”.
51
http://www.rj.gov.br/web/seobras/exibeconteudo?article-id=862824. Acesso em 13/08/2014.
52
Realizada pela POMAGALSKI S.A. (POMA) - empresa especializada em transporte por cabo, com 7.700
intervenções em 73 países de cinco continentes, entre elas o teleférico na Cordilheira dos Alpes e o Metrocable
das comunidades colombianas de San Domingo e Comuna 13 - e a Empresa de Obras Públicas do Rio de Janeiro
(EMOP), o projeto do teleférico no Complexo do Alemão seguiu o mesmo modelo implantado na comunidade de
68
desencadeou-se grande parte de outras intervenções e ações, principalmente, as relacionadas à
moradia e a processos indenizatórios. As ações do PAC Social no Rio de Janeiro receberam
prêmios internacionais53 concedidos pelas agências de fomento – como a ONU-Habitat.
A concretização desses projetos de urbanização em áreas consideradas vazias e
degradadas no Rio de Janeiro (como também a região portuária e outras favelas da cidade)
seguiram o receituário do que definiu-se como “cidade-empresa”, bem difundido na América
Latina por agências internacionais de fomento (como o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, o Banco Mundial e ONU-Habitat) e consultores especializados em
economias emergentes. Segundo González García (2015), todo o aparato urbanístico não só do
PAC-Favelas, mas de outras experiências que atuaram sobre o paradigma da urbanização como
mecanismo de restauração da vida social, estava de acordo com a harmonização de
‘referenciais’54 entre as diferentes escalas de poder, nos níveis local, nacional e internacional,
concretamente a partir da conferência de Istambul Habita II-1996, tendo as experiências
urbanísticas implementadas em contexto latino-americano sob financiamento do BID e do
Banco Mundial (como Chile-Barrio, Favela-Bairro, recuperação do Centro histórico de Quito
entre outros) (GONZÁLEZ GARCÍA, 2015).
Arantes (2000), complementa a perspectiva crítica sobre os papéis dessas agências
quando afirma que, por meio do marketing agressivo, baseado na consolidação de uma
“coalizão pró-crescimento” envolvendo governos e grupos privados de diversos setores
econômicos (como empresas de comunicação e publicidade), implementou-se um tipo de
governo na cidade que negociou seus espaços como produto em nome de uma suposta
revitalização e modernização. Para a autora, essa espécie de resgate simbólico e econômico de
regiões periféricas impõe à cidade a lógica mercantil de “cidade-empreendimento”, semelhante
às experiências exaltadas, como o caso de Barcelona (BORJA e CASTELLS, 1997).

San Domingo, em Medellín, na Colômbia, por apresentar, segundo os técnicos e arquitetos responsáveis, as
mesmas características territoriais, tanto no que diz respeito a geografia local, quanto nas condições de vida da
população local. O objetivo, segundo a EMOP era fazer das estações do teleférico locais integrados a equipamentos
sociais, como escolas, creches, bibliotecas e áreas de lazer.
53
“PAC Social recebe prêmio em fórum sobre urbanização”
http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=2032489 . Acesso em 02/02/2015.
54
Gonzalez García (2015) baseia-se criticamente sobre o enfoque neo-institucionalista de Pierre Muller para
explicar que a construção das políticas passa pela elaboração de uma imagem da realidade sobre a qual a ação se
dirige. A referência para a elaboração dessas políticas está atrelada a imagem cognitiva na qual os atores
formuladores organizam suas próprias percepções dos problemas, confrontam suas soluções e definem suas
posições de ação a partir de seus lugares, suas visões de mundo. Assim, segundo o autor, é desse lugar que as
políticas são elaboradas e implementadas, reiterando aspectos interpretativos de fora (Muller, 2010. Pg. 55 Apud
González García 2015).

69
Sob o olhar de David Harvey (1996; 2013), podemos interpretar que as estratégias
governamentais para implementar grandes projetos de modernização urbanística estariam
vinculados as expectativas de atendimento de demandas dos grandes grupos econômicos que
veem nos espaços da cidade oportunidades de ampliarem seus negócios comerciais e suas taxas
de lucro. O “urbanismo” como colocado pelo autor apresenta-se como a “oportunidade” que os
capitalistas reivindicam junto aos governos para que sua mais-valia seja reinvestida, ampliando
a acumulação do capital justificadas pelas necessidades de reformas urbanas com obras de
mobilidade urbana, saneamento, equipamentos esportivos e segurança. As agências
internacionais agem como fiadoras dessa relação entre os Estados e os mercados. No caso
brasileiro, especificamente no Rio de Janeiro, ficou evidente a aproximação e os compromissos
estabelecidos entre os grandes oligopólios do setor da construção civil que participaram dos
projetos do PAC e as diversas agremiações e partidos políticos, após uma série de escândalos
de desvios e superfaturamento de obras.
No curso do capital (ou do seu acúmulo), cabe lembrar que o País ainda vivia por um
momento político ímpar em sua história recente: a cidade do Rio de Janeiro começava a
experimentar um cenário de grande euforia com a escolha para sediar a Copa do Mundo de
Futebol da FIFA em 2007 e a possível “vitória” para sediar os primeiros Jogos Olímpicos e
Paraolímpicos da América Latina (o que se concretizou em outubro de 2009). Os chamados
“megaeventos internacionais”, de fato, aconteceriam. As TVs e as campanhas midiáticas em
todos os meios de comunicação anunciavam a notícia em tom de euforia. Especificamente, no
ano de 2010, também ocorreriam as eleições para os cargos de presidente, governador,
senadores, deputados federais e estaduais. A campanha no Complexo do Alemão “fervia” e
ganhava contornos de reeleição certa para todos os candidatos da situação.
Com todo o movimento que apontava para uma grande mudança na localidade, a vida
daquelas pessoas foi recheada por novos significados sobre o viver no Complexo do Alemão.
De um modo geral, sentia-se o otimismo proporcionado pelo processo de crescimento
econômico pelo qual o País experimentou no governo Lula (2003-2010). Uma “nova classe
média” 55 nascia com a ascensão econômica de famílias que historicamente estiveram na ou
abaixo da linha da pobreza. Naquele momento, entre 2010 e 2011, a fala dos moradores remetia
a uma sensação geral de transformação do Alemão. “Uma benção do presidente Lula”, relatou-

55
O economista da Fundação Getúlio Vargas Marcelo Neri cunhou o termo “nova classe média” (2012), para
caracterizar a população de baixa renda que ascende economicamente no período dos governos do Partido do
Trabalhadores (PT), especificamente, nos governos do presidente Lula (2003-2010). Foi utilizado recorrentemente
como sinônimo de inclusão e ascensão social doa mais pobres.
70
me uma senhora divorciada, mãe de duas crianças, na inauguração de um dos nove conjuntos
habitacionais construídos pelo programa. Ela havia sido contemplada com um dos apartamentos
do PAC. Com o montante de recursos empreendidos na região (cerca de R$1 bi 56), o PAC
apresentou-se como oportunidade única para o atendimento de reivindicações históricas. Para
usar o termo de Arantes (2000), estava em curso naquele momento a “requalificação” da favela.
Com as sucessivas inaugurações – teleférico, postos de saúde, creches, escolas, bem como os
conjuntos habitacionais, as pessoas se envolveram em uma verdadeira “animação urbana” (op.
cit, 2000).
Um “novo começo para moradores do Complexo do Alemão” foi um mantra repetido
como promessa messiânica, reiterado sistematicamente em discursos governamentais, nos
encontros pessoais, nas falas dos técnicos, nos eventos de inauguração de equipamentos
públicos (colégio, creches, unidades de atendimento de saúde) construídos no bairro. Um
sistema de transporte suspenso, o “teleférico do Alemão” com estações de embarque e
desembarque de dimensões faraônicas nos topos dos quatro morros do bairro, revelava a força
operativa e o poder político-financeiro daquele conjunto de obras para uma população que se
sentia esquecida e abandonada. A relação entre representantes governamentais e a população
local consolidou o programa discursivamente como o meio para a inclusão social da favela à
cidade formal. A perspectiva subjetiva da “nova vida” foi colocada como saída para os tempos
de dificuldade na favela, gerando a esperança de reconhecimento social em seu caráter ético –
certa busca por reconstrução identitária –, aliado ao ideal moral de “justiça”, como o direito a
moradia garantido via política de redistribuição dos bens materiais (FRASER, 2007).
O discurso do então governador Sergio Cabral exemplifica a maneira como o PAC foi
construído no bairro:

Mais emocionante, não é apenas a implosão [de uma antiga fábrica desativada], mas
o que vem depois dessa implosão. Escola, hospital, moradia, o que ocorreu hoje é
uma fábrica destruída por essa implosão, uma fábrica que estava fechada há anos e
anos, nós estamos fazendo dela uma área de escolas, de hospital, 540 apartamentos,
enfim, civilidade... Centro de Referência da Juventude, o que era uma área degradada
vai se transformar numa área de cidadania, não só para as pessoas que vão morar aí...

56
Os valores totais sobre o investimento encontrados variam de acordo com as fontes pesquisadas. Em
apresentações realizadas por representantes do governo do estado o valor total gasto no PAC do Complexo do
Alemão é de R$967.414.879,00, sendo R$731.311.159,00 oriundos do Governo Federal (Ministério das Cidades
e Caixa Econômica Federal) e R$ 236.103.720,00 do Governo do Estado (Secretarias Estaduais de Fazenda e
Obras). Segundo dados do Boletim de Transparência Fiscal, documento da Secretaria de Estado de Fazenda, o
total de investimentos do PAC, entre 2008 e 2010, é da ordem de R$ 3,1 bilhões. No blog do Palácio do Planalto
(http://blog.planalto.gov.br/o-teleferico-do-alemao-e-um-simbolo-do-pac-diz-presidenta-dilma/) o valor investido
pelo governo do estado como contrapartida foi de R$210 milhões e do governo federal de R$729,4, totalizando
R$939,4.
71
é o progresso, a civilização, há urbanização, a acessibilidade, a integração de uma
região que cresceu de maneira é... desorganizada pela irresponsabilidade dos
governantes que por aqui passaram e deixaram essas comunidades crescerem sem
nenhuma oferta de serviço público. Há duas formas de violência: a violência do
controle do crime organizado, seja tráfico ou milícia, e a violência da ausência do
Estado onde o Estado deixa de oferecer serviços públicos, é uma forma muito grave
de violência, então hoje é um dia muito marcante, mais do que pra mim, pra essa
comunidade que aqui mora, para os moradores que aqui moram que assistiram essa
implosão com a esperança redobrada de que eles estão avançando. Hoje nos estamos...
aqui vai ser uma maravilha de estação do nosso teleférico. Imagina as pessoas aqui
que levavam até 40, 50 minutos pra se deslocar da estação de trem vão poder se
deslocar por teleférico. Serão seis estações de teleférico. Há pessoas que não saem
nem de casa por conta da distância que fica do alto do morro até a comunidade, às
vezes até 400 degraus ... então, a tal ‘cidade partida’ que o Zuenir Ventura sempre
falou, essa implosão é mais uma etapa do fim da cidade partida... O nosso objetivo é
exatamente a reintegração dessa região à atividade econômica, ao desenvolvimento. 57
(SERGIO CABRAL FILHO, logo após a implosão da fábrica Poesi.)

Junto com o PAC um outro evento de tamanha magnitude simbólica ocorreu no bairro:
a invasão das favelas do Complexo do Alemão realizada por um conjunto de forças militares.
Definido por um jornal de grande circulação como o “O dia ‘D’ no Alemão” – em referência
ao desembarque das Forças Aliadas na Normandia na Segunda Guerra Mundial –, no dia 28 de
novembro de 2010, policiais militares do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), as polícias
civil e federal, além de homens das Forças Armadas da Marinha e do Exército, em uma
verdadeira operação de guerra, iniciaram o processo de ocupação das favelas, que mais tarde se
desdobraria no inicio das ações para a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora ocorrida
em 30 de maio de 2012. Esse evento foi de grande repercussão nacional e internacional e
consolidava, pelo menos em seus momentos iniciais, a mudança em curso de uma nova
realidade (ou ordem social) no Complexo do Alemão.

57
A íntegra do discurso está no endereço https://www.youtube.com/watch?v=jzB00Xmp1ew - Acesso em
05/06/2016
72
3.3 Participação social: a gênese dos “condomínios do PAC”

A representação dos novos “condomínios do PAC” estiveram diretamente relacionados


com a construção discursiva valorativa da inclusão e da integração social via “urbanismo
social”. Ao mesmo tempo a consolidação desses espaços de moradia fundamentaram-se
metodologicamente sob uma perspectiva não-universal em todos os seus eixos de atuação do
58
programa , principalmente, com relação aos processos indenizatórios (tanto em valores,
quanto na indenização via unidade habitacional).
Por meio de um eixo de atuação denominado “gestão de impactos”, duas condições
eram necessárias para o atendimento pelo o programa. Primeiro, pessoas que possuíam casas
localizadas nos espaços destinados à intervenção urbanística e apontadas pelos técnicos e
engenheiros como passíveis de remoção. Segundo, casas avariadas pela própria ação das
máquinas e obras no morro. Com a permanente ação de escavadeiras no solo e uso de explosivos
para destruir grande pedaços de rocha, muitas casas apresentaram rachaduras que
comprometeram suas estruturas físicas, forçando assim a entrada das famílias nos processos de
indenizações do programa. No período de 2007 a 2010, a inclusão dos moradores no programa
esteve, basicamente, dentro dos fluxos técnico-burocráticos definidos para a “realocação”59 das
famílias. Essas deveriam passar por seis etapas procedimentais até a indenização: cadastro,
avaliação da casa, negociação para indenização, “encontros de integração”,
mudança/instalação. (COTS, 2007)
No cadastro social e na avaliação das casas, todo o procedimento era realizado pelos
técnicos do trabalho social – a maior parte moradores das favelas Complexo do Alemão – que
acompanhavam as vistorias realizadas pela Empresa de Obras Públicas do Estado (EMOP) para
medição e avaliação de residências. Depois, com os valores calculados, os técnicos orientavam
os moradores (sob aviso da obrigatoriedade da saída, ou seja, da remoção) a procurar um técnico
da EMOP para negociar a indenização a partir de três modalidades pré-definidas: indenização
simples, indenização com compra assistida ou unidade habitacional. O primeiro era a

58
O PAC-Social organizou sua atuação no território sob três eixos: Gestão de Impactos, Desenvolvimento
Sustentável e Gestão Compartilhada. Para os fins que orientam esse debate o eixo privilegiado na análise será o
de Gestão de Impacto, responsável por orientar todo o procedimento inicial de acompanhamento e indenização
das famílias atingidas pelas obras.
59
O termo “realocação” foi utilizado pelo PAC Social junto as famílias buscando diferenciar suas ações de
remoção dos registros traumáticos de remoções anteriores promovidas por agentes públicos ao longo da história
das favelas no município do Rio de Janeiro.

73
indenização do valor mensurado da casa. O segundo diferenciava-se do primeiro com o valor
imóvel acrescido de 40%. Nessa modalidade, a compra de uma nova casa era acompanhada por
um funcionário da EMOP. O objetivo, segundo os técnicos responsáveis, era garantir que o
morador não voltaria a morar em ‘área de risco’ na favela.
Parte desse processo foi conflituoso. Houve caso de moradores que possuíam imóveis
com boa estrutura construtiva e valorização no mercado imobiliário local e viram-se forçados
a negociar sob condições que consideravam injustas, principalmente, quando o valor dos seus
imóveis na favela era mais alto que a indenização proposta. Havia também pessoas que viviam
em condições mais precárias e não obtinham uma avaliação de seu imóvel compatível com os
valores de mercado para comprar outro imóvel dentro ou fora da favela e viam-se obrigadas a
“optar” pela unidade habitacional. Quando os responsáveis pela moradia eram inquilinos, após
o cadastro, passavam a receber o valor mensal de R$ 400,00 – o “Aluguel Social” – por três
meses. Era a garantia que o governo do estado dava aos não-proprietários.
Todo esse processo de negociação em torno da indenização foi conduzido alternando-
se entre as formalidades dos procedimentos técnico-burocráticos e os compromissos pessoais
que norteiam políticas públicas dessa natureza. Como já indicado em alguns trabalhos
(OLIVEIRA, 2010; TRINDADE, 2012; CAVALCANTI, 2013), a implementação do PAC no
Complexo do Alemão seguiu caminhos complexos. Dito de outro modo, a materialização do
PAC foi o resultado de tênues fronteiras entre o formal e o informal, o legal e o ilegal, o
normativo e o improviso, as práticas estatais e as locais. Acordos que definiam a política pública
para além de suas “margens” visíveis e pré-definidas nas burocracias regimentais, como bem
nos indica Das e Poole (2004).
O Programa impulsionou um princípio operativo-normativo de caráter personalista,
fragmentado e fortaleceu práticas da política de clientela (OLIVEIRA, 2010). Alguns atores
comunitários possuíam o reconhecimento político dos atores governamentais para negociar
melhores condições de indenização e, até mesmo, indicar pessoas que deveriam receber
indenizações e/ou serem alocados em unidades habitacionais. Esse movimento situava-se
dentro de uma relação mais personalizada entre governo e comunidade, diante de um cálculo
eleitoral que visava fortalecer a máquina político-partidária60 na região, em uma normatividade

60
Eli Diniz (1982) desenvolveu o conceito “máquina política” tendo como base os aspectos que fundamentaram
as ações político-partidárias dentro do antigo MDB e as consequências da montagem e consolidação de uma
complexa máquina partidária, que ganhou maior expressão após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de
Janeiro, estendendo-se em ramificações pelos municípios do interior fluminense. Para a autora “máquina política
é a organização que se baseia no poder de atração das recompensas materiais”, que incluem acesso a “empregos e
cargos na administração pública pela manipulação da influência política dos dirigentes e quadros partidários, a
74
operacional e informal mais ou menos prevista. Assim, ao mesmo tempo em que “incluía” a
população, o governo por meio de seus gestores de território regulava os procedimentos de
atendimentos, consolidando uma política de urbanização sob uma perspectiva operacional de
inclusão fragmentada.

3.3.1 As chuvas de abril e o reordenamento da arena do PAC

Um evento inesperado altera, definitivamente, todo o cenário político do programa


federal. As tempestades que acometeram o Rio de Janeiro entre os dias 5 e 6 de abril de 2010
deixaram milhares de desabrigados e mortos em diversas regiões do estado61. O Complexo do
Alemão, assim como outras áreas com moradias em encostas dos morros, sofreu um impacto
significativo sobre o seu território. Diante dos efeitos dos deslizamentos de terra e a quantidade
elevada de pessoas em condição de desabrigadas ocorre uma grande comoção pública em torno
daquela “desastre”62, provocando no interior da gestão do PAC um reordenamento das ações e

obtenção de privilégios de diferentes tipos, desde contratos de fornecimento de bens e serviços para órgãos
governamentais, até a maximização das oportunidades de realização de negócios particulares através de contatos
políticos e tráfico de influência [...] para o círculo dos negócios, o chefe político proporciona privilégios e
oportunidades especiais que permitem ganhos econômicos imediatos”. (Diniz, 1982, p. 27 - 28)
61
As fortes chuvas de abril “provocaram” diversos deslizamentos de casas em encostas de morros na cidade
levando à morte 231 pessoas, deixando 161 feridos, 60 desaparecidos e mais de 5.000 desabrigados em todo o
estado do Rio de Janeiro. Essa não seria a primeira, nem a última vez que os municípios do Rio sofreriam com os
desdobramentos das fortes chuvas naquele período do ano. Dados que compõem a Pesquisa de Informação Básica
Municipais (MUNIC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que no
período entre 2008 e 2012, 1.543 municípios sofreram algum tipo de impacto em decorrência das enchentes e
deslizamentos causados pelas chuvas, o equivalente a 27,7% das cidades do País. Os danos à vida das populações
atingidas resultaram em 8.942 ocorrências e deixaram 1,4 milhão de pessoas desabrigadas ou desalojadas (que
tiveram que deixar temporariamente as suas casas) em todo o Brasil. A pesquisa também constatou que no mesmo
período as enchentes e as enxurradas atingiram 1.574 cidades (28,2% do total de 5.570) e somaram 13.244 casos,
levando 777,5 mil à condição de desabrigados ou desalojados. Os alagamentos atingiram 2.065 municípios (37,1%
do total de 5.570), resultando em processos erosivos em 1.113 cidades (20% do total de 5.570), com os
escorregamentos e deslizamentos tendo atingido 16% dos municípios (895). No caso do Rio de Janeiro, há um
histórico recente de tragédias relacionadas às fortes chuvas, como os casos da região Serrana em 2011, que deixou
905 mortes e 191 desaparecidas, e em 2013 nos municípios de Nova Iguaçu, Japeri, Queimados e Mesquita com
2.000 desalojadas. Neste mesmo ano de 2013 o Complexo do Alemão sofreria mais uma vez os impactos das
chuvas com muitos desabrigados no Morro das Palmeiras. Fontes:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-04/ibge-27-dos-municipios-brasileiros-foram-atingidos-poe-
enchentes-afetando-14 Acesso em 30/08/2016 / http://www.mobilizadores.org.br/wp-
content/uploads/2014/07/Mais-do-mesmo-Temporais-e-mortes-no-Brasil.pdf Acesso em 02/09/2016
62
Há um debate interessante sobre a ideia de “desastre natural” quando relacionados as favelas e áreas periféricas
das cidades contemporâneas. Os desastres não seriam somente catástrofes de ordem natural, mas, “expressões
agudas de um cotidiano de desigualdades e situações extremas enfrentados pelos moradores., (onde) longe de ser
natural, os desastres em favelas tem uma dimensão histórica, afirmando-se como um ‘desastre nosso de cada dia’
na vida dos moradores” (CUNHA; PORTO; PIVETTA, et. al., 2015, p. 100). Assim, analisar esses acontecimentos
nas favelas, em sua complexidade, nos implica considerar que a importância do desastre não está na pontualidade
do evento, ou até mesmo na incapacidade do poder público de atuar corretivamente sobre o fato deflagrado, mas
reconhecer a dinâmica dos processos geradores de vulnerabilidade social, bem como seus impactos sobre o
cotidiano dos moradores que sob condições extremas. Nesse sentido, um desastre na favela revela processos de
média e longa duração que se consolidam na luta pela ocupação do solo. O desastre não é algo pontual, mas o
75
a elaboração de novas condicionantes que visavam contemplar um público, até então não
inserido nas regras que justificavam indenizações e remanejamento de moradias pelo programa.
Centenas de famílias tornaram-se desabrigadas literalmente da noite para o dia, fazendo com
que os critérios para indenização fossem relativizados. Assim, o PAC criou um eixo de atuação
e financiamento das ações de amparo aos desabrigados denominado “emergência”. Depois
dessa medida, os apartamentos do PAC foram transformados em solução para todo o caos que
se instalara com as consequências das chuvas.
Até aquele momento, a questão da habitação estava restrita à população que era
encaminhada pelo Trabalho Técnico à EMOP para negociar. As chuvas e os desastres
possibilitaram as milhares de desabrigados serem inseridos de maneira definitiva programa
governamental. As formas de mobilização dessa parte da população local, a força com que os
desabrigados operacionalizaram o discurso do direito à moradia e o peso político que a questão
ganhou na opinião pública resultaram na quebra momentânea de previsibilidade dos atores
sociais envolvidos sobre aos processos normativos do PAC-Favelas no Complexo do Alemão.
Reuniões entre lideranças locais, representantes governamentais e moradores desabrigados
criaram a atmosfera para reivindicações mais coesas e mobilizações mais frequentes.
Poucos dias depois dos desastres o governo do estado promulgou o decreto n. 42.40663
instituindo ações direcionadas às populações desabrigadas e às que deveriam ser retiradas das
“áreas de risco”64 sob a rubrica governamental “emergência”. Este eixo de atuação se
diferenciava do eixo “Gestão de Impactos”, mas utilizou-se dos mesmos fluxos procedimentais
burocráticos metodologicamente definidos no eixo GI – que praticamente deixou de fazer
sentido dentro da conjuntura emergencial. Com os recursos disponibilizados para a
“emergência”65 e a possibilidade de construção de mais unidades habitacionais, um tipo de ação
comunitária foi marcante para a materialização da política do PAC: a formação de “grupos de

resultado de um “processo social” (RIBEIRO, 1995) que constitui a própria dinâmica de lutas e estratégias
utilizadas por sujeitos historicamente alijadas de seus direitos de existirem na cidade, o que está diretamente ligado
ao processo histórico de formação das favelas.
63
Em 13 de abril de 2010 o então governador Sérgio Cabral sancionou o decreto n. 42.406 que instituía o Programa
“Morar Seguro” orientado a construir unidades habitacionais visando o “reassentamento da população que vive
em áreas de risco no Estado do Rio de Janeiro”. A partir desse decreto instituiu-se novas ações para remoção de
famílias, a partir de critérios para classificação de áreas consideradas de risco. Regulamentava também a
possibilidade de pedido de auxílio (técnico e financeiro) por parte dos municípios para realização de estudos
técnicos de mapeamento de áreas de risco.
64
Termo recorrentemente utilizado pelos gestores públicos para justificar tecnicamente as remoções de casas nos
morros.
65
Segundo o art. 6 do decreto 42.406, o governo do estado destinaria cerca de R$1 bi do espaço fiscal relativo ao
ano de 2009 para a contratação de empréstimos destinados à construção de imóveis populares a serem destinados
ao reassentamento da população em área de risco de toda a região metropolitana atingida pelas chuvas.
76
pressão”, tanto dos moradores desabrigados quanto dos presidentes de associação sobre os
atores governamentais. Os dois grupos incidiram diretamente sobre o que foi definido em
seguida pelo governo como eixo “emergência”.
O número de desabrigados aumentava a cada dia e esteve sempre muito além do número
de apartamentos disponíveis para o atendimento das necessidades emergenciais por moradia.
Para aumentar as possibilidades de inserção da população na “emergência” o governo do estado
arrendou condomínios do programa “Minha Casa, Minha Vida” para alocar os desabrigados.
Os critérios de seleção e inclusão nas listas de sorteio tornaram-se cada vez mais personalistas
e clientelistas. As relações de poder entre lideranças locais e gestores públicos, bem como as
trocas de favores, fizeram dos apartamentos moeda de troca eleitoral transformando as unidades
habitacionais do PAC em “mercadorias políticas”66 (MISSE, 2002; 2006). Denúncias de
favorecimento ilícito, desvios e outras corrupções fundamentavam as revoltas dos que não
foram atendidos. Muitos nas mesmas condições de desabrigado ou sob risco da moradia
precária permaneceram fora do atendimento67. Esses não tiveram outra alternativa a não ser
continuar na casa de parentes ou viver em módicos barracos com o benefício do “Aluguel
Social”, pois o mercado imobiliário local tornou-se valorizado, fazendo com que a quantia de
R$400,00 não garantisse a obtenção de uma casa com mínimas condições da habitação. No
final dessa dinâmica de inclusão seletiva e personalizada dos “beneficiários” formou-se dois
grupos: os que “ganharam” o apartamento e os que ficaram de fora. Tal divisão gerou os

66
O sociólogo Michel Misse utiliza o conceito de “mercadorias políticas” para explicar a relação entre agentes da
lei (policiais, por exemplo) e traficantes de drogas.... Nas palavras de Misse este afirma que há um “mercado
informal cuja as trocas combinam especificamente dimensões política e dimensões econômicas, de tal modo que
um recurso (ou custo) político seja metamorfoseado em valor econômico e cálculo monetário. O preço das
mercadorias (bens ou serviços) desse mercado, ganha autonomia de uma negociação política, algo como um
mercado de regateio que passa a depender não apenas das leis de todo mercado, mas de avaliações de avaliações
estratégicas de poder... de avaliações estritamente políticas”. Misse ainda afirma ser variado os tipos de
“mercadoria política”, tendo como principal mecanismo de sustentação operativa a chamada “economia da
corrupção”. Para ele o que há de específico nesse tipo de “economia” é o fato de que “o recurso político usado
para produzir ou a favorecer é expropriado do Estado e privatizado pelo agente da oferta. Essa privatização de um
recurso público para fins individuais pode assumir diferentes formas, desde o tráfico de influência até a
expropriação de recursos de violência, cujo emprego legítimo dependia da monopolização de seu uso legal pelo
Estado”. A negociação sobre quem receberia uma unidade habitacional do PAC independente dos critérios
normativos do programa em troca de apoio eleitoral dentro da favela configura-se aqui como um tipo de
“mercadoria política”. (MISSE, 2002).
67
Atualmente, cerca de 1.700 famílias no Complexo do Alemão aguardam uma posição dos governos federal e
estadual sobre suas condições de desabrigadas. Desde de 2010, permanecem como beneficiárias do “Aluguel
Social” vivendo sob a ajuda de familiares, amigos, vizinhos e organizações sociais. Em diversos momentos, ao
longo da pesquisa, esse benefício sócio-assistencial esteve em situação de atraso por mais de três meses gerando
uma série de manifestações públicas e reuniões com representantes de órgãos públicos como a Defensoria Pública
do Estado do RJ. Desse contexto surgiu o Movimento Mulheres do Alemão (MMA), grupo organizado no e do
Complexo do Alemão que tem como pauta de reivindicação pública a luta pela construção e entrega de novos
conjuntos residenciais para os moradores desabrigados.
77
primeiros embates na localidade: suspeitas e acusações sobre a idoneidade de alguns
contemplados foram comportamentos recorrentes.
Os moradores desabrigados constituíram-se em grupo e organizaram-se em redes de
influências, atuando de maneira coletiva e individual, semelhante aos outros grupos
pertencentes a arena do PAC. Coletivamente ocuparam os espaços institucionais criados pelo
programa para pressionar, presencialmente, os gestores públicos e privados. Individualmente
procuraram os gestores que atuavam como “elos” para fazer os pedidos de ordem mais pessoal.
Nesse momento, explicavam suas situações, expunham seus dramas e tinham a oportunidade
de sensibilizar os gestores territoriais com suas histórias de vida. Alguns moradores
desabrigados lideraram os movimentos reivindicatórios, exerceram influência interna no seu
grupo, ditando como as questões deveriam ser colocadas em reuniões com gestores públicos.
Os presidentes de associações de moradores também interviram diretamente na
reformulação dos processos internos do programa. Eles tornaram-se atores importantes e
intercediam em nome das “suas” comunidades, consolidando a máquina político-partidária que
operava na região desde o início da implementação do PAC. O movimento foi duplo: enquanto
apresentavam os pedidos de “suas” comunidades ao poder público, legitimavam-se
internamente em seus grupos e fortaleciam suas representações diante dos atores
governamentais que atuavam no território do Complexo do Alemão.
De todo modo, cabe ressaltar que os desabrigados e os presidentes das associações de
moradores aproximavam-se e distanciavam-se à medida que entendiam que suas demandas
poderiam ser atendidas, momentaneamente, sem que um interferisse nos interesses do outro.
Os desabrigados estabeleceram relações próximas com gestores diferenciando-os dos demais
moradores na aquisição de benefícios. Os presidentes de associação de moradores tinham pesos
diferentes na arena, que variavam de acordo com o grau de alinhamento político que tinham
com o governo e com a importância e o reconhecimento estabelecidos diante dos pares
comunitários. De uma forma geral, tinham como principais referências governamentais os
coordenadores do PAC pela secretaria da Casa Civil e os assessores da SEGOV. Os gestores de
território, muitas vezes, atuavam como intermediadores, mas, na maior parte do tempo, os
grupos procuravam as instâncias (coordenadores e supervisores de campo) que, de fato,
decidiam quem seria atendido ou não.
Todo esse movimento interferiu diretamente na maneira como a política de urbanização
do Complexo do Alemão foi construída, principalmente, quando nos referimos as mudanças de
critérios do Programa Federal para atendimento da demanda inesperada por habitação.

78
Praticamente entre abril de 2010 e abril de 2011, a orientação central no processo de
implementação do programa na região baseou-se no eixo “emergência”. Por um lado provocou
a inserção e a participação efetiva de diversos atores sociais não esperados naquela arena
política. Por outro lado, aprofundou as relações pessoais em um processo crescente de
seletividade nos mecanismos de atendimento das necessidades, gerando disputas e
fragmentações nos arranjos dos grupos sociais locais que tinham como reivindicação a mesma
pauta: o “apartamento do PAC”.
Ao final, como resultado concreto para o período foram dois conjuntos habitacionais
construídos pelo PAC (Adeus e Relicário) e dois arrendados pelo governo do estado do
Programa “Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV) para atender principalmente os desabrigados,
totalizando assim 966 moradias68. Os “apartamentos do PAC” tornaram-se valor substancial na
dinâmica eleitoral do programa e na consolidação de um universo de moradia até então estranho
no Complexo do Alemão.

68
No total, com base nas informações de técnicos do governo estadual, o PAC-Favelas disponibilizou 1902 novos
apartamentos no Complexo do Alemão distribuídos em 7 conjuntos habitacionais (Adeus, Poesi, Itaóca 1174,
Itaóca 1833, Condomínio da Paz – Hélio Gás, Residencial Beija-flor e Residencial Canário), mais os arrendados
do PMCMV (Jardim das Acácias e Residencial Palmeiras), totalizando 9 “condomínios”.
79
Figura 2 – O “Bloco”

80
4 “PREDINHOS” DO RELICÁRIO: UMA ETNOGRAFIA DOS ESPAÇOS
URBANOS

Nunca olhamos só uma coisa; sempre


olhamos a relação entre as coisas e nós
mesmos

(Modos de ver - John Berger)

De fato, o Complexo do Alemão havia mudado. O PAC-Favelas não só alterou


fisicamente a paisagem com seus equipamentos de grande visibilidade estética, como havia
incidido sobre as relações entre as pessoas, as organizações de seus grupos e dos espaços
vividos. Tendo como pano de fundo as ações voltadas para a segurança pública por meios das
políticas de “pacificação”, incisivas sobre as formas de construção da sociabilidade local, o
bairro do Complexo do Alemão vivia uma nova realidade, onde os conjuntos habitacionais do
PAC marcavam sua presença como num novo espaço de moradia no bairro.
Considerando a perspectiva etnográfica dessa pesquisa, o objetivo deste capítulo é
apresentar o interior de um dos nove (9) conjuntos residenciais construídos pelo PAC-Favelas
no Complexo do Alemão. Atualmente os “predinhos da Relicário” – denominação dada pelos
próprios moradores ao conjunto residencial que escolhi como campo privilegiado de pesquisa
– marcam de maneira significativa a paisagem do bairro. Está localizado em uma área central,
em um terreno íngreme de 60.000 m2, composto por grandes espaços construídos e não
construídos. O terreno onde hoje encontra-se esse conjunto de prédios tornou-se um bom caso
para pensar todo esse movimento de ocupações e transformações urbanas.
Como outros espaços no Complexo do Alemão, ao longo do tempo, esse terreno teve
diferentes formatos, apropriações e usos no bairro. Foi parte de uma grande fazenda até meados
dos anos de 1950. Depois sofreu um processo de fracionamento e loteamento de terras tendo
suas partes negociadas para uso em diversas formas de ocupação – para moradia, para cultivo
de pequenas hortas e criação de animais, para grilagem de terras, entre outros usos. No início
dos anos de 1970, um dos lotes foi vendido para uma companhia industrial tornando o espaço
fabril. Segundo dados do Centro Arquivístico da Secretaria Municipal de Urbanismo 69, a
empresa que atuava no terreno, uma antiga fábrica de roupas íntimas, operou neste mesmo

69
Todas essas informações foram coletadas em uma tarde de pesquisa no Centro Arquivístico cujo o objetivo foi
realizar um levantamento de dados sobre a antiga fábrica que funcionava no terreno do Relicário.
81
terreno até o final dos anos 1990. Chegou a ter em seus quadros funcionais cerca de 6.800
funcionários70. A fábrica encerrou suas atividades em 1997. Já havia acumulado uma série de
penhoras de bens na justiça devido a dívidas trabalhistas. Com a falência e o fechamento da
fábrica, diversos saques e invasões foram feitos no local. O terreno transformou-se em um
aglomerado de galpões abandonados. Durante os anos 2000, sobraram somente ruínas que
passaram a ser utilizadas para diversos fins: moradia, local para consumo de drogas, paiol de
armas do “tráfico”. Alguns moradores relataram-me que o terreno da Relicário serviu como
bunker nos conflitos entre facções inimigas que disputavam o controle territorial e o comércio
de drogas no varejo. Em 2008, o terreno foi desapropriado por um decreto estadual71 em que o
governo estado o declarou o imóvel “de utilidade pública para fins de desapropriação”72.
Atualmente, nesse conglomerado de prédios coloridos em tons de verde, amarelo, azul,
branco e coral habitam cerca de mil e duzentas pessoas73 distribuídas em trezentos e cinquenta
e dois apartamentos, em vinte e dois prédios de quatro andares, sem elevador. Um universo
multissensorial de práticas e significados produzidos em uma relação fluida de fronteiras
porosas entre o interior e o exterior, o “dentro” e o “fora”, o “informal” e o “formal”, o rural e
o urbano, a favela e a cidade. Partindo do princípio de que o espaço vivido é o espaço praticado
cotidianamente (LEFEBVRE, 2001; 2008), e que se modifica na medida em que os recursos
disponíveis são mobilizados para atender as necessidades e os interesses dos atores situados em
determinados contextos, a ideia aqui é compartilhar com o leitor e com a leitora um primeiro

70
http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/desde-decada-de-90-predios-de-empresas-sao-alvos-de-invasoes-
no-rio-12119408# - Acesso em 27/10/2017
71
Decreto estadual n° 41.177, de 14 de fevereiro de 2008, publicado no DO de 15.02.2008. Anteriormente, no
decreto n.º 41.067, o governo do estado já havia desapropriado outros três terrenos na localidade para os mesmos
fins, onde somente dois endereços possuíam registro no 6º Ofício RGI. Os terrenos também pertenciam a
proprietários de fábricas desativadas.
72
Desde a abertura do processo para a transferência da titularidade do terreno há em curso uma longa disputa
judicial entre as partes envolvidas em torno do valor de indenização do imóvel – os antigos proprietários da antiga
fábrica de tecidos – e o governo do estado. Este na primeira avaliação técnica apresentou o valor de R$
6.824.575,00, valor contestado pela outra parte, que indicou outro perito, e chegou ao valor de R$ 32.659.977,80.
Tal avaliação foi veementemente contestada pela Procuradoria do Estado sob a seguinte alegação: uma
sobrevalorização de preço que desconsidera “a precariedade das edificações que apresentam sinais de
depredações” e a “proximidade de uma favela...que é de público e notório conhecimento vem a ser atualmente
uma área de altíssimo risco e periculosidade”. (Processo 2008. 001.069628-8 de 23 de março de 2008., pág. 2.)
Depois de um terceiro laudo contratado pelo governo chegou-se ao valor de R$ 8.006.376,92. O governo chegou
a depositar R$ 8.000.000,00, solicitando em seguida a imissão provisória de posse, concedida pela justiça do estado
em 30/10/2008. Até a presente data a disputa em torno do valor de indenização ainda ocorre no Tribunal de Justiça
do Estado do RJ.
73
Esse total de residentes no Relicário é uma estimativa considerando a densidade média por domicílio no
Complexo do Alemão é de 3,29 pessoas, a segunda maior na cidade, atrás em números somente do bairro do
Jacarezinho (3,33). Disponíveis no site do Instituto Pereira Passos/DataRio/Armazenzinho -
http://pcrj.maps.arcgis.com/apps/MapJournal/index.html?appid=64a420b88f524ce1ba5ee3458bf85800 - Acesso
em 02/01/2018.

82
exercício de escrita etnográfica dos espaços internos dos “predinhos”. As observações que faço,
ao longo do texto, manifestam-se como um conjunto de percepções, ações e práticas rotineiras
no tempo e no espaço da pesquisa compartilhadas entre mim e meus interlocutores. Assim, o
capítulo traz um olhar sobre o cotidiano do Relicário imerso na dinâmica urbana do Complexo
do Alemão.
Inspirado por Agnes Heller (2016, p.35) que afirma que “a vida cotidiana de todo
homem”74 coloca em funcionamento todos os seus sentidos, as suas capacidades intelectuais,
as suas habilidades manipulativas, os seus sentimentos, as suas paixões, as suas ideias e as suas
ideologias, relato algumas mudanças que ocorrem naquele conjunto de prédios: um espaço, de
fato, vivido e ressignificado cotidianamente. Desse modo, indico alguns aspectos materiais e
simbólicos que podem explicar práticas recorrentes, bem como as formas adotadas pelos atores
para a (re)constituição dos espaços internos do Relicário. Os Predinhos são constituídos por um
cronótopo complexo: ele está inserido em um espaço marcado por profunda transformação
simbólica e material, atravessado por temporalidades distintas que se cruzam e se sobrepõem
em práticas e representações rotineiras..

4.1 “Morando” no Relicário

Depois de um início de pesquisa difícil no Conjunto Relicário, enfim, consegui aos


poucos estabilizar-me, minimamente, no campo. Conhecer os “relíquias”, principalmente
Paulo, proporcionou-me melhores condições de trânsito dentro do conjunto. Entre idas e vindas,
já havia conhecido algumas pessoas que me abriram as portas de suas casas e realizaram uma
primeira reentrada no Relicário, como o Josimar e Sr. Moisés, na época presidente e vice-
presidente da Associação de Moradores do Relicário. Mas, percebia que havia um certo
distanciamento entre eles e aquela dinâmica de controle do espaço que logo senti ao ser
abordado pelos jovens na saída do conjunto. Josimar e Moisés não tinham qualquer
proximidade com os “meninos da marcação”. Na verdade, faziam questão de expor suas
insatisfações e críticas com aquela dinâmica do “tráfico” dentro do conjunto.
Consequentemente, tal postura dificultava a permanência e a circulação no local de alguém de
fora como eu. Os conflitos entre policiais e operadores do varejo do tráfico estavam em escala
crescente no bairro. Uma abordagem mais incisiva dos “meninos da marcação” a respeito da

74
Reproduzo aqui o termo “homem” para não alterar a escrita utilizada pela autora, ciente que o termo atualmente
não é, de forma alguma, considerada uma palavra neutra, equivalente à humanidade (a esse respeito ver, Borba e
Lopes, NO PRELO)

83
minha presença no local poderia ocorrer a qualquer hora, e eu não queria passar por isso
novamente.
Paulo garantiu essa estabilidade de permanência no campo. Era conhecido e respeitado
dentro e fora do conjunto, na favela. Conhecê-lo garantiu-me não só a sensação de segurança
que eu precisava para construir uma rotina no campo de pesquisa, mas o reconhecimento
público de ser próximo de um “relíquia”. No entanto, para que essa chancela surtisse, de fato,
algum efeito prático, eu precisava estar um pouco mais presente. Precisava diminuir aquele
estranhamento incômodo que eu ainda sentia e dificultava, em grande medida, o
prosseguimento do trabalho.
Comentei com Paulo a questão. Imediatamente disse-me que procuraria um lugar para
eu ficar. No dia seguinte, ligou e ofereceu-me uma casa do outro lado do muro do Relicário.
Informou que o “dono do barraco” cobrava uns R$ 300,00. Agradeci, mas ponderei com ele
sobre a minha vontade de permanecer dentro do conjunto. Considerei que o foco da escuta e da
análise na pesquisa seria o olhar e as construções das representações sobre aquele lugar de
moradia pelos moradores do próprio conjunto. Diante da minha vontade, Paulo disse-me que
encontraria outra solução. Queria me ajudar e faria o que fosse preciso. Lembrei a ele que Josué,
seu compadre, possuía dois apartamentos dentro do Relicário. Um estava no nome de sua mãe
e o outro em seu nome. Moravam em uma mesma casa no morro, mas com duas entradas e
saídas distintas, configurando na medição da EMOP duas residências independentes. O mesmo
Josué disse-me no dia da reinauguração da academia que o segundo apartamento ficava vazio,
servindo somente como “refúgio dos estresses do dia a dia”. Era usado quando “queria dar um
tempo do tumulto da casa da mãe”. Josué possui três filhos e todos moram juntos com sua mãe
no bloco “G”. Paulo logo prontificou-se em falar com ele. Disse-me que marcaria um encontro
entre nós para que eu pudesse explicar minha pesquisa e fazer o pedido diretamente a ele.
Nos encontramos em um sábado à tarde. Após explicar resumidamente o meu projeto
de pesquisa, perguntei se ele não me alugaria este apartamento por um curto período. Antes que
eu terminasse de falar, Josué disse que eu não me preocupasse com qualquer outro pagamento.
Eu deveria somente pagar a conta de luz nos dias que eu ficasse e que “estava tranquilo”.
Emendou, contando com orgulho, tudo o que tinha realizado dentro do apartamento. Disse-me
que todos os apartamentos foram entregues “crus”, ou seja, sem os principais itens para o
acabamento interno: chão de cimento, pias sem torneiras, alguns sem interruptores de luz. Os
novos moradores precisaram realizar “obra” antes de entrar. Alguns de seus vizinhos não

84
tiveram condições financeiras para colocar pisos e continuaram morando com a família pisando
no cimento.
Agora aquele seus apartamento de 47m2 (Fig. Z) estava todo mobiliado, com piso e as
instalações completas. Na sala, havia dois sofás verdes de veludo, uma TV de 32 polegadas tela
plana e um radio-relógio preto sobre um rack de madeira MDF com de fotos de seus filhos e
alguns enfeites de festas de aniversário de familiares e amigos. Havia também um porta-retrato
com uma antiga foto de amigos. Um deles, segundo Josué, havia morrido precocemente em
uma troca de tiros com policiais nos anos de 1990. Próximo a única porta de entrada/saída do
apartamento, uma pequena mesa e quatro cadeiras de ferro com uma toalha de pano florida. Na
cozinha, além das instalações básicas – pia e saídas para filtros de água –, havia um armário
conjugado em toda a extensão lateral da parede onde ficavam pratos, talheres e alguns itens de
dispensa (arroz e macarrão instantâneos, café e alguns biscoitos), uma geladeira com freezer
relativamente nova, uma máquina de lavar nova e um fogão de quatro bocas, bem usado com
alguns pontos de ferrugem. No banheiro, a configuração básica de pia, vaso sanitário e chuveiro
(este sem instalação elétrica). O box era separado com uma cortina de plástico transparente.
Nos dois quartos, uma cama e um armário em cada um deles. Havia uma sacada lateral com
alguns itens inutilizados e um varal de roupas. A configuração do apartamento indicava pouco
uso, porém pintado e limpo. O apartamento que ele me emprestou está localizado no bloco “U”,
bem próximo a rua, o que em grande medida forçava-me a entrar e reentrar sempre em direção
ao interior do conjunto. E assim se fez. Por três semanas eu consegui “morar” no Relicário.

Figura 3 – Planta-baixa das unidades residenciais (por andar)

85
Após alguns dias de outra negociação – agora com a minha família75 – pude ficar full
time no campo. Permanecer como “morador” no Relicário seria a oportunidade de circular em
diferentes horários e momentos, dentro e fora do conjunto. Ao mesmo tempo, meu objetivo
nesse período foi tentar diminuir o tempo entre uma ida e outra à localidade na expectativa que
as distâncias entre mim e meus interlocutores diminuíssem. Fazer com que a continuidade da
minha presença no campo fosse mais “naturalizada” – o que de fato ocorreu, como ficará melhor
exposto ao longo dos próximos capítulos.
Além disso, o objetivo foi utilizar-me ao máximo da observação participante que me
permitisse experimentar e focar em questões mais específicas da moradia que caracterizam em
grande medida o que Clifford (2002) denominou como “antropologia profissional”, ou seja,
uma rotina de trabalho que considera “o contínuo vaivém entre o ‘interior” e o ‘exterior’ dos
acontecimentos: de um lado, captando o sentido de ocorrências e gestos específicos, através da

75
Deixo aqui mais uma vez o meu agradecimento a minha companheira Adriana pelo movimento que ela realizou
em um momento tão delicado do trabalho. Era janeiro de 2015, mês de férias escolares. Ela e meus dois filhos
viajaram para casa de familiares para que eu pudesse usufruir de um momento de maior imersão no campo. Sem
esse tempo boa parte do meu trabalho estaria seriamente comprometido, tendo em vista a minha proposta de
realizar um trabalho etnográfico.

86
empatia; de outro, dá um passo atrás, para situar esses significados em contextos mais amplos”
(Idem, p. 33). Em outras palavras, atuar naquele universo de construções, relações e práticas
rotineiras que formavam o espaço vivido desse novo local de moradia. Foram três semanas de
convívio diário no local: ouvindo (muitas) histórias, andando pelos locais antes inacessíveis,
compartilhando lazeres, observando como aquele local transformava-se a cada amanhecer do
dia.
Nos primeiros dias, com Paulo ao meu lado, pude fazer uma primeira circulação mais
ampliada do Relicário. Tinha uma noção mais ampla dos espaços internos, suas divisões físicas
e projeções espaciais. No entanto, considerando a hipótese inicial que levantei a partir do
conflito em torno da passagem do muro que separa o Relicário da favela vizinha, de um possível
processo de segregação socioespacial em curso dos conjuntos do PAC em relação ao seu
entorno76, foi preciso circular por dentro, construir uma espécie de etnografia dos espaços
urbanos conjugada à cartografia social77. De saída, minha intenção era observar se aquela
primeira impressão do conflito justificava minimamente minha interpretação inicial. Paulo
guiou minhas primeiras caminhadas entendidas como práticas epistemológicas e dialógicas
dos/nos espaços. Vale destacar que muito do que construí de conhecimento sobre os espaços
com seus arranjos internos, suas as práticas, seus atores e seus grupos advêm da troca das nossas
observações compartilhadas.
Na medida em que eu me inseria e ficava conhecido no local, essa circulação passou a
ser mais autônoma. Paulo nem sempre me acompanhava. Passei a estabelecer novos contatos
dentro e fora do Relicário com o passar do tempo, e que se desdobraram em importantes
conversas e entrevistas78 sobre o cotidiano daquele conjunto residencial. Mesmo, sob o olhar
que privilegiou as práticas de dentro, meus sentidos sobre o espaço passaram a considerar o
limiar das fronteiras borradas pelas dinâmicas que aproximavam o “dentro” e o “fora”. Com a
minha permanência no conjunto, comecei a perceber que essa separação espacial colocava-se
como uma divisão altamente porosa. O Relicário consolidava-se como mais “um lugar da

76
Tanto a passagem sobre o conflito, quanto a discussão sobre as hipóteses iniciais dessa pesquisa, encontram-se
detalhadas na introdução dessa tese.
77
Aqui a ideia de cartografia social aproxima-se da perspectiva da etnografia tendo os interlocutores do campo
como atores ativos das construções narrativas sobre os usos e apropriações dos espaços. A referência dessa
perspectiva metodológica está em Tetamanti (2012) que define a cartografia social como “modo coletivo que traz
força [à metodologia] especialmente em duas questões: inicialmente, o conhecimento do espaço comum, como
território plural de modo que as pessoas envolvidas no trabalho do mapa tenham conhecimentos diferentes sobre
o local; e por outro lado, considera que o resultado deste mapeamento coletivo é horizontal; de modo que ao fazer
o mapa [este] deve ser um intercâmbio, [uma] discussão e [um] consenso”. (TETAMANTI, 2012, p. 14).
78
A explicação mais detalhada sobre como essa circulação suscitou a seleção das pessoas que participaram das
entrevistas semi-estruturadas que realizei na pesquisa encontra-se na introdução, mais precisamente na
apresentação das perspectivas metodológicas da pesquisa.
87
favela” com suas ordens internas informais compartilhadas com o entorno, ao mesmo tempo
que preservava uma “identidade condominial” da cidade formal com seus equipamentos
prediais e disposição física espacial no terreno. Aparentemente, um espaço híbrido de moradia
popular na cidade.

4.2 Circulando: composição dos espaços e seus usos rotineiros

Antes de iniciar, cabe um breve esclarecimento: considerando minha circulação no


espaço (com maior ou menor intensidade e permanência em alguns locais) e algumas
características particulares na relação entre a composição física dos espaços internos e as
interpretações dos habitantes sobre o lugar de moradia em cada parte dos pavimentos (que serão
apresentados nos capítulos subsequentes), dividi descritivamente os pavimentos em duas partes:
duas partes baixas e duas partes altas. Cabe ressaltar que os termos “parte alta” e “parte baixa”
foram recorrentemente utilizados pelos moradores para distinguir os locais internamente. Da
mesma forma, referiram-se a cada agrupamento de prédio pelas cores das fachadas. Assim,
diante dessas distinções considerando as circulações internas dos próprios moradores, as
relações de vizinhança que pude presenciar e a necessidade de descrevê-las de maneira mais
“densa” (GEERTZ, 1989), agrupei os espaços em quatro grupos. Essa divisão é ilustrada no
mapa a seguir, que desenha uma imaginação espacial específica, considerando a circulação no
Relicário com os limites e as passagens significadas e praticadas pelos próprios moradores.

Divisão
 Pavimento1 Parte Baixa (composto pelos grupos 1 [azul], 2 [verde] e 7 [branco]);
 Pavimento 1 Parte Alta (composto pelo grupo 3 [verde]);
 Pavimento 2 Parte Baixa (composto pelos grupos 4 [coral] e 5 [amarelo]);
 Pavimento 2 Parte Alta (composto pelos grupo 6 [amarelo]).

88
Figura 4 – Circulando no Relicário: fluxos e práticas nos espaços

89
4.2.1 Pavimento 1 Parte Baixa

De frente para o Relicário, de costas para a rua, uma primeira imagem: um universo
composto por prédios coloridos que destoam das demais construções do bairro. A racionalidade
arquitetônica dos projetos condominiais bem à frente das inúmeras casas de alvenaria postas
umas sobre as outras no alto do morro. Uma imagem conflitante.
Em sua parte frontal o conjunto possui três entradas compartilhadas entre pessoas e
veículos (carros, motos, caminhões). Dessas três entradas (I, II, III), as duas das extremidades
(I e III) permitem-nos chegar ao interior com qualquer tipo de veículo motorizado. São
asfaltadas e caracterizam-se como logradouros públicos, contudo, ainda sem nome. A entrada
do meio (II) é feita de concreto, o que possibilita o acesso mais facilitado dos que estão entrando
ou saindo do Relicário à pé. Motocicletas, também, circulam por meio desse local muito
utilizado por parte dos moradores.
Na entrada, muitas antenas com a logomarca de empresas de televisão por assinatura
enfeitam os telhados e janelas de apartamentos de todos os blocos, não há um bloco sem elas.
Com a mesma regularidade, percebe-se em muitos prédios grandes manchas cinzas que indicam
infiltrações próximas aos telhados. De um lado, a imensidão de casas do conjunto e, de outro,
os prédios da favela. Essa divisão ao fundo do Relicário gera implicações sobre a maneira como
as pessoas entendem as partes do todo. Ao longo de todas as caminhadas que realizei pelo local,
permeada por encontros e conversas com moradores em diferentes pontos do conjunto,
visualizei o Relicário como um celeiro de intensas novidades urbanas, ou seja, um espaço em
permanente transformação.
Em toda sua extensão frontal há grades brancas que demarcam fisicamente os limites
entre os prédios e a rua. Rente as grades, do lado de fora, há trailers de lanches, pequenas
construções utilizadas como “vendinhas” de frutas e legumes, e espaços delimitados e cobertos
por toldos plásticos utilizados para a lavagem de carros (“lava-jato”). Rente a grade, do lado de
dentro, o que era antes ocupada somente por um gramado rasteiro queimado pelo sol, agora
estão veículos – carros de passeio, motocicletas, pequenos caminhões e Kombis para frete –
que fazem do espaço estacionamento improvisado.
À direita, entre as entradas I e II, localizam-se os blocos “U” e “V”. São os únicos
pintados de branco. Boa parte da movimentação de pessoas nesse ponto gira em torno do espaço
da “Academia Relicário”. É um ponto de encontro de moradores – de variadas faixas etárias –
que param para conversar sobre os mais variados assuntos – do futebol ao “clima na favela”
(CAVALCANTI, 2008). Desse local tem-se boa visualização da Estrada do Itararé, principal
90
via que cruza todo o bairro. Particularmente, pessoas idosas – principalmente as mulheres –
fazem bastante uso dos arredores da academia, próximas ao corredor que dá acesso aos “blocos
brancos” (blocos U e V), permanecendo sentadas em suas cadeiras de praia. Dentro dos limites
da academia, que é cercada por grades, não se presencia atividades de ginástica com os
aparelhos de musculação ao longo dos dias. Todos os equipamentos encontram-se guardados
em uma guarita trancada com cadeado a maior parte do tempo.
Sobre a academia, ao longo dos anos esse espaço passou por diferentes momentos,
alternando entre o pleno funcionamento e sua inatividade completa. No inicio da moradia no
Relicário, a academia surgiu como a imagem dos “novos tempos” de pacificação no Complexo
do Alemão. Com o sucesso midiático da invasão das tropas federais e da polícia no território,
um banco privado patrocinou a montagem de uma academia dentro do conjunto associando sua
marca ao momento de mudança na vida no bairro. “Agora os moradores terão segurança para
malhar e entrar em forma com academia ‘a céu aberto’! Nem na Barra [da Tijuca] tem isso!”,
disseram-me gestores públicos e privados diversas vezes.
Com maior capacidade de consumo de algumas famílias – fruto das políticas de
distribuição de renda, da estabilização da economia e da valorização do salário mínimo do
período do governo Lula (2002-2010) – conjugada a um imaginário de novos hábitos que
estavam por vir com a nova moradia em um condomínio, a academia tornou-se uma das
imagens mais emblemáticas das mudanças que se almejava com o PAC-Favelas no bairro. No
entanto, com o retorno e o crescimento dos confrontos armados na região a academia “a céu
aberto” passou a ser o “local do perigo”. Em um momento, o banco desistiu do projeto, doando
os aparelhos para a “comunidade”. Esses aparelhos ficaram por um longo período sob sol e
chuva, sem qualquer ação de manutenção/preservação. Posteriormente,, a academia passou a
ser conduzida por dois moradores que conseguiram reativá-la por meio do patrocínio de um
candidato a vereador que utilizou com promessa de reforma e de manutenção em troca do apoio
político de sua candidatura na região. Com sua eleição efetivada, contratou esses dois
moradores que passaram a atuar como “supervisores de projetos sociais”. O trabalho consistia
em supervisionar os professores de educação física contratados pelo “projeto”, cadastrar os
praticantes de musculação com os dados pessoais (nome, idade, endereço, e-mail e telefone) e
gerenciar o espaço. Essa supervisão durou cerca de um ano com muitas promessas do legislador
de melhoras no espaço, o que nunca ocorreu. Os projetos não tiveram continuidade. No entanto,
segundo um dos dois moradores responsáveis pelo local, o vereador continua “ajudando” de
maneira pontual, “cedendo um material aqui, outro ali.”. No momento o espaço tem sido usado

91
de forma improvisada para o treino de jiu-jitsu para crianças, parte de um novo projeto social,
mas agora com recursos desse morador. Ele tem considerado se candidatar nas próximas
eleições de 2018.
Ao lado da academia, há uma construção em andamento. Alguns moradores disseram-
me mais recentemente que será um estacionamento coberto. Outros afirmaram que será um bar.
No entanto, segundo o ex-presidente da Associação de Moradores do Conjunto Residencial
Relicário, Josimar, a construção será um conjunto de três lojas que serão alugadas pelo
Presidente da Associação de moradores da favela vizinha. Esse teria “invadido” o espaço e
começado a construir por conta própria. Tal presidente “vizinho” tem atuado dentro do
Relicário incorporando no local, a gestão de sua associação de origem. Sua atuação tem sido
vista como um problema para alguns representantes da associação do Relicário. Para outros
moradores, principalmente, os que não estão envolvidos com qualquer tipo de representação
social de cunho organizacional, é a ajuda que precisam “para fazer as coisas” acontecerem.
“Tem que ter alguém pra resolver os pepinos, né meu filho?” disse-me Seu Antônio,
incomodado com uma água de esgoto que transbordara em frente ao seu apartamento. O
presidente “vizinho” resolveu o problema com seus “contatos na prefeitura”. De todo modo,
para não perder a dimensão etnográfica da circulação pelos espaços, retornarei mais à frente no
texto com a dimensão da organização dos espaços por meio das associações e suas
representações, bem como a relação entre o atores locais e supralocais e seus grupos de
influência dentro do conjunto.
À direita, há um colégio de ensino médio construído pelo PAC, cujo o nome faz
referência ao jornalista da Rede Globo de Televisão morto por operadores do tráfico de drogas
local no começo dos anos 2000 – Colégio Estadual Tim Lopes79, que além do prédio principal
possui em suas dependências uma quadra de poliesportiva e uma piscina. Alguns moradores
contaram que no período de construção do conjunto o governo dizia que a piscina faria parte
do “condomínio Relicário”. Depois, com fim das obras, um pouco antes de entregarem as
chaves, contam que cercaram a piscina e a incorporaram às dependências da escola, o que gerou
grande revolta pela “promessa não cumprida”. No verão de 2014, ocorreu um acidente que

79
Aqui vale destacar uma observação de Facina (2014) sobre a escolha do nome desse colégio, uma homenagem
ao jornalista Tim Lopes que foi assassinado na região por bandidos do território. Nas palavras da autora, “Fato é
que Tim Lopes foi torturado e morto com requintes de crueldade e é isso que as crianças e jovens que estudam
nessa escola são obrigados a lembrar todos os dias. Nas entrelinhas do discurso, podemos ler a permanente
memória desse crime como parte de um cotidiano escolar que percebe no destino dessas crianças e jovens
moradores do Complexo do Alemão a semente do mal.”

92
matou uma criança de nove anos, que havia pulado, com mais uma dezena de adolescentes, a
grade que separa a Relicário das dependências do colégio. Um menino caiu e afogou-se após
bater com a cabeça no fundo da piscina. Depois do ocorrido, a piscina manteve-se praticamente
vazia e desativada. Segundo os moradores, a piscina, vista inicialmente como um equipamento
do condomínio, tornou-se agora um problema: “fica aí essa água parada direto. Virou foco de
dengue”, relatou uma senhora moradora do bloco “S”.
Um pouco mais acima, ainda à direita nessa parte baixa está um dos pontos onde ocorria
uma grande concentração de pessoas no Pavimento 1. Nesse local há dois conjuntos de mesas
e bancos de concreto na direção da entrada II, entre a rampa de acesso e as escadas que levam
a parte alta do Pavimento I. Estão entre os blocos “R” e “S” do agrupamento 2. Principalmente
no começo da manhã e no final da tarde, muitos jovens com idade aparente entre 14 e 24 anos
reuniam-se em volta dessas mesas para “trocar uma ideia e fumar unzinho”, como eles mesmo
diziam. Outros grupos de homens com mais velhos – aparentemente entre 30 e 40 anos –
também compunham a sociabilidade do local. Todos moradores oriundos de variados blocos
do Relicário, mas com maior predominância de pessoas que moram nos blocos mais próximos
situados nos agrupamentos 2, 3 e 7. Algumas pessoas vinham “de fora” e integravam-se ao
grupo.
Durante as minhas primeiras chegadas, era pela entrada II que eu encontrava pessoas
que eu havia atendido no período de gestor do PAC. Principalmente no começo, foi um ponto
importante de reentrada do campo. Nem sempre Paulo estava disponível para me acompanhar.
Ali eu sentava e permanecia um bom tempo conversando com os grupos. O perfil era
basicamente de jovens homens negros que não tinham emprego fixo, nem estudavam. Alguns
faziam “bicos” como ajudante de pedreiro ou pequenos consertos domésticos no próprio
Relicário. Outros declaravam fazer “uns ganhos” (pequenos furtos) no Centro do Rio. Na
maioria das vezes, eram recriminados por presentes que condenavam essa atitude. No entanto,
como o local fica muito próximo a estrada e as viaturas da polícia militar passam rente com
uma boa visão do local, passaram a se concentrar mais próximos a escada onde dispersam com
mais facilidade em caso de “dura” (abordagem policial).
Do lado esquerdo da entrada I está o agrupamento 1. Formado por cinco blocos de
apartamentos, essa parte do pavimento l é chamado pelos moradores de “azulzinhos” em
referência a cor dos prédios. Estão agrupados em forma circular. No meio, um espaço utilizado
principalmente para estacionamento quase sempre ocupado com muitos carros – veículos de
passeio, pequenos caminhões e kombis para frete. Ao lado das escadas de acesso ao Pavimento

93
2, há uma área livre ocupada por muitas plantações de árvores frutíferas (mangueira, bananeira,
goiabeira entre outras) e de plantas ornamentais. Há também quatro conjuntos de mesas e
bancos de cimento, alguns já bem desgastados do tempo, outros danificados pelo uso. Esta é
uma área bem utilizada pelas crianças que jogam bola e andam de skates sempre no final das
tardes. É o local onde está instalada uma grande caçamba de lixo. Periodicamente o caminhão
da empresa de coleta entra no local para recolher o material depositado. Há de tudo um pouco:
de restos de comida à móveis danificados.
Na parte da frente, entre os blocos M e L e a grade da entrada, há uma grande árvore
sempre com a presença de pessoas que consomem variados produtos, em dois pequenos
estabelecimentos comerciais improvisados nas sacadas dos apartamentos térreos.
Frequentemente, as pessoas reúnem-se no local bebendo cerveja, fumando e conversando: cena
que repetiu-se ao longo de todo o trabalho de campo, principalmente nos fins da tarde e ao
longo do dia nos finais de semana. No local, há também um barraco de madeira que já fora
utilizado por uma moradora como “salão de unha”. Por diversas vezes, tentei agendar uma
entrevista com a “dona” do barraco, mas sem sucesso. Alguns moradores contam que ela foi a
primeira a construir dentro do Relicário, após conseguir uma autorização do “dono da boca”,
na época seu irmão mais novo. Com a morte dele em um confronto com a polícia, a “dona”
resolveu fechar o estabelecimento, mas o barraco de madeira continua no local.
Caminhando mais à esquerda, em direção ao muro que separa o Relicário de um
conjunto residencial, construído pela CEHAB-RJ ainda nos anos de 1970, observa-se
plantações das mais variadas. Em quase toda a extensão do muro há árvores (principalmente
bananeiras). Circundando os prédios, há muitas cercas de madeira e arame onde moradores
cultivam floridos jardins. Essa é, sem dúvida, a parte mais “rural” do conjunto Relicário.
Percebe-se por toda a área muitas plantações e animais, como galinhas, cachorros e gatos. Nas
fachadas dos prédios, pode-se observar gaiolas penduradas com pequenos pássaros. Há também
algumas placas com oferta de serviços (desde frete e aluguel de mesas e cadeiras para festas
aos serviços bombeiro hidráulico) e venda de produtos, principalmente, alimentícios como
salgados e bolos para festas. No final de uma das ruas de acesso ao interior do Relicário, há
uma grande escadaria dividida em dois lances, cada um com aproximadamente oitenta degraus,
que leva a parte superior do conjunto. Ao fundo observa-se o mato que cresce sem cerimonias
na parte do meio do terreno, áreas não ocupadas ou construídas.
Entre os prédios azuis e área das mesas de concreto no Agrupamento 2, há um intenso
fluxo de jovens que transitam entre as duas partes. São jovens vistos internamente como ligados

94
ao tráfico. Com idade entre 14 e 17 anos, esses jovens, todos eles homens, negros em sua grande
maioria, são conhecidos no local como “Meninos da marcação”. Algumas narrativas locais
afirmam ser um grupo de jovens que ocupam posições variadas na estrutura do comércio
varejista de drogas na localidade – de “gerente de boca” ao “olheiro”, esse último sendo em
maior número80. Alguns moradores associam o comportamento desses jovens como algo típico
faixa etária. Frequentemente são chamados de adolescentes “mal-educados”, “bagunceiros”,
“impulsivos”, “abusados” etc. Outros moradores, por lidarem diretamente com eles em disputas
internas (como veremos nos capítulos 4 e 5), os identificam diretamente com o “crime”,
revelando um sentimento permanente de disputas e opressão. Regularmente, esses jovens
circulam por todo o interior do Relicário e fixam posição nas entradas e nas principais passagens
do conjunto – escadarias, rampas, entradas e saídas do conjunto, inclusive na passagem pelo
muro onde funcionou uma “boca de fumo”81. Na parte baixa transitam de um lado para o outro.
Seja caminhando, correndo, de bicicleta e até sobre pequenas motocicletas, realizam a primeira
contenção entre os corredores que separam os blocos de apartamentos. Porém, esse circuito de
contenção não está restrito somente a Parte Baixa do Relicário. Eles circulam por todo o
conjunto situando-se em diversos pontos estratégicos de observação.
De todo modo, por estar mais próxima do “asfalto” a Parte Baixa do Pavimento 1 é
interpretada internamente como a “parte mais valorizada” do conjunto. Alguns moradores
afirmam que uns apartamentos nos andares mais altos dos blocos próximos à rua possuem um

80
Há uma série de trabalhos já consagrados que demostram a estrutura do “crime organizado” das facções que
atuam no interior das favelas do Rio de Janeiro (entre eles Dowdney, 2004; Misse, 1998 e Zaluar, 1995). Luke
Dowdney (2004) apresenta de forma esquemática (por meio de diversos organogramas) as diferentes estruturas e
funções na hierarquia das “firmas”, especificando as responsabilidades de cada “cargo” no comércio varejista de
drogas proibidas no interior das favelas cariocas. Na hierarquia empresarial das drogas de Dowdney, os “olheiros”
– estes em maior número dentro do Relicário – seriam aqueles que desempenham o papel de vigilância no território.
Atuam com aparelhos de rádio se comunicando com outros “olheiros” avisando sobre qualquer movimentação
suspeita, seja da polícia, seja de possíveis invasores de facções rivais. Trabalhos mais recentes têm criticado essa
leitura hiperorganizada e racional dos grupos criminosos que atuam nas favelas. Orlando Zaccone Filho (2007)
define esses jovens empregados do mercado varejista como “acionistas do nada”, ou seja, são a ponta, o elo final
da cadeia produtiva e mercantil de drogas ilegais. Sua crítica se direciona a maneira como esses jovens são
interpretados na estrutura do “crime organizado”, incidindo sobre as práticas policiais nas políticas de segurança
pública: a medida em que leitura sobre a atuação desses jovens inseri-os como peças inteiramente conscientes de
uma engrenagem produtiva do mercado de drogas, reforça-se o perspectiva punitivista sobre esses mesmos jovens
na política de guerra às drogas. Nessa lógica, não se rompe com o sistema de produção e distribuição em sua
dimensão global, e cria-se uma “cortina de fumaça” que estigmatiza e sentencia a morte jovens (sob a chancela
moral midiática e estatal do sujeito “traficante”) que no final são o resultado da própria lógica de exploração e
precarização da vida no sistema de produção capitalista, postos às últimas consequências nesse mercado das drogas
proibidas.
81
Local fixo onde se concentra o comércio de drogas na favela. Menezes (2015) observou que, nos últimos tempos,
com a presença permanente de policiais das UPPs nas favelas, configurou-se uma espécie de “jogo de gato e rato”
entre policiais e operadores do mercado de drogas. Assim, as “bocas” passaram a operar de maneira móvel, ou
seja, sem um lugar previamente definido, variando sua localização de acordo com os horários e os trajetos das
rondas dos policiais na favela.
95
valor de mercado 50% mais elevado se comparados aos apartamentos nos andares térreos
localizados nas partes mais altas do conjunto. Esse fato decorre da proximidade dos primeiros
com o comércio do bairro, dos pontos de ônibus e da sensação de segurança.
Consequentemente, quanto mais próximo do alto e da favela, “menos valor” e “mais perigoso”
é a vida no Relicário.

4.2.2 Pavimento 1 Parte Alta

A Parte Alta do Pavimento 1 localiza-se bem no meio do terreno. Formado pelos blocos
N, O e P, o Agrupamento 3 tem, na maior parte do tempo, suas áreas comuns sob a sombra,
pois quase nunca incide diretamente no local a luz do sol. Está situado entre os blocos do
Agrupamento 2 e um muro que separa essa parte do Pavimento 2. Nas falas de moradores dessa
parte do terreno, a sensação de segurança é maior quando comparado com as falas de moradores
de outras partes do conjunto. Em uma ocasião, uma senhora moradora do Bloco O afirmou
sentir-se mais protegida naquela parte do conjunto “porque está no meio, entre os prédios, é
mais difícil da bala [tiro] acertar”. Com esses dois elementos de formação do espaço (a sombra
e sensação de segurança), durante o dia, crianças brincam e senhoras permanecem sentadas em
suas cadeiras de praia, do lado de fora dos prédios, nos espaços externos de uso comum do
Conjunto. Há entre os blocos, dois conjuntos de mesas e bancos de concreto, um em cada
corredor, que também possibilitam a formação de rodas de conversa entre os mais jovens.
Não é um local de passagem muito utilizado para as partes superiores do terreno. Não
há acesso direto por dentro desse Agrupamento. É necessário direcionar-se à Entrada I,
descendo as escadas que ligam ao centro do Agrupamento 2, ou à Entrada III por meio de uma
pequena escada no canto direito, passando pelo estacionamento, para chegar ao Pavimento 2.
Sobre esse estacionamento, Paulo explicou-me que este é controlado por um dos moradores do
Bloco P. A área é de, aproximadamente, 60m2. Há demarcação no chão e estacas de ferro com
correntes e cadeados que definem os limites de cada vaga. Cada morador, usuário das vagas
paga uma mensalidade de R$100,00 ao morador que “organiza o espaço”. Os critérios de
seleção dos usuários das vagas é pessoal, direto com o “organizador”, sem prazo final de
utilização para haja alguma rotatividade na utilização das vagas por possíveis interessados.
Abaixo do estacionamento, há uma alameda de aproximadamente 70m2 com quatro
mesas e bancos de cimento sob uma estrutura de pergolado de madeira. Poucas vezes observei
a permanência de moradores nesse espaço. Quando houve, foram sempre jovens que, durante o
dia, principalmente no período da tarde, buscavam um lugar mais reservado para conversar.
96
Não percebi na dinâmica interna, nem nas falas dos moradores, qualquer indicação de controle
ou “gerência” sobre o espaço. Talvez por ser um local bem destacado do restante do conjunto
Relicário e não possuir iluminação interna. À noite, o lugar fica bem escuro e deserto. Uma
única vez, em um sábado, presenciei uma festa infantil à noite. Havia um cabo de energia
cruzando o alto do pergolado, improvisando a iluminação no local e a música na festa.
Logo acima dos prédios há uma grande área gramada. Não há qualquer tipo de
construção no local. Durante o tempo em que estive no Relicário como gestor do PAC, o local
foi vislumbrado por alguns moradores como o local ideal para a construção da “quadra de
futebol”. Como apontei acima, a quadra sempre foi uma reivindicação interna, não só do
público masculino, potencial e tradicional usuário desses espaços, mas também das mães que
“queriam um lugar para o meninos jogarem uma bola e pararem de fazer besteira pela rua”.
Com o passar do tempo e as sucessivas promessas não cumpridas de construção da quadra feitas
por representantes governamentais e candidatos a vereador, a reivindicação arrefeceu. Em
contrapartida, as crianças passaram a utilizar de maneira improvisada o local como “campinho”:
demarcam as balizas dos gols com chinelos e definem com plantas e árvores até onde vai o
campo para a cobrança do lateral.
Inicialmente, havia no local somente uma das duas caixas d’água do conjunto. Mais
tarde, no meio dessa grande área verde, foram instalados equipamentos de musculação
direcionadas para ao público idoso, as chamadas “Academia da Terceira Idade”82. Segundo um
dos moradores com quem conversei há pouco tempo, essa academia “foi coisa do presidente da
associação vizinha com um político... foi ele que botou isso lá”. E completou: “ninguém usa
aquilo não... mas é a forma que ele consegue pra fazer as coisas”, no caso, dentro do Relicário.
Uma troca de favores: o presidente cede o espaço para o político instalar o equipamento e,
consequentemente, fazer sua propaganda “boca a boca”. As pessoas passam a comentar quem
trouxe a benfeitoria para eles. Fortalece seu capital político/eleitoral na área. Em troca, o
político benfeitor “facilita os acessos”83 aos órgãos públicos para realizar algumas ações
internas no Relicário, como uma pequena obra que ocorreu no início do ano de 2017 para

82
As Academias da Terceira Idade (ATIs) fazem parte de um projeto criado em agosto de 2009, pela então
Secretaria de Estado Envelhecimento Saudável e Qualidade de Vida (SESQV) da prefeitura do Rio de Janeiro,
para atender e melhorar as condições de saúde do publico idoso. Segundo dados da SESQV atualmente são cerca
de 130 ATIs instaladas em praças e espaços públicos.
83
O termo "acesso" pode ser entendido como o conhecimento que abre os caminhos para o atendimento dos pleitos.
“Ter acesso é o que diferencia os parlamentares (ou qualquer outro agente público ou privado) das demais pessoas”
(KUSCHINIR, 1993, p.105). Dessa forma, quando se estabelece uma relação de “troca de favores” os acessos
tornam-se fundamentais para a consolidação de uma lógica clientelista entre lideranças comunitárias e
representantes governamentais, proporcionando resultados satisfatórios para ambos os lados: gera um grau de
importância ao agente perante a sua comunidade e fortalece a base eleitoral de quem oferece o acesso...
97
instalação de um sistema de gás encanado para uso doméstico. No final, tanto o presidente da
associação quanto o político aliado são reconhecidos como “aqueles que fazem alguma coisa”.
Todas as vezes que estive no Relicário, observei que a academia de terceira idade é utilizada,
principalmente, pelas crianças como espaço de brincadeiras.
À direita, já do outro lado da rua de acesso ao Relicário (Entrada III) estão os
“barzinhos”. São três construções improvisadas de folhas de compensado com alvenaria que
funcionam como “biroscas”, ou seja, estabelecimentos mistos que servem a diferentes grupos
de consumidores e/ou funcionam com diferentes classes de produtos, onde seus frequentadores,
muitas vezes, conferem a esses locais um “caráter caseiro”. São locais de grande circulação e
de permanência, principalmente, do público mais jovem e de trabalhadores que exercem
atividades no setor da construção civil (pedreiros, encarregados de obras, entre outros)84.
Fechando essa parte alta do Pavimento 1, um pouco mais acima, ainda à direita, há um
galpão vazio sem qualquer tipo de uso atualmente. Encontra-se fechado. Até bem pouco tempo,
servia de moradia para uma pessoa acolhida em situação de rua por outros moradores do
Relicário. De todo modo, como veremos, toda essa parte do conjunto Relicário está fortemente
articulada com a Parte Baixa do Pavimento 2, que apresentarei agora.

4.2.3 Pavimento 2 Parte Baixa

Formado pelos blocos F, G e H (Agrupamento 4) e D e E (Agrupamento 5), essa foi a


parte em que eu estive mais presente ao longo desse processo de pesquisa. Depois que conheci
Paulo e Josué, minha permanência no Agrupamento 4 foi recorrente, pois os dois mantinham
suas residências principais nessa parte do Relicário. Inicialmente, Paulo morava com sua esposa
e filho no apartamento de seus sogros no Bloco F. Mudaram-se e agora residem em uma casa
do outro lado do muro. Josué ainda mora com sua mãe e seus três filhos no Bloco G. O fato de
termos criado uma relação de proximidade, tendo ainda como facilitador a mudança de Paulo
para o outro lado do muro, auxiliou-me, consideravelmente, na circulação no interior desse
Pavimento 2, tanto na parte baixa, quanto na parte alta.
A primeira circulação pelo local ocorreu no período em que estive “morando” no
Relicário, entre janeiro e fevereiro de 2015, período de muito calor e férias escolares. Algumas
cenas não somem da minha memória. Com as altas temperaturas do verão carioca, havia sempre
algumas senhoras mais idosas sentadas na porta dos prédios do Bloco H em suas cadeiras de

84
A apresentação e a dinâmica de formação desses locais estão detalhadas no capítulo 5 dessa tese, pois compõem
o conjunto de casos analisados sobre os processos de disputa em torno dos espaços livres. A concepção desses
espaços de sociabilidade tem como referência o trabalho de Machado da Silva (2016) sobre os “botequins”.
98
praia, prática ainda bastante comum em ruas dos bairros residenciais dos subúrbios da cidade.
Crianças correndo de um lado para o outro, jogando bola, andando de bicicleta, passavam uma
sensação de ambiente tranquilo e de harmonia entre todos. Essa área está bem em frente aos
blocos H, F e G. Como estão dispostos de maneira triangular, os blocos formam um espaço que
os moradores chamam de “pracinha”, uma área de lazer compartilhada. Ali estão quatro mesas
e seus respectivos bancos de cimento fixos no solo e duas pequenas árvores. É um importante
espaço de sociabilidade dentro do Relicário.
Há um fluxo permanente de pessoas que transitam entre a “pracinha” e a área dos
“barzinhos” localizados no final da subida da entrada III. Principalmente no final do dia, na
parte da tarde e nos finais de semana, moradores sentados em suas cadeiras de praia ou nos
bancos de cimento consomem produtos dos bares, os adultos, cerveja e as crianças, balas e
biscoitos, sempre ao som de pagodes e funks de seus rádios portáteis. Os donos dos bares
também moram em apartamentos desses blocos, o que faz com que seus parentes, vizinhos e
amigos mais próximos frequentem os estabelecimentos em um fluxo contínuo de idas e vindas
entre a “pracinha” e os “barzinhos”.
Ao fundo da “pracinha” há duas áreas, uma de cada lado do Bloco F. Do lado esquerdo,
há uma construção de compensado abandonada junto com alguns objetos danificados como
baldes, pedaços de madeira, partes de eletrodomésticos (como hélices de ventilador e portas de
geladeira), grades de ferro entre outros. Há também um varal de roupas com duas cordas
penduradas. Do lado direito, encontra-se uma área de lazer destinada às crianças com
brinquedos comuns em parquinhos infantis: gangorra, balanço e escorrega. Esse é um dos três
parquinhos existentes no Conjunto Relicário, todos localizados no Pavimento 2: um localiza-se
entre os agrupamentos 5 e 6 e o outro em frente a passagem do muro na Parte Alta do Pavimento
2.
Tanto esse parquinho quanto os outros dois foram sempre pouco utilizados pelas
crianças. Em uma ocasião, o Josimar relatou-me uma situação em que uma criança ficou no
meio do parquinho enquanto “o tiro comia solto.” Disse-me: “foi um desespero total! A criança
estava sozinha no balanço. Os pais não sabiam o que fazer, não sabiam se iam até lá, se pediam
para a criança ficar parada ou para sair de lá. Até que o pai, rastejando no chão, foi e resgatou
a criança. Isso marcou todo mundo!”. Para ele, depois desse fato, poucas crianças passaram a
brincar nesses espaços, o que gerou certo abandono. Quase todos os brinquedos encontram-se
danificados. Há um perigo evidente na utilização desses equipamentos. Paulo explicou-me que

99
“nunca houve qualquer manutenção desses brinquedos, nem por parte dos moradores, muito
menos pelo poder público, que deveria ser o responsável já que ali é ‘condomínio aberto’”.
Continuando à direita, há um galpão remanescente da antiga fábrica onde o governo do
estado desenvolve projetos direcionados aos jovens moradores da região. Ao longo dos anos
esse galpão foi objeto de desejo de algumas instituições “de dentro” e “de fora” do Complexo
do Alemão. No início da inauguração do Relicário esteve sob controle do Grupo Cultural
AfroReggae85 que o utilizava como depósito para guardar material e instrumentos musicais de
seus projetos sociais. Com a saída do grupo de praticamente todo o bairro86, o galpão passou a
ser utilizado pelo governo do estado como centro formação profissional87.
Logo acima do galpão, há um prédio – mantido após a implosão das ruínas da fábrica
– utilizado, atualmente, por uma congregação evangélica. Durante o dia, observei sempre pouca
ou quase nenhuma movimentação de entrada e saída do local. À noite, escuta-se de longe as
músicas e as orações. Desde o início da moradia no Relicário, esse prédio foi motivo de grande

85
Fundada em 1993 o grupo se notabilizou após a “Chacina de Vigário Geral” quando realizou um evento-protesto
chamado “Vigário in Concert Geral” junto com outro grupo local conhecido como Mocovige (Movimento
Comunitário de Vigário Geral). Desde então tem recebido a atenção de artistas, escritores, músicos, poetas que
passaram a apoiar as iniciativas do grupo como uma alternativa a vulnerabilidade social de jovens moradores de
favela.
86
Segundo a reportagem do jornal “Extra” de 20 de julho de 2013 o AfroReggae foi expulso do Complexo do
Alemão após seu coordenador José Junior se envolver em uma briga com um pastor evangélico. O pastor foi
acusado por José Junior de estuprar fiéis em sua própria igreja e ter “ligação” com o Comando Vermelho (CV).
No entanto há uma série de versões sobre o caso. Uma delas é a de que os dois estariam em um processo de disputa
por adeptos na localidade: de um lado o AfroReggae “salvaria” os jovens do “tráfico” por meio de projetos
culturais de inclusão social; por outro, o pastor “salvaria” com “a palavra de Deus” numa permanente disputa por
público. Outra versão refere-se a uma ordem não cumprida vinda de Marcinho VP, reconhecido como o principal
líder do CV. Este teria ordenado o pagamento de uma quantia em dinheiro à facção para que o grupo permanecesse
no Complexo do Alemão. Com o descumprimento da ordem por José Junior houve ações de retaliação contra o
grupo. Uma das sedes do AfroReggae no Complexo do Alemão foi incendiada. Outra versão está ligada ao papel
desempenhado por José Junior na “invasão do Complexo”. Desde o episódio da invasão das tropas federais em
novembro de 2010 o coordenador da ONG passou a ter relações mais próximas com o então governador do estado
do Rio, Sérgio Cabral. Esse fato teria gerado insatisfação entre os líderes do CV. José Júnior declarou em diversos
jornais na época que havia atuado como “mediador da paz” (e com grande protagonismo midiático) na negociação
com os “traficantes” no processo de invasão. Segundo alguns interlocutores no governo do estado, depois do
ocorrido, o coordenador do grupo passou a ter “trânsito livre” no gabinete governamental e passou a receber
incentivos do governo do estado para seus projetos. https://extra.globo.com/casos-de-policia/expulso-por-
traficantes-afroreggae-encerra-suas-atividades-no-complexo-do-alemao-9110306.html - Acesso em 05/01/2018.
87
O Centro Vocacional Tecnológico (CVT) ligado a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, mais
precisamente a Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC), iniciou suas atividades na localidade em 2012.
Diferente do ensino médio regular, no CVT havia ofertas de cursos profissionalizantes de curta temporada (de seis
meses a um ano) em diversas áreas de conhecimento e seguimentos profissionais voltados para pessoas com
escolaridade formal mínima até o 5º ano do ensino fundamental.
http://www.faetec.rj.gov.br/faetecdigital/index.php/13-cvt-sjm - Acesso em 04/01/2018. No momento o governo
estadual atua por meio do Centro de Referência da Juventude (CRJ), projeto da Secretaria de Estado de Esporte,
Lazer e Juventude (SEELEJ). Dentro dessa modalidade os cursos atendem a um público de 15 a 29 anos, possuem
uma carga horária menor (até 120h), voltadas as áreas esportivas e artísticas. Os professores atuam como
voluntários, ou seja, sem remuneração. http://www.rj.gov.br/web/seelje/exibeconteudo?article-id=2476499 -
Acesso em 05/01/2018.
100
disputa entre grupos internos e externos ao conjunto. Durante um curto período de tempo foi
utilizado como salão de festas e como sede da Associação de Moradores do Relicário. Depois,
após uma série de embates em torno de sua apropriação e uso, tornou-se moradia, igreja e
escritório de uma pastora da Igreja Assembleia de Deus88.
Caminhando na direção contrária, à esquerda do Agrupamento 4, há dois blocos D e E.
Nesses blocos, observei pouco movimento em todo o período em que estive no campo. É uma
área de passagem, não há mesas e bancos de cimento ou qualquer espaço comum entre os blocos
que proporcione uma maior interação e permanência das pessoas. Por exemplo, a maioria das
vezes, em que estive com Dandara, moradora do Bloco E, quase sempre fomos para outras
partes do Relicário. Quando nos encontramos nesse bloco, sentamos na portaria do prédio,
desviando das pessoas que subiam e desciam as escadas. O ato de conversar tornava-se um
desafio o encadeamento e a conclusão das ideias.
Seguindo, logo após a curva, já no final da parte baixa do Pavimento 2, na subida em
direção a parte alta, era sempre possível presenciar uma grande quantidade de pessoas, bem
próximas, uma ao lado das outras, olhando para o horizonte. Latas de linha no chão e muitas
pipas no céu marcaram minha visão das tardes de sábado e domingo “na curva”. Nesses fins de
semana, jovens e adultos de variadas idades, de chinelo ou de pés descalços e sem camisa,
aglomeravam-se nessa parte do terreno onde o vento era mais favorável e a visão de todo o
bairro era mais privilegiada. O movimento no local era intenso: os jovens corriam para um lado,
levavam a linha para outro, sentavam-se nos paralelepípedos das estreitas calçadas para fazer
rabiolas, desembolavam tufos de linhas jogadas pelo chão, estendiam os pedaços de bambus
para buscar aquela pipa voada que ficara presa no alto de uma árvore. Junto com outras
atividades de lazer urbano de caráter infanto-juvenil, como o futebol com os pés descalços nas
calçadas e os jogos de bola de gude na terra, o ato de soltar pipa compõe, de maneira
significativa, um cenário muito comum dos bairros populares e de subúrbio do Rio de Janeiro.
Essas brincadeiras de rua formam um conjunto de expressões que caracterizam de
maneira muito peculiar a cultura das periferias, das favelas e dos bairros populares, não só do
Rio de Janeiro, mas dos principais centros urbanos brasileiros. Tais brincadeiras remetem a uma
infância praticada e compartilhada coletivamente no espaço público. De forma lúdica, crianças
e jovens com suas pipas e bolas borram os limites entre o simples ato de brincar e um tipo de

88
Por hora aqui, não vou me alongar na exposição dessa disputa. Por envolver diferentes grupos, atores e contextos,
em uma rede complexa de arranjos e negociações que perdurou por um longo tempo, e por apresentar-se como um
bom caso para pensar a dinâmica de ordenamentos internos do Relicário, todo o debate em torno desse processo
está melhor detalhado no capítulo 5 que trata das “ordens em disputa” dentro desse conjunto residencial.
101
sociabilidade que se desenvolve no decorrer do ato de lazer. As brincadeiras de rua instituem-
se por meio de um conjunto de regras previamente compartilhadas entre os participantes.
Quando são descumpridas, seus atores imediatamente sofrem constrangimentos de seus pares,
na maioria das vezes, por meio de simples “zoação” (brincadeiras). Em alguns casos, ocorrem
atos de repreensão pública. Uma cena comum dentro do Relicário e nas ruas do subúrbio do
Rio ilustra bem o que escrevo: um menino correndo, bufando de raiva, alegando ser o dono de
uma pipa “voada” gritou: “é minha, é minha!”. De pronto, gritou um outro menino do alto do
Pavimento 2, com um pedaço grande de bambu em uma das mãos, como quem definia de uma
vez por todas as regras do jogo: “Pipa no céu não tem dono, mano! Tá na mão! É minha!” E
assim se fez e todos acataram a decisão na hora.
Subindo, virando a próxima curva à direita, chega-se a parte alta do Pavimento 2. A
fronteira entre o Relicário e a favela vizinha atrás do muro.

4.2.4 Pavimento 2 Parte Alta

O Pavimento 2 Parte Alta é a região que está mais próxima da favela da Alvorada, mais
precisamente, próxima a localidade conhecida como “Sem Saída”. Sua extensão é toda
margeada pelo muro que separa o Relicário do restante do morro. Um muro de pedras com
espessura de aproximadamente 50cm. O único agrupamento dessa parte alta é o 6, o que o deixa
visualmente bem isolado do restante do conjunto. Formado pelos blocos A, B e C, esse
agrupamento possuí em sua parte central uma “pracinha” com dois conjuntos de mesas e bancos
de cimento. Os blocos estão dispostos bem próximos uns dos outros. Durante o dia, há sempre
muita sombra e pouca incidência de luz do sol no local. Há algumas árvores também. Todas as
vezes em que eu passei próximo, durante o dia ou à noite, observei a presença de crianças
brincando e jovens sentados nos bancos conversando. Há boa iluminação à noite. Uma parte do
conjunto Relicário sempre muito ocupada. Há sempre muitos carros estacionados no contorno
da rua, alguns bem novos, outros com aparência de abandono.
Olhando para baixo em direção a frente do conjunto Relicário, no topo do terreno,
observa-se uma área grande amplamente gramada, com algumas partes onde o mato alto toma
conta do espaço. Vale ressaltar que desse local, do alto, têm-se uma bela visão de todo o
conjunto e de grande parte do Complexo do Alemão. Percebe-se a dimensão da construção, a
distância e a inclinação que separa o Bloco U, o mais próximo do asfalto, ao Bloco A e B mais
próximo da favela. Uma distância que promove, muitas vezes, leituras e interpretações
diametralmente opostas sobre aquele mesmo espaço vivido.
102
Na caminhada pela rua, seguindo na direção contrária aos blocos, observa-se, à
esquerda, muito lixo espalhado próximo a encosta abaixo do muro. Com o tempo, o lixo passou
a ser acumulado no local sem que houvesse qualquer caçamba da empresa municipal de coleta.
Em frente, observa-se um dos parquinhos infantis na mesma condição dos outros dois, com os
brinquedos danificados. Diferente dos outros, este parquinho pareceu-me completamente
inutilizado. Em nenhum momento presenciei crianças utilizando-os. Sempre vazio e com
aspecto de abandono.
Ao lado do parquinho, à esquerda, está a segunda caixa d’água do Relicário. À direita,
um trailer de lanches fechado. Paulo contou que “o trailer não durou muito por causa dos
tiroteios”. Disse: “mano, logo que o cara botou o lanche lá começou o tiroteio, tá ligado? Ele
até quis fazer um lance diferente, botou som e tal, mas não deu. O cara teve o maior prejuízo.”
Internamente no Relicário, essa parte sempre foi referenciada como lugar do “perigo” e
da “bagunça”, principalmente, pelos moradores das partes de baixo. O “perigo” esteve
relacionado com os constantes confrontos que ocorreram entre jovens operadores do mercado
de drogas e policiais da UPP que, constantemente, faziam as rondas pelo local. Na passagem
aberta no muro para a “Sem Saída” havia uma “boca de fumo”. Consequentemente, a “bagunça”
também estava relacionada com a presença dos jovens, muitos deles identificados como
pertencentes aos “Moleques da marcação”, que, como já disse, sempre circularam por todo o
conjunto a pé ou conduzindo motos.
Enquanto a boca esteve instalada, o local tornou-se ponto de constantes “duras” de
policiais e trocas de tiros. Toda essa movimentação aproximava o Relicário do ordenamento
territorial do “tráfico” na favela, o que era visto por muitos como um “problema”. “Meu irmão,
ali em cima é osso! Os moleques ficam ali na marcação e de vez enquanto rola uns pipocos por
lá! Tá um perigo! Não adianta nada fazer apartamento bonitinho... a bagunça continua a mesma.
É um problema que não se resolve”, disse-me um rapaz morador do Pavimento 1.
Essa situação, em grande medida, dificultou minha circulação pelo local. Somente com
Paulo pude chegar até lá e atravessar para o outro lado do muro, sair do Conjunto e adentrar na
favela. Em uma tarde de sábado, Paulo me apresentou a alguns dos jovens da “boca” fazendo-
me mais conhecido e proporcionando o respaldo que eu precisava para circular com mais
tranquilidade. Depois, com o assassinato do “dono da boca”, o ponto de venda do varejo foi
retirado do local e o trânsito pela passagem tornou-se mais facilitada (ou menos tenso). No
entanto, continuou sendo um local estratégico para observação de quem entra e quem sai do
Complexo do Alemão pelo Relicário. Recentemente, um dos moradores contou que os

103
“meninos” fazem no local a “marcação” do morro vizinho que fica do lado oposto ao conjunto.
Ficam como “olheiros” com seus rádios transmissores de longo alcance. A visão do local é
ampla. Com a mesma intensidade, a passagem tornou-se, de fato, um acesso importante entre o
interior da favela da Alvorada e os centros comerciais à direita do Relicário. A manutenção do
portal aberto permitiu o encurtamento do caminho de quem desce do alto do morro até a
principal rua do bairro e o comércio desse Centro. Esta a principal reivindicação do grupo que
exigia o portal aberto naquele primeiro conflito narrado em torno do muro.
Finalizando, há um centro comercial localizado no extremo oposto aos blocos do
Agrupamento 6, que serve como atalho para toda área formal do bairro. Logo na entrada, há
outra alameda, também coberta por uma pérgola de madeira. Esse centro comercial foi
construído pelo PAC-Favelas para realocar comerciantes removidos das áreas que sofreram
intervenção urbanística do programa. Todo o processo de indenização foi duramente criticado
na época. Muitos comerciantes acusaram o governo de privilegiar pessoas alinhadas com seus
interesses eleitorais, deixando sem qualquer indenização pessoas que de fato possuíam lojas
nos locais de intervenção. As especialidades de mercadorias e serviços são as mais variadas: de
salão de beleza à loja de material de construção. Há, também, uma agência da Caixa Econômica
Federal. Atualmente, várias lojas encontram-se fechadas. Os comerciantes que mantiveram seus
negócios no centro alegam que o custo de manutenção das lojas é alto, principalmente para
aqueles que pagam aluguel. Ademais, a circulação de fregueses por dentro do centro é pequena,
já que no Complexo do Alemão há dois centros comerciais bem consolidados: o comércio da
rua Joaquim de Queiroz (Grota) e da Nova Brasília.
Assim, retornando do centro comercial em direção ao Relicário, novamente, pode-se
descer a ladeira que leva aos dois galpões localizados na parte baixa do Pavimento 2, fechando
um circuito inteiro de trânsito e observações.

* * *

Ao final de uma das nossas caminhadas por dentro do Relicário, tive com Paulo uma
conversa, em que ele me perguntava sobre as minhas impressões ao circular com ele pelo
Relicário. De alguma maneira, essa conversa condensa a forma como os espaços livres são
ocupados e disputados no interior do Relicário. Um diálogo que reproduzo a seguir.
P: e aí mano, o que tu achando daqui dos ‘predinhos’? A galera é boa, né? A molecada
brincando aí [...] tu vê, bicicleta, skate, a molecada jogando um futebol [...] tem uns
104
probleminhas como em qualquer lugar, uns vacilão aí e tal, mas aqui é tipo uma família, tá
ligado? Tem gente que a gente se dá melhor, tem gente que quer arrumar confusão.[...]mas, no
final as coisas se ajeitam.
B: Paulo, é impressionante vê a garotada brincando assim, tranquila, mas, o que me deixa
impressionado mesmo é ver como já tem barraco, trailer, comércio aqui dentro. O pessoal não
perde tempo!
Paulo: Mano, tendo um espacinho aí parado nêgo bota pra fazer um dinheiro. Aqui é ‘se vira
nos trinta’89, tá ligado? Se a gente não for por nós, não vai ser mais ninguém!.
B: Vem cá, mas como é que funciona isso? A pessoa chega e começa a construir e...
P: Não, mano! Tem que autorização do homem, tá ligado? Aqui só constrói, levanta alguma
coisa se o cara autoriza. Continuei:
B: Mas, não tem briga não? Um querer o mesmo espaço do outro, no mesmo lugar?
P: Mano, quem decide são eles, é ele. Tem gente que gosta, tem gente que não gosta, mas é
assim, a regra é essa. Tem que respeitar.

89
Alusão que o morador faz a um quadro de programa televisivo onde os participantes precisam demonstrar algum
talento artístico de difícil realização em apenas trinta segundos.

105
Figura 5 – O portal

106
5 ENTRE O CONDOMÍNIO E A FAVELA: UMA INTERPRETAÇÃO SOBRE
ORGANIZAÇÃO DA MORADIA

A verdade é difícil,
ela não está estagnada.
E quando alguém nos mostra
já se encontra mudada,
pois cada um tem a sua
toda personalizada

(Dico e a invasão do Alemão - José Franklin)

Era notório o processo de transformação pelo qual o Relicário passava no cotidiano de


sua existência no interior do Complexo do Alemão. Ao longo das minhas circulações, pude
observar como os espaços internos que compõem aquele conjunto de prédios foi se
reconfigurando de acordo com as necessidades e os desejos de seus habitantes. Transformações
tanto nos espaços de uso comum, quanto no interior dos apartamentos. Aquele padrão vertical
e homogêneo de construção habitacional ganhava seus contornos particulares seguindo os usos
e os gostos e as condições materiais de seus moradores.
Como já mencionado, a grande maioria dos residentes do Relicário era de pessoas
desabrigadas, incluídas no programa de indenizações governamentais do PAC, de maneira
emergencial. Outros residentes chegaram ao Relicário por meio de processos de indenização
decorrentes das remoções provocadas pelas obras. Alguns tinham casas e estruturas de vida
bem consolidadas na favela. Muitos desses eram assalariados formais e possuíam casas de
alvenaria, pintadas, com embolso e boa localização, mas que foram forçados a deixa-las e a
negociar com o governo. Alguns tinham até mais de um imóvel e decidiram receber uma
unidade habitacional como parte da indenização. Atualmente, há moradores em condição de
aluguel ou proprietários informais.
Dentro desse quadro diverso que compõe o universo de moradores no Relicário, as
interpretações e as expectativas em torno das novas residências foram variadas. Suas
representações e construções discursivas sobre o Relicário estiveram, intimamente,
relacionadas com suas trajetórias anteriores, com a nova condição em que se encontram e com
a relação que estabelecem com o “lado de fora” - o entorno do conjunto. Ao longo do tempo,
percebi que havia uma tensão argumentativa, um conflito de interpretações constituídas nas
falas dos meus interlocutores sobre seus locais de vivência. Narrativas que transitavam,

107
recorrentemente, entre a plena satisfação pela conquista do apartamento e a total insatisfação
com o cotidiano no Relicário.
Imediatamente, veio-me a memória o embate em torno da passagem pelo muro que
separa fisicamente os dois espaços de moradia. Afinal, o que teria ocorrido com aquele primeiro
desejo de separação do Relicário do seu entorno? Quais foram os efeitos dessa primeira disputa
em torno do espaço vivido? Assim, diante daqueles barracos erguidos, daquelas inscrições do
Comando Vermelho nas paredes e no chão e demais práticas e efeitos da rotina vivida, nesse
capítulo proponho-me a refletir sobre essas questões, tomando como base conceitos
importantes trabalhados em estudos sobre sociabilidade e rotinas em espaços de favela. O
objetivo aqui é problematizar alguns dos desdobramentos observados e escutados na circulação
etnográfica que realizei por dentro do Relicário e que podem indicar continuidades e rupturas
nos processos de formação desses espaços de moradia popular na cidade.

5.1 Em busca do “enclave”: expectativas e frustrações nos “predinhos”

O conflito entre a manutenção ou o fechamento da passagem pelo muro evidenciou o


um dos desdobramentos prático-sensíveis da política de remoções e realocações de moradores
para os chamados “condomínios do PAC”. Depois um longo (e traumático) processo de
participação popular em torno do acesso e da obtenção de apartamentos do PAC, pessoas,
historicamente situadas em um mesmo território e com perfil socioeconômico e trajetórias
pessoais muito próximas, passaram a estabelecer relações que geravam distinções entre si. Por
um lado, argumentos que buscaram justificar a tentativa de impedir a manutenção do portal
explicitaram um primeiro desejo de separação e diferenciação entre o Relicário e a favela
vizinha: “a gente não quer esses favelados passando por aqui por dentro. Aqui agora é um
condomínio!”, repetiu diversas vezes ao seu grupo um dos moradores envolvidos no embate
com seus vizinhos de muro. Por outro lado, a resistência à separação dos que ficaram “de fora”
e exigiam a manutenção do portal: “não tem essa de separar, aqui todo mundo é igual”. A
proposta do PAC em manter as pessoas em seus locais de origem após as realocações parecia
ter gerado o efeito inverso do que propunha o projeto: de integração e permanência do convívio
entre as partes.
Naquele primeiro momento – que acompanhei e atuei bem de perto como gestor – a
vontade de impedir a passagem dos “favelados” pelo muro me indicou o que poderia ser o
princípio de um processo de segregação socioespacial dentro do bairro. Minha primeira suspeita

108
sobre esse primeiro desdobramento da política de urbanização do PAC era a de que havia um
forte desejo de parte daqueles moradores de se distinguirem, socialmente, de seus pares, em um
exercício próximo ao que Conceição (2016) chamou de “projeto de limpeza moral”: a busca
pela constituição de um ethos diferente dos seus pares favelados como uma maneira de se
reinserir “na cidade de forma menos estereotipada e como sujeitos de direitos”. (CONCEIÇÃO,
2016, p. 21). A construção ideológico-discursiva sobre o “novo começo” de vida apontava para
aquele comportamento hostil de parte dos moradores do Relicário em relação aos seus pares
que, até pouco tempo, estavam na mesma situação. Havia nas falas e nas posturas diante de toda
uma vontade de distinção. A possibilidade de constituírem o registro formal das suas novas
propriedades e o acesso mais facilitado aos bens e serviços da cidade mostrava-se reais.
Ao mesmo tempo o processo de participação seletiva do PAC e os privilégios gerados
pela política clientelista do programa geraram um ambiente de muitas disputas e desconfianças
mútuas entre os que “ganharam os apartamentos” e os que não “ganharam”, entre os “de dentro”
e os “de fora” do “condomínio”. Da parte de quem ficou “de fora”, o próprio termo “ganhar”,
muito utilizado por eles, evidenciava a maneira como aquela relação entre governo e população
era interpretada no processo de aquisição do bem, quase uma dádiva.
A individualização personalista dos mecanismos de atendimento dos pedidos e demais
necessidades postas na arena do PAC havia tornado as relações entre vizinhos históricos
bastante conflituosas. Acusações de recebimento e acúmulo ilegal de mais de uma unidade
habitacional por pessoa, com recorrentes transações de compra, venda e aluguel em um
mercado imobiliário informal; a evidência de pessoas desabrigadas ou removidas não
contempladas pelo Programa gerou, obviamente grande indignação que desdobrou-se em
discursos de crítica às pessoas envolvidas e a forma como os governos implementaram o
Programa. As recorrentes conversas nas esquinas do bairro chegaram converter-se em
reportagens de telejornais investigativos e denúncias no Ministério Público90.

90
Desde os primeiros anos que sucederam a inauguração desses conjuntos, surgiram denúncias na imprensa sobre
as “irregularidades nos apartamentos do PAC”. Não só no Complexo do Alemão, mas em outras localidades da
cidade do Rio de Janeiro que receberam as intervenções do programa federal – como Manguinhos, Rocinha e
Pavão-Pavãozinho –, muitas matérias jornalísticas apontavam “problemas” no uso dos apartamentos. A maior
parte refere-se a denúncias de oferta de venda ou de locação de unidades habitacionais com “contratos de gaveta”,
consequência da carência estipulada pela lei n.12.424 de 16/06/2011 e decreto n.º 7499 de 16/06/2011 que proíbe
realizar tais operações por um período de cinco anos. As restrições à compra, venda ou locação dos imóveis
construídos pelo PAC, que estão sob regime regulatório do Programa “Minha Casa, Minha Vida” é definido por
meio do Decreto N.º7.499 e N.º 7795, baseados na Lei n.º 12.424 de 16/06/2011, §5º - III: “não se admite
transferência inter vivos de imóveis sem a respectiva quitação”, sendo os apartamentos do PAC isentos de
contrapartida do beneficiário. Assim, de acordo com as normas do programa “serão consideradas nulas as cessões
de direitos, promessas de cessões de direitos ou procurações que tenham por objeto a compra e venda ou promessa
de compra e venda ou a cessão de imóveis adquiridos sob as regras do PMCMV e que estejam em desacordo com
109
Em grande medida, a hipótese da segregação socioespacial aparecia nas falas e nos
posicionamentos dos moradores do Relicário quando enfatizavam a sua chegada ao novo
padrão de moradia caracterizada como uma “vitória” individual. Muitos que reivindicaram a
necessidade de separação foram inseridos no programa de realocações após estarem em
condição de desabrigado e/ou viver em condições físicas muito precárias, nos topos dos morros
do Bairro. Alguns em condições de vida muito adversas. No entanto, haviam “conquistado” a
mudança de vida por meio de seus empenhos pessoais. A chegada ao apartamento tornou-se
um valor distintivo baseado na competência e na astúcia da capacidade de negociação com
atores em posições de alto escalão do governo. A realização de um desejo como resultado de
suas estratégias pessoais.
Sob uma perspectiva radicalmente individualizada da ação, alguns comparavam suas
performances “vitoriosas” diante do caos das chuvas e perante o governo com o comportamento
de outras pessoas que “não queriam nada, que não corriam atrás”, como repetiu diversas vezes
Dandara. Abaixo, ela remonta uma trajetória de “luta, suor e mérito por seu esforço”, mesmo
considerando os “problemas do PAC”, como gostava de dizer:

Bruno, vou te dizer: quem correu atrás conseguiu, entendeu? Eu fiquei atrás da Dona
Rute, do Seu Ícaro, de você [...] não descansei enquanto não consegui um apartamento
pra mim e pras minhas irmãs. Fui vitoriosa. Agora, tinha muita gente que achou que
ia cair do céu, que o governo ia chegar e resolver tudo pra ele. Não queriam nada, não
correram atrás! Foi com muita luta e suor que eu consegui chegar até aqui. O PAC era
cheio de problemas [...] uns com mais, outros com menos [...] mas, eu ia ficar
reclamando? Fui pra cima deles! Agradeço todo dia a Deus pelo meu apartamento.
Também mérito meu, do meu esforço pessoal. (DANDARA)

As aparentes distinções entre as pessoas e as divergências nas representações sobre os


limites físicos e simbólicos entre os condomínios do PAC e a favela tiveram como base
argumentativa o conteúdo disciplinador da moradia de tipo condominial, apresentado pelos
gestores públicos como instrumento de preparação para a nova realidade dos “favelados”. Após
a consolidação da lista final para o sorteio e a definição de todos os nomes que seriam de fato
contemplados com um apartamento, os moradores que “ganharam” (ou “conquistaram”) os
apartamentos participaram de reuniões intitulados “encontros de integração”. Iniciava-se assim
a preparação para a moradia em condomínio e mais um mecanismo de distinção entre pessoas.

o inciso II do § 4o.” (NR)” pelo período de 5 anos. Somente após esse período os moradores teriam em mãos os
documentos que garantem a propriedade individual do imóvel. http://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/2012/08/mp-investiga-venda-ilegal-de-apartamentos-do-pac-no-alemao.html - Acesso em
02/05/2016
110
5.1.1 Os “encontros de integração” e a preparação para o condomínio

Pautados pelo Caderno de Orientação do Trabalho Social (COTS) e pelo Plano do


Trabalho Técnico Social (PTTS) com diretrizes previamente formuladas por coordenadores do
programa federal, esses encontros de integração foram divididos em três módulos de
participação: os dois primeiros voltados para “preparação” das pessoas para morar em um
modelo residencial de tipo condominial e o último com o objetivo de formar e “capacitar” as
comissões gestoras condominiais. No final, os dois módulos totalizavam cinco encontros
presenciais
Partindo sempre de uma representação negativa sobre o comportamento das pessoas
moradoras de favelas, a pedagogia dos “encontros de integração” tinha como caráter reconstruir
valores e princípios da vida urbana dos “favelados” por meio de diretrizes e normas que se
assemelham a um verdadeiro “processo civilizador” (ELIAS, 1993; 2011). Como forma de
instrumentalizar esse processo, utilizou-se de um aparato prático-discursivo – aqui direcionado
à população pobre atendida pelo programa – que aproxima-se do que Foucault (1979; 1989)
definiu como dispositivo com fins a “governabilidade” do Estado sobre os indivíduos. Esse
dispositivo pode ser entendido como uma rede de técnicas, discursos, procedimentos, leis,
medidas administrativas, entre outros mecanismos disciplinares “que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1989, p. 126). Em última
instância, visam a consolidação de uma certa ideia de biopolítica, ou seja, a disciplinarização
comportamental dos sujeitos por meio de práticas naturalizadas e reificadas de autocontrole do
próprio corpo. Em grande medida, a perspectiva procedimental do PAC é a mesma que pode
ser observada em mais de oito décadas de sucessivas políticas de urbanização e habitação de
interesse social, como por exemplo, os discursos de controle e de gestão da pobreza presentes
nos projetos dos Parques Proletários e dos conjuntos habitacionais do extinto BNH, como
aponta Conceição (2016). Os encontros de integração tinham sobretudo um caráter
pedagogizante e disciplinador. Somente cumprindo 75% de assiduidade, as pessoas estariam
preparadas, geridas, civilizadas e habilitadas para receber as chaves do apartamento.
Os encontros, chamados pelos participantes de “curso pra aprender a morar no
condomínio”, aconteciam sempre na parte da tarde, com a sala sempre cheia, arrumada em uma
disposição escolar: cadeiras enfileiradas lado a lado com “tutores” (técnicos contratados pela
empresa responsável pelo trabalho social para conduzirem os encontros) à frente ensinando o
111
conteúdo formado por regras condominiais e muitas “dicas” para um convívio “saudável” (uma
delas era “evitar fazer fofoca dos vizinhos” e ensinamentos de como gerir de forma eficaz o
orçamento doméstico, pois, como repetiam os tutores, “agora teriam de pagar as contas de luz
e água da casa”).
Na época, estive presente em alguns desses encontros como gestor e pude acompanhar
o desenvolvimento do “curso”. Muitos dos presentes sentiam-se desconfortáveis e ofendidos
naquele papel de aprendiz de cidadão morador de condomínio. Resistiam aos discursos
disciplinadores postos como condição para a aquisição do apartamento. Reclamavam: “Esse
pessoal acha que a gente não sabe se comportar? Acham que aqui é tudo animal, bicho?” De
todo modo, a participação de todos os presentes era sempre bem ativa, com muitas vozes, ao
mesmo tempo, disputando a audição dos tutores e recheadas de perguntas relacionadas a forma
como deveriam agir na futura moradia. Dona Olga, em entrevista recente, recordou os
momentos de “agito” e “confusão” que marcaram aquele período:

[...] meu filho, era uma confusão danada [...] todo mundo querendo falar, todo mundo
dando opinião [...] a gente tava sem saber como ia ser, tinha a mudança, o negócio das
chaves, do apartamento [...] era muita coisa ao mesmo tempo. Podia isso, não podia
aquilo, tinha regra pra isso, regra pra aquilo [...] eles falavam que não podia pendurar
roupa no varal, que não podia mexer em nada dentro do apartamento [...] todo mundo
ficou agitado. Era tudo novo pra gente. Tudo novo! (DONA OLGA)

Diante do cenário que se apresentava, havia uma grande expectativa por parte do público
presente. Toda essa mudança causava grande ansiedade e muita insegurança com o novo que
estava por vir. As regras de convivência apresentadas pelos tutores baseavam-se no modelo
condominial de organização interna da moradia coletiva. Junto com o novo comportamento a
ser praticado nos condomínios do PAC, os tutores explicavam a necessidade de formarem
comissões e elegerem um síndico como representante legal dos moradores. Para o modelo
proposto tornava-se imprescindível a formação e a consolidação de um aparato jurídico-
burocrático de organização daquele novo espaço. Para o “novo começo” era preciso consolidar
o que pode ser entendido como uma “gestão condominial do espaço”, ou seja, um conjunto de
normas e procedimentos que orientam a organização política e financeira do espaço de moradia
baseado na formalidade da representação jurídica dos moradores. É nesse momento que surgem
os síndicos, os conselheiros e as comissões gestoras do “condomínio do PAC”: os novos grupos
e lideranças forjadas pelo programa para organizar o espaço vivido.
No final do primeiro módulo, algumas pessoas se interessaram ou foram indicadas pelos
seus pares nos próprios encontros para atuar como gestores. A escolha desses gestores
112
condominiais ocorreu de duas formas: por eleição ou por aclamação. No primeiro caso, esse
ocorria quando havia mais de uma pessoa interessada em se tornar síndico e muitos candidatos
a conselheiro. Aqui a condução da eleição foi feita pelos tutores dos “encontros de integração”
em um ritual eleitoral com urnas e votos em papel. Quando os interessados não possuíam
concorrentes, a escolha acontecia por aclamação, sem que houvesse necessidade de um ritual
eleitoral.
Após a escolha dos futuros síndicos e conselheiros, esses passavam por mais uma série
de encontros para a formação do que foi nomeado como “comissões gestoras”, entendidos como
grupos de moradores “capacitados” para gerir o “condomínio”. Naquele momento também tive
a oportunidade de acompanhar alguns desses encontros como gestor do PAC: uma técnica do
Trabalho Social reunia-se com os futuros gestores iniciando o terceiro módulo de formação que
incluía três encontros, que funcionavam como a segunda fase de preparação para morarem em
condomínios. No entanto, aqueles escolhidos seriam os responsáveis pela condução da nova
ordem. Ao término do curso estariam habilitados para exercer suas funções de síndico e
conselheiros. No “cursinho de síndico”, como chamavam os participantes, as pessoas tinham
contato com os procedimentos técnico-burocráticos para gerir um condomínio. Eram ensinadas,
por exemplo, como realizar convocações e assembleias ordinárias e extraordinárias, como
elaborar atas, como controlar de finanças e prestar contas aos demais condôminos, etc.
Cabe ressaltar que todo esse processo mostrou-se contraditório desde o início, pois, ao
mesmo tempo em que buscavam instituir outro padrão de comportamento e de vida por meio
da inclusão participativa da população, reafirmaram leituras estereotipadas desse mesmo
público, impondo um conjunto de normas disciplinadoras. Conceição (2016) faz uma crítica
importante sobre a forma como esses cursos foram concebidos e operacionalizados. Ele ressalta
essa contradição no próprio teor das orientações do Caderno de Orientação do Trabalho Social
(COTS, 2007), pois, da mesma forma que se busca ressignificar espaços, reafirma-se
estereótipos de pessoas e práticas. Nas palavras de Conceição,

[...] ao mesmo tempo em que insistem na construção de um processo com


plena participação do beneficiário, dando a ele um papel importante no projeto
[de construção de uma nova realidade], apresentam uma leitura estereotipada
dele, partindo do princípio da necessidade de ser educado em regras básicas
de higiene, de cuidado com o patrimônio e até de controle do orçamento
familiar. Subestimam a ordem social à qual esses sujeitos pertencem e se
propõem a discipliná-los, até nos aspectos mais privados da vida, como
higiene e gastos. (CONCEIÇÃO, 2016, p. 174)

113
No entanto, como resultado final, pelo menos na dimensão da implementação do
programa, todo esse arcabouço instrumental-legal do PAC-Favelas instituiu a ideia e a forma
condominial como mecanismo capaz de organizar e regular aquele novo espaço compartilhado
de moradia. Principalmente, para os síndicos e conselheiros, o condomínio logrou-se como uma
instituição, tendo como referência os instrumentos e mecanismos jurídico-governamentais
postos como meio para a gestão do espaço, capazes de fomentar a constituição de um outro
modo de vida. Eis aqui os elementos centrais para uma primeira análise sobre aquele primeiro
comportamento auto-segregador dos novos residentes de condomínio em relação ao entorno, a
favela.

5.1.2 A ordem esperada: a condominial

Ao longo da pesquisa, minha leitura inicial sobre a disputa em torno da passagem do


muro foi ganhando outros contornos, à medida que eu conversava com diversos moradores e
observava suas práticas no interior do Relicário. Com o tempo, a interpretação sobre a vontade
de se separar do entorno foi se revelando como algo que estava além de um “elemento
purificador” (CONCEIÇÃO, 2016) - uma limpeza moral em relação à favela ou uma supressão
do estigma do ser favelado - e de um elemento meritocrático – um entendimento centrado no
esforço individual como a causa para o sucesso ou fracasso na sociedade.
Não que tais elementos não existissem nas falas dos moradores, mas esses, como
mecanismos únicos de segregação (como eu havia imaginado), pareciam não se sustentar.
Dandara, na entrevista que me concedeu, reclamou do que ela chamou de “ritmo de cadeia”,
isto é, cada um no seu apartamento, isolado, como em celas individuais, tomando conta de sua
própria vida, “se achando melhor que o vizinho”, como repetia. No entanto, não dava para
generalizar tal entendimento, pois havia também o “orgulho” de ser do Complexo do Alemão.
Os “Relíquias”, por exemplo, eram moradores do condomínio, mas se orgulhavam de serem
“cria da favela”. Ser favelado, em muitas ocasiões, foi mobilizado como identidade de luta e de
resistência, frente as dificuldades da vida. As mesmas pessoas que, no momento da disputa pela
passagem do muro queriam o seu fechamento, em outras ocasiões, batiam no peito e repetiam:
“Aqui só tem guerreiro, é na favela que a gente aprende o que é a vida”. Desse modo, um outro
elemento que começavam a surgir nas falas dos moradores: a questão da ordem.
A crítica começava a girar em torno do tipo de rotina vivida. Era o ordenamento interno
do Relicário que começava a surgir como questão para os moradores, principalmente para os
síndicos, as pessoas “formadas” pelo PAC para gerir o espaço condominial. Uma frase
114
emblemática de Seu Moisés, síndico do Bloco K exemplifica bem a questão: “Aqui não tem
essa de separação, aqui é tudo favelado, tudo Complexo do Alemão. O que a gente não quer
aqui dentro é essa bagunça aí de fora”.
Com o tempo a promessa de uma “outra ordem do morar” estabeleceu-se como meta a
ser alcançada para um pequeno grupo de moradores, entre eles, os síndicos e os membros das
comissões gestoras recém-formadas. O objetivo desse grupo foi buscar formas de organizar o
espaço do Relicário contrapondo-se a “desordem” da vida nas favelas. Tal meta estava em
consonância com o que haviam escutado ao longo de todo o processo de “formação” para a
moradia nos “condomínios do PAC”. Diferentemente dos “condomínios populares”
(CONCEIÇÃO, 2016) formatados dentro do padrão construtivo do Programa Minha Casa,
Minha Vida91 (PMCMV), os “condomínios do PAC” não possuíam os equipamentos
necessários para consolidar uma lógica de condomínio fechado. A configuração do Relicário é
aberta, ou seja, as vias internas são logradouros públicos e o terreno como um todo constitui-se
como um espaço público. Assim, a disputa pela passagem pelo muro demonstrou-se como uma
primeira tentativa de materializar uma outra institucionalidade – a condominial – como
mecanismo de reconfiguração das relações no cotidiano do bairro.
Muitos moradores, como de Mateus, por exemplo, incorporaram os valores dessa nova
instituição e acreditaram que “podiam fazer diferente” a partir daquele aprendizado. Assumiram
de imediato o papel de síndico e o conteúdo simbólico do “condomínio fechado”. Viver em um
condomínio significou a possibilidade de um “novo conceito de moradia” (Caldeira, 2000, p.
265). A forma como os blocos de apartamentos foram dispostos no terreno, lado a lado em um
espaço fisicamente delimitado, contribuindo para engendrar a perspectiva de um todo
condominial. Assim alguns moradores vislumbraram a possibilidade de “fechar” o Relicário

91
Lançado em 2009 pelo então presidente Lula, o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) tornou-se o
maior programa de acesso a casa própria já criada no país. Direcionada a aquisição da casa ou apartamento próprio
para famílias com renda até R$6500,00, todas as concessões de benefícios pelo MCMV são feitas por faixa de
renda: Faixa 1 – até R$1800,00 de renda familiar mensal. Possibilita até 90% de subsídio do valor do imóvel. Pago
em até 120 prestações mensais de, no máximo, R$ 270,00, sem juros; Faixa 1,5 - até R$2350,00 de renda familiar
mensal. Até R$ 45.000,00 de subsídio, com 5% de juros ao ano; Faixa 2 – até R$3600,00. Até R$ 27.500,00 de
subsídio, com 6% a 7% de juros ao ano; e Faixa 3 – até R$ 6500,00, com 8,16% de juros ao ano. Todos esses estão
incluídos na modalidade “Minha Casa, Minha Vida Urbano”. O programa ainda tem mais quatro modalidades:
empresas, entidades, FGTS, Municípios com até 50 mil habitantes e rural. Cada modalidade atende a um público
específico. Os recursos do MCMV são do orçamento do Ministério das Cidades repassados para a Caixa
Econômica Federal. http://www.cidades.gov.br/habitacao-cidades/programa-minha-casa-minha-vida-pmcmv
Acesso em 06/03/2018.

115
com grades e portões. Chegaram a sugerir a construção de uma guarita para controlar a entrada
e a saída de pessoas.
Todo esse arcabouço valorativo e instrumental-legal, posto pela política de urbanização
do PAC, esteve ancorado nos princípios da “moradia de classe média”, próximo do que Teresa
Caldeira (2003) definiu como “enclaves fortificados”. A autora afirma que esse tipo de moradia
coletiva remete a um processo contínuo de auto-segregação e que está associada a um padrão
de moradia e de estilo de vida vivenciados pelas classes média e alta. Por meio desse padrão,
constrói-se um tipo de relação e convivência específicos entre os moradores dos “enclaves” e o
restante da cidade. Trata-se de um padrão marcado fortemente pelos discursos da segurança
privada, em que tudo aquilo que está fora da circunscrição condominial é representado como
perigo ou o lugar do “crime violento”. Nas palavras de Caldeira (2003, p. 211).

Sobrepostas ao padrão centro-periferia, as transformações recentes [das cidades] estão


gerando espaços nos quais os diferentes grupos sociais estão muitas vezes próximos,
mas estão separados por muros e tecnologias de segurança, e tendem a não circular
ou interagir em áreas comuns. O principal instrumento desse novo padrão de
segregação espacial é o que chamo de ‘enclaves fortificados’. Trata-se de espaços
privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. A
sua principal justificação é o medo do crime violento. Esses novos espaços atraem
aqueles que estão abandonando a esfera pública tradicional das ruas para os pobres,
os ‘marginalizados’, os sem-teto.

E completa:
Um dos fenômenos mais interessantes e aquele que produziu as mudanças mais
importantes na maneira de morar das classes média e alta foi a disseminação dos
condomínios fechados. Esse é um tipo de empreendimento de múltiplas residências,
sobretudo edifícios, invariavelmente fortificados, com entradas controladas por
sistemas de segurança, normalmente ocupando um grande terreno com áreas verdes e
incluindo todo tipo de instalações para uso coletivo. Na última década, eles se
tornaram o tipo de residência preferido pelos ricos”. (Idem, p. 243).

Vale destacar que os “enclaves fortificados de classes médias altas e altas”,


problematizados por Caldeira (2003), servem aqui como um “tipo ideal” (WEBER, 2005) para
pensar a relação entre o “dentro” e o “fora” do espaço condominial. Os enclaves evidenciados
por Caldeira e os “condomínios do PAC” são espaços de moradia formados por estratos sociais
diametralmente opostos. O primeiro como um universo privado para as elites que desejam auto-
segregar-se daqueles que delas são diferentes; o segundo, também, como um universo privado,
mas só que destinados para os pobres que, teoricamente, desejariam auto-segregar-se daqueles
que são seus iguais.
Os “enclaves” de classe média alta surgem como uma forma de auto-segregação
socioespacial em relação ao outro distante social, cultural e economicamente. A auto-

116
segregação dos ricos se dá sob o signo do medo da pobreza, do desconhecido, da diferença e
do estranho à eles. O outro é entendido como perigo iminente para as suas integridades físicas
e as suas garantias patrimoniais. Além disso, há a própria vontade de se distinguir social e
culturalmente, delimitando espaços da cidade como o local das “residências de prestígio”
(Idem, p. 258). Fronteiras que são índices de certo posicionamento de classe e de um
pertencimento aos círculos sociais associados aos grupos abastados. Divisões características
das metrópoles marcadas por profundas desigualdades socioeconômicas. Já os moradores do
“condomínio” do PAC Relicário a princípio, mostraram-se dispostos a se auto-segregar em
relação a um outro próximo, isto é, aquele que é conhecido, que convive lado a lado, que mora
na mesma favela, em condições socioeconômicas semelhantes e que, ao mesmo tempo, vive as
consequências da segregação socioespacial em relação ao restante da cidade formal.
No entanto, poderíamos aproximar os enclaves abastados do “condomínio” do PAC em
um aspecto, basicamente: a segurança. Esse elemento ontológico constitutivo da sociabilidade
da modernidade (GIDDENS, 1991) configura-se como a possibilidade para se organizar as
relações sociais de maneira rotinizada em um mundo marcado pelo medo, a fragmentação das
individualidades e o desencaixe das relações sociais de contextos locais de interação e sua
reestruturação em extensões indefinida no tempo-espaço (Idem, p. 31). Em outras palavras,
aqui, a representação do condomínio fechado realça a busca das pessoas por um ambiente em
que as relações de confiança possam se estabelecer como princípio gerador de segurança em
um ambiente de riscos, um lugar de proteção contra os perigos. No entanto, essa busca para
Giddens (1991), é mais “uma forma de ‘fé’ na qual a segurança adquirida em resultados
prováveis expressa mais um compromisso com algo do que apenas uma compreensão
cognitiva” (Idem, p. 37), ou seja, a segurança almejada sempre implicará em um cálculo dos
atores com relação aos riscos e os perigos que qualquer um está sujeito em diferentes e
relacionadas dimensões da vida social.
No caso do Relicário, a busca por segurança estava condicionada pela necessidade de
sua garantia em quatro dimensões complementares: a “segurança jurídica” da propriedade
privada, almejada por pessoas que, ao longo de suas vidas, moraram em casas no morro em
condições de informalidade (sem qualquer tipo de título de propriedade ou posse) ou somente
com reconhecimento local (com as declarações de propriedade concedidas por associações de
moradores, muitas vezes, questionados até mesmo em disputas locais); a “segurança da
construção”, quando comparadas com casas que desabaram ou estavam em risco eminente de
deslizarem dos morros na primeira chuva forte; e a “segurança da localização” por estarem mais

117
distantes das áreas de confrontos e tiroteios entre policiais e operadores do mercado de drogas.
Além disso, a ideia de condomínios levou as pessoas a vislumbrarem a possibilidade de
instaurar um sistema de proteção contra crimes (invasão de propriedade privada, roubos, entre
outras violações) que envolve um aparato composto por equipamentos e uma tecnologia que
permita proteger a vida interna do mundo externo: muros, grades, guaritas, seguranças privados,
câmeras etc. foram vislumbrados por muitos moradores logo que chegaram no Relicário. Com
relação a esse último ponto há uma clara intenção, principalmente por parte dos síndicos, de se
estabelecer algum grau de ruptura com uma ordem social fortemente marcada por uma
“sociabilidade violenta” (MACHADO DA SILVA, 2004a; 2004b; 2008; 2016 [1976]), onde a
insegurança e as imprevisibilidades estruturam o cotidiano.
Machado da Silva defende que a “violência urbana” configura-se como uma
representação social, ou seja,

[...] uma categoria que destaca e recorta aspecto das relações que os agentes
consideram relevantes, em função dos quais constroem o sentido e orientam
suas ações. Desta perspectiva, possui um significado instrumental e cognitivo,
na medida em que representa regularidades de fato relacionadas aos interesses
dos agentes nas situações consideradas. Mas como toda representação, a
violência urbana é mais do que uma simples descrição neutra. No mesmo
movimento que identifica relações de fato, aponta aos agentes modelos mais
ou menos obrigatórios de conduta, contendo, portanto, um dimensão prático-
normativa institucionalizada, ainda que informalmente, que não pode ser
desconhecida. (MACHADO DA SILVA, 2008, p.37)

Para o autor, “violência urbana” institui-se como categoria coletivamente construída


para identificar um complexo de práticas do qual a força é um princípio de coordenação,
responsável por sua articulação e relativa permanência ao longo do tempo. Nessa representação,
os “traficantes de drogas” seriam, em última instância, aqueles que são significados como
“portadores” dessa violência, “porque sua atividade, mais estável e duradoura do que as outras
modalidades de crime” (Idem, p.37) exerceria sobre a violência urbana uma força centrípeta.
Sendo essa “violência” sentida por todos na sociedade, para Machado da Silva é, na
favela e nos espaços periféricos da cidade que ela existiria de maneira mais dramática. Nesses
espaços, as pessoas vivenciariam, cotidianamente, uma ordem baseada quase que,
exclusivamente, na força, não havendo qualquer possibilidade de insubordinação das pessoas.
A “sociabilidade violenta” expressa “uma ordem social mais do que um conjunto de
comportamento intersticiais, isolados uns dos outros e sem continuidade no tempo”.

118
(MACHADO DA SILVA, 2008, p.41). Essa sociabilidade “provêm de um complexo orgânico de
práticas e não de ações individuais (Idem. Ibdem).
Em sua dimensão prática, a expectativa de formação de um condomínio fechado no
Complexo do Alemão foi subsidiada pela representação da violência urbana, tal qual colocada
por Machado da Silva. Ademais, tal expectativa esteve diretamente relacionada com a força
operativa do Comando Vermelho no território. A forma como esse grupo criminoso se
desenvolve e se estrutura na dinâmica do território impõe aos seus habitantes uma série de
regulações que visam tanto o pleno funcionamento do negócio, quanto o controle das relações
entre as pessoas e suas práticas cotidianas. Demarcação de espaços livres no morro, autorizando
quem pode ocupar e construir, interferência em processos eleitorais, a definição de horários de
funcionamento de estabelecimentos comerciais, a interlocução com atores públicos na definição
de critérios para a implementação de políticas públicas, escolha de quais partidos e candidatos
estão autorizados a fazer campanhas eleitorais nos morros são todos exemplos sobre o tipo de
controle exercido por essa organização.
Paralelamente, ao longo das últimas décadas, com o crescimento e o fortalecimento
econômico e armamentista do Comando Vermelho, os espaços das favelas tornaram-se
altamente militarizados. Os confrontos entre os grupos armados e policiais militares e civis –
seja por meios das incursões, seja pela permanência de policiais militares com as UPPs,
ultimamente, reforçada pelas ações pontuais das Forças Armadas na “guerra as drogas” –
acabaram por tipificar e materializar esses espaços como “territórios da violência na cidade”
(LEITE, 2014, p. 627). As representações das favelas como o espaço dos tiroteios, das invasões
policiais, dos confrontos armados entre facções inimigas em disputas pelo controle territorial e
do comércio de drogas, o espaço das mortes violentas e precoces ampliaram o desejo dos
moradores de isolar o Relicário do restante do Complexo do Alemão. Recomeçar a vida,
também, significou distanciar-se da “violência urbana” da favela (MACHADO DA SILVA,
2008) e de suas consequências na vida prática cotidiana.
Assim, a tentativa de fazer dos “condomínios” do PAC um tipo de enclave popular
esteve orientada pela busca por distanciamento dessa ordem social. A lógica condominial
apresentou-se como a possibilidade de estabelecer um outro ordenamento interno, a partir do
protagonismo de novos atores e grupos sociais locais, como por exemplo, dos síndicos.
Como elemento agregador das expectativas de um “novo começo”, ainda ocorria,
naquele momento, o início do que mais tarde configurou-se como política de segurança de
“pacificação”. Concomitante a implementação do programa de urbanização e construção de

119
moradias populares do PAC-Favelas, o Complexo do Alemão vivenciou, logo após a
inauguração do Relicário, a invasão das forças de segurança no que ficou conhecido como o “O
Dia D”, ambos no ano de 2010. Essa foi uma ação entendida pelos órgãos públicos de segurança
como a preparação para a instalação das UPPs. Cavalcanti (2013) definiu todo esse processo
como “PACficação”: a produção prático-discursiva de uma política de desenvolvimento urbano
aliado ao projeto de segurança pública voltada para as favelas tendo como elemento fundante a
ideia de “pacificação” das favelas. A violência e o domínio territorial exercido pelos grupos
armados seria a justificativa para ações de melhoria de infraestrutura urbana na favela e a
promoção da “cultura de paz” que remodelaria a vida das pessoas.
Desse modo, desde os primeiros momentos de desabrigo aos caminhos percorridos para
a aquisição dos apartamentos, submetidos a uma permanente construção prático-discursiva dos
novos condomínios do PAC, como os espaços dotados de capacidade para o recomeço de vida
que se anunciava para os moradores do Complexo do Alemão, o Relicário passou a ser
vislumbrado como um condomínio fechado. No entanto, ao circular e ouvir os moradores no
interior do Relicário ficou evidente, que tal expectativa não havia se concretizado. Uma série
de práticas, arranjos políticos locais e necessidades que caracterizam, em parte, a vida na favela
impuseram-se sobre o modelo condominial almejado por alguns moradores. A separação ente
favela e condomínio ficou nas expectativas e desmanchou-se no ar.

5.1.3 A dinâmica da favela e a integração “pra dentro”

Diferente do que eu havia imaginado antes de iniciar a pesquisa, aquela distinção inicial
não se desdobrou em uma segregação socioespacial no bairro. Pelo menos, no que diz respeito
a uma separação radical entre dois lados. O muro permaneceu aberto e as pessoas transitando
permanentemente pelo portal. As entradas frontais do Relicário são amplamente abertas e
utilizadas por todos os moradores de dentro e de fora. Circulando, conversando e observando a
dinâmica da moradia no interior desse conjunto de apartamentos, se havia algum desejo de
separar o Relicário do seu entorno, fomentado a ideia de inclusão e reconhecimento social por
meio da representação de “condomínio fechado”, segregando-o das favelas do entorno, esse
desejo foi desfeito no cotidiano da vida no bairro. Foi dissolvida na própria dinâmica social e
política do bairro pelas condições de vida das pessoas residentes na localidade.
A possibilidade de acesso às garantias formais e legais, aos bens e aos serviços da
cidade aconteciam de maneira relativa, aproximando assim as condições de vida dos moradores
do Relicário do restante das pessoas do seu entorno. Ao mesmo tempo em que estão próximos
120
da área formal da cidade e o acesso a alguns serviços públicos acontece de maneira mais
facilitada – pontos de ônibus, bancos, comércio etc. –, a maior parte deles ocorre de maneira
parcial: pela dependência de um contato ou de um conhecimento pessoal que possibilite acessar
a escola, o hospital, as clínicas públicas municipais (como as UPAs), seja pela risco permanente
de diversos conflitos armados entre policiais e operadores do mercado de drogas no bairro como
um todo; pelo desemprego e a instabilidade gerada pela informalidade do trabalho, pelas
dificuldades financeiras para pagar débitos domésticos elementares (como contas de luz, água,
gás, alimentação, entre outros). Todos esses fatos colocam em questão os objetivos mais
elementares do “urbanismo social” e qualquer processo do que pode ser entendido como
inclusão social e reconhecimento da cidadania.
A fala de D. Sulamita, ao queixar-se das frequentes dores nas pernas e nos ombros
devido ao esforço contínuo que realiza na sua “vendinha”, exemplifica bem essa precariedade
do acesso à cidade. Em muitas ocasiões, quando nos encontrávamos falava da ausência de
médicos na Unidade de Pronto Atendimento construída pelo PAC no Complexo do Alemão.
Dizia: “Aquilo ali não presta não. Nunca tem médico. Se depender daquilo ali a gente morre.
Só consigo mesmo umas aspirinas e olhe lá!”. Essa era uma queixa permanente de moradores
que moram nas favelas do entorno. Ainda na área da saúde, um outro ponto que reafirma essa
relação entre favela e Relicário é a forma como funciona o Programa Saúde Presente92. As duas
agentes de saúde que atuam nas favelas do entorno são a mesmas que atendem no Relicário.
Ainda no âmbito das dificuldades que aproximam os espaços, a própria regularização
do Relicário como moradia formal na cidade, até o presente momento de escrita dessa tese,
ainda não ocorreu. O Relicário e demais “condomínios do PAC” não possuem registro de
formalização junto aos órgãos e instituições municipais responsáveis, como a Secretaria
Municipal de Habitação e os cartórios de registro de imóveis da cidade. Segundo o diretor de
assentamentos urbanos do Instituto de Terras e Cartografias do Estado do Rio de Janeiro
(ITERJ), órgão responsável pela regularização fundiária desses conjuntos residenciais do PAC-
Favelas, não só a regularização do Relicário, mas também de outros conjuntos estiveram
paralisados nesses últimos sete anos. Há uma série de pendências para a conclusão do registro

92
Segundo Fazzioni (2016) o Programa Saúde Presente lançado 2009 pela Prefeitura do Rio de Janeiro teve como
objetivo expandir a rede da Estratégica de Saúde da Família cuja cobertura na cidade passou de 3,5% em janeiro
de 2009 para 47,9% em março de 2015. O programa tem como conceito a territorialização da saúde atendendo
regiões até então prejudicadas na gestão pública de saúde. Toda a estrutura do programa está amparada pelas
diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) que define como público a ser privilegiado no atendimento famílias
que apresentem alto grau de vulnerabilidade social. http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_esf.php acesso em
25/03/2018.
121
que vão da ausência de habite-se93 à falta de uma listagem final consolidada com informações
sobre a documentação exigida no período de cadastro para o sorteio dos apartamentos (CPF,
Identidade e comprovante de residência anterior). Não custa ressaltar que sem a conclusão
dessas regularizações formais não é possível emitir qualquer título de propriedade dos imóveis
aos moradores.
Logo após a entrega das chaves dos apartamentos, as famílias no Relicário receberam
um documento intitulado “Autorização Provisória de Ocupação” (APO) que, em última
instância, era a única comprovação de participação dos responsáveis familiares em todo o
processo de indenização. Vale lembrar que esse processo envolveu várias etapas. Primeiro, a
constatação técnica e o cadastro das pessoas que tiveram suas casas impactadas pelas obras do
PAC ou pelas chuvas e deslizamentos de terra; segundo, o recebimento das chaves via sorteio,
além da assiduidade nos “encontros de integração”. Por fim, para que recebessem o título de
propriedade do imóvel seria obrigatório que cumprissem uma carência de cinco anos imposta
pelas regras do Programa Federal, que alegava ser uma medida necessária para impedir que as
pessoas vendessem seus apartamentos logo após o recebimento.
Essa APO tem a validade legal de cinco anos, pois tinha como função somente assegurar
que os residentes dos imóveis eram os mesmos que participaram de todas as etapas dos
procedimentos do PAC até a entrada na moradia. Como diz o próprio documento, uma
autorização provisória. Sem a titularidade concluída, legalmente, os moradores encontram-se
em um situação completamente irregular, não podendo, por exemplo alugar os imóveis. As
pendências para a formalização seriam três: a complementação dos cadastros de
“beneficiários”, a instituição do condomínio junto ao cartório de registro de imóveis do
município e a autorização governamental para oficializar o instrumento de titulação (no caso
aqui a doação).
Essa situação jurídica do Relicário coloca os moradores que, por diversos motivos,
passam a negociar os apartamentos no mercado imobiliário (vendendo-os ou alugando-os para
terceiro) em condição de ilegalidade. Consequentemente, toda a negociação passa a se
desenvolver às margens da jurisdição que regulamenta essas transações. D. Judith contou-me

93
Tecnicamente definido como “auto de conclusão de obra” o “habite-se” é o documento expedido pela prefeitura
atestando que o imóvel (casa ou prédio residencial ou comercial) está pronto para ser habitado e foi construído ou
reformado de acordo com a exigências legais estabelecidas pelos município, especificamente o Código de Obras
vigente. O atestado do poder municipal somente é emitido após vistoria realizada por um engenheiro civil que
comprove o atendimento das especificações contidas no projeto aprovado inicialmente. Caso o habite-se não seja
emitido, juridicamente, haverá uma série de restrições quanto ao processo de formalização do imóvel perante o
poder público (prefeitura), como impossibilidade de constituição de condomínio e
122
que não podia ficar esperando “a boa vontade do governo” em resolver a situação do seu
apartamento para sair do Relicário. Após tornar-se viúva, viu-se obrigada a sair e vender o
apartamento, pois, já idosa e com problemas de saúde, não podia permanecer sozinha no local,
conforme relatou-me: “olha, se eu for esperar o governo me dá o meu documento – que eu tenho
direito – eu morro aqui dentro. Vendi e venderia de novo. Muita gente faz isso aqui, não sou só
eu. Tenho que viver!”
No futuro, com a regularização concluída – mas sem previsão de quando isso ocorrerá
–, de acordo com a explicação do diretor do ITERJ, cada um dos vinte e dois prédios do
Relicário deverá ser constituído como um condomínio, independente, onde será feita a
subdivisão das partes de área comum no interior de cada prédio por cada futuro proprietário.
Quando questionei sobre a regulação dos espaços externos, as áreas de uso comum, como essas
seriam divididas no particionamento da propriedade, o diretor não soube responder como ficaria
tal divisão entre os condôminos. Os moradores do Relicário e demais condomínios do PAC
receberão (um dia) a titularidade dos imóveis por meio da modalidade “doação”. Ao mesmo
tempo todo espaço do terreno externo ao blocos constitui-se como público, cortados por
logradouros públicos. No momento, a propriedade do terreno é estatal. Todo esse entendimento
gera dúvidas quanto a própria natureza do local. Ao mesmo tempo, sua disposição morfológica
propõe uma configuração unitária como um condomínio único assim como os condomínios de
classe média, o que causa dificuldades até mesmo para denominar esse tipo de conglomerado
de prédios de apartamento: é condomínio? É conjunto habitacional? É conjunto residencial?
Ou, simplesmente, são os “predinhos do PAC”, como chamam seus residentes?
Por fim, em uma dimensão política e da organização interna dos espaços, cabe destacar
duas situações: a baixa adesão e o não–reconhecimento da representatividade interna da
Associação de Moradores do Relicário, o papel informal dos síndicos na gestão dos blocos e o
desmonte das comissões gestoras. O primeiro está diretamente relacionado com a maneira como
a associação do Relicário constituiu-se ao longo do tempo e a sua relação com outras
representações políticas do bairro. Indica também a maneira como o Relicário situa-se no
contexto das favelas do Complexo do Alemão. O segundo relaciona-se com o fato do papel do
síndico configurar-se de maneira cada vez mais informal, pois as suas possibilidades de atuação
são determinadas, em grande medida, por relações de poder relacionadas a uma ordem externa
ao Relicário. Cabe aqui, pontuar melhor essas duas dimensões da organização do Relicário.

123
5.1.3.1 “Ninguém respeita a gente”: a associação de moradores do Relicário

A Associação de Moradores do Conjunto Residencial Relicário foi registrada em vinte


e cinco de outubro de dois mil e doze: dois anos depois da inauguração e entrega das chaves.
Atualmente, possuí um Presidente, Josimar, um Vice-presidente, Moisés, e um Conselheiro,
Amós. Cabe ressaltar que todos foram ou ainda são síndicos. Basicamente, atuam de forma
conjunta em ações voltadas para a manutenção e preservação dos equipamentos e espaços
comuns do conjunto.
Segundo Josimar, desde a sua criação, a Associação não obteve em nenhum momento
o reconhecimento como instância de representação formal dos demais moradores, tanto no
Relicário, quanto, externamente, perante outras associações. O ato de criação da associação
“saiu de uma reunião de pessoas que queriam fazer diferente”, disse-me Josimar, em uma
conversa. Porém, nunca conseguiram realizar nenhuma cobrança de taxa para formar um caixa
para a associação. Para ele isso deve-se ao fato do espaço do Relicário ser novo, tendo em vista
ainda o papel de outras organizações locais mais antigas próximas a Relicário. Há duas outras
associações no entorno do conjunto residencial.
Um outro motivo foi, nas palavras dele, o “racha”, que ocorreu, internamente, logo no
início da formação da instituição. Josimar explicou-me que uma parte dos membros tinha uma
ligação próxima com um dos gestores do PAC, esse último eleito vereador no ano de 2010.
Outra parte estava mais próxima, politicamente, de uma liderança local muito influente, um ex-
presidente de associação de moradores, que também concorrera ao pleito. Na época, os dois
candidatos realizaram diversas ações dentro do Relicário com vistas a conquistar o eleitorado:
compraram pisos e azulejos para reformar as entradas dos prédios, intercederam para aparar a
grama do terreno, ofereceram cargos na campanha, entre outras ações de caráter assistencial.
Derrotado no pleito, o tal ex-presidente desentendeu-se com um dos membros do grupo,
Mateus, que apoiava o candidato vencedor das eleições, exigindo a saída dele, para que
continuasse “ajudando” a nova associação do Relicário e, dessa forma, seguisse exercendo
poder sobre a organização interna e externa da Associação. Vale destacar que o ex-presidente
era o candidato que tinha o apoio do “tráfico”. Para Josimar, tal situação colocou a Associação
de Moradores do Relicário em uma “sinuca de bico”, pois ao mesmo tempo que eles precisavam
do apoio do antigo gestor do PAC, que havia se tornado vereador, necessitavam, também, de
apoio do “tráfico”. Segundo Josimar, a questão só se resolveu após uma série de escândalos de
recebimento de benefícios ilegais no período do PAC que envolvia o ex-presidente. Esse saiu

124
do Complexo do Alemão, no entanto, as rusgas do processo eleitoral permaneceram dentro da
associação do Relicário, enfraquecendo a estrutura interna da instituição.
Recentemente, Josimar reforçou a preocupação com a “força” que alguns presidentes
de associações têm em decorrência do suporte que possuem do “tráfico”, gerando falta de
legitimidade da atual Diretoria da Associação do Relicário. Esse suporte seria justamente o
reconhecimento que possuem daqueles que detêm o controle armado territorial do espaço.

Bicho, aqui a gente tenta fazer as coisas, mas não consegue. Esses caras veem de fora
já fortes, entende? Já tem o suporte do tráfico. Aí a gente fica sem força. É um
deslegitimidade só! Ninguém respeita a gente. Aí a gente tem que se aliar com quem
pode fazer alguma coisa, né? (JOSIMAR)

Ao longo da pesquisa, em conversas com demais residentes do Relicário, ficou exposta


uma percepção bem comum entre eles: a associação “não serve para nada”. Ainda que muitas
pessoas reconhecem alguns trabalhos de seus como por exemplo a manobra diária da água,
muitos afirmam, de forma bastante crítica o seguinte: “ associação não serve para nada, eles só
querem saber de pegar dinheiro e não fazem nada”. Diante deste descontentamento que
resultava em um não-reconhecimento da Associação, presidida por Josimar, um outra
organização passou a ter influência no Relicário: a Associação de Moradores da Rua D,
localizada na favela. Ouvi, recorrentemente, em campo que era a Associação de “fora”, de um
outro espaço, que era, de fato, eficiente no interior do Relicário. Nesse sentido, destaco as
palavras de Seu Pedro, que não são exceção:

Bruno, esse cara aí da associação de fora é bom, viu? Ele tem os probleminhas dele
aí, mas faz. Os outros não fazem nada. Tem que ter alguém que tem cacifa pra fazer
o que a gente precisa, consertar um cano, fazer uma obra, melhorar isso aqui. (SEU
PEDRO)

Assim, a força política e econômica da Associação e do Presidente de “fora”, a sua


legitimidade e reconhecimento diante dos moradores do Relicário tornaram-se cada vez mais
permanentes, fazendo do conjunto residencial uma extensão territorial de ação da associação
externa. Nesse sentido, os “muros” do Relicário não coincidiam com a sua representatividade
política.

125
5.1.3.2 A informalidade dos síndicos e o fim das comissões gestoras

Os síndicos e as comissões gestoras atuavam de maneira informal. Sob a perspectiva da


ordem condominial, os síndicos, ainda existentes, organizavam, minimamente, os espaços
internos dos prédios. Basicamente suas ações concentravam-se na mobilização de moradores
para a arrecadação de dinheiro, quando necessitavam realizar algum reparo nas estruturas
internas dos prédios. Muitas vezes, assumiam os custos e “tiravam do próprio bolso”, pois, nem
sempre havia o interesse, o envolvimento e a participação dos outros condôminos nos
problemas, que diziam respeito ao interesse coletivo, conforme relatou Tomé.
Dos vinte dois blocos, constatei que somente seis possuíam um morador reconhecido
pelos demais como síndico – blocos K (Moisés), L (Amós), U (Tomé), N (Madalena), H
(Mateus) e A (Josimar, Presidente da Associação de Moradores do Relicário). Quatro
permaneciam desde a primeira eleição realizada no período de formação das “comissões
gestoras” feita pelos técnicos do Trabalho Social do PAC, há pelo menos sete anos atrás. Dois
deles saíram do cargo e foram substituídos por outros moradores: Madalena que teve seu
mandato encurtado devido um conflito com um morador e Tomé que desistiu da tarefa por achar
que estava sozinho à frente das questões do prédio. Alegou falta de colaboração e participação
dos demais condôminos (histórias que relato no capítulo 4).
Desses seis síndicos, somente Madalena disse-me possuir na época, em que estava como
síndica, uma estrutura de gestão interna com conselheiros que faziam a fiscalização das ordens
de pagamento e do livro do condomínio. No restante dos dezesseis blocos as pessoas
organizavam-se para resolver problemas pontuais, como por exemplo, a troca de uma lâmpada
ou vazamento nas tubulações internas. Porém, segundo muitos moradores, diversas vezes, nada
era feito, até que uma pessoa se prontificasse, individualmente, em resolver a questão. Ao longo
da pesquisa, em todas as conversas que tive com síndicos, não identifiquei qualquer ata de
reunião ou documento que formalizasse algum encontro ou decisão de cunho coletivo.
A gestão desses blocos foi permeada por conflitos e desconfianças mútuas, entre
“condôminos” e “síndicos”. Essa foi uma questão que surgiu em todas as conversas que tive
com os síndicos. Tomé, Madalena e Mateus disseram-me que sempre havia uma acusação direta
ou implícita sobre a idoneidade de suas condutas à frente dos prédios. Acusações de desvios e
apropriação indevida dos recursos arrecadados eram frequentes. Machado-Martins (2016)
apontou situação parecida em uma experiência de moradia popular, onde os síndicos tornaram-
se figuras polêmicas, onde sempre se pairava alguma suspeita de desvio e/ou má condução da
gestão condominial. Os críticos sempre argumentavam que “o valor pago não era revertido em
126
benefício [dos demais], mas incorporado pelo síndico” (MACHADO-MARTINS, 2016, p.
207). A percepção mais geral deles e de outros moradores no Relicário era a de que “essa coisa
de síndico não deu certo”, frase comum em todas as falas. Quando perguntei sobre o porque
desse “fracasso” eles apontaram para cinco “problemas” que listo a seguir:

 A falta de interesse dos demais moradores, deixando os síndicos sobrecarregados –


aqui, não só relacionada ao interesse sobre os assuntos, mas no próprio compromisso
com a contribuição mensal da taxa condominial. Tomé contou que no seu período de
gestão a taxa chegou a ser de R$ 10,00 e mesmo assim ninguém contribuía;
 a alta expectativa dos moradores sobre a atuação individual dos síndicos, em uma
espécie de presidencialismo condominial;
 as dificuldades de conciliação entre as rotinas domésticas e as obrigações da vida
privada com as responsabilidades e tarefas do condomínio;
 a dificuldade de comunicação entre os síndicos, conselhos fiscal e os demais
moradores;
 a interferência das ordens do “tráfico” nos assuntos do condomínio.

No entanto, mesmo com todas essas questões, as pessoas que se imbuíram da prática e
da responsabilidade de gerir os problemas públicos dos blocos, e permaneceram à frente da
organização dos prédios, em uma dimensão mais coletiva da moradia, procurando adequar suas
condutas às condições impostas pelo contexto. Atuaram no limiar da lógica da ordem
condominial e da lógica da dinâmica do lugar marcadas pelas informalidades e as interferências
externas. Ao mesmo tempo em que foram conduzidos a uma aproximação com o Presidente da
Associação vizinha, estabeleciam contato com vereadores e agentes públicos para solucionar
problemas internos (como o vazamento de tubulações de esgoto na área de uso comum do
terreno). De um lado, a presença permanente dos jovens fazendo a “marcação” impedindo a
entrada de qualquer pessoa ou grupo Relicário sem prévia autorização e, de outro, a necessidade
da entrada de serviços públicos, como por exemplo, aqueles oferecidos pela COMLURB e pela
RIOLUZ. Na conciliação entre ordenamentos distintos, procuraram aproximar suas ações de
síndico ao papel da associação de moradores. Quatro deles – Amós, Tomé, Moisés e Mateus –
atuaram nas duas instâncias de representação local, ajustando suas condutas à dinâmica política
e social da favela, mas mantendo como princípio norteador a lógica do condomínio como
ordenador do espaço.

127
Desse modo, as condições materiais e simbólicas dos moradores, os arranjos políticos,
as práticas sobre espaços que observei no interior do Relicário inscrevem aquele conjunto de
prédios na mesma dinâmica de seu espaço externo, ou melhor, no mesmo ordenamento da vida
cotidiana do Complexo do Alemão. Como demonstrados nas circulações etnográficas que
realizei, certos desdobramentos da vida no Relicário expressos na forma como seus moradores
utilizam-se dos espaços privados e de uso coletivo, a forma como relacionam-se entre si,
estabelecem uma relação direta entre os dois lados do muro, entre os espaços internos e externos
ao Relicário.
Porém, além da presença do “tráfico” no interior do condomínio – tornada visível com
o controle dos “meninos da marcação” sobre as permanências e as dinâmicas internas de
circulação no interior do Relicário, bem como o papel desses grupos armados na regulação das
associações de moradores –, há também uma série de outros aspectos que parecem desconstruir,
em parte, os muros simbólicos Relicário/favela. Construções de barracos no interior do terreno,
as crianças nas disputas de pipas no céu, o futebol descalço no asfalto, a intensa circulação e
permanência de familiares, amigos e pessoas “de fora” no interior, a música alta nas biroscas
etc. formam um conjunto de “práticas espaciais” que impõem de forma categórica e operativa
à lógica da favela dentro do Relicário.
Todavia, dentre todas as práticas e mudanças que pude constatar, o que, de fato, mais
me chamou a atenção foi o processo continuo de ocupação dos espaços livres94 do terreno. Esse
era um ponto que não só conectava o Relicário ao seu entorno, como também evidenciava um
conjunto de práticas, minimamente, ordenadas no interior dos “predinhos”, mas que estavam
fora da regulação dos síndicos/associação de moradores do Relicário. Em diversas partes das
favelas do Complexo do Alemão por onde circulei a ocupação privada dos espaços livres era
algo permanente. Uma prática que marcava o Relicário na própria trajetória constitutiva do
espaço urbano do Complexo do Alemão.

5.1.4 Ocupações e o desmanche do (esperado) “condomínio fechado”

94
O termo “espaço livre” foi recorrentemente utilizado pelos meus interlocutores durante o processo de pesquisa
para representar um local “ocioso”, ou seja, sem utilização no momento da observação, mas carregado de
significados passados, presentes e desejos futuros. O termo utilizado no Relicário aproxima-se do que Meneguello
(2009) denominou como “vazios urbanos”: prédios abandonados, ruínas de antigas construções industriais, terras
abandonadas etc. que carregam significados compartilhados por uma certa memória urbana construída socialmente
ao longo do tempo.

128
O conjunto Relicário foi construído sobre um terreno de grande extensão onde os vinte
e dois blocos de apartamentos estão conjugados com grandes áreas livres, sejam eles
construídos (no caso dos galpões) ou não-construídos (os espaços livres), mantidos no projeto
arquitetônico como espaços de uso comum sem definição clara sobre suas destinações (com
exceção dos parquinhos infantis e da academia/espaços de ginástica). Ao longo da pesquisa,
ouvi diversas vezes de meus interlocutores que um espaço sem uso não poderia “ficar parado”.
Era sempre preciso “fazer alguma coisa com ele”. Paulo mesmo, toda vez que parávamos para
conversar sobre alguma possibilidade de trabalho e geração de renda – ao longo da pesquisa,
Paulo esteve desempregado ou sem trabalho definido inúmeras vezes – dizia que gostaria de
pegar um galpão vazio e “montar um negócio” ou “fazer um projetinho para o pessoal mais
carente”. Tal perspectiva sobre os espaços livres tornou-se uma questão central nos processos
relacionais que formam o cotidiano do Relicário, pois passaram a expor expectativas e
representações muito dissonantes entre os atores residentes desse conjunto residencial sobre os
mesmos locais. Consequentemente, sobre seus usos e fins.
Em um contínuo processo de desmanche sobre as expectativas de formação de um
enclave, com o passar do tempo, diversas partes desse terreno passaram a ser ocupadas e
utilizadas de maneira privada, com construções e instalações comerciais, gerando uma série de
efeitos nas relações entre os moradores e sobre os arranjos internos dentro do Relicário. Os
espaços livres passaram a ser objeto de disputas não só pelo seu valor de uso, mas também
como meio de ordenação e representação da vida social do lugar. Um galpão vazio utilizado
pela Associação de Moradores representava para seus membros a possibilidade de gerar
recursos próprios em nome de uma organização coletiva e compartilhada do espaço entre todos
os moradores. Esse mesmo galpão, quando utilizado para fins privados por uma pastora
evangélica, representava a apropriação indevida do espaço coletivo, a permanência da
“bagunça” e da interferência do tráfico sobre questões internas95. Ter barracos construídos no
interior do terreno, acreditavam alguns moradores, desvalorizariam seus imóveis. Amós,
morador e síndico do Bloco L disse-me em uma ocasião: “rapaz, esse negócio aí desses barracos
não tá fácil não. Daqui a pouco esse lugar aqui não tá valendo nada! Meu apartamento, se um
dia eu quiser sair daqui, não vou conseguir nada nele.” Por outro lado, como afirmou Seu Pedro,
um “barzinho” era a possibilidade de fazer uma “putada boa” (festa), evidenciando a busca por
momentos de lazer e diversão.

95
Como mostrarei no capítulo 5, o “tráfico” regulou a disputa sobre o galpão, forçando a destinação desse para o
uso da pastora.
129
Esses espaços vazios de uso comum possuem um caráter público, pois, como mencionei
anteriormente, as vias internas do terreno caracterizam-se como logradouros públicos. Assim,
ao mesmo tempo em que configuram-se como um lugar de interação e das relações, e que em
última instância, possibilitam o desenvolvimento e a consolidação de uma certa ideia de vida
comunitária – aqui, no sentido da construção, de apropriação e de compartilhamento de valores
e crenças comuns que tornam indivíduos pertencentes a um determinado grupo social – é
também um lugar das disputas, de embates, de acordos, “da ação política ou, ao menos, da
possibilidade da ação política” (SERPA, 2007, p. 9). Desse modo, esses espaços são tanto
objeto de desejo, quanto uma esfera de atuação de atores que conflitam a todo instante entre a
dimensão pública e a dimensão privada de suas necessidades e interesses sobre eles. Assim, os
espaços livres de uso comum, iminentemente públicos, também podem ser entendidos como
uma espécie de “arena pública” (CEFAI, 2012) na medida em que formam-se como esfera de
atuação dinâmica dos atores, um “lugar de combates e cena de realizações (performances) dos
atores empiricamente fundado”. (Idem, p. 3).
A maneira pela qual os espaços livres de uso comum passaram a organizar-se no
Relicário tornou-se central para esta tese: as ocupações e construções improvisadas mostravam-
se, em parte, como reflexos das práticas espaciais de um grupo social. Além disso, essas
organizações expunham um “modo de vida” ou uma “maneira de agir” relacionados,
diretamente, com os meios disponíveis de produção e reprodução dos cotidianos dos moradores
do Complexo do Alemão, marcados, historicamente, pelas condições impostas pelas
desigualdades nos acessos aos bens e aos serviços que estruturam a vida nas cidade;
desigualdades sociais e econômicas, características de sociedades de capitalismo tardio. Em A
Ideologia Alemã (1996) Marx apresenta sua perspectiva sobre o que entende sobre “modo de
vida” e, que, em grande medida, ajuda na reflexão que me proponho a fazer:

[...] o modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes
de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de reproduzir.
Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a
saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, muito mais,
de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de
manifestar sua vida, determinado modo de vida [grifo nosso] dos mesmos. Tal
como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são
coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com
o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das
condições materiais de sua produção. (MARX, 1996, p. 27, 28).

130
Se tomarmos os processos de ocupação sob uma perspectiva histórica – como trabalhei
no capítulo 1 – poderemos verificar que esse “modo de vida” carrega as marcas das condições
materiais e simbólicas de um determinado grupo social que sobrevive a lógica excludente das
políticas de desenvolvimento e reformas urbanas, principalmente, a lógica relacionada às
intervenções do poder público sobre os espaços de moradia de trabalhadores e grupos sociais
em condição de pobreza. Cabe relembrar que o perfil da maior parte das famílias que mudaram-
se para esse e para os demais conjuntos residenciais, construídos pelo PAC-Favelas, foi formada
por pessoas em condição de desabrigo domiciliar, estando, algumas delas, em condição de
pobreza extrema96. Nesse sentido, proponho interpretar essas práticas de ocupação dos espaços
como uma forma de “sobre-vivência”, como diriam Facina (2014) e Lopes, Silva e Facina
(2018), inspirados em Jacques Derrida (1979). Segundo esses autores, a sobrevivência que não
sugere uma vida insuficiente ou inferior (uma subvida), mas, pelo contrário, refere-se às
pessoas, que, por lidarem, cotidianamente, com condições precárias (e, muitas vezes, violentas),
vão além da própria dicotomia vida/morte, tão bem construída no imaginário das cidades
modernas. Nesse sentido, Facina (2014), ao observar o cotidiano nas favelas, mais
especificamente, o Complexo do Alemão, destaca que a sobrevivência relaciona-se com
“padrões de interação sociais e de sociabilidade específicos, muitas vezes erigidos sob o signo
da resistência” (Op.cit, p. 58). Nesse sentido, a sobrevivência implicaria aos agentes,
exatamente, o contrário da perspectiva imediatista: uma capacidade aguda de análise de
contexto e cálculo prospectivo para a busca de soluções para problemas e atendimento de
necessidades em situações adversas.
Como veremos mais a frente no capítulo 5, a disposição para ocupar esteve também
estava relacionada com uma série de reivindicações locais que, historicamente, não foram
atendidas satisfatoriamente pelas ações públicas de governos e/ou entidades privadas. De
maneira muitas vezes improvisada, a busca por atendimento dessas necessidades decorreu da

96
A pobreza extrema pode ser entendida como o alto grau de precariedade de acesso a uma série de itens
fundamentais para existência de uma pessoa em qualquer sociedade. Itens como água potável, saneamento,
alimento, moradia e renda são alguns dos itens que compõem o conjunto de bens básicos necessários para o
estabelecimento de uma vida digna. Nas últimas décadas as agências internacionais, como Banco Mundial, a ONU-
Habitat, FAO entre outros têm tido um papel relevante na definição de metas a serem atingidas por nações em
desenvolvimento, bem como na formulação de indicadores que auxiliam no monitoramento das ações de correção
da pobreza. Indicadores como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que trabalha com dados indicadores
de escolaridade, renda e longevidade, e o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade com base na renda, estão
entre os instrumentos adotados e usados por diversos setores governamentais para o acompanhamento das metas
especificadas.

131
própria ação da população local, principalmente, quando relacionadas a busca por fontes de
geração de renda, por lugar de moradia, por sensação de segurança e por espaços de lazer.
Além disso, tais ocupações reforçavam também a indicação de que havia uma forma
de organização do espaço “por fora” que tanto incorporava a favela aos “predinhos”, quanto
inseria o “condomínio” na favela. Ao mesmo tempo em que as necessidades e os desejos de
seus moradores reconfiguravam aqueles espaços condominiais – outrora planejados por
arquitetos e urbanistas contratados, com parâmetros de uma ordem da moradia distante e
estranhas àquelas pessoas –, revelavam também um tipo de regulação baseada em ordens postas
e compartilhadas entre os “de dentro” e os “de fora”.
Cada vez que chegava mais perto do limite entre os espaços de dentro e os espaços de
fora do Relicário, percebia como suas fronteiras eram porosas e complexas. Por exemplo, ainda
que a ordem dessas ocupações passasse pelo “tráfico”, conforme fica evidente nas seguintes
palavras de Paulo – “quem decide são eles, é ele. Tem gente que gosta, tem gente que não gosta,
mas é assim, a regra é essa. Tem que respeitar” –, o dia a dia dos moradores, dentro do conjunto,
não estava tão marcado pela tensão permanente de conflitos armados e de tiroteios, como
ocorrem em outras áreas do bairro, principalmente, nas favelas localizadas no interior do
Complexo do Alemão, próximo a Serra da Misericórdia.
Por mais que as regulações internas tivessem o peso das decisões do tráfico local – como
veremos mais a frente –, percebia, na rotina dos moradores, um certo ar de “tranquilidade”.
Como dizia Josué, “Aqui é mais calmo, mais tranquilo, tá ligado? Não é essas mil maravilhas,
mas é muito melhor que lá pra cima. Lá o bicho pega”. De fato, pouquíssimas vezes presenciei
a circulação de policiais dentro do Relicário e nenhuma troca de tiros. No entanto, aquela
“tranquilidade” que marcava aparentemente a sociabilidade no Relicário, tornava veladas as
tensas relações entre moradores, tráfico local, polícia e agentes políticos, sob um regime misto
de silenciamentos e “lutas” por ressignificação das identidades e das representações tanto
pessoais, quanto do espaço vivido.

132
5.1.5 Divergências e o ajustamento das ordens

As interpretações sobre as condutas internas e as ocupações dos espaços livres foram


internamente divergentes. A crítica ou apoio estavam relacionadas com o que entendiam como
“o modo de vida da favela” no Relicário. Críticos às ocupações e as construções, mas também
a presença de grupos armados no Relicário, o grupo de síndicos e a Associação de Moradores
do Conjunto Residencial Relicário passaram a interpretar esses aspectos como a continuidade
da favela dentro do “condomínio” ou, poderíamos dizer com Machado da Silva (2002) “a
continuidade do problema favela” em suas vidas.
Para eles, as ocupações dos espaços livres de maneira individual – ou seja, com um
caráter privado do espaço comum – passaram a representar a “favelização dos condomínios”
em seu sentido mais negativo, associando moralmente, em seus discursos, os espaços de origem
(favela) a um tipo de comportamento reprovável e incompatível com o novo espaço
(condomínio). Expressões do tipo “o morador sai da favela, mas a favela não sai do morador”
ou “essa cultura da favela tá entranhada nas pessoas” passaram a subsidiar as falas críticas
daqueles que viram no “condomínio” as possibilidades de se construir novas rotinas de vida
que teriam princípios de ordenamento distintos aos da favela. Aqui a perspectiva da legalização
e formalização de diversas instâncias da vida pautaram a crítica ao que entenderam como a
continuidade da “bagunça”. “Um condomínio não pode ter um barraco no meio do terreno,
mano. Vira bagunça!”, dizia-me Josimar, síndico do Bloco A e Presidente da Associação de
Moradores do Relicário. Além disso, percebiam que o movimento de ocupação inseria,
definitivamente, o Relicário no ordenamento da favela, aqui associada as imposições e as
regulações do tráfico sobre o espaço interno. Logo, tais práticas de ocupação foram
interpretadas como algo em profunda discordância com a proposta de moradia apresentada ao
longo da implementação do PAC-Favelas, no Complexo do Alemão.
Porém, sob o ponto de vista daqueles que ocupavam e mantinham seus barracos para
gerar renda ou simplesmente criar um espaço de lazer e encontro entre vizinhos, amigos e
clientes, “era assim mesmo”, como afirmava, Seu Pedro. Para ele, “se tá parado e as pessoas
precisam, tem que ocupar e construir”. No entanto, de fato, os moradores que queriam construir
submetiam-se as ordens impostas pelo tráfico. A principal delas era antes de construir pedir a
autorização ao “patrão”, ou seja, ao chefe da boca. Tal perspectiva da ação reforçava a crítica
dos opositores, que estabeleciam a relação direta entre tráfico e barracos, tudo o que fugia ao
ordenamento do tipo condominial, vislumbrado como mecanismo de mudança.

133
Desse modo, todas as interpretações e ações divergentes sobre o espaço de vivência do
Relicário relacionavam-se com as diferentes expectativas, bem como com as distintas
condições da vida cotidiana das pessoas em sua nova moradia. Enquanto, por um lado, havia
um grupo que vislumbrava o Relicário como “condomínio fechado” com a justificativa de se
instaurar um outro tipo de ordenamento interno do espaço, outros moradores reiteravam a lógica
da vida no interior das favelas, condicionados pelas suas necessidades e desejos históricos no
cotidiano da vida na cidade.
Diante de todo esse mosaico de significados em disputa, ficou evidente, que a
expectativa sobre um possível enclave foi só um projeto externo, que gerou expectativas, mas
que se desmanchou por completo. Consequentemente, o que ficou como resultado para análise
foram os desdobramentos da “derrota” do “condomínio fechado”. No entanto, a intenção aqui
não é fazer uma defesa ou apontar para uma suposta “vitória” da favela sobre o “condomínio”,
mas, antes de tudo, evidenciar a “diferenciação e a coexistência de duas ordens legítimas
disputando âmbitos da vida social” como aponta Machado da Silva (2016 [1976], p. 179) e que
vão se ajustando à medida que as necessidades e as possibilidades colocam-se para todos. O
resultado dessa correlação de forças no cotidiano do conjunto Relicário foi, justamente, a
configuração de coexistência de ordens que passou a orientar o modus operandi da rotina de
organização interna do conjunto residencial.
Desse modo, o que eu defendo aqui é que esse conjunto de prédios pensados e
formulados de fora para dentro – e aqui não só o Relicário, mas muito provavelmente em outros
conjuntos de prédios erguidos pelo PAC/PMCMV – vem consolidando-se, ao longo do tempo,
como um novo espaço de tensão e disputas entre pessoas e grupos com visões e expectativas
divergentes sobre a organização da vida cotidiana. Consequentemente, os ordenamentos
distintos e concorrentes – o condominial e o da favela –, passaram a se estabelecer de maneira
negociada, amparando expectativas e desejos distintos em um “regime de ordenamentos
ajustados”. A moradia dos conjuntos residenciais do PAC construídos na favela passa a
materializar e simbolizar o espaço de ruptura de uma suposta ideia de unidade de ordenação
social baseada exclusivamente na legitimidade da ordem institucional-legal da vida cotidiana,
como indicara Machado da Silva em alguns de seus trabalhos (2016 [1976]; [2004a]; [2004b]).
Logo, as expectativas de uma institucionalidade condominial e as rotinas das favelas passam a
coexistir em arranjos de disputas e negociações permanentes materializando e simbolizando o
novo modo de vida no espaço urbano.

134
Para esse momento, o que eu busco evidenciar é a força operativa das rotinas da favela
sobre os conjuntos residenciais do PAC, esses apresentados outrora como meio para a ”nova
vida”, a partir de um conjunto de procedimentos e instrumentos formulados de fora para dentro,
para a ressignificação da vida simbólica e material. Considerar o ordenamento da favela dentro
do Relicário implica tanto o reconhecimento da relevância dos grupos de poder armados nos
processos de decisão e de regulações territoriais, mas também disso envolve reconhecer práticas
rotineiras que, apesar de heterogêneas e complexas, podem ser reunidas naquilo que Cavalcanti
chamou de “favela consolidada” (2007; 2009)
Para a autora, ao longo do tempo, uma série de intervenções públicas de serviços e/ou
de obras de infraestrututra e a própria ação das pessoas que nesses espaços viviam – como por
meio dos mutirões – possibilitaram a melhoria das condições de vida nesses espaços na cidade.
Com certa estabilização da moradia, essas ações incidiram, significativamente, sobre a maneira
como seus residentes passaram a projetar e planejar o seu futuro. O efeito dessas interferências
e das ações públicas – fossem para levar água encanada, para construir casas, para levar luz
elétrica e regularizar os lotes de terra informais – fez com que a vida se mantivesse menos
instável no lugar (mesmo que consideremos os “desastres naturais”97, como os deslizamentos
provocados pelas chuvas, e ações de remoção recorrentes nas favelas até os dias atuais). Há
relatos de pessoas que revelam a permanência de moradia nos morros e que residem nas favelas
do Complexo do Alemão, há dezenas de anos. Com mais possibilidades de permanência da vida
nas favelas, configurou-se ao longo do tempo um conjunto de práticas que consolidaram um
modo de vida nessas partes da cidade.
Com as transformações e intervenções urbanísticas nas favelas, a sociabilidade que se
forma com as práticas e os hábitos compartilhados entre vizinhos, a relações de solidariedade
entre pessoas que vivem próximas umas das outras, os modos como utilizam-se dos espaços
públicos, também passaram por mudanças. Antes as favelas estavam fortemente associadas a
provisoriedade das casas de estuque ou barracos de madeira, mas, atualmente, estão ligadas
com a solidez das casas de alvenaria, em permanente processo de expansão física e rearranjos
socioespaciais. O direito sobre a construção, o uso e a propriedade das lajes, por exemplo, tem
sido tema de debate nos encontros sobre regularização fundiária no estado do Rio98.

97
O debate em torno da ideia de “desastre natural” está colocado no capítulo 1.
98
No dia 25 de outubro de 2017, na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, aconteceu o seminário “Mudanças
na Lei Federal de Regularização Fundiária e os impactos para o Estado do Rio de Janeiro” organizado pelo Instituto
de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ), cujo o objetivo foi debater as mudanças no marco
legal que altera os procedimentos de regularização fundiária urbana e rural – a lei 13.465/2017 em substituição a
lei n.º 11.977/2009. Cabe destacar que as principais críticas colocadas pelos movimentos sociais de luta pela
135
Como consequência, com a consolidação das favelas, as dualidades da vida urbana – a
ilegalidade e a legalidade, a informalidade e a formalidade, a provisoriedade e a permanência,
por exemplo – vão relacionar-se no limiar das fronteiras que as separam, tornando tenso e
problemático o discurso que delimita o asfalto e a favela na cidade. Assim, a composição
espacial que vai se materializar e se reproduzir ao longo do tempo será a da coexistência de
diferentes ordens de relações e estruturas sociais. Nesse processo de constituição de um novo
espaço de moradia na cidade como o conjunto Relicário, o que se configurou como resultado
possível foram as “múltiplas espacialidades coexistentes”, ou seja, “uma relação de
acomodação e de coexistência entre ordens sociais ou princípios de interação distintos [e que]
nos leva a uma indagação sobre a relação entre essas múltiplas espacialidades” (Cavalcanti,
2008, p. 38-39). Para exemplificar tal movimento de coexistência, cabe lembrar a
funcionalidade de órgãos públicos dentro do terreno do Relicário, como as Secretarias de Estado
de Ciência e Tecnologia (por meio da FAETEC/CVTs), de Assistência Social e Direitos
Humanos (por meio do Centro de Referência da Juventude) e de outras organizações
supralocais (LEEDS e LEEDS, 1978) como a ONG Afroreggae. Todas compartilhando e
ajustando suas condutas e expectativas sobre um espaço em permanente disputa.
Assim, diante desse regime de ordenamentos ajustados, algumas questões persistiram e
fomentaram a continuidade do trabalho etnográfico e de escutas aprofundadas: como ocorrem
essas ocupações? Partindo da existência de controle e regulação dos espaços como acontecem
as negociações e os ajustamentos? Quais são os principais desdobramentos nas relações entre
os atores e a formação dos espaços internos? Outras perguntas de caráter mais amplo também
se revelaram diante daquele cenário de grandes mudanças, como: quais são os significados que
os moradores constroem sobre suas realidades atuais? Quais são as representações sobre o
espaço de moradia e como interferem na dinâmica interna e na relação com todo do bairro? O
que esperam dessa “nova realidade” em permanente construção? Questões imbricadas à própria
história de formação daquele espaço da cidade e as trajetórias das pessoas que em um
determinado momento tiveram que modificar da noite para o dia seu lugar de vivência. Os

moradia presentes foram as menor ênfase do caráter público e mais do interesse privado nas alterações sobre a
regularização fundiária. Na visão desses movimentos privilegia-se a partir desse momento a propriedade individual
sobre qualquer outra possibilidade de regularização, como títulos de propriedade coletiva. Como resposta, os
representantes governamentais e da iniciativa privada presentes ressaltaram a maior flexibilidade e rapidez para a
concessão dos títulos de propriedade individual, principalmente nas áreas de favela, e para situações como o de
usufruto de lajes. Os críticos afirmam que essa flexibilização pode gerar maior grau de vulnerabilidade dos novos
proprietários tendo em vista a especulação imobiliária que pode se impor como mecanismo de “remoções brancas”
e gentrificação, principalmente em favelas localizadas em áreas valorizadas da cidade, como a zona sul do Rio de
Janeiro.
136
próximos capítulos vão buscar responder tais questões aprofundando a análise a partir das
próprias narrativas e práticas cotidianas de seus moradores.

137
Figura 6 – Sociabilidade nos “predinhos”

138
6 REPRESENTAÇÕES DA MORADIA: O COTIDIANO NOS “PREDINHOS”

[...] nunca as histórias individuais


foram tão explicitamente referidas
pelas histórias coletivas, mas nunca,
também, os pontos de identificação
foram tão flutuantes.

(Não-Lugares - Marc Augé)

Como exposto na apresentação das questões ético-metodológicas, as trajetórias e


narrativas aqui trabalhadas remontam poderosas histórias pessoais no tempo e no espaço
urbanos. Principalmente, a partir dos desdobramentos do PAC-Favelas na região, seus
processos de participação e aquisição dos apartamentos essas histórias ganham significados de
luta, de astúcia e de sobrevivência. Todas as falas remontam expectativas e frustrações, dores e
realizações, críticas e contentamentos que nasceram como efeitos das rotinas vividas, não só
dentro do Relicário, mas no próprio bairro do Complexo do Alemão.
As “trajetórias” que trabalho nesse capítulo são contadas e analisadas a partir da
perspectiva de Michel de Certeau (2008) pensando-as como um “movimento, mas [que]
resultam ainda de uma projeção sobre um plano, de uma redução [...] uma transcrição”. Em
consonância com o autor, trajetórias podem se entendidas como uma “série temporalmente
irreversível”, meio capaz de expor as táticas empregadas pelos agentes “mais fracos” frente as
investidas “estratégicas” dos poderes constituídos, no caso aqui entendendo-as como o Estado
e o tráfico (esse em sua dimensão mais abrangente, territorial) (CERTEAU, 2008, p. 46).
Com o objetivo de aprofundar as questões já apresentadas no capítulo anterior (ver p.
130), dando ênfase nas falas dos moradores, compartilho aqui quatro narrativas sobre trajetórias
de vida99 que mostram a maneira como esses moradores interpretam suas histórias até a chegada
ao Relicário com a profundidade, a complexidade e a fragmentação características de pessoas
que vivem a intensidade das incertezas e das promessas (políticas e divinas) cotidianas. Sob
uma teia de interpretações divergentes e disputas narrativas que caracterizam o morar do
Relicário, esses quatro moradores contam suas histórias fornecendo um material valioso para a

99
Cabe informar ao leitor que esse capítulo terá quatro subtítulos referenciando um agente (morador) trabalhado.
Em trechos em que suas falas são recortadas e explicitadas não farei uma menção direta com seus nomes ao final
da citação. Isso somente ocorrerá quando houver mais de interlocutor na conversa, como ocorre no item 4.4 desse
capítulo.
139
reflexão sobre o cotidiano da moradia nesse conjunto residencial erguido pelo PAC. Suas
narrativas expõem com mais clareza e detalhes a materialidade das experiências pessoais para
os processos organizacionais, as relações sociais e os arranjos políticos no interior do Relicário
discutidos até aqui, bem como suas perspectivas individuais sobre a “nova vida” que se constrói
cotidianamente no bairro. Cabe ressaltar que o material aqui apresentado é resultado, não só
das entrevistas agendadas, mas de conversas100 que estabelecemos nas diversas circulações e
permanência dentro do Relicário que fiz ao longo da pesquisa.
Ao final das quatro narrativas, faço algumas considerações sobre como as
representações sobre o espaço se articulam entre si, e denotam um tipo de percepção
fragmentada a partir das diferentes instâncias, experiências e expectativas sobre a “nova vida”
dentro do conjunto Relicário.

6.1 “Nem muito bom, mas melhorada”

Como já mencionado, Dandara foi umas das primeiras pessoas que reencontrei ao
retornar ao conjunto Relicário. Conheci-a no período em que estive no campo como gestor do
PAC. Desde o início, sua história chamou-me a atenção. Negra, 19 anos, solteira, na época mãe
de um menino de 5 anos e grávida de 7 meses, sem trabalho fixo. Como centenas de pessoas no
Complexo do Alemão, Dandara viu-se desabrigada da noite para o dia, após as fortes chuvas
que fechavam o verão de 2010. No entanto, o caso de Dandara chegou aos corredores da
Secretaria de Estado de Assistência Social, na época, responsável pelo acompanhamento e o
cadastro das famílias desabrigadas. Técnicos e gestores da assistência relatavam incrédulos
sobre uma menina grávida, “com o maior barrigão”, órfã, que andava pelo “canteiro social” e
que havia perdido tudo, inclusive todos os seus documentos. Após o desabamento de sua casa,
Dandara não possuía qualquer identificação que comprovasse seus dados pessoais e,
consequentemente, a impediam de ser incluída formalmente nas listagens para um possível
sorteio de apartamentos do PAC. Dandara, naquele momento, encontrava-se em uma situação
extremamente adversa.
Meu encontro com ela ocorreu nos trâmites burocráticos do programa federal. Não havia
um momento sequer que eu passasse e ela não me chamasse:
Bruno, Bruno, e aí, tem alguma notícia? Já sabe se a Dona Ruth (coordenadora do
PAC) já viu o meu caso? Não posso ficar sem casa não, Bruno. Olha minha situação!
Tô sem nada, sem ter onde ficar. Me dá essa força aí. Não esquece de mim não.

100
Cabe recordar que a ideia de “conversa” na qual eu trabalho foi apresentada no item das metodologias sobre as
entrevistas.
140
Dentre muitas mulheres com características muito próximas as dela – cor, idade,
escolaridade –, Dandara destacava-se pela sua presença sempre firme diante dos gestores,
técnicos e políticos locais e externos. Estava sempre a postos para reivindicar algum direito ou
pendência de promessas feitas nos arredores dos canteiros de obra. Mobilizava outras pessoas
para pressionar a EMOP pela assiduidade do pagamento do “Aluguel Social” e os técnicos do
PAC para acompanharem o processo de cadastramento dos nomes que receberiam os
apartamentos. Com uma capacidade ímpar para mobilizar, circulava principalmente entre as
mulheres, grupo majoritário na atuação da arena do programa.
Dandara morava no alto de um morro do Complexo do Alemão. Com seu pai vindo do
interior de Minas Gerais, e sua mãe do norte do estado do Rio de Janeiro, viveu grande parte
da sua vida em uma favela considerada por muitos moradores do Complexo do Alemão como
uma das “mais pobrezinhas da região”, conhecida como Pedra do Sapo. Segundo moradores do
Relicário, cerca de “setenta por cento (70%) dos desabrigados vieram de lá”. Ainda hoje, essa
favela possui características físicas que remetem a uma pequena comunidade rural. Com casas
mais espaçadas no topo do morro, ruas sem qualquer tipo de pavimentação, onde animais
domésticos como cães, gatos, galinhas e cavalos circulam e compartilham os espaços com as
pessoas, o Pedra do Sapo guarda um pouco das características dos bairros suburbanos antes do
processo de industrialização e planificação. Alguns moradores criam porcos e fazem de caixas
d’água tonéis criadouros de peixes e camarão. Muitas árvores compõem aquele cenário de
interior no meio de um dos bairros mais populosos do Rio de Janeiro.
Há relatos, não só de Dandara, mas de outros entrevistados, oriundos da favela, de uso
rotineiro de água de nascente nesses locais (das “minas d’água”, como chamam), utilizada tanto
para o cozimento de alimentos, quanto para o banho. No entanto, ao mesmo tempo em que a
disponibilidade dos recursos naturais parece ser mais abundante, o rural mistura-se com
vestígios de um tipo de urbanidade, visivelmente, peculiar nessas áreas: um cenário de pobreza
(com indicações de pobreza extrema) com traços de desenvolvimento econômico rarefeito e
relativamente segregado do restante da cidade (que se avista do alto morro). Todas as casas são
feitas de alvenaria (tijolos), veículos automotivos (carros, kombis e motos) circulam pelo local
e alguns espaços possuem acúmulo de lixo, que serve de ponto para alimentação dos animais
que circulam pelas redondezas. Muitas crianças brincam nesses espaços abertos. Dandara
nasceu e cresceu na Pedra do Sapo: “- eu brincava de tudo, Bruno, pipa, peão, bola de gude [...]
ainda corria atrás dos moleques. Não dava mole pra ninguém não!”.

141
A trajetória de Dandara até o Conjunto Relicário foi marcada por passagens dramáticas.
Do momento em que ficou desabrigada ao recebimento das chaves, Dandara passou por lugares
onde sua moradia foi provisória e improvisada. Transitava entre a casa da irmã e o centro
esportivo disponibilizado por representantes do governo e lideranças locais para receber as
pessoas desabrigadas: a Vila Olímpica. Dessa experiência expôs-me as precariedades dos
abrigos provisórios, as relações de conflito e negociação com as pessoas com quem dividiu o
mesmo espaço e as táticas que utilizou para sobreviver ao caos que se instalou em sua vida e na
de seus filhos. “Nunca passei tanta humilhação na minha vida, Bruno, comi o pão que o diabo
cuspiu, amassou e pisou”, relatou-me no dia em que me concedeu sua entrevista, que aconteceu
somente dois anos após nosso reencontro no Relicário.
Logo no início, Dandara teve muito receio em conversar comigo. Ao mesmo tempo em
que, aproximava-se de mim como alguém mais íntimo, relutava em me conceder qualquer tipo
entrevista mais formal, muito menos gravada. Em nenhum momento, quis evitar ou fugir de um
encontro, mas, por diversos momentos, alegou não ser a pessoa mais indicada para conversar
comigo sobre “certos assuntos”. Em uma ocasião afirmou por telefone: “Bruno, eu não quero
saber de entrevista não. Aqui na favela, quem fala muito amanhece com a boca cheia de
formiga. Se for para fazer isso é melhor a gente não se encontrar mais não”. Mas, sempre que
eu chegava no Relicário para fazer minhas “anotações etnográficas”, ficava cada vez mais
evidente que ela comporia uma boa parte dessas histórias. Como Dandara quase sempre se
encontrava na entrada do Relicário no horário em que eu chegava – por volta das dez horas da
manhã –, sentada nos bancos de cimento na companhia de outros jovens do conjunto, nossos
encontros tornaram-se inevitáveis. Com o tempo e os encontros mais frequentes, nossa relação
passou a se estabelecer de maneira muito menos formal e sob maior confiança mútua.
Uma questão que sempre surgiu em nossas conversas foi a sua dificuldade para conseguir
um emprego, ou mesmo um trabalho esporádico informal. No dia da entrevista, logo no início,
Dandara relembrou as condições em que se encontrava quando começou a trabalhar, ainda menor
de idade, guardando carro. Em seguida, com a primeira gravidez, aos 13 anos e a morte da sua mãe,
quando seu filho ainda tinha seis meses, contou que começou a trabalhar em casa de família. Sob
precárias condições materiais e relações de exploração que a impuseram em rotineiras situações de
humilhação, Dandara diz que “foi aprender a vida”.

[...] já trabalhei guardando carro quando era de menor, já trabalhe [...] quando eu fiz 13
anos eu engravidei do meu filho, ai quando ele fez seis meses minha mãe morreu, aí fui
aprender a vida, porque eu fui trabalhar com a Dayse. Ela dava comida fresca pro Valente
que era o cachorro dela e queria eu comesse a comida da jantar do dia anterior. Tinha dia
142
que eu falava: tranquilo Dayse, não quero nem almoçar. Sabe por quê? Porque eu sabia
que a minha casa era num barraco que quando eu chegava lá, no mínimo eu ia comer uma
comida decente. Dayse era minha patroa. Ela não me dava dinheiro não, ela só comprava
as coisas pro meu filho: leite, fralda, maizena, Danone [...] Só a casa dela tinha seis
banheiros no IAPI na Penha. Pra tu vê, a casa era tão grande que ela fez uma república.
Tinha dia que eu sentava e dormia sentada. E ela ainda tinha um sacolão que ela ainda
achava que eu tinha que limpar e lavar o sacolão dela. Três anos sem carteira assinada
porque eu precisava, acima de tudo, criar meu filho. Eu precisava sobreviver.

Com a gravidez na adolescência e a morte da mãe em um momento de grande


dependência, Dandara entrou precocemente na vida adulta. Em sua fala, o termo “aprender a
vida” ganha o sentido de descortinar certa realidade com a tomada de consciência de uma vida
marcada por relações de profunda desigualdade socioeconômica e, possivelmente, preconceitos
de toda ordem possível. Aqui, novamente a ideia de sobrevivência, já apontada no Capitulo 3
(p.52) como uma categoria boa para pensar a forma como o cotidiano de algumas pessoas na
favelas é constituído, aparece como um significado central na construção da narrativa de
Dandara. Vale lembrar, como afirma Silva (2012, p.60) que a “a sobrevivência, sendo um
excesso, constitui no tempo e no espaço uma fresta, a fratura que os sujeitos subalternos
costumeiramente encontram para persistir”. Nesse sentido, entendo que a narrativa de Dandara
carrega toda força estratégica daquelas que sobrevivem. Trata-se de uma epopeia de
persistência e resistência até a sua chegada ao Relicário.
Dandara relata os momentos que antecederam o desabamento de sua casa e como
procedeu logo após o ocorrido em uma verdadeira saga coletiva:

Eu tava em casa, primeiro eu tava na escada, eu a Bianquinha, o Betinho, o Moisés e


o Jonathan, o primo do Moisés. Aí começou a relampiar muito, muito, muito... ventar,
ventar, ventar, sete horas da noite, começou a ventar, ventar, ventar... quando deu dez
horas da noite a gente na escada chuva caiu, mas caiu mesmo, aquela chuva de
impacto de abril, e o vento fazia assim: vruuuuummm... a gente teve que se segurar.
Aí cessou um pouco, fomos pra casa. Quando deu 1h da manhã deu o mesmo vento e
a chuva. Eu tava bêbada de sono, eu falei assim: eu dormi que não bateu na casa não.
Olha quando eu fechei o olho Bruno, escutei assim ó: pá, pá! Alguma coisa falou
assim: sai! sai! Eu tava de regata e de calcinha. Eu saí. Quando eu saí veio a casa da
Paula por cima da minha, casa da Taninha pegando... levando tudo, e o paredão de
terra já entrou na casa da Denise, que ficou no abrigo, veio caindo as casinhas, pra tu
vê, o botijão da Paula foi parar na casa da Aninha que é muito mais abaixo da nossa,
a da gente é lá em cima a dela é lá em baixo, a casa da Denise era a últimas das últimas,
o botijão da menina foi parar dentro da casa. E detalhe, eu pensando que a casa da
minha irmã tinha caído, eu nem pensei, cheguei e fui de fiação ligada eu fui... ô Bruno,
eu entrava na lama, a lama afundava até aqui em mim (marcando altura da cintura).
Pra mim poder atravessar pra casa da minha irmã, eu grávida da neném já, com três
meses, quatro meses pra cinco meses que eu tava, minha barriga já tava grande. A
lama entrava aqui ó, acima do meu joelho, aí eu consegui atravessar, aí só tinha
estourado a parede da minha irmã, aí eu dormi na casa da Vera, aí no dia seguinte todo
mundo foi pro PAC, ficou no PAC o dia todo [...] Nessa noite, cada um arrumou um
canto pra se abrigar porque era uma e meia da manhã, aí quando foi seis horas da
manhã todo mundo já levantou e começou. Fomos todo mundo pro PAC, sete horas
143
da manhã tava todo mundo no PAC já. Todo mundo junto. Já veio a equipe do PAC
todinha, todo mundo andando... aonde a equipe ia, todo mundo ia atrás. Parecia um
formigueiro em cima deles!! Era mulheres, homens, crianças, idosos, todo mundo
porque prejudicou mais de setenta pessoas só num dia! Foi ruim porque depois
daquelas setenta pessoas só foi aparecendo mais problema, mais problema, mais
problema, mais problema, mais problema e assim foi. Aí foi nesse mesmo dia de noite,
aí o Zé Fuinha [vereador do bairro] falou assim: agora eu quero ver quem perdeu tudo
e quem não perdeu mesmo. Então, vamos abrigar você na Vila Olímpica da
prefeitura. Eu falei: é só me dar o meu colchão que eu tô indo deitar lá!

As entonações que marcam essa passagem em sua narrativa alternam-se entre a


incredulidade dos fatos e a perseverança em torno da solução daquela situação. Evidencia a
capacidade das pessoas, mesmo, sob as situações mais calamitosas, de se reerguerem e
ressignificarem o momento em que vivenciam suas experiências traumáticas. Lembro-me na
época do PAC de ter observado diversas vezes Dandara andando de um lado para o outro, com
sua gestação chegando ao final, no meio de grandes aglomerados de pessoas que buscavam
respostas nos técnicos do Trabalho Social sobre aconteceria a partir daquele momento. Diante
daquele contexto tumultuado no Complexo do Alemão, desabrigada, Dandara, determinada,
acatou a sugestão de um vereador do bairro e foi abrigar-se na Vila Olímpica da prefeitura.
Ao longo da entrevista, Dandara contou o que “teve que aguentar” para poder incluir
seu nome e os de suas irmãs na lista para o sorteio dos apartamentos construídos pelo PAC.
Estar no abrigo, naquele momento, nas palavras de técnicos e políticos locais, tornou-se
condição para receber um apartamento. Entendia sua condição como uma “missão” a ser
cumprida para ela e sua família. Chegou a receber um convite de uma antiga patroa para sair
do abrigo e ficar na casa dela. Mas, mesmo sob grande dificuldade, decidiu ficar na Vila
Olímpica.

Não, patroa. Eu preciso ficar aqui. Eu quero vencer! Se eu sair daqui pra tua casa, eu
vou descansar e eu não vou lutar. Então aqui eu vou ter que aprender, a vida é aqui
mesmo, Deus jogou eu aqui pra ele ver que é eu, ele só e minha filha na barriga. Então
eu não vou pra sua casa. Muito obrigada.

Dandara relatou-me que não ficava o tempo todo no abrigo, mas considerava
fundamental fazer-se presente, pois, somente assim, sentia que não seria ficaria de fora, que
ninguém tiraria sua vez e de suas duas irmãs que se encontravam nas mesmas condições que
ela. Em sua característica persistência, sob condições quase sempre adversas, Dandara criou
táticas para conseguir o atendimento de necessidades elementares – como sua identificação
civil. Calculou, articulou e mobilizou as pessoas que considerava capazes de atendê-la em suas
reivindicações. Em um ambiente onde a solidariedade e as disputas alternaram-se como
144
princípio normativo nas relações pessoais, Dandara costurava alianças internas com outras
moradoras e sempre fazia contato com gestores públicos que atuavam na região e possuíam
algum tipo de poder de decisão. Naquele momento, a obtenção do apartamento tornou-se
elemento central nas relações entre as pessoas dentro e fora do abrigo. Objeto de intensa disputa.
Havia muito mais desabrigados do que unidades habitacionais prometidas pelo governo. Dentro
do abrigo, dizia Dandara, “cada um queria resolver o seu. Lá era cada um por si e Deus por
todos”.
Dandara contou que ficar fora do abrigo podia significar perda do apartamento, pois
“alguém podia entrar e tomar o seu lugar”. Quando precisava sair, principalmente, para
acompanhar os trâmites de sua nova documentação e, até mesmo, para “respirar”, fazia acordos
de horários com a pessoa que “controlava o cadeado” da Vila Olímpica. Sempre que retornava
trazia um “agrado”, normalmente o cigarro da noite para o vigia do portão. Para ela era preciso
passar por essa provação para “Deus abençoar”. Essa passagem é interessante porque mostra
como essas relações entre população e agentes controladores (vigias, guardas, seguranças) de
espaços públicos – como nas ocupações dos antigos terrenos dos IAPs no bairro – ocorrem
como uma prática reiterada sob determinadas condições materiais e simbólicas de vida.
Nos relatos abaixo registrados na entrevista, Dandara retrata uma parte de suas
experiências anteriores a chegada no Relicário. Fez questão de denunciar as péssimas condições
nas quais esteve submetida:

Eu não ficava de dia no abrigo porque eu tinha que correr atrás dos meus documentos.
Eu só chegava pra dormir que eu já tava esgotada de tudo, então eu chegava, mas…
ou se não, quando eu não saia, não tinha lugar pra ir, eu ficava o dia todo lá com as
meninas (...) Eu também passava muito mal grávida, que eu andava pra caramba,
quando eu parava minha coluna bombava. Dormia no chão duro. Tinha dia que eu
chorava. Teve uma noite que eu acordei todo mundo, todo mundo achando que eu
tava parindo, sabe porquê? A minha coluna contraiu esse nervo aqui, meu nervo
todinho subiu. Eu gritava! Fiquei lá um mês e dezessete dias. Sofri muito, Bruno. Eu
nunca sofri tanto na minha vida igual a esse um mês e dezessete dias. Nunca.

E as humilhações que sofreu:

E eu ainda fui humilhada por uma mulher que tava lá dentro. Ela dizia: “tu vai ficar
aí. Tu vai ser a última a sair. Tu não tem documento, tu não tem nada. Tu vai mofar
aí... um ano, dois anos...”, e eu chorava... Jesus falou assim: “... é como Eu quero, não
como ela quer.” Meu cheque chegou primeiro do que ela que tinha documento e ela
foi a última a sair! Roncou pra caramba...no Relicário é só favelado. Hoje é doida pra
comprar um prédio aqui, que foi pro Condomínio Esperança e lá é um inferno. É...
Deus castiga muita gente também... tinha gente que tava no mesmo barco que a gente
ali humilhava a gente. O antigo presidente da Vila Olímpica humilhou muita gente,
aquele macaco, ele é da minha cor, aquele homem, aquele homem humilhou muita
gente... [ele disse] “vão bora, vocês não vão embora não? Vão arrumar um lugar pra
vocês ficar mendigos...” ele era o presidente da Vila Olímpica, ele falava assim:

145
“ninguém vai ganhar casa não.... tá pensando que alguém vai ganhar casa, mendigos?
Vocês só querem ficar aí igual uns porcos.” Ele e a irmã do antigo presidente de uma
associação de moradores. [Disse] “Vocês quer ficar aí igual uns porco, comendo e
bebendo...” e eu grávida falei: é... esse homem humilha muita gente aqui... Teve gente
que não aguentou a humilhação dele, foi embora sem ter pra onde ir. Eu falei pra ele:
“cara sou preta igual a você, você vai ter que me aturar. A Vila Olímpica é sua? Eu
pago teu salário. Eu compro comida, eu que pagava gás, eu que pagava tudo... então
você tá recebendo, o dinheiro que você recebe é a gente que te paga. Tá humilhando
a gente, né? Hoje a gente tá por baixo, mas amanhã a gente pode...” Olha Bruno, eu
sofri muito ali, tinha dia que a comida vinha azeda pra gente, café com leite... comida
azeda... pão, tu vê aquela manteiga, já tava ali três dias, quando gruda assim, que não
dá nem pra abrir, a mortadela verde era o que o governo mandava pra gente comer.
Sabe quando, como a gente comia bem? Quando chegava doação dos outro, porque o
governo não deu nada pra gente. Chegou doação da Seda [empresa de cosméticos] pra
gente, chegou doação de madame que deu cobertor, edredom, na caixa... roubaram
tudo, roubou tudo! Só edredom do bom! Só edredom da Zuneo... falei ó, eles não
querem coisa, qualquer coisa não... aquela marca do shopping, falei ó... e tu via que
as madames mandavam na bolsa da Leader, da C&A, da Zuneth, olha elas só... aquelas
toalhas boas, que dava pra enrolar duas pessoa... elas só levou coisa boa.
[Incompreensível] também roubou a gente muito, muito leite, muita farinha láctea,
muita fralda....ah, eu vou te falar uma coisa, Bruno, quando o governo jogou a gente
ali eles humilhou, ele acabou com a nossa carreira...

Atualmente, Dandara mora no quarto andar de um dos blocos da Parte Baixa do


Pavimento 2 com seus dois filhos: área superior do conjunto. Como outras mulheres moradoras
do Relicário com as quais conversei, recebe o beneficio do Programa Bolsa Família (PBF). Seu
grau de escolaridade formal é o ensino fundamental incompleto. Desde que retirou seus novos
documentos de identidade e se mudou para o Relicário conseguiu alguns empregos com carteira
assinada como “auxiliar de serviços gerais”, mas que “duraram pouco”. Disse: “Bruno, esse
pessoal só quer explorar, querem que eu trabalhe sem descanso, mas na hora de pagar ficam
fazendo jogo duro!”. Esporadicamente, realiza trabalhos pontuais como diarista, mas
evidenciou diversas vezes que as oportunidades de trabalhos – e aqui ela não diferencia de
trabalho formal ou informal – tornaram-se mais difíceis depois que foi morar no Relicário.
Atribui a essa dificuldade a maneira como as relações se estabelecem entre as pessoas dentro
do conjunto, em “ritmo de cadeia”:

Vou te falar uma coisa, no morro eu ainda arrumava um biscate, arrumava trinta,
quarenta, aqui eu não arrumo nada! Sai fora! Lavava um tênis, uma blusa, um bagulho,
na outra arrumava um tapete... aqui é ritmo de cadeia! Ninguém abre a mão! Nada!
Não sei Bruno... aqui é um lugar estranho, parece aqui um lugar amaldiçoado, não
arrumo um trabalho, Bruno, quando tô, pá! Sou mandada embora…

Em diversos momentos, ela transita, discursivamente, entre a realização da conquista


individual do apartamento do PAC – “Meu palácio, minha conquista!” – e a crítica contundente
ao que considera um “lugar de desunião e egoísmo, se você precisar de alguém aqui você
146
morre”. Positivamente, ela ressalta as condições materiais de sua residência quando comparadas
a da sua antiga residência no alto da Comunidade Pedra do Sapo. Possui uma visão muito prática
sobre o morar: “quem não tem casa não tem vida! Agora tenho meu apartamento, aqui é
tranquilo, não tem tiroteio, crio meus filhos, pego um ônibus ali em baixo, sem apurrinhação.”.
No entanto, Dandara utiliza o termo “ritmo de cadeia” para metaforizar um ambiente interno
fragmentado e vigiado, onde cada um cuida do seu espaço, do que é seu ou do seu grupo, “sem
deixar de tomar conta da vida um do outro”, como mencionou. Um lugar onde não há
solidariedade e sim “desunião” e “egoísmo”, para ela diferente do morro. É sobre a formas de
geração de renda e trabalho que Dandara sente mais negativamente sua moradia no Relicário.
Para ela “nos predinhos é muito melhor” , mas

acontece que aqui não tem a união como a gente tinha lá no morro não. É desunião.
Bruno, aqui é tipo o Bangu 1, pavilhão de Bangu, cada um na sua cela. Nem um alho
é bom você pedir teu vizinho. Igual eu te falei aqui é feito Bangu: cada um no seu
quadrado, nem um copo de açúcar o seu vizinho gosta de te dar. Aqui é foda. Aqui é
cada um por si e Deus por todos. Até um copo de açúcar tu tem que saber a quem vai
pedir. No morro não. No morro tu chegava na janela: “ô fulano não tem açúcar aí não?
Tem feijão aí não? Dá um pouco de arroz.” Aí mora aqui no ‘predinho’ acha que é
rico. Tá entendendo? Todas as pessoas... tem pessoas que vieram pra cá acham que
tão lá onde tu mora, lá na Zona Sul, lá em Copacabana, entendeu? Lá no Copacabana
Palace! Mas acha que mora lá! Gente, aqui é uma comunidade também! Só saímos de
cima pra descer pra baixo!

Dandara conta que sempre teve um bom relacionamento com os vizinhos, e que mantém
uma boa convivência com as pessoas que vieram da Comunidade Pedra do Sapo para o
Relicário. Mas, aponta para uma quebra dos compromissos entre as pessoas e uma falta de
solidariedade causada pelo próprio espaço dos “predinhos”. Para ela, com a chegada aos
“predinhos”, as pessoas tornaram-se “egoístas” e “metidas”. Dandara entende que a
possibilidade de morar em uma espécie de “condomínio” fez com que as pessoas adotassem
uma postura de distinção dentro do próprio conjunto, em um processo de crescente
individualização das ações e dos entendimentos sobre o morar no Relicário. Ao realizar suas
críticas, Dandara remete-se sempre ao passado da “comunidade no morro”, da solidariedade
entre vizinhos, onde os limites da vida privada eram concebidos de maneira mais fluida e os
compromissos coletivos estavam mais presentes na construção da sociabilidade local.

Eu tenho certeza que se é no alto do morro você desce com qualquer pessoa velho,
novo... se você chegar na porta do Willian [um vizinho antigo]: Williiaaan! Por favor,
Willian, leva fulano aqui no hospital que tá passando mal. Eu já cansei de chamar
Willian de madrugada pra levar minha irmã no hospital pra mim e ele nem te cobrar
um real, te esperar na porta pra te trazer de volta. Com as pessoas desse lado lá do alto
morro, ele morava na rua, no pé do morro. Podia chamar ele qualquer hora que ele

147
socorria, acredita? Aqui você não tem isso. Aqui você não tem isso, aqui você vai
morrer sem um socorro porque seu vizinho nem um SAMU vai chamar pra vc. Então
são essas pequenas coisas que o morro faz falta. Tem poucas pessoas que socorrem.
Povo aqui vive mais pelo ódio.

Nesse sentido, chamo a atenção para narrativa de Dandara do que parece ocorrer ao
longo do tempo: um processo contínuo de fragmentação da vida social e de individualização
das ações no dia a dia dos problemas comuns. Da perda de sua casa e o fim da “vida no morro”
à dinâmica das disputas pelos apartamentos do PAC e a moradia no Relicário. A saga coletiva
que se anunciou no relato dos deslizamentos de terra na Comunidade Pedra do Sapo e a
formação de grandes “formigueiros” humanos, em torno dos atores públicos, desfez-se na
medida em que Dandara relatou como as pessoas passaram a operacionalizar suas ações diante
dos bens postos à mesa: individualizada, da comida no abrigo ao apartamento desejado. Em
certa medida, viver dentro do Relicário seria a consolidação desse processo, um ambiente
menos solidário feito por pessoas “sem espírito”.

Escuta uma coisa, concluindo sua pesquisa, a favela é foda, mas o pobre tem um
espírito. Tem pessoa que aqui não tem espírito. É pobre de espírito. E você ser pobre,
você não ter espírito, você é pior do que o pobre mesmo. Porque se você for pobre,
mas você ainda tiver um pouco de espírito, você tem dignidade porque você vai pensar
o próximo. Tem pessoas que nem isso tem. Nem um espírito a pessoa tem. Aqui é
horrível.

Ao final da entrevista, depois de todas histórias contadas, perguntei a Dandara como ela
definiria sua moradia no Relicário em uma frase. De forma objetiva, respondeu: “Nem muito
bom, mas melhorada”.

148
6.2 “Complicado no coletivo, cada um só sabe de si próprio”

Meu encontro com Tomé aconteceu na minha reentrada definitiva no Relicário. Na tarde
daquele sábado de reinauguração da academia Relicário, Tomé havia preparado uma farta mesa
de café da manhã para todos os convidados que participariam do evento. A festa era aberta à
todos os moradores do Complexo do Alemão. Ao me conhecer, mostrou-se bastante cordial e
receptivo com a minha presença em uma festa que não havia pessoas de fora do bairro, com
exceção do vereador convidado, futuro patrocinador da academia. “Sempre cheio de ideias”,
como bem se define, Tomé demonstra um caráter sempre crítico a respeito dos desdobramentos
do cotidiano, não só no conjunto residencial, mas no Complexo do Alemão de uma maneira
geral.
Muito atuante em projetos esportivos com crianças do bairro – é professor de Jiu-Jitsu
–, teve, nos últimos anos, participação ativa em campanhas eleitorais na região apoiando
candidatos supralocais. Não se apresenta como “liderança”, mas coloca-se sempre disposto a
“fazer alguma coisa pela comunidade”. Sempre “escaldado”101 com o que vai dizer, demonstra
uma postura sempre reflexiva sobre os possíveis desdobramentos de sua fala: “Mano, eu não
posso dar mole, senão nêgo vai lá em cima e vai me ‘choquear’102, tá entendendo? Enquanto
eles veem com o fubá, eu já tô voltando com o bolo.”
Nossa entrevista ocorreu em um sábado de forte calor dentro de seu apartamento,
localizado no quarto andar de um dos blocos da Parte Baixa do Pavimento 1. Não foi difícil o
agendamento do dia. Ao lado de sua esposa e sua filha que prepararam uma mesa com bolos,
pães doces e sucos, o início foi em tom bastante formal. Tomé parecia ansioso e disposto a
contar sua história. Esfregava as mãos uma nas outras repetidamente. Tirava e colocava o boné
na cabeça. Aos poucos, a conversa fluiu de maneira menos tensa. Depois de uma conversa
“quebra gelo”, informei que ligaria o gravador, mas que, em qualquer momento, ele poderia
solicitar-me que o desligasse, caso quisesse contar alguma coisa que e não registrar em
gravação. Em nenhum momento tal pedido ocorreu.
Como tantos outros moradores do Relicário, Tomé nasceu e foi criado no Complexo do
Alemão, mais especificamente, na comunidade Nova Brasília. De lá carrega suas principais
lembranças de um tempo de dificuldades ,“não chegava carro na porta, você tinha que subir
cerca de 5 a 10 minutos andando” e de um crescente adensamento populacional, com as

101
O termo é muito utilizado no local para definir o estado de desconfiança de uma pessoa em relação a uma outra
pessoa ou de algum processo de negociação ou disputa em curso.
102
“Choquear” significa fazer fofoca sobre alguém na “boca de fumo”. O mesmo que “dedurar”, “xisnovar”.
149
primeiras movimentações do Comando Vermelho no ordenamento local e no comércio varejista
de drogas: “lá era onde funcionava tudo. Eu via tudo acontecer. Todo mundo que passou de
bom, de ruim, a gente via, porque tinha que passar, porque o caminho era aquele ali, tinha que
passar em frente da minha moradia”.
Pernambucanos, seus pais chegaram ao bairro no início da década de 1960, “quando no
morro não tinha nada, só tinha mato. Era uma fazenda e tinham que andar pelos caminhos de
mato”, contou mostrando-me algumas fotos de sua caixa de recordações no dia em que fizemos
a entrevista. Como muitas outras famílias migrantes, foram recebidos por parentes que já
haviam se instalado nos morros do bairro, prática que exerceram também com outros parentes
que mais tarde chegariam para compor aquela realidade comunitária. De “família muito pobre”,
como retrata, Tomé e sua família também carregam os traços de uma saga coletiva, de um
movimento que coaduna trajetórias muito parecidas.

Na verdade era uma família muito pobre do meu pai e da minha mãe aonde eles eram
muito mal tratados, minha mãe tinha dezenove irmãos, aonde era chamado, não sei
se... ela sempre falava a expressão "mamãe me dê dois" porque era um peixe daquele
Cambimba, menos que sete centímetros um peixinho você tinha que comer um
peixinho daquele, entendeu? Era um pra cada um. Aí surgiu essa expressão... ela só
dava um e [a gente] queria dois. As crianças queriam dois, mas não podia porque era
a conta... enfim, muito pobre, né?

A entrada de Tomé no Relicário aconteceu por meio de um processo de negociação de


indenização do PAC. Tomé possuía imóveis na área de intervenção do programa. Sempre
trabalhou como comerciante no local. No início da implementação do PAC no Complexo do
Alemão, além da sua loja de jogos eletrônicos (fliperama), trabalhava no transporte alternativo,
como motorista de van e “não tinha se ligado” nas movimentações do governo do estado e da
prefeitura na localidade. Passava o dia todo fora. Em uma manhã, recebeu a ligação de um dos
seus funcionários informando sobre as intenções do governo na área onde morava.

Ó, o PAC tá aqui e a sua casa vai sair, sua casa, sua loja vai tudo sair. Tão medindo
tudo aqui, Tomé! Nem falaram nada... telefone tocou... olha sua casa, sua loja, vão
tudo sair, eles estão aqui medindo, entendeu? O rapaz deixou o nome dele aqui e o
telefone pra você entrar em contato com ele’. E aí, foi aonde que a ficha caiu pra mim
do PAC, né, realmente do PAC, que até então eu só tava ouvindo falar, que eles vieram
do alto, de cima pra baixo, mapeando o que começou lá na outra comunidade primeiro,
de lá pra cá e aí foi onde que negociei, né, eu tinha dois quitinetes e uma loja que
aonde é... eu recebi indenização de uma quitinete (compra assistida R$30 mil), recebi
esse apartamento...troquei a outra casa por esse apartamento e minha loja eu troquei
por outra loja, porque eu achava muito injusta a indenização, muito abaixo do que se
começou a pagar logo no início do PAC, entendeu?

150
Seus imóveis estavam na área prevista pelo projeto do PAC para receber equipamentos
públicos de cultura (escola, centro culturais, entre outros) o que acarretaria em processos de
remoção de imóveis e de pessoas do local. Tomé contou que no início muitos moradores
negociaram a saída, pois as melhores indenizações foram pagas naquele momento. “Era quando
ainda tinha dinheiro, mano”, disse-me na entrevista. No entanto, “depois, com tanta roubalheira,
foi ficando mais difícil conseguir um bom valor pelas casas e as lojas. Quem correu atrás no
começo conseguiu negociar bem”. A fala de Tomé aproxima-se de diversos relatos que ouvi na
localidade sobre desvios de dinheiro público e favorecimento ilícito de lideranças locais com
os recursos do programa de urbanização.
Especificamente, no local onde morava, houve forte resistência por parte dos moradores
que dividiam com ele aquele espaço para o estabelecimento de seus comércios. O plano do PAC
era remover todos eles com um valor indenizatório que consideraram na época muito baixo.
Diante do fato, chegaram a propor alterações no traçado do projeto, mas os engenheiros e
técnicos da empreiteira, responsáveis pela obra, não aceitaram “nem conversar”. As
reclamações e as sugestões dos moradores para os projetos de urbanização na comunidade Nova
Brasília foram completamente desconsideradas.
Em uma ocasião, Tomé relatou-me que ele e os demais comerciantes precisaram
“mobilizar os conhecimentos locais” para que tivessem “o suporte necessário para a
negociação”. Em outras palavras, os lojistas levaram ao conhecimento do “chefe da boca” 103 a
questão colocada pelos engenheiros e técnicos do PAC. Após o “desenrolo”104 com o “chefe”
receberam o aval que precisavam para atuar no caso e negociar, sob outros, termos com os
representantes governamentais. Aqui o que está explicito na fala de Tomé é a entrada do
“tráfico” como ator na arena política do PAC. O “suporte” que precisavam nada mais era do
que o amparo do poder dos grupos armados do local para se colocarem como atores relevantes
e considerados no processo de negociação com técnicos e representações governamentais que
atuavam no território. Lembro-me que quando atuava como gestor, havia sempre no ambiente
dos técnicos o “medo dos bandidos”, um espectro que rondava as ações no campo.

103
O termo “chefe” foi utilizado algumas vezes para designar o “dono da boca”, aquele que controla e comanda o
comércio de drogas no varejo, mas que está situado em uma determinada faixa territorial da favela. Alguns
moradores dizem que após a instalação das UPPs, mesmo havendo o “dono do morro”, o comando do comércio e
do território ficou mais dividido. Ou seja, há mais “bocas” espalhadas pelos morros do bairro e a chefia ainda mais
fragmentada e localizada em várias partes da favela.
104
O “desenrolo” (MATTOS, 2014, p.13) constitui-se como prática argumentativa com fins a resolução de
conflitos em ambiente operado pelo “crime”. Normalmente, ocorre como mecanismo de neutralização da violência
no cotidiano quando os “patrões” ou os “chefes” (termo aqui utilizado pelos meus interlocutores) possuem uma
“prática patronal” baseado na valorização do poder argumentativo dos envolvidos na questão apresentada.
Consequentemente, passa-se a marginalizar o “homem armado” nesses mesmos processos conflitivos.
151
Evidentemente, esse sentimento chegava aos ouvidos dos gestores que ocupavam cargos
superiores de decisão.
Tomé articulou a questão com alguns representantes territoriais do governo que o
levaram a coordenação do PAC. Em seguida, diante da pessoa responsável pela implementação
dos projetos, indicou “na sutileza”, como me disse, a recusa de todos às condições postas pelo
governo para remoção e negociação com os valores ofertados. No final, o projeto foi alterado.

Bom a negociação na verdade foi o seguinte: eram oito lojas que iam sair e eles
queriam só pagar o dinheiro da loja. Só que existe a questão de loja e ponto. E aí, os
oito comerciantes iam ser prejudicados. Foi aonde que me elegeram como porta-voz
e aí eu era meio brabo naquele tempo, gostava de um problema, gostava de um caô,
fiquei lá na prefeitura, aonde que a Dona Ruth lá a primeira vez bateu de frente ainda,
mas na segunda vez ela já cedeu, falou: “ ó, não, se realmente é isso, Tomé, vai ser
isso. Eu mudo o projeto.” Aonde eu fiz mudar o projeto. Realmente se vocês puxarem
o projeto não teriam aquelas oito lojas que tem lá... e aí, porque eu mostrei que era
injusto o que eles queriam pagar pela nossa loja, entendeu? Porque não tinha valor
nenhum pra eles no entendimento dele, a moradia era muito mais valiosa. Só que a
loja era nossa vida, era o nosso, que hoje em dia você vê, tem um ponto, ó “Passo o
ponto”. A loja não é nem sua. Você aluga a loja, mas você fez o ponto, pra você sair
dali alguém tem que te pagar o ponto, correto? Então, a gente ia ser muito prejudicado,
né? Aí foi onde que eu consegui mostrar a ela isso né, através de um agente social
também... um rapaz que trabalha na prefeitura e age dentro da comunidade, que faz o
social... então eu mostrei na sutileza pra Dona Ruth [que] lá seria muito mais
interessante pra gente ter outra loja, né? Que era a nossa vida, o nosso ganha pão, e aí
ela mudou o projeto lá... eram oito lojistas, aonde que eu perguntei, como ninguém
queria dinheiro né, aí eu conseguir isso aí, mudou o projeto e hoje em dia tá lá as oito
lojas lá.

Em nossa entrevista, Tomé contou que, mesmo diante do difícil processo de negociação,
o PAC foi a oportunidade que ele e sua família tiveram para mudar suas condições de vida. O
local onde residiam na comunidade Nova Brasília era situada em uma parte central da favela,
onde toda a movimentação dos bandos armados acontecia. Os “moleques do movimento” –
como ele se referia aos jovens operadores do tráfico local – ficavam dentro da sua loja. Para ele
era extremamente incômodo permanecer em sua própria casa, na sala de estar, onde sentia “a
fumaça dos baseados entrando porta a dentro com a minha filha pequena lá dentro”, como me
disse. Tomé queria mudar.

Pra mim o PAC foi excelente, não foi nem bom, foi excelente… minha loja, minha
casa, era em frente a boca de fumo. Então, pra mim entrar na minha casa eu tinha que
pedir licença a mais de dez bandidos de fuzil... pra mim foi excelente, porque me
rendeu um apartamento, a minha loja, né, o que eu moro, pô, tô no céu, aqui é muito
bom, aqui o Relicário, tirando algumas coisas, mas é excelente o Relicário, mas pra
mim foi muito positivo, muito positivo, e creio que sem hipocrisia pra noventa e cinco
por cento dos moradores foi bom, foi bom. Embora não tenha continuidade, e tal, mas
quem realmente foi, ou a obra passou, ou teve algum benefício de venda de imóvel o
PAC foi bom. O PAC foi excelente, entendeu? Embora tenha muita falhas, teve muito

152
roubos, muitos desvios, né, mas foi bom, foi excelente.... o complicado de tudo foi
que o PAC trouxe a UPP, né?

Tomé deixa claro que o PAC apresentou-se como uma possibilidade concreta de
mudança de vida, não só para ele, mas para muitos outros moradores do bairro. No entanto,
criticou a maneira como a política de segurança pública estava sendo acontecendo no Complexo
do Alemão. Para ele o PAC também levou a UPP. Tomé afirma que foi o PAC quem possibilitou
a abertura territorial para a entrada e o estabelecimento das UPPs no bairro. Aqui percebe-se
que Tomé faz um movimento duplo na sua constatação: ao mesmo tempo em que o PAC é
entendido como um meio para que a vida melhorasse, o próprio programa criou as condições
para que a vida também piorasse. Um certo paradoxo na percepção sobre os desdobramentos
daquela política de urbanização. Cavalcanti (2013) chamou de “PACficação” esse processo. A
autora afirma que a política de urbanização do PAC se legitimou discursivamente enquanto
agenda pública de intervenção justamente pelo fato de apresentar as favelas como espaços sob
o “domínio do tráfico”. Consequentemente, as intervenções urbanísticas criaram-se as
condições necessárias para a implantação daquela política de segurança em curso na cidade.
Com o crescente número de mortos e feridos na localidade em decorrência dos permanentes
conflitos armados entre policiais e operadores do comércio varejista, Tomé afirmou naquele
momento – ano era 2015 – que o projeto das UPPs era um “projeto falido”.

[...] então [com] a UPP tá tendo mais mortes do que sem a UPP! Não sou eu que tô
falando, são as estatísticas mesmo que eles apresentam aí que ultimamente eu dei uma
olhada, tinha menos mortes do que tem agora de inocentes. Infelizmente. O que as
estatísticas mostram é isso. Não sei [se] por despreparo dos policiais, pelo tempo de
academia, pelo tempo de CEFAP lá, pelo nervosismo, porque, pô, se o governador
Luiz Fernando Pezão tá falando que a comunidade está pacificada, eu acho que não
tinha a necessidade de um policial entrar de fuzil, não é verdade? Acho que já é um
projeto que já tá falido. O que eu vejo é que depois das Olimpíadas eles não vão
bancar, porque já tá falido o projeto.

Sempre que nos encontramos, Tomé posicionou-se crítico ao projeto das UPPs no
Complexo do Alemão, principalmente, quando se tratava da dinâmica violenta das operações
internas da Polícia Militar nos becos e vielas das favelas do bairro. Mas, como morador do
Relicário, enunciava certo distanciamento em relação ao contexto de violência do bairro: “pode
o mundo acabar de bala aí pra cima que eu não escuto um tiro”. Tal postura desdobrava-se na
própria interpretação de Tomé sobre sua nova vida no Conjunto Residencial, bem como a sua
representação sobre aquele espaço compartilhado de moradia.

153
Como residente deste local, sua sensação e leitura sobre as formas de violência
voltavam-se muito mais para dentro, para as relações internas entre moradores do Relicário, do
que para fora dos limites físicos do conjunto. Seu incômodo evidenciava uma questão que
estava para além da análise do conflito entre polícia e bandido. Não demonstrava preocupação
em ser, por exemplo, atingido por uma “bala perdida”, de ter a polícia invadindo sua casa ou
interrogando-o dentro conjunto. Sempre disse: “aqui é diferente”. Sua principal crítica na
dimensão da segurança estava relacionada com a dinâmica dos “meninos da marcação” dentro
do conjunto. Chamava de “bagunça das crianças”.
Tomé queixava-se com veemência dos sucessivos atos de desrespeitos de crianças e
jovens dentro do Relicário. Para ele estavam “bandeando para o outro lado”. Basicamente,
referia-se aos jovens que formam o grupo de meninos que circulavam pelo Pavimento 1 e que
desempenhavam uma função de controle e vigilância, a “marcação”. Faziam uma espécie de
primeira “contenção” do Relicário. Para Tomé esse era o principal problema da moradia no
Relicário.

A única coisa que estraga aqui são os maus elementos que tem em todo lugar que é o
que eu te falo que teria que tá tirando essas crianças da rua. Hoje em dia aqui as
crianças já estão se bandeando tudo pro lado errado, entendeu? O que é ruim aqui é a
bagunça das crianças que estão se bandeando pro lado errado. Como é que uma
criança de nove anos vai falar o que eu tenho que fazer, eu com trinta e seis anos na
cara. Uma criança de dez anos quer me enfrentar, ela estando errada, pô, tá rabiscando
o carro. Você vai chamar a atenção, [ele] vai e fala que vai te dar tiro, que vai isso,
vai aquilo, pô, tá pichando o prédio a gente vai chamar atenção: “ah! eu sou bandido
rapá, te meto bala na tua cara!” Meu irmão, eu mando ele tomar no cu, mando se foder,
porque eu conheço também, entendeu? Mas, e o morador que fica oprimido dentro de
casa que não conhece, tá entendendo? Que não conhece ninguém, que, pô, caiu de
paraquedas, entendeu? Pô, se junta uma turma aí de vinte, trinta, meu irmão, é o terror
do bagulho, é o terror! E aí? A justiça não deixa você encostar a mão, a justiça não
deixa a polícia prender... É muito difícil, o problema são as crianças!”

Tomé afirmou que não havia “boca de fumo” dentro do Relicário. O que havia era uma
“boca banguela”, ou seja, uma boca sem armas e sem venda de drogas. Para ele, dentro do
conjunto não há esse movimento porque lá “o morador chama a polícia”. Mas, alguns
moradores disseram-me que os “meninos” circulavam armados, o que mais tarde pude
confirmar ao subir no topo mais alto do Relicário, exatamente, na passagem que manteve-se
aberta, por ordem do “tráfico”. No portal que ligava o conjunto a favela vizinha.
Diante desse problema, Tomé trouxe em sua fala o discurso sobre a necessidade de se
pensar e desenvolver ações de cunho social, os “projetos sociais para a comunidade”. A ideia
de “projeto” aqui encontra ressonância no trabalho de Lia Rocha (2015) que aponta como essas

154
iniciativas em favelas ganham um caráter personalizado de salvação e ressignificação das
imagens dos jovens lidos como potenciais “bandidos” ou “jovens em situação de risco social”
(ROCHA, 2015, p. 324). Recentemente soube pelas redes sociais que Tomé vem
desenvolvendo “projetos de inclusão social” por meio de atividades esportivas com crianças e
adolescentes.
Além do seu trabalho e sua renda oriundos dos aluguéis das doze (12) casas de vila
construídas por ele e seu irmão na Região do Lagos105 e de uma loja de salgados e sucos na
comunidade Nova Brasília, Tomé atuava em outras frentes de trabalho. Foi síndico do bloco
onde mora e desenvolveu ações sociais com candidatos a vereador que buscavam seu apoio
para “entrar no bairro”106. Todas as suas atuações com um caráter mais público no condomínio,
segundo o próprio Tomé, esbarraram sempre em duas questões que considera o “problema do
coletivo”: a falta de colaboração/participação das pessoas que compartilham um determinado
ambiente comum, mas que buscam apenas uma disputa por protagonismo.
Foi a sensação de Tomé sobre a falta de compromisso/participação das pessoas, que fez
com que Tomé assumisse o papel de síndico com o objetivo de organizar as questões do prédio.
Segundo o morador, “queria ver o prédio mais bonito”. A escolha de Tomé para o cargo ocorreu
como desdobramento de uma série de encontros realizados pela equipe técnica do trabalho
social do PAC que visava “preparar” as pessoas para morar em condomínios107. No entanto, ao
iniciar seu trabalho frente da gestão condominial, a dinâmica de participação dos demais
moradores não aconteceu como desejava. Disse-me: “Na hora do coletivo a coisa não funciona.
Cada um só quer saber do seu”. No decorrer de nossa conversa, afirmou que este não é um
problema somente do Relicário. Para ele, da mesma forma que encontrou dificuldades para
realizar o seu trabalho na organização condominial, encontrou problemas quando se dispôs a
“viver os problemas da comunidade toda”. Para ele “esse tipo de comportamento individualista
é do próprio ser humano”.

Bom, na verdade, eu vejo que o pessoal é complicado no coletivo. Pessoal pensa muito
em si próprio. Quando chega na questão coletiva de um grupo o pessoal meio que não
tá preparado pra tá em coletivo. Algumas pessoas, como hoje eu deixei de ser sindico
por causa de duas senhoras do primeiro andar, né? Sr. fulana e Sra. beltrana não

105
Região litorânea do estado do Rio de Janeiro é classificada como Região da Costa do Sol. Formada por sete
municípios em uma área de 5.295,2 km2 e população atual é de 672.598 hab. é conhecida por ser um dos principais
destinos turísticos no estado e por abrigar um importante pólo industrial de produção de sal fluminense.
www.turisrio.rj.gov.br/projetos.asp
106
No jargão politico local “entrar no bairro” significa ter acesso ao eleitorado de um local onde o candidato não
reside ou não tem contato prévio. É o movimento onde os atores políticos supralocais buscam apoio de lideranças
locais para fincar uma base de ação e campanha eleitoral permanente.
107
O debate em torno dessa questão está no capítulo 3.
155
pagavam o condomínio e eu não achava justo todo mundo pagar e as duas não pagar,
entendeu? E aí eu terminei entregando o condomínio por essa questão. Pode ter sido
até pirraça minha, mas eu não achava justo. A maioria pagar, na verdade pagavam
treze, um era isento porque o interfone e a luz era ligada nessa pessoa e as duas não
pagavam. E hoje, ela é uma que há um mês tá tentando arrecadar dinheiro pra
consertar o interfone, entendeu? Ou seja, a mulher que sempre bagunçou hoje quer
tentar consertar. Então, pra mim eu acho que é complicado, eu mesmo não vou dar
dinheiro nenhum. Só se minha esposa der. Não é questão que eu não tenha, eu não
vou dar porque ela que, ela que, ela que bagunçou o prédio e hoje ela quer consertar
o prédio?

Parte do entendimento de Tomé sobre a questão estava referenciado no conteúdo dos


“encontros de integração”, como os direitos e os deveres para a efetivação da nova moradia,
sob o princípio da regulação condominial. A preservação e a conservação física dos blocos
residenciais deveriam ser assumidas por todos, mas por meio do pagamento individual da taxa
condominial. A lógica da manutenção do espaço passaria, no entendimento de Tomé, pelo
compromisso de cada um com o que é de interesse de todos. Consequentemente, quem não
pagasse, por quaisquer que fossem os motivos, passaria a identificado como “devedor” ou
“inadimplente”, ou seja, em discordância com as regras, nesse aspecto, com o “coletivo”. Aqui
a ideia de coletivo está diretamente condicionada na leitura de Tomé a necessidade de
cumprimento das regras dentro de um modelo condominial de organização do espaço comum.
Para ele, as duas senhoras “bagunçaram o prédio”. No final, segundo Tomé, a responsabilidade
recaiu toda sobre ele, tendo que recorrentemente “tirar do próprio bolso” o dinheiro para arcar
com os custos condominiais.
Essa “falta de compromisso” também pode ser interpretada com o tipo de papel social
desempenhado publicamente, ou melhor, com a representação social compartilhada desse
papel. “Síndicos”, “conselheiros” ou qualquer outro papel de gestor condominial, muitas vezes,
são interpretados de maneira negativa, pejorativa: pessoas que, em algum momento realizaram
(ou realizarão) práticas de desvio e embolso de recursos financeiros recolhidos coletivamente.
O “síndico ladrão” é uma representação que surge com muita força em outras falas e entrevistas
como mecanismo individual e/ou coletivo que retira a legitimidade dessa representação, como
por exemplo, na experiência de Madalena, que apresentarei a seguir. Por se sentirem
enganadas, ou utilizando dessa justificativa, os demais membros do condomínio deixam de
contribuir coletivamente para a manutenção, não só das benfeitorias do prédio, mas também
para a manutenção da própria ordem em exercício.
Quando se refere as dificuldades de atuar publicamente, Tomás expõe uma “disputa por
protagonismo” no local onde ocorrem ações que podem significar a ampla exposição de uma
ou mais pessoas em um determinado espaço, bem como o reconhecimento de uma imagem
156
pública positiva, diante de um grupo ou mesmo da “comunidade”. Para ilustrar a questão,
lembro-me de uma ocasião em que propus a formação de grupos para a criação de uma horta
comunitária ou um mutirão para reforma de galpões vazios dentro do Relicário. Naquele
momento, fui aconselhado a “deixar quieto”, a “não mexer com isso”, pois as propostas
poderiam causar “problemas”. Entendi que o “problema” referia-se a maneira como o “chefe
da boca” poderia interpretar práticas mais autônomas no espaço, sem que o mesmo fosse
consultado. Qualquer ação individual que evidenciasse a tomada de posição pública autônoma,
ou seja, uma relevância no coletivo de práticas entendidas como personalizadas ou mais
independentes, poderia causar “problemas com os caras lá em cima” ou com o “frente do
morro”.
Tomé valoriza uma postura mais voluntariosa, pautado por um princípio moral bastante
difundido em relação as favelas ou áreas pobres da cidade, tanto internamente quanto para a
cidade em geral: o da “ajuda a comunidade”. Como relatado no trecho da entrevista, Tomé
orgulha-se por ter sempre se disponibilizado para atender a comunidade.

Quando eu vivia lá na Nova Brasília... os meus carros ficavam à disposição da


comunidade. Tem um monte de criança aí que foi eu que levei pra nascer, entendeu?
Hoje em dia o menino passa e : “oi, tudo bem? Pô minha me falou que foi você que
me levou pra nascer! (risos) ah, foi, isso mesmo!...” Então, o que eu sempre pude fazer
pra ajudar.... quando eles organizavam festa, eu por ser comerciante sempre ajudava,
tinha baile funk quando era particular sempre ajudava, entendeu? Ali pra pagar o som,
pra fazer uma festa, doava alguma coisa, eu já participei muito, mas eu tô te falando,
de seis meses pra cá eu tô desacreditado...

Ao mesmo tempo, queixa-se da individualização dos interesses e da divisão política


dentro do Complexo do Alemão.

Você fazer sozinho é difícil, se você se juntar com mais gente... é igual a minha filha
sempre fala: “pai, você sozinho é fraco, mas você, fulano, beltrano, é forte, entendeu?”
Mas, aí é a questão: pra você se unir com fulano e beltrano já há um interesse político,
aonde cada um tem um interesse em uma parte, e aí fica difícil, entendeu, a união (...)
às vezes a gente quer fazer, mas, pô, tem fulano que se diz o tal não puxa a
responsabilidade, não vem pra fazer... aí se eu digo: “nós vamos fazer”, aí você é
muito criticado: ah, porra, o cara querendo se amostrar fazendo, o cara não é porra
nenhuma, tá querendo fazer pra se amostrar, entendeu? Então, é muito complicado até
você fazer, até fazer o bem é complicado, entendeu? Dentro do Complexo do Alemão,
de uma forma geral, é muito dividido politicamente. Aqui também, entendeu?

No fundo, quando Tomé afirmou que “dentro do Complexo do Alemão, de uma forma
geral, é muito dividido politicamente”, ele parece evidenciar que são determinados arranjos e
compromissos entre grupos que garantem as ações no território. Cabe relembrar quais atores
foram mobilizados pelo próprio Tomé na busca por uma negociação mais justa com o governo

157
no período do PAC. Durante a entrevista, Tomé chamou a atenção para a divisão político-
partidária que ocorre dentro do território do Complexo do Alemão e que se desdobra com força
nos arranjos internos do Relicário. Há sempre um político com representação institucional,
principalmente, candidatos ou vereadores locais e/ou supralocais em mandato, ligado a um ou
outro grupo na localidade. Recorrentemente, são as associações de moradores que estabelecem
essa mediação na figura de seus presidentes. Tomé entende que essas relações dificultam a
realização dos projetos sociais ou de qualquer ação mais autônoma, como aquelas que busca
desenvolver, no Relicário ou no próprio bairro. Os espaços são previamente demarcados por
esta ou aquela representação institucional/comunitária e que, em última instância, somente
atuam se forem referendados pelas representações do “tráfico”.
Na passagem abaixo, Tomé relata, brevemente, sua atuação como “cabo eleitoral” em
uma campanha política no Complexo do Alemão exemplificando os termos das negociações no
território:

[…] na verdade o que acontece, seria feito um trabalho com alguns políticos no templo
[Igreja Evangélica do Relicário], né, só que foi embarreirado. Não podia se trabalhar
com político aqui dentro da comunidade, a não ser com aquele político que o tráfico
queria, entendeu? Porque o político vai embora, eu fico. Você vai embora, eu fico.
Pessoal vem e vai embora, e eu fico. Então, se eu não fizer o que tem que ser feito
perante quem tá comandando, meu irmão, eu tô me suicidando. Então é complicado
você... as vezes até você consegue a condição de uma pessoa te ajudar, só que aquela
pessoa não é bem vista na comunidade. Então, você já não pode fazer nada.

De uma forma geral, a falta de compromisso/participação e a disputa por protagonismo


relacionam-se entre si, pois, o que está colocado é um processo de individualização das
percepções e das ações submetidas a uma regulação opressora e externa, representada pela
figura do “tráfico”. Agir, em grande medida, é afirmar o protagonismo dessa representação
publicamente. Consequentemente, se não há reconhecimento desse agir, não há compromisso
com quem representa este ou aquele coletivo. Logo, cria-se um impasse sobre as formas e os
conteúdos de atuação em nome do que poderia ser entendido como “bem comum”.
A entrevista de Tomé evidencia aqui as disputas que perpassam a constituição de
espaços e das representações internas. Mesmo com todas as dificuldades que expõe, demonstra
satisfação em morar no Relicário, mas acredita que a “comunidade” na qual pertence deveria
“evoluir” para “ser mais vista pela sociedade”. Para ele

...tinha tudo pra evoluir... porém, eu não sei o que acontece com quem é de direito, os
governantes, que não trazem realmente a pacificação que deveria ser feita, né,
incluindo os projetos sociais aqui... eu acho que o Complexo do Alemão, como muitas
comunidades, deveria ser mais vista pela sociedade.

158
6.3 “Somos do morro, não saímos da favela”

Madalena mora só em seu apartamento localizado no primeiro andar de um dos blocos


da Parte Alta do Pavimento 1. Situado bem no meio do terreno, o Bloco N é o mais centralizado
do Conjunto Relicário. Meu encontro com Madalena ocorreu intermediado por Dona Olga,
moradora também do Relicário, que eu conhecera no período em que trabalhei como gestor do
PAC. Até o dia da nossa entrevista, algumas foram as tentativas para agendar um dia e um
horário possíveis para nós dois. Além da dificuldade para conciliar as datas, o Complexo do
Alemão começava a viver uma rotina cada vez mais acirrada de confrontos armados entre
operadores do tráfico de drogas e policiais da UPP. O trânsito pela localidade tornava-se mais
difícil. O contato com Madalena foi no início da pesquisa e o meu desconforto quanto as
possíveis leituras que faziam sobre mim, circulando pelo terreno, ainda era algo bem presente.
Em um momento pensei em desistir da entrevista, pois tinha a nítida sensação de estar
incomodando. Mas, soube por Dona Olga que Madalena havia desempenhado o papel de
síndica por quatro anos em seu bloco, um tempo considerável naquela função para uma pessoa
sem qualquer tipo de experiência em moradia de tipo condominial. Acreditei que sua narrativa
sobre o papel que desempenhou seria importante para a análise sobre as representações do
cotidiano no local, tendo em vista, principalmente, que não havia mais síndicos formais no
Relicário, conforme relatos de diversos moradores. Queria saber os motivos ou pelo menos ter
alguma indicação para o possível “fracasso” desse modelo de organização da moradia de tipo
condominial.
Enfim, marcamos um encontro. Em uma manhã de abril, próximo ao horário do almoço
(por volta de 11h30min.), conseguimos nos sentar em sua sala de estar. O cheiro de comida no
fogo entrava pela porta que permaneceu aberta ao longo de toda a entrevista. Em diversos
momentos, fomos interrompidos com os acenos e os rompantes de entradas de vizinhos na sala
ao longo da conversa. Madalena parecia um pouco tensa, pois mal havíamos nos conhecido.
Era Dona Olga quem atestava a segurança da minha presença naquele sofá de dois lugares. Aos
poucos nosso bate-papo cresceu e a desenvoltura de Madalena surgiu como uma marca de sua
construção narrativa sobre suas experiências no Relicário e no próprio Complexo do Alemão.
Madalena foi mais uma das pessoas desabrigadas com as chuvas de abril realocadas
para o Conjunto Relicário. Como Dandara, morava no alto da Comunidade Pedra do Sapo, no
topo do morro. O processo de inclusão de Madalena na listagem do sorteio aconteceu por meio

159
do cadastro que os técnicos do Trabalho Social do PAC fizeram logo após as chuvas. Muitas
famílias naquele momento foram atendidas no próprio local onde moravam, pois, como
Madalena, a casa não chegou a desabar, mas foi interditada pelos técnicos e engenheiros
responsáveis pelas obras como edificação situada em “área de risco”.
Mesmo com o cadastro, ao entender que o retorno a sua casa não seria mais possível,
viu-se desamparada, sem saber onde ficar. No início, passou algumas noites na casa de vizinhos.
Não quis dirigir-se ao abrigo na Vila Olímpica da prefeitura. Com o valor que recebera do
Aluguel Social, conseguiu alugar uma casa em uma favela vizinha, um lugar marcado pela
ordem dos conflitos armados entre policiais e traficantes. Como relatou na entrevista, toda sua
trajetória até o Relicário foi uma “vida de inferno”.

Fiquei desabrigada, minha casa ia cair em cima de mim. Eu não fui para Vila
Olímpica. Eu comecei rapidamente a receber o aluguel social que na época era R$
400. Aí fiquei naquele desespero procurando casa daqui, procurando casa dali. Eu
dormia na casa do vizinho. Aí dali eu conseguia aonde, uma casa para alugar, sai do
inferninho anterior e entrei no outro dentro da Vila Cruzeiro. Fui morar na Vila
Cruzeiro, fiquei três meses na Vila Cruzeiro, aí nesses três meses veio o chamado, aí
rapidinho fiquei lá, mas não foi assim uma coisa assim, pra mim coisa boa...porque
fiquei com a imagem da casa que pegou onde eu morava que foi muito feio, muito
triste, cara, muito triste... de você olhar pro chão e ver que teu chão está abrindo, tá
criando aquela erosão por abaixo, por causa da água que estava estourando por fora
assim, e estourando o chão por dentro, tanto que meu outro guarda-roupa, igual aquele
ali, ficou agarrado no chão que a casa, a parede veio descendo e o guarda-roupa ficou
agarrado lá no chão. Porque não dava pra tirar, perdi muita coisa, entendeu? Consegui
tirar documento, essa televisão aqui que escangalhou tá aí, mas nem posso ligar ela
muito, entendeu e... algumas coisa que eu tirei, entendeu? Esse radinho dai eu
consegui mas ele tá todo ruim também...consegui tirar o radinho e a televisão. Foi à
noite, tivemos que sair sem poder correr. [...] Eu catei as minhas filhas, e ai milhas
filhas foram ficar comigo porque sabiam que eu tava sozinha. No que eu olhei assim
eu falei: gente vamos embora porque isso aqui vai explodir! A casa subia, a casa
borbulhava por dentro do quarto, subindo aí que eu molhou pra parede, a parede
rachou fora a fora, a parede rachou, rachou. Falei pra elas [filhas] assim: vai! Sai
devagarzinho, não bate a porta, sai devagarzinho e me espera pro lado de fora. Nisso
eu sabia que não ia cair tudo de uma vez, porque a outra parede era nova. Aí que eu
olhei assim e falei: “bom agora vou sair porque todo mundo tá lá fora... quando eu sai
a rua sumiu, deu aquela coisa de água assim e a parede foi trincando, trincando,
trincando, estalando, sabe... sai eles foram lá furaram tudo, onde tava o vazamento,
tiraram a água que saia por dentro de casa, que foi muito triste, muito feio.” O pessoal
me ajudando no outro dia, correndo todo mundo porque na hora ninguém sabia o que
estava acontecendo, todos correndo... me ajuda aqui! Me ajuda ali! Tirou o fogão, o
fogão tive que jogar fora que encheu de barro, de lama, de tudo, aí quer dizer, me
ajudaram, consegui sair mas você sabe... foi uma vida de inferno, cara que eu passei,
uma vida de inferno. Porque você... Eu não conseguia dormir, eu não consegui viver
em paz porque você sair da onde você mora e ficar num lugar, que era de noite, você
escutando tiros e tiros e tiros e tiros e tiros lá na Vila Cruzeiro, porque aqui é ruim,
mas lá era pior.

Diferente de Dandara, por exemplo, que entende seus ganhos como uma forma de
compensação pelos impactos negativos provocados no território pelo próprio programa,
160
Madalena, sem deixar de criticar o que considera “erros do governo”, entende que o programa
melhorou a imagem do bairro. Para ela o “governo entrando foi que melhorou, mudou” a vida
das pessoas. Sua avaliação sobre o PAC é bastante positiva, pois com as “mudanças”
possibilitou o acesso aos serviços públicos e a parte dos bens da cidade, tanto de quem continua
no morro, quanto das pessoas que passaram a morar no conjunto Relicário. Madalena contou,
rapidamente, a história de um senhor que voltou a visitar a irmã, após sua mudança de endereço:
“O Seu Elias, meu vizinho lá da Pedra do Sapo, agora pode visitar sua irmã, que mora no outro
conjunto desses do PAC. Antes, ele não podia porque a bala comia solta lá pra dentro, na Rua
2”. Madalena reforça a ideia de um passado de esquecimento – “nós éramos ignorados” – e um
presente interpelado por um processo de incorporação da favela aos bens disponíveis na
dinâmica cotidiana da vida urbana.

Tudo bem que não foi lá grandes coisas, a maior parte do morro ainda está lá destruído,
mas ele ajudou e muito, ajudou e muito, ele teve erro, teve erro, mas também teve
muito acerto entendeu? Errou muito o governo, mas ele acertou em algumas partes,
ele acertou muito de tirar as pessoas em evitar as pessoas a morrer, em evitar de muitas
coisas acontecer, ele ajudou muito. Eu agradeço muito à Deus, entendeu? A gente não
tinha acesso a trabalho, a gente não tinha acesso a nada, porque nós éramos ignorados,
porque o Complexo do Alemão era mal visto, e como ficou mal visto por muito tempo,
agora com o governo entrando foi que melhorou, mudou... melhorou cem por cento!
Duvido quem subia no morro para entregar um gás, duvido quem subia no morro para
entregar um móvel, não subia não, taxi não subia morro, não subia mesmo, não subia
não. Hoje não, hoje sobe hoje tem uma ambulância sobe, fora disso não tem nada a
ver não, Bruno. Tinha isso não, não tinha mesmo, se passasse mal lá em cima tua ia
morrer lá em cima: e se ameaçasse um enterro? Ninguém subia, ninguém subia...
agora tem ônibus na porta, tem um mercado ali, temos facilidade de ir numa igreja,
temos facilidade de ir numa feira que é mais baixinho, eu pra mim foi até melhor agora
no apartamento pra ir pra médico entendeu? Porque eu tinha que descer lá do alto do
morro às cinco horas pra tá no médico às nove horas da manhã porque eu não tenho
como andar muito.

No entanto, com todas as mudanças positivas ressaltadas por Madalena, essa entende
que continua morando “no morro, na favela”, termos que são mobilizados para representar um
mesmo espaço de vida na cidade. Em um momento na entrevista, perguntei como ela enxergava
aquele novo lugar de moradia. Ela respondeu:

aqui continua morro, continua favela, continuação da favela do morro, só mudou o


endereço e o jeito da gente de viver, que é melhor, mas continua o morro, continua
favela, a gente não pode mudar essa história, nossa história, não pode mesmo! Somos
a mesma pessoa que moramos no morro, saímos do morro, continuamos aqui em
baixo, mas somos do morro.

161
“Continuar na favela” para Madalena significa a constituição de um ser no mundo que
ultrapassa os limites do tempo e do espaço vivido. Sua fala remete a um passado irremediável,
da formação de uma identidade que está diretamente associada a um lugar na cidade que não se
desfaz com a mudança de endereço. No caso, do Relicário, essa fala fica ainda mais evidente,
pois o conjunto situa-se no coração do Complexo do Alemão, encravado e torneado por um
conjunto de favelas que compõe a própria formação histórica, física e simbólica do bairro. Em
certa medida, Madalena essencializa a representação do “morador de favela”, quando afirma
que não importa o endereço e o novo “jeito de viver”, pois as pessoas continuam sendo o que
elas sempre foram no morro. Contudo, sua perspectiva não aponta para a necessidade de
superação de uma “identidade favelada” ou para um processo contínuo de mudança da
representação do “ser favelado”.
Como já mencionado no capítulo 3, Conceição (2016) aponta em sua tese os processos
pelos quais moradores de favelas buscam ressignificar, por meio de suas moradias, aquilo que
consideram representações estereotipadas. Desse modo, para o autor a nova moradia
possibilitaria uma espécie de movimento subjetivo de “limpeza moral” das identidades108. No
entanto o que se percebe em narrativas como a de Madalena é o oposto, pois, ela reafirma uma
identidade que constitui seu próprio ser no mundo. Na sua fala, ser favelada não significa um
fardo, mas a constatação de um fato. A nova moradia não orienta a vontade de mudança de
representação identitária, mas indica a continuidade de uma presença simbólica no espaço
urbano. Para ela, as pessoas são as mesmas e não podem mudar suas próprias histórias. Com
firmeza Madalena afirma: “somos do morro, não saímos da favela”.
No entanto, quando se recorda de sua antiga casa, do local onde vivia antes de chegar
no Relicário, Madalena exclama sem titubear: “tenho trauma do morro, meu filho, eu tenho
pavor! Eu não subo mais o morro!”. Durante nossa conversa, Madalena não negou sua
trajetória, mas construiu seu lugar de origem como um cenário de abandono e insegurança.
Possui familiares que moram na Comunidade Pedra do Sapo, mas não volta mais ao local. Sua
fala transitou entre um passado de dificuldades econômicas e escassez material, e as recentes
mudanças que ocorreram decorrentes dos desabamentos de encostas, após as fortes chuvas de
2010 e 2011, principalmente, com a manutenção (a não demolição) de casas que foram

108
O que eu quero chamar a atenção aqui não para uma possível imprecisão do autor sobre sua análise, pois tal
comportamento é muitas vezes observável nas relações entre os sujeitos da política. No entanto, cabe ressaltar que
o caso que trago como “um bom caso para pensar” demonstra que experiências similares podem gerar
interpretações e leituras distintas tendo em vista tamanha fragmentação e individualidade nos processos de
mudança, tanto na aquisição dos imóveis, quanto na experiência cotidiana da moradia.

162
esvaziadas, compulsoriamente, pela prefeitura e pelo governo do estado por estarem em “área
de risco”. Houve muitas invasões e ocupações de pessoas de outas favelas, tornando o local
“estranho” à antiga moradora da comunidade. Todo esse movimento provocou uma forte
sensação de descolamento em Madalena de seu lugar de origem.

Eu tenho trauma do morro, meu filho, eu tenho pavor, sem brincadeira, eu tenho pavor
de subir o morro porque eu tenho medo! Não é um medo de dar um tiroteio, mas é
muito animal, muito cavalo, aqueles bichos sabe que... cavalos que tem que comer
capim quer comer gente, corre atrás, sabe? Corre atrás da gente, eu tenho medo, eu
tenho pavor eu não subo mais... e tá muito deserto onde eu morei, agora tá muito
deserto, tudo acabado, só tem um... assim um... acho que um container da policia, um
sei o que lá pros homens, os policiais fizeram lá em cima no campo, perto da CUFA109,
tanto que a CUFA lá em cima acabou, não tem mais. Então, quer dizer saiu todo
mundo lá de cima e tá tudo deserto, não tem como você voltar ou passear e de repente
você tá passeando um polícia desse pensa que você veio olhar alguma coisa e a gente
nem trabalha, tenta evitar. Tem outros moradores lá em cima, tem bastante moradores
que veio de outros lugares [que] tão lá em cima numa invasão que teve, mas aí eles
agora são os principais, eles tem que ficar, são os personagens novos que têm que ficar
lá porque a gente que saiu, a gente não pode chegar lá e dizer: “eu morei aqui e isso
aqui foi meu!”. A gente não pode mais, porque dá um problema, dá um problema
sério, né? Porque eu já assim, assim, uns cinco anos e pouco, não tem como eu voltar
e falar. Não dá mais, se for vai ter problema, então a gente que fazer o quê? Tem que
subir como estranho e sair como estranho, entendeu? Esse é o problema. Vivi a vida
inteira lá e hoje sou vista como pessoa estranha! Não dá para entrar e falar fui daqui e
bater nos peitos e dizer tudo que eu vivi aqui.

Madalena ressalta sua sensação de insegurança quando se refere ao lugar onde morou
antes dos acontecimentos que provocaram sua saída do local. Sua mudança de endereço gerou
uma crença de impossibilidade de retorno à comunidade da Pedra do Sapo. Primeiro, pela
sensação de vazio sobre o lugar, tendo em vista os impactos que a localidade sofreu com as
chuvas, as desapropriações realizadas pelo PAC e a instalação de uma base da polícia militar.
“Agora está tudo deserto, tudo acabado... Não tem como você voltar e passear”. Segundo,
devido a insegurança que sente em relação a ideia de propriedade de sua casa no morro. Mesmo
com o título conferido pela Associação de Moradores, o que para Madalena coloca-se como
questão são as condições de uso e de reapropriação do imóvel. O fato dela ter saído de há tempos
e ter recebido a indenização retirava a garantia de que aquela casa era de fato sua. Ainda assim,
sabia que outras pessoas ocupavam a casa, tendo em vista a necessidade presente de moradia
no bairro. Aqui o valor de uso se sobrepunha ao qualquer direito de propriedade. Terceiro, ela
já não conhecia as regulações no local que norteavam as relações entre moradores no local.

109
Fundada pelo rapper MV Bill e o produtor Celso Athayde, a Central Única das Favelas (CUFA) é uma
organização não-governamental que promove ações com jovens de periferia cujo o objetivo é promover
“atividades nas áreas de educação, lazer, esportes, cultura e cidadania (…) como ferramentas de integração e
inclusão social”. www.cufa.org.br/sobre.php Acesso em 21/06/2017.
163
Com a sua saída, “personagens novos”, como ela bem cita, vão elaborar e praticar novos
acordos de convivência naquele espaço. Depois de cinco anos, Madalena tornou-se uma
estranha em sua própria comunidade de origem. Nunca mais voltou ao local.
Madalena afirma ter uma excelente relação com seus vizinhos no Relicário. Chamada
de “vó” por outros moradores, orgulha-se por ter “muitas amigas, até em outros blocos”. Desde
de que chegou ao Relicário conta que sempre recebeu o apoio dos vizinhos que se solidarizaram
com suas condições iniciais. Como relatou, Madalena perdera quase todos os pertences que
formavam sua residência no momento em que teve que abandonar sua casa na comunidade. Ao
chegar no Relicário recebeu a doação de móveis e utensílios domésticos feita pelos próprios
moradores do conjunto residencial. Relembra “como foi tudo muito bonito” no início da
ocupação do Relicário, como as pessoas eram solidárias umas com as outras. “Todo final de
semana tinha uma festa pra todo mundo se conhecer melhor, eram muitas confraternizações”,
relembra com um semblante saudoso. Mas, fez questão de afirmar: “cada um no seu quadrado”.
Para ela, “no momento que tu larga teu quadrado e invade o quadrado dos outros, daí saem
coisas que você nem imagina, entendeu?” Considera a privacidade um valor fundamental para
uma boa relação com os vizinhos. Disse-me: “só vou quando me chamam, e me chamam toda
hora!”.
Algumas questões são sensíveis para Madalena quando representa sua moradia no
Relicário. Uma delas é o tamanho do apartamento. Considera os 42.01 m2 “pequeno demais”
para ela. Sente falta do quintal de sua antiga casa, do amplo espaço que possuía: “eu andava,
plantava, respirava livre, Bruno”. O tamanho do seu apartamento foi uma questão importante
para o que ela mesma chamou de “processo de adaptação no lugar”. Contou que em diversos
momentos sentiu-se aprisionada e que deixava a porta da sala aberta para “ampliar sua visão”,
pois se sentia como um “passarinho preso em uma gaiola”. Do mesmo modo, ao longo da
entrevista, elogiou com entusiasmo as instalações prediais: pintura, qualidade da construção,
sistemas elétrico e hidráulico etc.: “isso aqui é coisa boa! Até hoje só teve uma rachadura, mais
nada!”, contou empolgada.
Sua leitura sobre a segurança – não só no Relicário, mas no próprio bairro como um
todo – contrasta em parte com as interpretações de Tomé. Madalena não deixa de se posicionar
criticamente em relação a “guerra”, mas considera que hoje a situação é melhor. Sua referência
para uma avaliação mais positiva da situação atual são as lembranças das sucessivas guerras e
disputas territoriais que ocorreram entre facções rivais responsáveis pelo comércio de drogas

164
no Complexo do Alemão nos anos 1990. Quando perguntei como sentia atualmente a violência
na região, ela respondeu:

Tudo bem que tem essa guerra aí, mas essa guerra que tá aí é temporânea, daqui a
pouco passa... com certeza que passa, com certeza, é só o governo diminuir um
pouquinho, ter um pouquinho de pena da polícia também, saber que polícia também
morre, entendeu? Saber que polícia também morre... não é só bandido que mata não,
polícia mata, mas também polícia morre muito, então ele tem que saber dividir as
coisas, tem que saber separar: polícia é polícia, bandido é bandido. Mas não, eles
querem misturar os dois, e quando mistura os dois não tem como não ter uma guerra,
entendeu? Não tem como não ter uma guerra. Aí como eu tava falando pra você, morar
no Complexo do Alemão é bom. Foi bom quando não tinha guerra. Começou a ter
essa confusão, esses atritos, acabou o Complexo do Alemão. Você não tinha mais
lugar pra ir, você não podia descer o morro, [se] você descesse o morro, passasse aqui,
a favela dali invadia, já batia, se pegasse o morador ali na rua já quebrava no pau.
Então hoje a gente vive no Complexo do Alemão, eu continuo morando no Complexo
do Alemão, mas digo pra você: mudou muito, mudou muito! Tá cem por cento melhor
do que era.

Sobre sua percepção da violência a partir do Relicário, ela diz:

Meu filho vou ser sincera pra você: aqui dentro não. Aqui nesse condomínio aqui não
tem violência. Aliás, todos os condomínios que têm não tem violência. Não tem. Esse
negócio de tiroteio, de ver matança, de ver polícia batendo, tem na ronda da polícia,
que é de lei, tem que ter, que o Complexo do Alemão tem que ter. Qualquer favela
com... tem que ter, porque aqui continua sendo favela, então eles tem que vir fazer a
ronda deles sim. Às vezes sai um tirinho, sai uma confusãozinha entre eles ai... mas é
normal, o normal. Mas, assim, vou ser sincera pra você, não tenho... assim... assim...
graúdo por baixo, bandido, não tem, você pode ver aí que não tem, não tem esse
negócio de bandido... alguém pode ter, se tem eu não vejo entendeu, mas, não tem
aquele atrito, aquele bater de frente, eu vou dar tiro, eu vou fazer... não tem mais, não
tem graças a Deus, eu vivo na santa paz, meu Deus! Aqui você vê, minha janela não
tem grade, e é primeiro andar, ninguém mexe, ninguém toca em nada que é meu, mas,
eu não tenho nada pra ninguém mexer também, mas mesmo que aqui é principal, né?
Ninguém faz nada aqui, mas eu vou ser sincera pra você, entre confusão de guerra de
polícia... polícia tem que ter, ah! tem... precisa, mas entre bandido e polícia aqui não
tem, eu digo pra você que não porque não tem, aqui nesse pedaço que a gente mora
não tem. Se eu disser pra você [que tem] coisa de polícia, aqui não tem, tem normal
deles mesmo da ronda deles mesmo, vem por cima desce a escada, passa por aqui,
olha tudo, mas aí é um jeito de segurança também, né? Não é tanto pra invadir, que
aqui eles nunca entraram, até porque não tem motivo, não tem motivo, que aqui dentro
se tiver uma confusão é um bate boca segundo os moradores, mulher com mulher,
rasgação de mulher, ou seja, mulher briga, que mulher é um inferno! Que mulher com
mulher é um inferno! Quando começa a botar a mão quer agarrar o cabelo, mas quando
chega no outro dia tá todo mundo bem, não acontece mais do que isso, a treta se
resolve aqui mesmo, não passa disso, é tudo tranquilo.

Enquanto conversávamos sobre a questão da segurança, Madalena falava em um tom


mais baixo. Diminuía a intensidade das palavras sempre olhando rapidamente para o lado de
fora da porta. No entanto, fazia questão de marcar a diferença entre o lado de fora e o lado de
dentro do Relicário. “Não há graúdo aqui por baixo”, disse-me, indicando que não há “bandido”
do alto escalão do “tráfico” morando dentro do Relicário. Dessa maneira, não haveria motivo

165
para que a polícia transitasse muito pelo Relicário, ou até mesmo, invadisse os apartamentos e
realizasse operações de busca e apreensão sem mandado expedido pela justiça, prática
recorrente nas favelas. Esse é um ponto importante que explicaria uma certa ausência de
policiais no interior do Relicário, diferente de outras partes do Complexo do Alemão. Para
Madalena, essa é uma das principais questões que marcam a diferença de práticas que envolvem
a segurança dentro e fora do conjunto. Da mesma maneira, o fato de não ter nenhum “graúdo”
faz com que as pessoas resolvam entre si suas próprias desavenças, deixando de se recorrer ao
“dono da boca”.
Das questões que conversamos sobre a vida no Relicário, o que mais a mobilizou foi
sua experiência como síndica do Bloco N. Durante quatro anos, desempenhou a função que
resultou em sérios problemas na sua relação com outros moradores. Para ela, “quando envolve
dinheiro, onde rola dinheiro, tem dificuldade. O dinheiro é inimigo de qualquer pessoa”.
Madalena denuncia, basicamente, as mesmas questões apontadas por Tomé. A falta de
pagamento da taxa (trinta e cinco reais), de compromisso com a conservação do espaço comum
e, principalmente, a grande desconfiança dos outros condôminos em relação ao síndicos seriam
as suas principais dificuldades para continuar à frente da gestão condominial.

Porque é difícil ser síndico aqui nesse prédio... Porque é difícil? Dinheiro. Onde rola
dinheiro tem dificuldade. O dinheiro é inimigo de qualquer pessoa. Falou em dinheiro,
Bruno, você é sindico, você sabe, fala em dinheiro você tem que prestar conta de tudo,
de tudo que você faz, de dez centavos que sai da conta você tem que prestar conta,
entendeu?... Porque desde o momento que entra um dinheiro teu, você me deu um
dinheiro, eu fiz um recibo e te dei, aquilo ali vai pro livro, vou botar na ata ali, vou
botar no outro livro, porque nós temos que ter dois livro, caixa um e caixa dois, tem
que ter, e ali eu vou anotar. E aí, se eu for tirar um dinheiro dali eu tenho que anotar
o que eu tirei e botar ali: comprei isso, pegar a notinha, botar no quadro lá pro pessoal
ver o que eu comprei. Só que eu tava fazendo isso, eu tenho nota de tudo lá dentro
guardado, tenho o livro, tenho o caderno, tenho a ata, tenho tudo, só que não tava
dando mais, não tava batendo mais, uns pagavam outros não pagavam. Então o que
eu fiz? Reuni todos eles e falei pra eles: já que é para meia dúzia pagar e os outros
ficarem olhando, curtindo, é melhor ninguém pagar mais nada. Foi onde que eu cortei,
aí eu parei. Porque o dinheiro faz qualquer pessoa brigar até matar, tá? Por que? Teve
época d’eu tá aqui dentro com quatro mil reais porque na época eu não consegui fazer
conta, abrir conta, que falaram pra mim: “ah, tem que ter CNPJ”. Eu falei: “tudo bem,
tem que ter, então vamos lá pra tentar, quer dizer, fui lá e consegui abrir a conta”. Fiz
conta condomínio, mas fiz. Aí ninguém tirava [o dinheiro], só tirava as três pessoas
que foram comigo: eu e mais duas pessoas [do conselho gestor]. Fui abri a conta ali
na Caixa [Econômica Federal], aí o que que acontece, fiz, conversei com o gerente de
lá e ele falou: “Dona Madalena, se a senhora quiser a senhora não precisa mais receber
esse dinheiro... a gente marca uma reunião e o pessoal passa a pagar aqui na Caixa”.
Mas Bruno, sabe o que e a pessoa ignorante, leiga? Ah, porque vai roubar, porque vai
roubar! Até o gerente do banco eles achavam que ia roubar! Eu falei: bom já que se
vocês não querem pagar é diferente de vocês quererem suspeitar de um gerente se ele
trabalha dentro do banco até hoje, ele não roubou até hoje! Quem tem vai roubar a
gente? Aí, quer dizer, não quiseram, não aceitaram, eu também não quis mais. Aí quer
dizer, os quatro mil que tavam, consegui juntar, fazer reparo no interfone que quando

166
eu botei foi R$ 1.260, foi o que eu paguei e muita coisa Bruno... tem sensor, tem muita
coisa! Tentei Bruno, tentei botar cadeado nessas caixas de incêndio, consertei as
portas do PC [de luz] lá trás, botei cadeado lá em cima no telhado, entendeu? Muitas
coisas que eu mudei, mas sabe o que é você mudar as coisas e você não ver que tá
dando resultado? Você vê que a pessoa tá ali, tá só te fisgando, te fisgando, acabando
contigo, foi o que aconteceu comigo. Então, fui desanimando... porque você limpava,
limpava, como você vê aí, tá tudo limpinho! Só esse piso aí foi 1, 5 e pouco, R$ 1.522,
o piso e a argamassa, o mais barato, porque ninguém gosta de pagar nada, pobre,
ninguém gosta de pagar nada, quer ter bonito, mas não quer pagar, então, foi que eu
desisti, desanimei, sabe? Fiquei chateada, porque, poxa, é tão bom gente a gente ter
as coisinhas limpinha, é sempre uma lixeira danada, chega aqui só tiro a lata do lixo,
não ia dar certo. Quer dizer, aí pra pintar isso aí, não deu pra pintar, porque ninguém
queria pintar mais nada. Quer dizer, esse dinheiro que tava no banco eu tirei tudo, fiz
o que eu pude fazer, consertei essa portaria aí que escangalharam de novo, aí vou
chegar onde você quer...

Conforme a conversa se desenvolvia, comentei que, naquele momento, eu também


desempenhava o papel de síndico em um prédio antigo em Copacabana, datado dos anos 1960,
onde 80% das famílias residentes estavam no prédio desde a sua inauguração. Dentre alguns
relatos, contei que também havia alguns condôminos que não pagavam as cotas condominiais,
e que essa era uma questão recorrente na maioria dos conjuntos de prédios com condomínio
instituído110. Disse que sobre a minha experiência frente ao condomínio, a questão que se
colocava com muita incidência era o desrespeito que alguns moradores demostravam às regras
pactuadas em assembleias ordinárias. Da mesma maneira que Tomé e Madalena, tive a
legitimidade da representação de síndico questionada por moradores mais antigos que sentiam-
se afrontados com questionamentos meus a respeito de seus privilégios no condomínio,
resultando, inclusive, em um pedido de destituição do cargo. Tornavam o espaço comum em
espaço privado. Quando terminei de contar, Madalena riu, balançou a cabeça em sinal negativo
e, imediatamente, contou o que ocorreu com ela: um novo morador chegou e “tomou” o
condomínio. Sem que houvesse qualquer processo eletivo, o novo vizinho se autodenominou
síndico, ameaçou os outros moradores e passou a tomar decisões sem que os demais tomassem
conhecimento ou aprovassem em reuniões ou assembleias.

O que que acontece, me veio uma menina daqui e me arranja um marido. Esse marido
me chega como síndico aqui dentro sendo que eu sou síndica. Me chega como síndico
aqui, aí começou a catar dinheiro dos moradores todos aí. Fez uma reunião aqui em
baixo, perto da minha porta e virou pra todo mundo e disse: “Ah! Porque tem que
pagar condomínio a partir de agora. Vocês são obrigados a pagar, que se vocês não
pagar por bem, vocês vão pagar na marra... aí olha só!” Primeiro, eu comecei a rir,
segundo que eu não vou pagar. [Ele disse:] “Aí, agora o que a gente faz com ela? [Ela
respondeu:] “Ué, me expulsa daqui se você puder e paga meu aluguel!” Porque Bruno,

110
Segundo dados do Sindicato da Habitação do Rio de Janeiro (SECOVI Rio) as taxas de inadimplência
condominial registrados em todo o município variaram entre 7,68% (mar. 2010) e 14,55% (jan. 2015) no período
de janeiro de 2010 a julho de 2015, configurando-se um tipo de situação que não deve se restringir a um tipo
específico de organização condominial.
167
é aquele negócio, se ele estava e não dava recibo pra ninguém, sabe, não dava assim,
satisfação pra ninguém, as notinhas eles gastava... tirou a mola que tava aqui na porta
de vidro aqui [e] botou lá pra fora... ele tá aqui ainda, ele mora com a menina daqui
de dentro que é proprietária daqui, ela que é dona do apartamento, ele veio morar
porque ela é a dona! Aí mexeu ali, botamos a grade ali cada um pagou 15 e pouco
reais pra essa grade, pra botar essa grade aí, pra ter mais segurança. Ele estragou essa
porta de vidro aqui, tirou a trava de segurança e não fecha mais essa porta, essa porta
não fecha mais, então, acho que isso é que fez a gente sofrer que desanimo. Aí discutiu
comigo, tentou me agredir, ih... tentou fazer com que...é.. só que eu falei pra ele: aí
meu amigo enquanto você tá falando, tá bom, não pode é tocar em mim porque se
você tocar em mim você vai ver como se resolve esse problema. Eu não vou brigar,
não vou misturar fulano e cicrano, eu vou procurar meus direitos. Primeiro que eu sou
pessoas idosa, segundo que eu tô te tratando com respeito, terceiro que aqui você
chegou agora, e a gente quando chega entra no ônibus agora tu vai sentar na janelinha?
A gente tem que aprender a respeitar quem tá lá, respeita quem tá lá pra depois você
chegar. Foi quando eu mudei. Aí ficou um bom tempo de implicância, um bom tempo
de implicância. Só que eu não dei mais confiança.

O conflito que se estabeleceu entre o novo vizinho e Madalena a deixou, em suas


próprias palavras, “perturbada e aflita”. Ao mesmo tempo em que demonstrava revolta com a
forma como foi tratada, revelava sua decepção com os desdobramentos das “coisas do prédio”
e a maneira como os outros moradores a interpretavam. Não queria mais saber do condomínio,
pois, entendia que tinha realizado tudo dentro das regras e formalidades necessárias para a
transparência de sua condução frente aos demais moradores e esses não reconheciam sua
honestidade. O grau de desconfiança imposto pelos demais ao seu trabalho começava a crescer
e uma rede de intrigas e difamações pautou algumas relações dentro do bloco onde mora
Madalena.

[...] porque você no condomínio, [por]que você é sindico, você sabe que tem sempre
um que tem um pé, um dedo sujo, o que fala demais, e aqui tem, aqui tem, um que
fala demais, quer ser o bonzinho e o melhor, então chega ali e fala coisa que não deve.
Até você confirmar e afirmar que não é nada daquilo a coisa já tá dando ruim. Então,
é aonde eu larguei tudo de mão, Bruno. Larguei mesmo, não boto mais a mão...
tentaram me chamar: “Ah, Dona Madalena, volta, porque a senhora foi a melhor que
teve aqui”. Eu falei: “fui a melhor até a página 5, Roberto. Da página 5 em diante eu
não fui a melhor, sabe por causa de quê? Porque desde o momento que eu levo o nome
de ladrona vocês têm que provar se eu sou ou não. Vocês não provaram nada, então,
portanto, não dá pra voltar. Eu vou ficar continuando com a mesma fama de ladrona,
então ó, chega! Não entro mais, não saco mais nada, se eu vejo um troço caindo ali
fica porque eu não meto a mão mais.

E segue:

Veja o condomínio sujo lá em cima - ainda tá limpo - bonitinho, o que que ele fez?
Pegou as chaves, limpou lá em cima, pintou do jeito dele lá em cima, aí fez tipo um
condomínio só pra ele lá em cima. Então, é onde que ele não aceitou minhas ideias e
eu não aceitei as ideias dele. Então é cada um pro seu lugar. Ele faz o condomínio
dele ali no quarto andar até onde ele puder, no que dia que der, até o dia que dá. Porque
do pessoal do terceiro andar pra baixo a gente faz uma reuniãozinha, compramos um
tinta simples que aqui tinha que ser verde. Mas ele não fechou lá em cima! Ele não é
doido, ele não tá maluco! Ele sabe que não pode, que não pode fechar. Pintou tudo,

168
botou lixeirinha, tudo tá bonitinho. Tudo bem, tá tudo bonitinho, mas o que que ele
tinha que fazer? Conversar com todo mundo, mesmo com bronca de mim. Ele tinha
que conversar com os moradores todos, ia mostrar as notas, gastei tanto, tá aqui. Mas
ele não mostrou, o dinheiro fica todo pra ele. Você acha que ele tá errado? Tá errado!
Ele tinha que fazer o quê? Dona Madalena - que mesmo com raiva de mim - eu vou
chegar lá em cima e vou pintar. Porque ele ficou com raiva? Porque eu avisei pro
pessoal: “vocês não vão pagar condomínio pra ninguém porque ele não tá botando
recibo de condomínio pra ninguém.” Se ele não tá dando recibo como garantia como
que você vai pagar condomínio?

Nos dois trechos Madalena tanto reclama das suspeitas sobre sua idoneidade, quanto
revela o desejo de seu retorno às funções de síndica. Da mesma forma, o novo morador passa a
organizar o espaço comum do andar em que mora, somente o quarto andar e deixa o restante
do prédio de lado. Com essa aparente divisão da organização do espaço interno do prédio, o
que Madalena traz em sua fala como questão central é a disputa da legitimidade na
representação dentro do Bloco. Desse modo, o que ocorre é uma sobreposição de representações
que se sustentam em ordenamentos distintos que buscam a legitimidade da obediência: o das
normas coletivamente pactuadas representadas na figura do síndico; e o da força e ameaça
individual sobre um grupo representado pelo novo morador. Com o passar do tempo, Madalena
indicou que houve um novo pacto para a organização do condomínio. Ela reuniu-se com os
demais moradores do bloco e definiram os limites de cada grupo. Recorreu a sua interpretação
sobre o seu lugar no mundo, mobilizou “a comunidade” e reorganizou a gestão condominial do
terceiro andar para baixo. A figura centralizada do síndico acabou e as decisões passaram a ser
pactuadas em pequenas e informais reuniões entre vizinhos.

Por que eu estou falando isso pra você, eu tive momentos bons, bom eu tive sim, mas
também tive momentos muito ruins aqui dentro, momento muito ruim, de pensar
assim: ah, será que eu vou sair, será que alguém vai me bater? E ter que encarar e ter
que sair, e andar de cabeça erguida, pras pessoas vê que não é assim, que eu não ia ter
medo, eu não me intimidei. Continuei saindo, continuei andando, continuei na minha,
entendeu, e por aí muitas, muitas... isso foi só essa pessoa, mais ninguém.

Ao final da entrevista, Madalena fechou sua fala com um desabafo que sintetiza a
maneira como entende o lugar em que está situada e os valores que permeiam as relações sociais
no Relicário: individualidade, disputa e distinção ilustrados a partir da referência à ruas de
bairros nobres da cidade, em contraposição ao lugar da favela como o lugar da comunidade, da
ajuda e da colaboração.

Vamos ter consciência... da onde a gente viemos? Comunidade. Aonde nós estamos?
Comunidade. Nós não saímos da favela. Nós não tamo na Vieira Souto [bairro de
Ipanema], nós não estamos em Copacabana, nós estamos dentro da favela, então,
portanto, não tenta subir, deixar a bola subir pra cima, vamos parar e pensar e olhar
com olhar de humano, de gente, e não de vodu, de olho grande.

169
6.4 “Cheguei com vontade de mudar, mas cansei”

Junto com Dandara, Mateus foi um dos primeiros moradores que conheci quando
cheguei ao Complexo do Alemão, após as chuvas de abril de 2010. Na época, nosso contato
ocorreu na dinâmica do cadastramento das famílias desabrigadas. Mateus era um dos
representantes dos moradores que se dirigia a mim enquanto gestor do PAC. Como Dandara,
Mateus também esteve abrigado no Vila Olímpica da Prefeitura do Rio.
Desde o nosso primeiro reencontro na reinauguração da academia, Mateus demonstrou
interesse em falar sobre as “questões dos predinhos”. Sentia que em alguma medida minha
presença significava para ele a oportunidade que precisava para fazer denúncias guardadas
desde o seu processo de mudança. Afinal, eu era o único “do governo” que, até então, havia
retornado depois de sete anos. Essa, inclusive, é uma de suas críticas principais ao programa
governamental no Complexo do Alemão: o “abandono”.
Nossos primeiros contatos no Relicário ocorreram sempre envolvidos por uma
atmosfera de reconhecimento institucional, o que depois foi se dissipando. Por um lado, minha
vontade mostrava-se anunciada em ouvi-lo, pois queria saber como sua vida havia se
desdobrado no Relicário. Mesmo que, de alguma forma eu negasse, havia um desejo íntimo em
saber se o meu trabalho havia incidido sobre vida daquela pessoa e, se sim, como. Por outro,
havia a necessidade de Mateus desabafar sobre seu cotidiano no conjunto residencial, parecia
aproximar os interesses de cada parte. Sabíamos um pouco da nossas trajetórias que envolviam
aquela realidade da moradia no Relicário. Precisávamos somente, como dizem, “trocar uma
ideia”.
No entanto, o agendamento para a entrevista não aconteceu facilmente. Pelo contrário.
Mesmo com o conhecimento prévio que tínhamos um do outro, estabeleceu-se entre nós um
processo de negociação implícita que se desenvolveu ao longo de alguns meses. A imagem de
gestor público ainda fazia-se muito forte em sua representação sobre mim, fazendo-o
demonstrar sempre um ar de desconfiança. Essa dubiedade de sentidos sobre nossas alteridade
fez com que Mateus se demonstrasse cauteloso com as palavras, mas sempre disposto a falar
sobre as condições físicas e a situação jurídica dos “predinhos”. Como minha “fachada” de
gestor ainda se destacava para ele, suas intervenções tinham sempre um conteúdo de denúncia
e reclamação sobre a maneira como o governo tinha concluído o programa: “finalizou e nos
abandonou”. No entanto, como alguém que sempre tinha algo importante a revelar, quase
sempre com um sorriso no canto da boca e um olhar enigmático, repetia a mesma frase sempre

170
que tinha oportunidade: “Rapaz, quando chegar a hora eu te conto, tem coisas aqui que é melhor
ficar calado.”
Mateus foi um dos protagonistas no movimento dentro do Relicário para fechar a
passagem que permitia o trânsito de moradores da favela vizinha por dentro do conjunto
residencial. Na época, em que ocorreu o embate entre as partes, Mateus revoltou-se com o que
definiu como um “absurdo”: defendia que o Relicário se tornasse um “condomínio fechado”.
Suas expectativas em relação a nova realidade de moradia, levou Mateus a considerar
inaceitável as idas e vindas dos “favelados” pelas ruas que cortam o terreno. Em uma ocasião,
logo que soube que a passagem permaneceria aberta, esbravejou,

Mano, esses favelados ficam passando por aqui, quebram a porra toda dos brinquedos
do parquinho das crianças, fumam crack, fazem uma zona do caralho [...] não quero
esses favelados passando aqui não! Se não vira bagunça igual lá em cima!

Mateus desejava outro tipo ordenamento naquele espaço do Relicário. Em sua


obstinação para transformar o Relicário e acabar com a “bagunça” – termo muito utilizado não
só por ele, mas por outros moradores do conjunto para designar um estado de desordem –, logo
no início da ocupação, Mateus tomou algumas iniciativas para “organizar” o espaço.

Quando eu vim pra cá comecei a pegar, a organizar [...] já que eram as crianças que
sujavam, comecei a fazer uma social com as crianças. Falei: “pô, faz o seguinte, eu
pago a Coca-Cola, pago a Coca, todo mundo varre a praça”. Aí beleza, as próprias
crianças que sujavam limpavam... as mães e os pais em casa, viam eu arrumando as
vassoura pras crianças, botar as crianças que sujaram pra varrer... eu ainda
compensava as crianças que estavam varrendo... aí teve um pai que falou pra mim:
“vem cá, meu filho não varre nem na minha casa, vai varrer o pátio pra você por causa
de quê?” [Mateus] “porque seu filho sujou.” [pai] “meu filho sujou? Meu filho é um
só. Olha quantos tem aí pra sujar.” [Mateus] “por isso que seu filho tá ajudando todo
mundo.” [pai] “mas, meu filho não vai fazer isso não. E se eu ver você fazendo isso
de novo eu vou te processar!” Eu ainda fui ameaçado de processo, Bruno! Aí fui
ameaçado por um de processo na justiça, pela polícia, ia chamar a polícia pra mim, e
o outro pelos bandidos. Porque ele falou que se eu botasse o filho dele pra varrer ia
“marcar” pra mim. Aí isso desanima, entendeu? Cheguei com vontade de mudar.
Desanimou. Comecei a largar. Aí depois que comecei a largar de tudo ficou melhor
ou pior?

Em um primeiro momento, a fala de Mateus nos remete ao esforço individual de alguém


que, preocupado em construir um ambiente limpo e organizado, inicia sua empreitada junto as
crianças com um viés educativo de formação em prol da coletividade daquele novo espaço de
moradia. Por outro lado, a iniciativa de Mateus também nos leva a pensar sobre sua disposição
um tanto quanto voluntariosa para “organizar” os espaços de uso comum, sem que ao menos
combinasse com os demais moradores, ilustrados aqui pelos pais das crianças. Ao longo do

171
tempo em que estive no campo, Mateus foi o morador que mais mobilizou em suas narrativas
a ideia de “busca da ordem” no Relicário. Com as experiências no dia a dia do conjunto, passou
a resignar-se sobre o que para ele “não tinha mais jeito”. “A bagunça dominou geral”: frase que
repetiu algumas vezes para mim. É nesse conflito entre o “dever ser e o que é” que Mateus
constrói sua representação sobre seu lugar de moradia no conjunto Relicário.
Concomitante a sua empreitada individual, orientou-se também pela lógica da
organização da política local e defendeu a fundação da Associação de Moradores do Conjunto
Residencial Relicário como meio para a “organização” do espaço. No seu entendimento, a
associação deveria atuar como instrumento de ordenamento no cotidiano da moradia no
conjunto e como representação reconhecidamente formal do Relicário, diante das outras
associações e lideranças locais e governamentais. Quando retornei ao campo de pesquisa,
soube, de imediato, que tal associação existia, mas, que Mateus não fazia mais parte dos quadros
administrativos. Havia ocorrido um “racha” no grupo fundador e Mateus ficou de fora. Desde
o início, ele entendia que a associação só poderia funcionar se houvesse a contribuição em
dinheiro de todos os moradores do Relicário e de um espaço dedicado para a administração
local, o que na prática não ocorreu, como foi mostrado no Capítulo 3.
Ao longo do processo de pesquisa, não estabelecemos uma relação de maior
proximidade como imaginei no início deste trabalho, mas sempre que nos encontrávamos nas
minhas idas e vindas ao campo uma conversa se iniciava. Em cada encontro, Mateus deixava
subentendido o conhecimento que compartilhávamos de toda sua história até a chegada ao
apartamento. Depois de um longo período de negociação, agendamos uma entrevista. No dia
marcado, nos encontramos em um dos conjuntos de bancos e mesas de cimento localizados no
pátio da Parte Baixa do Pavimento 2, entre os blocos G, F e H, local onde esta situado seu
apartamento. Perguntei se não seria melhor um lugar com menos barulho, pois há sempre muitas
crianças brincando no local, carros e motos circulando, música em alto volume, moradores que
passam e interrompem a conversa, mas ele respondeu, que ali na rua seriam melhor, pois todos
poderiam ouvir o que ele tinha a me dizer. Mais tarde, conversando com outras pessoas, entendi
que a exigência de Mateus para que a entrevista fosse pública estava relacionada com as
sucessivas dificuldades que ele encontrava para fazer valer suas posições internas. Mateus havia
rompido relações com outros síndicos do Relicário e sua permanência como membro da
associação de moradores havia causado divisões internas no grupo, pois Mateus apoiava um
político local que não se aliava com a maioria dos membros da associação. Assim, ter alguém
de fora como eu, visto por muitos como um ex-gestor público ao seu lado, poderia causar algum

172
tipo de impressão nos outros sobre os seus “contatos”, ou seja, uma possível influência que teria
com alguém reconhecido com maior status ou poder. Naquele momento, eu acatei sua sugestão,
pois, se não fosse assim, entendi que não seria de outro jeito.
A entrevista ainda teve a presença de outro morador que já se encontrava no local: Josué.
Tanto Mateus quanto Josué vieram da Comunidade Pedra do Sapo. A projeção inicial de uma
entrevista exclusiva não aconteceu. No entanto, a dinâmica da conversa à três rendeu narrativas
que se complementaram à medida que nosso papo transcorria com certo grau de naturalidade.
Ressalto que mais tarde, Josué tornar-se-ia uma importante referência para mim no decorrer da
pesquisa. Josué era um dos “relíquias” e Paulo, o interlocutor e amigo mais próximo que fiz
dentro do Relicário.
No início da entrevista Mateus fez questão de afirmar suas “origens”. Chegou ainda
criança na Comunidade Pedra do Sapo. Vindo com seus pais de uma outra favela carioca, a
Favela do Rôla, localizada em Santa Cruz, Zona Oeste da cidade, cresceu em uma família de
quatro irmãos. Ao se lembrar da época em que moravam no topo do morro, Mateus conta ter
vivido uma vida com muitas restrições,

Eu era pequeno quando meu pai veio pra cá [...] lembro que a nossa casa lá no morro
era um minhocão, Mano. Era pequena, estreita e comprida. Parte de madeira, parte de
estuque, a casinha daquela era um carro. (MATEUS).

Mateus permaneceu na comunidade com sua esposa e seus dois filhos até o dia em que
a terra deslizou e a sua casa rachou, e a de muitos de seus familiares e amigos desabou. Ao
longo da entrevista, relatou uma série de acontecimentos relacionados as seguidas chuvas no
morro que comprometeram a estrutura física de sua casa. Outras tempestades caíram sobre o
local antes das chuvas de abril e ajudaram a “minar a terra”.
No entanto, Mateus fez uma observação, que eu já havia escutado de outros moradores
da mesma comunidade Pedra do Sapo, questionando a tese do “desastre natural”: com as
intervenções do PAC no morro – fundações na terra para construções, trânsito de caminhões,
de escavadeiras e de muitas pessoas – muitas casas foram danificadas e condenadas em sua
estrutura. Além disso, surgiram diversas “minas d’água” que não existiam ou foram ampliadas
em sua extensão e força. Os impactos no solo, além de afetar as construções existentes no local,
alteraram o curso das nascentes e a localização dos poços de água no morro. Com as fortes
chuvas “verdadeiras corredeiras desceram o morro todo, levando tudo o que tinha pela frente”.
Esse foi o começo da “peregrinação” de Mateus, Josué e tantos outros moradores da
Comunidade Pedra do Sapo em busca da solução para o desabrigo.
173
Foi uma peregrinação junto ao governo para resolver a situação, parceiro. Barranco
desceu, soterrou a casa do lado da minha, da minha cunhada e isso afetou a minha. Só
apareciam rachaduras de colocar os dedos! Então, a gente começou a peregrinação,
né? E a gente vê que quando a gente foi bater na porta do PAC Social... eu bati lá no
portão e mostrei que aquilo poderia também ser impacto de obra, porque tava
aparecendo minas d’águas depois que iniciou as obras.... mas, começou a aparecer em
lugar que ninguém imaginava... aonde era um filete de água começou a descer uma
corredeira, levando tudo o que tinha pela frente! (MATEUS)

Josué emenda na fala de Mateus:

Aquela área que a gente morava ali sempre teve minas d’água… mas, depois que eles
começaram a mexer lá no canto, piorou. E ali era uma ladeira muito íngreme. Porque
eles fecharam os poços que tinham lá em cima. Lá em cima tinha um lugar lá, atrás
do campo, ali era um poço que cabia milhões de litros d’água, então, a chuva escoava
para ali, muita água segurava, eles deixaram plano ali, deixaram plano lá em cima o
poço da Dona Maria. O que começou a acontecer? A água descia muito forte. A água
começou a procurar um lugar pra sair. [Perguntei se achava que os desabamentos
tinham relação com as intervenções do PAC. Ele respondeu: Acho não, tenho certeza.
(JOSUÉ)

Mateus relata que nos momentos que sucederam os primeiros deslizamentos no morro,
passou a relacionar-se, direta e constantemente, com algumas representações governamentais
que acompanharam os efeitos daquela tragédia anunciada. Como já relatado em outras
entrevistas, desde o início da implementação do PAC, houve sempre nas falas dos moradores
um descontentamento com a forma como os técnicos relacionavam-se com o que podemos
chamar de “saber local”. Em muitas situações, moradores evidenciavam aos engenheiros e
responsáveis pelas obras que um tipo de ação poderia causar desdobramentos negativos na
comunidade, como foi o caso da fundação de uma das construções no topo do morro que
precisou ser refeita devido a característica do solo, previamente, anunciada pelos moradores.
Victor Valla (1996) em seu trabalho sobre a relação entre saberes especialistas e saberes locais
destaca a dificuldade que técnicos e mediadores no campo têm para escutar os moradores de
favelas e periferias da cidade. Para o autor a dificuldade está na capacidade em reconhecer que
a cultura popular coloca-se como “teoria imediata”, isto é, “um conhecimento acumulado e
sistematizado que interpreta e explica a realidade” (VALLA, 1996, p.177).
Diante do cenário de completa destruição, Mateus diz que a disposição do governo em
interditar as casas e negociar com o moradores ocorreu devido a percepção dos próprios
gestores de que “pior que estava por vir”. Inclusive, a possibilidade de se contabilizar mais
mortos e desabrigados poderia impactar negativamente aquele ano de 2010 – ano eleitoral, em
que Sergio Cabral Filho e sua base de governo na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de

174
Janeiro buscavam pela reeleição, juntamente com a eleição da então candidata Dilma Rousseff,
sucessora do Presidente Lula para o Governo Federal.
Contudo, Mateus considera as chuvas de abril um “divisor de águas” em sua vida. Para
ele, o evento trouxe visibilidade pública para os “problemas da comunidade” e criou
possibilidades de representação que não existiam dentro da própria local em que vivia. Os
desdobramentos trágicos das chuvas reforçaram o discurso sobre a necessidade de entrada do
poder público e dos principais veículos de comunicação na favela, o que resultou na
reconfiguração da regulação do espaço pelos grupos de poder local. Com a chegada de atores
externos ao Complexo do Alemão (imprensa e governo), Mateus vislumbrava a possibilidade
de estabelecer compromissos com outros atores na arena do PAC, sem a intermediação da
presidente da associação. Para ele, o fato de ter iniciado contatos anteriores com o poder público
rendeu-lhe na comunidade a “indicação automática” para falar em nome das pessoas
desabrigadas naquele momento. Em sua fala, Mateus sugere que o acontecimento das chuvas
foi a oportunidade que ele e outros moradores tiveram para se colocar como “liderança”,
rompendo o vínculo direto entre eles e a associação de moradores. Na medida em que saia da
comunidade, maior autonomia ele gerava para falar em nome das reivindicações de seus pares
diretos, agora os “desabrigados”.
Nesse contexto, há um processo crescente de descolamento de Mateus que passa a
negociar diretamente com representantes do governo e a fazer exigências que diziam respeito
somente à eles na condição de desabrigados.

eu tive que fazer esse link direto, mano. Porque a gente convivia com o poder paralelo
na época. A partir daquele dia a gente teve que lidar com as autoridades para resolver
os nossos problemas e só eles podiam resolver.

Assim, o acontecimento das chuvas possibilitou o surgimento de um grupo e de


proeminentes interlocutores que não estava ligados ao tráfico, tampouco a Associação de
Moradores. Mateus coloca-se como um sujeito independente, que, por um acaso, teria virado
“liderança”.

Aí mano, quando no dia dessa chuva do dia 05 de abril e eles viram que não tinha
realmente condições e o meu problema tinha piorado, porque já tinha acontecido o
fato e tava pra acontecer pior, porque a casa do Paulo em cima já tava já descendo,
entendeu? O pior estava por vir, mano. Então, ele [o vice-governador] viu ali que não
tinha como, ia morrer muita gente ali. Aí eles interditaram a minha casa, passaram fita
lá de Defesa Civil, mandaram a gente sair de casa. Aí no outro dia da confusão com a
Defesa Civil, chamaram a reportagem, foi o pessoal do PAC Social, aí começaram
aquela visitas na comunidade. Aí na época eu lembro que foi o presidente da EMOP,
sr. Ícaro Moreno [presidente da EMOP] e aquele, um vermelhão, Wilsão [Wilson

175
Carlos, Secretário de Governo]. Ele foi um dos que foram fazer visita, inclusive na
casa da Valéria, onde ela ficou soterrada. Então, eu acompanhei esse pessoal porque
eu já estava lidando com eles desde o dia 15. Já tinha 20 dias que estava lidando com
eles. Então o que acontece, naquela situação de apresentar a comunidade, eles verem
que tava ali conversando com o pessoal, a presidente da associação na época, não sei
se por preguiça ou por descaso, ou simplesmente [por] não querer se envolver com o
outro lado da vivência – porque a gente convivia com o poder paralelo na época e a
partir daquele dia a gente teve que lidar com as autoridades –, ela não quis se envolver
e aí queriam um cara pra poder ir e no automático fui indicado pra ficar tomando conta
dessa parte ali. A chuva de abril foi um divisor de água. Deu uma reconfigurada e é
assim, eu já tinha um sentimento comigo, desde a época que eu morava lá... estava
sempre pronto para ajudar com meu boné na cabeça e minha enxada na mão [grifo
meu]. Aí o que acontece, me determinaram pra mim ir lá. Tipo assim, eu recebia o
repórter que pegava as informações sobre o abrigo e repassaria pra ela, entendeu? E
depois eu vinha com a resposta. Só que eu não fui pra esse lado. As decisões tinha que
ser tomadas na hora ali. Então, eu abracei a missão [grifo meu]. Eram 58 famílias. Aí
o que acontece, quando lá na comunidade já tinham pedido pra mim ir e como eu já
tinha feito contato com eles antes, aí ficou nesse situação de eu tomar conta, ficar ali,
levar os conhecimentos... só que eu vi que a necessidade ali não era ficar reportando,
saber e levar pra ela, depois trazer pra cá, levar pra ela e trazer pra cá... ai eu falei:
“não... se é pra mim resolver aqui, vou começar a resolver aqui”. Aí comecei a fazer
essa missão. Comecei a distribuir o café da manhã, o almoço, o lanche da tarde e a
janta, aí o que acontece, vi a necessidade de querer ajudar como um todo aí comecei
a receber donativos, separar, distribuir, né? O que nós não precisávamos e tava bom a
gente levava pra regional e o que tava muito ruim a gente descartava lá do lado na
COMLURB e já descartava. (MATEUS)

Com sua chegada ao abrigo, Mateus assume sua “missão” e passa a organizar as famílias
dentro da Vila Olímpica. Nesse momento, Mateus constrói sua trajetória com uma narrativa
heroica, “eu já tinha um sentimento comigo, desde a época que eu morava lá... estava sempre
pronto para ajudar com meu boné na cabeça e minha enxada na mão”, enfatizando,
posteriormente, suas ações e sua capacidade de “tomar decisões” diante dos demais
interlocutores que interagiam na arena política do PAC, tornando-se assim uma espécie de
“líder” dos desabrigados.

Então eu passei 21 dias e meio nessa liderança de 58 famílias. Eram 248 pessoas, tinha
uma quantidade de adultos, tinha 34 crianças com até 3 anos, então era muita criança.
E, eu trabalhava... eu nunca tinha visto aquelas pessoas, só algumas, a gente separou
cada sala por comunidade. (...) Eu era o responsável por todas elas. Então eu já vim
[para o Relicário] com essa vontade de ajudar de lá. Então, enquanto ficamos lá
ficamos bem, não teve muitos atritos... um ou outros que não entendiam qual era
minha posição, e quem me colocou naquela posição é... cada uma comunidade ali
tinha uma associação, e quem disse que a presidente da associação era chefe das
associações, e porque me deixou lá, e foi talvez onde eu tenha pecado com o pessoal,
porque tudo se resolve com uma conversa, nós estamos vivendo numa democracia,
podia ter comunicado as pessoas, avisado, que poxa eu tô ali... eu abracei a missão
realmente, eu puxei pra mim a liderança. Falei não eu tô aqui pra isso, comecei a bater
de frente com o pessoal que vinha com donativo, entendeu? Já comecei a lidar com
pessoas importantes... eu lembro que uma menina recém-nascida que tava lá, ela tava
muito alérgica, tava muito vermelha, as partes íntimas, o corpo da criança, ela tinha,
poxa, era dias de nascida. Eu consegui com o Fernando William, lembra, que era
secretário de saúde... poxa, ele é uma cara de bom coração. Ele teve lá, eu expliquei a

176
situação da menina, a menina foi adotada pelo Estado na época. Pô, não tinha médico
em lugar nenhum, apareceu médico, apareceu tudo, e começaram a fazer, cuidar,
porque podia pegar num instante, porque era tipo uma sarnazinha, enfim. Então, eles
viram que eu tinha a capacidade pra tomar conta. Então me deixaram ali. Então, o que
eu precisava, de gás, de uma televisão, de um... era só ligar. (MATEUS)

No entanto, Mateus considera que sua “liderança” foi colocada a prova em todo o
processo de permanência no local. A legitimidade de seu papel de líder foi questionada assim
como a representação de outras pessoas que não estão amparadas pelo “tráfico” e/ou a
Associação de Moradores. Além disso, o ambiente dentro do abrigo na Vila Olímpica revelou-
se na fala de Mateus como um espaço de muitas disputas e desconfianças entre os próprios
pares.

Tentaram colocar outras pessoas, tipo assim, tem pessoas que já tem o dom de
liderança, outras tem vontade de ser e não tem, outras querem pegar a liderança pra
se dar bem. Então, eu deixei algumas pessoas tentarem resolver, só que, primeiro eu
já tava reconhecido como tal e outros tentaram... “pô, vou pegar o lugar dele, porque
vou pegar isso aqui pra mim, vou pegar isso aqui e outro, fazer isso aqui.” Só que
começaram a ver que até o último dia da minha permanência lá, a colega aqui a
Dandara viu o rapaz que era um das lideranças que tava próxima de mim fugir...
evangélico, não tenho nada contra os evangélicos, mas tem muita gente que se esconde
atrás de uma Bíblia, ele levando biscoito e leite das crianças, cara! Entendeu? E eu
tinha uma preocupação muito grande com o termo da distribuição, porquê? Eu falava:
gente, isso aqui não tem dono, mas nos pertence. Então, vamos dividir igualmente pra
todo mundo, entendeu? Não tem dono, mas pertence a todo mundo. Então, vamos
dividir. Então, o que eu fazia? Eu fazia questão de distribuir pra todo mundo e
mostrava: ó, esse é seu, esse aqui é seu e esse aqui é o meu, que é igual ao de vocês.
Entendeu? Então, fiz questão disso. Então, eu conseguia até mesmo mostrar que a
minha idoneidade era, sabe, prioridade. Independente de quem era parente, de quem
seja, fui cobrado (risos) tanto pelo um lado quanto pelo outro, porque achavam que
eu tava dando uma de esperto, querendo favorecer a A e B e não tava favorecendo a
C, e depois eu provei que não tinha, que a minha visão não era aquela. (MATEUS)

É importante ressaltar que desde o início sua “liderança” esteve muito mais amparada
em sua vontade própria de representar os outros do que, de fato, um reconhecimento do grupo
sobre a sua legitimidade para a representar interesses coletivos. No período em que estive
acompanhando as famílias na Vila Olímpica, Mateus sempre se dirigia a mim como a liderança
dos desabrigados, mas enfrentava a desconfiança de outras pessoas do grupo. Tentava sempre
fazer as colocações conjugando os verbos na primeira pessoa do plural (“nós queremos”, “nós
precisamos”, etc.), mas, individualmente, outras pessoas vinham até a mim e faziam outras
solicitações, também em nome dos desabrigados. Mateus chamava para si a responsabilidade
da negociação direta com os representantes governamentais. Outras pessoas faziam o mesmo.
A disputa por liderança do grupo de desabrigados foi algo recorrente entre a saída da Vila
Olímpica e a chegada aos apartamentos do PAC.

177
A lógica da negociação entre os moradores e os atores governamentais em torno das
indenizações e os diversos pedidos direcionados ao PAC, na maior parte do tempo, teve um
caráter marcadamente informal e pessoal, às “margens do Estado” (DAS e POOLE, 2008), por
uma perspectiva fortemente individualizada e fragmentada. Porém, mesmo agindo dentro da
lógica operativa do programa, Mateus se reconhece como nova liderança coletiva, conseguindo
apoio apenas de parte dos moradores desabrigados. Percebendo que sua palavra e seus
posicionamento ecoavam sobre os interesses de outras pessoas, assumiu o papel e se investiu
de toda a vontade da “correr atrás do prejuízo”, como falava.
Esse movimento de Mateus torna-se interessante na medida em que as representações
políticas locais são muito bem consolidadas. Tomando os presidentes de associação de
moradores como as representações tradicionais, legitimadas no imbricado jogo de poder, entre
a força das armas e os compromissos selados com a política institucional-legal, Mateus aparece
como um outsider no jogo político da arena do PAC. Mais tarde, toda sua experiência no PAC
e vontade de liderar se desdobraram na maneira como construiu as bases de seu posicionamento
crítico em relação a moradia no Relicário, bem como em algumas ações e disputas em torno da
organização dos espaços internos do conjunto, como a criação de uma Associação de Moradores
do conjunto residencial Relicário.
Desse modo, da perda de sua casa na Comunidade Pedra do Sapo até a chegada a Vila
Olímpica, bem como o papel que assumiu durante o período pré-Relicário, todo o discurso de
Mateus, em torno da necessidade de organização interna do Relicário, passou pela experiência
que teve no período de desabrigo. Era preciso “fazer diferente, morar num lugar arrumadinho,
bonitinho, sem problemas”, disse-me. Tornou-se bastante evidente que sua vivência como
liderança incidiu significativamente na maneira como ele se posicionou inicialmente no e sobre
o local de sua moradia.
Mateus, morador do Bloco H, vive hoje com sua esposa e sua filha mais nova em um
apartamento no quarto andar. Gosta de morar no Relicário. Expressa gratidão aos que o
ajudaram a conseguir um apartamento do PAC. Reconhece que, com sua mudança de endereço,
obteve benefícios no seu cotidiano, principalmente, relacionados a facilidade que encontra na
mobilidade urbana (acesso aos meios de transporte) e no acesso “a rua” na busca por novos
serviços remunerados. Sua avaliação sobre as instalações residenciais e a estrutura predial é
sempre positiva. Entende que sua vida “melhorou muito” e não pensa em sair do Relicário.
No entanto, aponta para um problema central no processo de formação desse novo
espaço de moradia: o “social”. Sua critica mais incisiva encontra-se na dimensão da interação

178
e das reciprocidades (ou a falta delas) entre os moradores vizinhos, em suas relações cotidianas
no interior do conjunto residencial. Para ele, “o governo” é o responsável direto pelo
“problema”.
Mateus afirma que o fato do governo não ter acompanhado a nova dinâmica das pessoas
no dia a dia do condomínio resultou em uma piora significativa da qualidade da organização
interna dos prédios e áreas comuns ao longo do tempo, bem como na manutenção das
instalações do conjunto. Considera um “grave erro” do Programa Federal a maneira como o
processo de mudança de endereço foi conduzido pelos gestores públicos, principalmente, no
que diz respeito a adaptação das pessoas ao novo local de moradia e as formas de organização
do espaço. Considera que o governo deveria ter acompanhado por mais tempo a mudança das
pessoas para o conjunto, conduzindo, rotineiramente, as práticas para a preservação do local,
como por exemplo, a manutenção da limpeza, o recolhimento do lixo, a conservação das
instalações condominiais, o pagamento das taxas etc.

O que eu achei que o governo poderia ter feito, eles fizeram essa integração,
mostraram como seria, teria que ter sido, da maneira que eles colocaram, olha
condomínio funciona desse jeito, existe essa regra, seu direito começa da onde o do
seu vizinho termina, e vice-versa, e tal e explicar... só que o seguinte, fez eleição,
botou síndico e subsíndico, sumiram! Desapareceram! Fomos esquecidos! Não
explicaram pro povo que condomínio é um imposto. Se você não pagar você perde
seu local. Isso é lei. Só que não registraram porra nenhuma, largaram o síndico nessa
furada e muitos síndicos tiveram que desenrolar com bandido achando que tavam
querendo roubar. Eu fui um, achando que eu tava querendo roubar o condomínio,
entendeu? Então, é por aí... Eu fico, como falei no início, fiquei muito bem, gostei
legal de morar aqui, pedi a Papai do céu pra me dar o quarto andar e ele me deu, então
tudo que eu, graças a Deus, eu conquistei com a minha... hoje minha vida melhorou
muito, um pouco mais, porque por eu morar muito próximo da rua eu consigo arrumar
outros serviços... hoje eu tô bem melhor, mas eu fico chateado em termos que pô, o
que foi pregado no início, o que eles queriam que nós regássemos, a água tinha que
vir deles, do governo, porque a partir do momento que eles plantaram aqui essa regra
do condomínio que teria que ser pago e a manutenção seria por conta dos moradores
[grifo meu], então é isso, Bruno, o básico é isso. A questão nossa toda aqui foi essa.
Eu achava que se o governo tivesse mais presente, essa sujeirada não teria, a evolução
do pátio em si, por exemplo, quando nós viemos tinha quatro árvores dessa aí, morreu,
entendeu? (MATEUS)

Mateus esteve à frente do condomínio do Bloco H como síndico por dois anos. Durante
esse tempo, precisou lidar com problemas muito parecidos com os que Tomé e Madalena
relataram. A desconfiança sobre a idoneidade e a falta de compromisso com o coletivo foram
questões que reapareceram. Agrega-se ainda a essas duas questões sua sensação de
individualidade crescente no cotidiano das relações, como Dandara já havia indicado em sua
experiência como moradora do Relicário.

179
Para Mateus o “problema do social” no Relicário decorre da descontinuidade do
trabalho de formação iniciado pelos atores governamentais que tinha como objetivo internalizar
nos novos moradores um novo modelo para a organização do espaço vivido. Para Mateus, esse
novo modelo deveria ter pautado o regimento interno como o contrato principal, em que todos
assumiriam novos compromissos coletivos e agiriam sob um regime organizacional diferente
do que se vive na favela: “um ordenamento condominial”. Assim, o domínio da lei impessoal
arbitraria sobre os direitos de usos, até sobre o de propriedade do imóvel, condicionando o
cumprimento das regras definidas e pactuadas pelas pessoas que compõem os condomínios.
Assim, sob o caráter da lei, fundamentar-se-ia de fora para dentro uma normatividade,
um ordenamento que funcionasse como instrumento de formação das pessoas e
acompanhamento dos desvios comportamentais no cotidiano da moradia no conjunto. Um
movimento de formação e inclusão social via ordenamento jurídico, onde os direitos e as
penalidades estivessem validadas em um conjunto de normas supralocais. Para Mateus a
proposta do governo “ficou mais como uma ideia”. Tais regras não foram instrumentalizadas
na prática cotidiana.
É importante ressaltar que em nenhum dos prédios nos quais eu tive acesso e conversei
com moradores, identifiquei um estatuto ou qualquer documento que formalizasse regras e
instituísse representações reconhecidamente eleitas. Da mesma maneira, não há, até o presente
momento de escrita desta tese, qualquer documentação emitida pelos órgãos estatais
responsáveis pela formalização do assentamento que atestem a propriedade desses imóveis.
Como mencionado no Capítulo 2, somente há pouco tempo o ITERJ encaminhou parte da
documentação levantada para o cartório de registro de imóveis da cidade para que o Relicário
constitua-se como condomínio.
Assim, um efeito dessa “descontinuidade” e, consequentemente, a permanência da
“bagunça” desdobram-se para Mateus como resultado da ausência de formalização da gestão
do conjunto residencial e, ainda, da ausência de regulação sobre as possíveis penalidades para
o descumprimento das regras condominiais como por exemplo, a falta de contribuição
financeira dos condôminos e depredação do local. Para ele, toda a bagunça é resultado da
descontinuidade do processo pedagógico governamental iniciado com os “Encontros de
integração” que ensinavam a viver em condomínios. É nesse sentido que indica a “ausência do
governo”: a inexistência ou a ineficiência de instrumentos formais externos que consolidem um
conjunto de regras legais dentro do conjunto residencial para, inclusive, legitimar a
representação (no caso, a de síndico) e construir a obediência de todos os outros membros

180
participantes do grupo, em torno das questões coletivas. Mais uma vez, a questão da
legitimidade da representação surge sob os princípios do respeito e da obediência as leis. A
“obediência” nesses termos aproxima-se do que Weber (2005) denominou como o
desdobramento das formas de dominação, isto é, a probabilidade de encontrar obediência a um
determinado mandato fundamentado em diversos motivos de submissão. Mateus reitera sua
visão crítica ao apontar os desdobramentos vivenciados fora da lei:

Tinham que ter vindo uma vez por mês, fiscalizar, acompanhar: olha só, cadê as
contas? Vem cá, tá roubando mesmo, não tá? Quer eleger outro síndico que esse
síndico não tá tratando como deveria? Ou então, que não seja mês e mês, podia ter
sido de três em três meses, fiscalização... então, o que eu fiquei meio chateado,
decepcionado, foi com isso. Porque tenho certeza que se tivessem botando ainda, não
o terror, não o terror, mas a colocação da lei... que pô, olha só, você mora em
condomínio, então você tem que pagar o condomínio. Respeitar, obedecer as regras,
a lei. Você pagando o condomínio você vai ter direito a isso, isso e isso. Você não
pagando você deixa de ter esse direito. Então, você desvaloriza onde você mora.
Então, você tem que pagar... entendeu? E não foi feito nada disso. Então, foram umas
palavras vagas que não foram cumpridas. (MATEUS)

Dentro do debate, mas até aquele momento da entrevista só observando, Josué, morador
do primeiro andar do Bloco G, vizinho ao Bloco H, concorda com a melhoria na vida após a
chegada ao Relicário, e com a leitura de Mateus sobre o “abandono” governamental. Mas,
ressalta as condições e os processos históricos que incidem sobre a formação das pessoas que
vivem ou viveram no morro e, atualmente, encontram-se em condomínios. Disse-me que
quando as pessoas agem, em torno de um bem comum, atuam submetidos a uma política de
controle espacial, baseada na emitente ameaça dos “donos do morro”. Nesse sentido, para
Josué, é a opressão quem orienta as práticas de caráter mais coletivo, ou melhor, os
compromissos e reciprocidades entre pares.

Cara, vou te explicar, pelo menos no meu entendimento, burramente falando, porque
pro cara saber realmente, o cara tem que fazer psicologia, psquiatria, fazer pesquisa…
por aqui ou fazer melhor [teria que] fazer pelo regime de cabresto [grifo meu] que é
lá em cima. O que que é? Você não pode dar mole, não pode vacilar. Aqui não. Aqui
em baixo você não tem essa opressão, né? É que aqui ninguém tem obrigação de fazer
nada. O amigo aqui falou sobre a questão do lixo... se ele fosse fazer queixa lá na
“situação” [no “tráfico”] aquele maluco desceria, pegava o lixo e descia pra rua ou até
entrava na coça. Aqui não. Aqui não tem isso. Então, a pessoa fazia pelo cabresto,
pela opressão. Isso é uma das partes, entendeu? (JOSUÉ)

Sua narrativa remete a uma clara distinção entre a vida no morro (“lá em cima”) e a vida
no conjunto residencial (“aqui em baixo”). Josué enxerga nos dois lugares dois tipos diferentes
de ordenamentos: um que deveria fundamentar-se sob leis pactuadas e outra fundamentada sob
181
o signo do medo. Para ele, a “opressão” e o “medo” estão no cotidiano do morro. No conjunto
residencial “não tem essa opressão permanente da boca”, assim os moradores “fazem o que
querem e quando querem”. No conjunto residencial, as pessoas agiriam com mais liberdade,
sem que houvesse uma forte sensação de coerção naquele ambiente compartilhado de vivência.
Mesmo havendo dentro do Relicário claras indicações que remetem a certa regulação
do local feita pelo Comando Vermelho, a percepção de Josué é de um espaço sem regras, sem
qualquer tipo de regulação. Com o fim das comissões gestoras condominiais e menor “opressão
da boca”, não haveria alternativa capaz de impor limites e estabelecer compromissos mútuos
de um outro ordenamento interno. É nesse sentido que Josué afirma que faltou o que ele chama
de “psicologia”, ou seja, um mecanismo que estabelecesse os acordos entre as partes fora da
chave da violência e da dominação personalizada do tráfico.
Josué aponta ainda para uma questão interessante: o “individualismo” das pessoas como
consequência do “abandono” estatal, como já indicado também por Dandara em sua entrevista.
Para ele, diante das dificuldades e da falta de atendimento por parte dos órgãos públicos
governamentais, ao invés das pessoas se solidarizarem umas com as outras, elas passam a
orientar-se predominantemente em direção a causas próprias, com uma perspectiva mais
individualizada, muitas vezes, para ele, “egoísta”. Josué afirma que, com esse “abandono”,
haveria uma quebra nos laços de compromissos mútuos, indicando a impossibilidade de
formação de uma comunidade mais coesa e solidária. A falta de continuação do
acompanhamento do governo, como ele sempre disse, “educa as pessoas para a egoísmo”. Elas
passam a disputar os recursos disponíveis entre si suprimindo o caráter coletivo de suas ações.

Agora a outra parte da questão, a questão da psicologia que eu falei. A primeira foi no
cabresto, agora psicologia. É assim, cara, como o governo falou e foi embora, as
pessoas se sentiram, não na obrigação, mas no descaso. Tipo: eles não fizeram por
onde, também não vou fazer também. Que é a própria cultura de quem mora na
comunidade é essa: se não faz por mim eu não faço por vc. Não tem jeito, mano. As
pessoas foram educadas desse jeito e vão morrer assim. (JOSUÉ)

Um outro ponto que Mateus e Josué chamam a atenção é para a dificuldade de se


estabelecer relações de confiança entre vizinhos. Alegam que uma das dificuldades que
encontram para que a colaboração seja maior entre os moradores do Relicário deve-se ao fato
de não terem construído uma relação anterior com alguns vizinhos atuais. No trecho abaixo
Josué afirma que, na época, em que participaram dos “encontros de integração” pediram aos
técnicos do Trabalho Social responsáveis pelo desenvolvimento da atividade para incluir, na
lista do sorteio do prédio, as pessoas que moravam próximas umas das outras, indicando o
182
desejo de continuidade dos laços de vizinhança, existentes no tempo em que viviam todos no
mesmo morro. Para eles, isso teria sido melhor no encaminhamento das questões dos prédios.

[...] outra coisa que aconteceu também, nas reuniões [‘encontros de integração’] a
gente falava isso, que é botar dentro dos prédios o pessoal da mesma área. Mesma
área que eu digo, assim, rua tal, botar mais próximo dos vizinhos. Isso eles falaram na
época. Talvez, se fosse assim, o contato era melhor pra gente resolver as coisas.
Porque, pô, o cara conhece os caras desde criança, família, conhece mãe, avó, tem
aquela história... Se é meu vizinho que eu tinha ali, eu metia mão no bolso, na hora,
comprava ali, e ia bater na porta a noite: “ô vão bora, meu amigo. Bota mais cinco
[reais] pra gente fazer churrasco lá atrás, e seria desse jeito. Eu tô te falando... já
escutei, eu falei... eu tenho uma fechadura pra botar... Escutei: ‘E a chave?”. Meu
irmão... se prestar.. você vai ali e faz duas cópias pra tu... você quer tudo? Ainda vão
falar que eu sou o cruel da história!

De uma forma geral, o que os meus dois interlocutores tentaram relatar e analisar desde
o início foram as condições e as causas de suas decepções em relação ao não cumprimento das
expectativas geradas em torno do novo formato de moradia. Tanto Mateus, quanto Josué
esperaram a consolidação de outro tipo de ordenamento interno no Relicário, que rompesse com
um tipo de domínio senhorial dos “frentes” do morro. No caso específico de Mateus, desde o
início de sua “missão” tentou descolar-se das representações tradicionais e impor a sua forma
de liderar. Contudo, desde sempre e, mais ainda, com a chegada ao conjunto, enfrentou
dificuldades para se firmar como liderança local, consequentemente, realizar as ações que
considerava necessárias para organizar o Relicário.
Depois da entrevista, ao longo do trabalho de campo, Mateus e eu tivemos algumas
oportunidades para conversar sobre esse dia a dia dentro do conjunto. Nossas conversas foram
sempre sobre as movimentações internas, principalmente, aquelas relacionadas às disputas
entre grupos instituídos, como a Associação de Moradores do Conjunto Residencial Relicário,
mas também sobre os “projetos” individuais, especialmente aquele que se processava nas
dinâmicas de ocupação dos espaços vazios do terreno. Dessas conversas saíram boas pistas e
os caminhos das disputas espaciais do Relicário que o próximo Capítulo 5 se debruçará.

6.5 Notas sobre as trajetórias e as narrativas

Ao ouvir, transcrever e organizar o conteúdo das entrevistas e dos fragmentos de


conversas anotadas em meus cadernos de campo, cada história narrada, cada drama sentido e
compartilhado revelaram experiências que se assemelham as grandes histórias heroicas de
personagens épicos. Termos como “peregrinação”, missão” e “vida infernal”, por exemplo,

183
transformaram essas trajetórias em verdadeiras epopeias populares111, evidenciando assim todo
o processo pelo qual passaram: do desabrigo ou a remoção à chegada e permanência no
conjunto Relicário. Suas narrativas carregam a história de pertencimento de um grupo social
que, ao longo do tempo, precisou sobreviver, ir “além da vida e da morte” (DERRIDA, 1999)
como uma forma estabelecer sua própria existência no espaço urbano das cidades. Ao
retratarem o cotidiano da vida dentro do Relicário, as pessoas passaram a estabelecer uma
relação direta entre suas vidas pregressas e a atual. Dito de outro modo, ao significar a sua vida
atual passaram a relacioná-la com um tempo/espaço anterior – a “vida no morro/favela”. Em
todas as falas, há sempre a perspectiva comparativa entre o “antes” e o “depois” entre
“comunidade”/“favela” e os “predinhos”, como recorrentemente denominam o Relicário. Os
significados narrados sobre os dois lugares – o morro e o conjunto residencial – remetem
sempre a matrizes espaço-temporais implicados em mudanças de um estado ou de uma situação
vivida.
Com a obtenção dos apartamentos e a consolidação da vida no Relicário, aqui como um
bem material e de estabilidade do lar, as narrativas transitaram entre a realização e a decepção
como o novo lugar. Na dimensão da realização, construiu-se um sentimento, amplamente
compartilhado de melhora de vida por meio da nova casa. Possibilitou-se instituir na novidade
a sua origem, ou, como diz Bachelard (1978) o passado no mundo, a “casa natal”, onde “na
profundidade extrema do devaneio, participa-se desse calor primeiro, dessa matéria bem
temperada do paraíso material... ambiente que vivem os seres protetores” (Op. Cit, p. 202). O
novo lar criava também uma nova moradia, ou seja, as novas fronteiras simbólicas entre o
público e o privado, situada no âmbito do lugar, do núcleo de coabitação afetiva e efetiva,
articulando o “dentro” e o “fora” da casa, o espaço circundante e formador da realidade vivida.
Aqui, encontra-se a dimensão do acesso aos bens e serviços da cidades facilitados com a
proximidade da rua, da área formal do bairro, antes dificultada pela moradia no alto do morro.
Assim, a chegada aos apartamentos do PAC representou um novo lugar no mundo, um
tipo existência na habitação e a possibilidade de construção do novo espaço habitado ao redor.
Sendo a casa o limiar entre a circulação e a imobilidade de sua representação física no espaço,

111
O significado de “epopéia” denota o relato de acontecimentos, ações e feitos heroicos que representam uma
sociedade ou um agrupamento social específico. Segundo o dicionário Dicio, na literatura as epopeias são
narrativas que contam acontecimentos fenomenais ou ações honrosas que provocam grande admiração, “a
magnificência da epopeia”. Chamo aqui de epopeias populares histórias contatadas por pessoas que ao longo do
tempo foram submetidas as logicas de assujeitamento e expropriação de suas próprias vidas, sejam elas suas
dimensões simbólicas e/ou materiais. www.dicio.com.br/epopeia. Acesso em 21/06/2017.

184
é ela quem possibilita partirmos de um lugar para qualquer outro. Uma referência, o lugar de
onde se vem e pra onde se vai. Nesse sentido, para Dandara, Madalena, Mateus, Josué e Tomé
o apartamento do PAC proporcionou a melhoria da vida quando comparadas as suas casas e as
condições do local anteriores. A questão da segurança em relação as suas construções
habitacionais e a proximidade com a dinâmica do “tráfico” – como visto na fala de Tomé –
foram elementos centrais nas suas percepções de melhoria das suas casas.
No entanto, cabe ressaltar que, com exceção de Tomé, que não vivia no topo do morro
como os demais, todos os outros entrevistados que reconheceram no PAC a possibilidade de
melhora na casa, atribuíram também ao programa a responsabilidade pela instabilidade aguda
de suas casas no morro. Essa é uma questão importante, pois, no caso das pessoas que estiveram
desabrigadas, e foram obrigadas a se mudar para o Relicário, a ação do agente público nas
rotinas das pessoas foi determinante para a alteração radical de suas realidade vivenciadas.
Dandara, Mateus e Josué, alegam que as intervenções no alto do morro criaram as condições
para os deslizamentos e o desabrigo de suas famílias, de seus amigos e vizinhos. Todos
consideram as dificuldades materiais que tinham na vida no morro, mas criticaram a maneira
como o PAC interferiu em suas vidas no local, com a abertura das minas d’água que gerou a
instabilidade do solo provocando condições para os deslizamentos. Aqui, o mesmo PAC que
gerou as melhorias, foi também o agente causador da instabilidade e da mudança de endereço.
Na dimensão das decepções, essas estiveram basicamente relacionadas com a
capacidade de manutenção dos componentes e estruturas internas do conjunto, o dia a dia das
relações com a vizinhança e da organização interna do Relicário. Em uma aparente contradição
à satisfação e a realização da moradia nos novos apartamentos, houve certa ideia generalizada
de abandono (aqui em uma perspectiva de ausência) que desdobrou-se para eles em um
processo de deterioração contínua do espaço, marcado por um crescente comportamento
individualista dos residentes. Cada um resolvendo por si o seus problemas. As narrativas dos
moradores formam um espécie de tríade dos problemas do “condomínio do PAC”
(abandono/deterioração/individualização) presente em todas as narrativas aqui trabalhadas.
O primeiro item dessa tríade refere-se ao que chamaram de “fim do acompanhamento
governamental nos predinhos”, esta uma das principais críticas colocadas por todos com quem
conversei. O fim do acompanhamento foi entendido como “abandono do governo”, termo que
sempre utilizaram para expressar seus sentimentos com certa ideia de ausência dos órgãos
públicos no “social”, mesmo considerando os projetos e os programas do governo estadual que
funcionaram dentro do terreno – primeiro CVT, agora CRJ. “O governo não terminou o que ele

185
começou... botou a gente aqui e abandonou”, frase repetida diversas vezes por Mateus, um dos
maiores entusiastas das “comissões gestoras”. Mas, Mateus não está sozinho. Como constatei
nas falas de grande parte dos moradores, todos em alguma medida apontam para o que
consideram como problema interno (a falta de tratamento e cuidado dos moradores como o
próprio lixo, depredação dos imóveis, ocupações informais entre outras questões) a
descontinuidade do programa em sua dimensão “pedagógica” para a moradia em condomínio,
mostrando que em grande medida a adesão à proposta governamental para a construção da
“nova vida” foi ampla. Mais a frente no capítulo 5, constataremos inclusive na fala de um
morador uma certa “essencialização” da questão ao tratá-la como o resultado da própria
sociabilidade local (o habitus), para ele uma espécie de “memória muscular” do morador de
favela: “não tem jeito, está entranhado na cultura da favela”.
O segundo item da tríade – a deterioração do espaço – tornou-se consequência em parte
do primeiro. Aqui, nas falas de Mateus e Tomé, trata-se da falta de cuidado dos residentes com
a necessária preservação e manutenção das estruturas físicas dos prédios e dos equipamentos
internos compartilhados de uso comum, como os parquinhos, os postes públicos de iluminação,
as áreas reservadas para encontros como os bancos e mesas de cimento, as grades frontais e
todo o aparato que compõe a parte física do conjunto, em contínuo processo de decomposição.
Por outro lado, além da falta de cuidado e a falta de zelo sobre o que é usado e compartilhado
por todos, a crítica quanto ao aspecto da deterioração dos equipamentos internos passa pela
falta de condições materiais (falta de dinheiro) e políticas para se tomar as atitudes necessárias
para resolver os problemas. Um exemplo é a dificuldade que se coloca na fala de Tomé e Mateus
sobre a arrecadação de valores mensais dos moradores para manutenções periódicas (como a
taxa condominial) e a falta de adesão coletiva a ideia das comissões gestoras e a representação
formal do síndico – motivos já apresentados no capítulo 3. Todo esse cenário aponta para o
terceiro item da tríade: a “bagunça”
Sobre esse último item, tal percepção dos moradores é o resultado final, consequência
dos dois itens anteriores. O contexto de “bagunça” está fortemente associado nas falas dos
moradores a dois aspectos: ao caráter individualizado dos moradores; a ingerência do “tráfico”
sobre as questões internas do conjunto; e a fragmentação do sentido de morar nos conjuntos
residenciais de caráter predial.
Sobre o primeiro aspecto, na visão de Tomé, por exemplo, esse comportamento
individualizado denota um “problema do coletivo”, ou a falta de compromisso das pessoas com
o “bem comum”. Para ele o que pode ser entendido como um processo de individualização dos

186
moradores dentro do Relicário não estaria baseado na busca por isolamento ou de
encapsulamento das pessoas nas relações umas com as outras (SIMMEL, 2005 [1903]) mas,
um processo contínuo de disputas por protagonismo. A busca por reconhecimento e relevância
em um contexto altamente disputado em sua dimensão política, acarretaria em uma falta de
colaboração e participação nas questões que dizem respeito a todos. Aqui Tomé traz as disputas
eleitorais na favela como um elemento segregador onde “cada um tem um interesse a parte”
num fragmentado jogo de alianças locais. Ao mesmo tempo reitera a leitura do “egoísmo”. Traz
na sua fala a crítica a perspectiva individualizada da ação onde “cada um só quer saber do seu”.
Mas, ressalta que esse não seria um problema só no Relicário, mas “do próprio ser humano”,
como afirmou. Diante dessa interpretação, o próprio Tomé age reiterando o que critica.
Desenvolve projetos sociais e vislumbra a possibilidade de se candidatar-se nas próximas
eleições municipais.
Sobre o segundo aspecto, esse relaciona-se com a ação dos grupos vistos como ligados
ao “tráfico” local, como os “meninos da marcação”. A performance desses grupos no terreno
do Relicário dificultaria a realização de um ambiente em que todos pudessem atuar de uma
maneira mais autônoma, sem medo de represálias. Aqui, a ideia de imprevisibilidade
(MATTOS, 2014) que pauta o ordenamento feito pelo “tráfico” dos espaços internos da favela
corrobora com a leitura feita por Tomé.
Por fim, o terceiro aspecto está relacionado com a forma que os moradores passam a se
comportar dentro de uma estrutura de moradia com características prediais. O formato de
apartamentos, concepções fragmentadas da moradia em um espaço compartilhado de vivências
provocaria o que Dandara definiu como “egoísmo”. Dandara diz que as pessoas tornaram-se
“egoístas” e “metidas”, “dentro dos “predinhos”. Comparou o conjunto Relicário a um presídio
afirmando viver agora em um lugar sob “ritmo de cadeia”, onde não haveria mais solidariedade
e compromissos comuns compartilhados. Dandara interpreta o Relicário como um espaço
altamente individualizado e segregado internamente. Sua referência interpretativa está no
passado na “vida no morro”. Opõe o “morro” aos “predinhos” indicando ser o primeiro o lugar
da solidariedade, da ajuda – “no morro tu chegava na janela: ô fulano não tem açúcar aí não?”
– e o segundo o lugar da “desunião” onde “nem um alho é bom você pedir teu vizinho”. Na
visão de Dandara, os “predinhos” teriam criado uma postura “egoísta” das pessoas, onde cada
um cuida do que é seu – “cada um no seu quadrado”, como ela dizia. Na visão de Dandara há
ainda uma certa postura de distinção de alguns moradores em relação a outros – “mora no
predinho acha que é rico! Acha que mora no Copacabana Palace!”. Ou seja, quando avalia sua

187
vida no Relicário como “nem muito bom, mas melhorada”, ela chama a atenção para duas
dimensões da vida no conjunto: a materialidade da casa que lhe inspira segurança, ao mesmo
tempo, a insatisfação com a sociabilidade fragmentada gerada pela forma condominial do
Relicário.
Desse modo, todo o processo de construção das representações sobre o Relicário esteve
pautado pelas diferentes dimensões das trajetórias pessoais até o conjunto, bem como pelas
expectativas de cada um no processo de rotinização de suas vidas dentro daquele espaço novo.
O resultado dessa escuta que me propus a realizar evidencia acima de tudo uma teia de
significados dissonante que compõe certo tipo de sociabilidade que se instaura processualmente
dentro desse universo vivido. Uma sociabilidade permanentemente ajustada às expectativas e
formas de composição do espaço vivido.

188
Figura 7 – “Galinheiro”: táticas de ocupação

189
7 “ESPAÇOS LIVRES” EM DISPUTA: ENTRE TÁTICAS E ACORDOS

Mano, aqui no morro já não tem quase espaço livre!


Tá tudo ocupado! Qualquer pedacinho de terra
dando bobeira, já tem neguinho botando carro pra
marcar lugar [...]. e, agora, tá mais difícil negociar.
Você tem que falar com o sub, do sub, do sub até
chegar no cara. E tudo por WhatsApp! Aí, não sei o
que chega lá nos ouvidos dele, tá difícil, mano.

(Liderança local)

Quando viemos morar aqui era conjunto


habitacional. Aí, com aquelas situações de síndico e
tudo, entendeu-se que seria conjunto residencial.
Mas, agora é uma ‘bagunça ocupacional’ (...) agora
cada um ocupa um espaço, cada um faz o que quer,
tá uma zona a mando de fulano, beltrano... eu tô
muito desgostoso, decepcionado com isso aqui.

(Mateus. Morador do Relicário)

Encontrar um terreno desocupado, sem qualquer tipo de construção ou uso no interior


de cada uma das favelas que formam o Complexo do Alemão, é cada vez menos comum.
Consequentemente, as disputas em torno desses “espaços livres” tornaram-se cada vez mais
acirradas e constantes. Primeiramente, vale destacar que o termo espaço condensa uma série de
significados. Para os moradores do Relicário, pude perceber que espaço livre foi
recorrentemente utilizado para representar áreas construídas ou não-construídos (como apontei
na p.52 do Cap. 3 desta tese), mas também é um termo utilizado para se referir a um espaço de
uso comum ou um local “ocioso”, sem utilização no momento da observação, mas carregado
de significados passados, presentes e desejos futuros.
Portanto, nesse sentido, os espaços livres estão presentes, e em disputa, em todo o
Complexo do Alemão e as epígrafes escolhidas para este Capítulo exemplificam isso. A
primeira epígrafe remete a uma disputa por espaço no interior do Morro do Alemão e, a
segunda, a um conflito dentro do Conjunto Relicário. No entanto, as duas falas aproximam-se
quando expõem três questões comuns entre eles, imbricadas no cotidiano do próprio bairro: a
escassez de espaços ociosos, as disputas em torno deles e os ordenamentos territoriais que
buscam “organizar” tais ocupações e seus usos.
As disputas internas entre atores e grupos locais em torno dos espaços livres do conjunto
inserem-se no próprio ordenamento territorial do bairro, compondo uma imbricada rede de
relações pessoais e de poder. Como no “lado de fora”, dentro desse conjunto residencial, os
190
espaços livres são objetos de permanentes disputas de uso e de sentido entre diferentes atores
sociais, que vislumbram materializar nesses locais diferentes empreendimentos. Cada pedaço
de terra, cada terreno com mato crescente ou prédio desocupado, é entendido, recorrentemente,
como uma oportunidade para ocupação, seja pelo valor de uso coletivo, seja pelo valor de uso
privado.
Assim, neste Capítulo, compartilho com o leitor algumas situações no cotidiano daquela
moradia popular que expõem as “dinâmicas de disputa” sobre espaços livres do Relicário. Nos
relatos sobre as disputas que envolvem donos de “barzinhos”, de trailers e moradores
“plantadores”, a dimensão da regulação do espaço interno e os impactos de uma “sociabilidade
violenta” (MACHADO DA SILVA, 2004a; 2004b; 2008) no cotidiano dos moradores se
colocaram como questões centrais, tanto na dimensão das rotinas, quanto nas representações
sobre o conjunto residencial. De um lado os “Barzinhos” e os trailers que se instalam como
possibilidades de lazer, de geração de renda e trabalho e de segurança. De outro, os moradores
“plantadores” que resistem ao avanço das construções informais no interior do terreno e buscam
consolidar um regime de ordenamento interno diferente do regime do “tráfico”. Dessa disputa,
de formas e significados, demonstro como os atores agiram e traçaram suas “táticas
desviacionistas” (CERTEAU, 2008) como saída da ordem violenta.
Por outro lado, inspirando-me na “sociologia da crítica” de Boltanski e Thévenot,
(1999; 2006) partindo, a priori, do reconhecimento da capacidade reflexiva dos atores para
elaborar suas justificativas na busca por soluções sobre situações críticas de divergências,
procuro evidenciar como os atores construíram suas “justificações” mediante a tais situações.
Para os autores, o “momento crítico é precisamente o momento em que uma discordância acerca
do estado de grandeza das pessoas se manifesta” (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, p. 13).
Desse modo, procurei analisar tais “justificações”, bem como as ações praticadas na arena de
combate (CEFAI, 2002) que, em alguma medida, buscaram a solução das disputas. Utilizo-me
aqui da ideia de “ordens de grandeza” (ou seis mundos112) para me auxiliar nas interpretações

112
Os autores especificam seis mundos referenciais: 1) doméstica, onde o modo de avaliação é baseada na tradição,
na estima e reputação, nas relações de confiança e na autoridade; 2) opinião, baseada no renome, no
reconhecimento público, sejam elas lideranças, celebridades etc., onde o reconhecimento dos outros é a realidade;
3) inspirada fundamentada na inspiração e na criatividade do gênio criador e na inovação; 4) cívica nas noções de
equidade, vontade geral, interesse da coletividade e nos princípios da cidadania; 5) mercantil baseada nos
interesses da livre concorrência e na obtenção do lucro; e 6) industrial que orienta-se pela eficácia da produtividade
orientada pela racionalidade (ordem industrial).

191
sobre as disputas e suas justificações. Uma tabela abaixo (Tabela 1) foi elaborada para facilitar
a leitura.
Cabe ressaltar que, de maneira alguma, tomo essas “ordens de grandeza” como modelos
prontos e acabados, importados para aplicação Ad hoc. Todavia, considerando que a
coexistência de ordens configurou-se como um princípio operativo das rotinas vividas pelos
moradores, os “mundos” aqui apresentados por Boltanski e Thevenót (1999) nos ajudam como
base teórica-interpretativa para identificar quais valores embasam os argumentos em torno das
disputas, bem como orientam os acordos. Por fim, considero, ao mesmo tempo, que as posições
e os papéis desempenhados pelos atores e seus grupos vão influenciar na dinâmica e na
construção das “justificacões” orientados para um tipo de solução, seja ele de caráter mais
definitivo (como a disputa em torno do “salão de festas”), ou para estabelecer os termos de uma
disputa processual sem definição de resolução (o permanente processo de ocupação dos espaço
livres).

192
Figura 8 - Ordens de grandeza: quadro de análise das disputas

193
7.1 Barracos e trailers: as novas instalações comerciais

Chegava no início da noite de um sábado no Relicário. Como sempre fazia quando ia


de carro, estacionei-o ao lado da praça do Pavimento 2, localizada entre os Blocos F, G e H.
ponto de encontro dos moradores. Estava bem cheia. Muitas crianças, a maioria com idade entre
oito e onze anos, corriam de um lado para o outro, jogando bola, fazendo manobras de skate e
andando de bicicleta. Algumas crianças mais novas andavam de triciclo acompanhada de pais
e avós. Um mesa de pingue-pongue montada no canto superior da praça reunia jovens mais
velhos que aparentavam ter entre quinze e vinte e poucos anos. Era um final de semana de muito
calor. Verão de janeiro. As músicas que vinham dos apartamentos e dos carros estacionados no
final da subida da ladeira de um dos acessos ao conjunto começavam a disputar no volume e a
atenção dos moradores. O ambiente era de muita descontração, sem qualquer tipo de
movimentação que caracterizasse tensão com a dinâmica de confrontos armados cada vez mais
comuns na região. Naquela noite o “clima” estava “suave113”.
Seu Pedro, 66 anos, pai de Cristina e sogro de Paulo, ao me ver chegar, chamou-me
entusiasmado com seu característico e carregado sotaque paraibano: “Bruno, venha cá que vou
lhe mostrar uma coisa.” Me abraçou como quem passaria instruções sobre algo que ainda era
desconhecido por mim. Disse, “Olhe, tá vendo aquela construção ali? É o meu bar. No dia da
inauguração quero que venha tocar seu violão. Vamos fazer uma putada boa! E eu quero só
forró do bom!”. Pensei na hora, “como um roqueiro faz para tocar um repertório de duas, três
horas de forró...”. Olhei para ele, sorri meio sem jeito e concordei imediatamente com a
proposta. Não cabia naquele momento qualquer tipo de consideração sobre como isso
aconteceria. Só me imaginava na cena do forró em alto volume e a turma dançando sem parar.
Esse dia nunca aconteceu, mas a expectativa sobre o possível forró me aproximou de Seu Pedro.
Nos encontramos e conversamos uma dezena de vezes.
O bar ficava ao lado e nos fundos do Bloco F. Ao chegarmos no interior do
estabelecimento, que ainda estava em construção, Seu Pedro fez questão de dizer que havia
feito tudo sozinho. A estrutura física do bar era de madeira em uma espécie de compensado.
No interior, as paredes e os azulejos tinham desenhos diferentes, mas todos brancos e azul sob
uma iluminação de tom amarelo. As instalações elétricas estavam todas embutidas em canaletas
de PVC com interruptores externos. Pia montada, uma geladeira, um freezer e um fogão de

113
O termo “suave” foi sempre muito utilizado pelos moradores do Relicário para informar alguma situação vivida
do momento. “Tá suave” significa estar “tudo sob controle”, ou seja, sem problemas. Esse termo é utilizado tanto
para informar tanto o estado em que a pessoa encontra-se intimamente, na sua vida privada, quanto para situar o
interlocutor sobre o “clima” da favela.
194
quatro bocas compunham a estrutura para o funcionamento do bar. Do lado de fora, junto à
parede, do lado esquerdo da entrada do bar, um telhado de alumínio de mais ou menos três
metros de largura com um metro e meio de profundidade. Algumas caixas de som já estavam
instaladas sob a cobertura.
Depois de mostrar seu bar, Seu Pedro falou: “Bruno, tô fazendo tudo devagarinho, tudo
certinho pra gente poder ter um espaço aqui de lazer. Vai dar tudo certo, se Deus quiser!” Em
seguida, despedi-me de Seu Pedro e me juntei a Paulo e a Josué que me esperavam para beber
uma cerveja com eles. Comentei com Paulo: “Teu sogro tá amarradão, heim? Já pensou a festa
que ele vai fazer ali? Será que vai ser tranquilo, Paulo, colocar um bar ali do lado?” Paulo
respondeu: “mano, aqui é nós. Ele já investiu ali mais de cinco mil Reais. Tudo nosso!”,
finalizou o comentário com um brinde com nossos copos de plástico encostado na lateral de um
carro.
Depois dessa noite, duas semanas passaram-se até que eu voltasse ao Relicário. Quando
retornei e encontrei-me com Paulo, a primeira coisa que contou foi, “o vizinho do bloco
‘choqueou’ meu sogro na boca, mano! Deram para ele 10 minutos pra tirar tudo de lá!”. Paulo
revelou que Seu Pedro havia construído sem qualquer tipo de autorização “dos caras lá em
cima”. No momento em que começou a montar o estabelecimento, “a chefia da boca era
tranquila”, logo não havia necessidade de comunicar sobre a construção do bar. No entanto, o
comando da boca mudou, o que possibilitou ao vizinho que não concordava com a construção
do estabelecimento ao lado do bloco onde mora, ir à “chefia” para reclamar. Paulo desabafou:
“pô, aqui dentro dos predinhos as pessoas ainda vão na boca para resolver as tretas. Podiam ter
negociado por aqui mesmo. Pô, o cara tomava cerveja aqui com nós, trocava uma ideia direto
aqui em baixo, vizinho nosso de bloco, e agora dá essa mancada? Maior vacilão”.
Seu Pedro, a partir daquela decisão, teria que encontrar um outro local, caso quisesse
continuar seu projeto de bar. Encontrou, ou melhor, negociou. Como solução para a sua questão,
recebeu a autorização do chefe da boca para construir seu bar ao lado de outros dois já
existentes. E assim o fez. Compondo a “área dos barzinhos”, também, está o estabelecimento
do Seu Pedro, que a cada retorno meu ao Relicário, está maior e mais expandido em sua área
de ocupação.

195
7.1.1 “Barzinhos”

Ao longo do tempo, algumas construções foram surgindo em locais variados dentro do


conjunto Relicário. São construções com características físicas/estruturais muito semelhantes:
pequenos barracos feitos com um misto de folhas de compensado e alvenaria. As construções
que permaneceram em funcionamento no interior do Relicário foram as que tinham como
produtos principais as bebidas alcoólicas e não alcoólicas, as pequenas porções de comidas
servidas como acompanhamento (os “petiscos”) e produtos comestíveis embalados como
biscoitos e snacks (os “salgadinhos”). Alguns moradores do conjunto residencial referiam-se as
esses estabelecimentos como “barzinhos”.
Esses locais, de um modo geral, aproximam-se do que Machado da Silva (2016 [1969])
chamou de “botequim de favela” ou “birosca” – “toda aquela que vende bebidas alcoólicas (sem
necessariamente constituir-se na principal atração do estabelecimento)” sendo muitas vezes
“estabelecimentos mistos, isto é, servindo a grupos diferentes de consumidores e/ou
funcionando com diferentes classes de produtos”, onde seus frequentadores muitas vezes
conferem-no um “caráter caseiro”114 (MACHADO DA SILVA, p. 49 e 69). No entanto, os
termos são marcadamente diferenciados nas falas de seus frequentadores.
Em uma ocasião perguntei a Paulo porque eles chamavam esses estabelecimentos de
“barzinho” e não “birosca” ou “boteco”, nomes mais usuais nas favelas e em bairros populares.
Paulo respondeu-me:

mano, eu chamo de barzinho porque todo mundo chama... mas acho que é porque é
um ambiente mais família, só o nosso pessoal mesmo... Minha sogra sempre faz uma
comida, bota uma comida aí... é diferente.

Em certa medida, o termo “barzinho” ganha um caráter de distinção em relação a


“birosca”, esse quase sempre associado ao lugar de consumo da bebida alcoólica, lugar dos
“cachaceiros” e dos “bebuns”, termos que estigmatizam o espaço e os seus frequentadores mais
assíduos. Ao mesmo tempo, pode-se interpretar a distinção do nome tendo em vista a maneira
como as representações do espaço do Relicário são construídas. Chamar de “barzinho” está

114
O autor não faz um conceituação precisa do termo, como o próprio declara em uma de suas notas de rodapé do
texto em questão. No entanto, ao longo do artigo indica algumas características que formam o “caráter” desses
espaços de convivência nos centros urbanos, como a classe social, a localização, seus frequentadores, os temas
abordados nas conversas, bem como a multidimensionalidade das suas dinâmicas e dos valores relacionais. pp.
48-69

196
mais próximo do “condomínio”, enquanto a “birosca” está diretamente relacionado com a
favela, mesmo que a estrutura física, os produtos e as dinâmicas internas de controle do dinheiro
primeiro sejam idênticas ao do segundo.
Com foi dito, Seu Pedro construiu seu barzinho ao lado de outros dois já estabelecidos
no local. Todos três estão situados no final da única via de acesso de carro ao conjunto.
Funcionam lado a lado. Possuem uma estrutura física próxima a que descrevi do antigo e
desmontado bar de Seu Pedro. O primeiro da esquerda para a direita possui uma variedade
maior de produtos postos a venda. Configura-se como uma espécie de mercearia local onde os
moradores fazem pequenas compras emergenciais. Vende material de limpeza (principalmente
água sanitária), de higiene pessoal (sabonetes e pastas de dente), enlatados, linhas “chilenas”115
e pipas. O segundo, o bar do meio, é aparentemente mais simples, e seu principal item de venda
são as bebidas alcoólicas. Entre eles, na divisa entre os dois primeiros, havia máquinas de
fliperama e uma mesa de futebol de totó sempre tomadas por meninos em disputas acirradas e
descontraídas. Abrem de domingo a domingo. Pela manhã, por volta das nove horas, levantam
as tábuas utilizadas como janela dos balcões, sem hora certa para fechar. Nos finais de semana,
entram pela madrugada.
No entorno dos bares, algumas dinâmicas das favelas repetem-se ali dentro: em frente,
do outro lado da calçada, havia um sofá de dois lugares na rua. Diferente de outros cenários de
favelas cariocas, onde o sofá é ponto de “marcação da boca” 116
, este era recorrentemente
compartilhado pelos donos dos estabelecimentos e por mulheres, jovens e crianças que circulam
sobre o local, consumindo produtos dos bares ou não. No local conversavam sobre o dia a dia
do Relicário e sobre assuntos domésticos e de foro intimo, como embates entre vizinhos e
relacionamentos conjugais. Um pouco acima, no meio da rua, havia dois buracos no chão que
serviam como encaixes para barras de ferro, muito comuns também nas entradas de algumas
favelas, utilizados como forma de contenção da circulação de estranhos, principalmente, para

115
Fundamento da arte de empinar pipas nos céus dos subúrbio e favelas cariocas, o “cruze” (quando as linhas de
pipas empinadas encontram-se no céu, cujo o objetivo de seus praticantes – os “pipeiros” – é cortar a linha de seu
adversário) é parte constituinte dessa modalidade de lazer. As linhas “chilenas” são linhas utilizadas para prática
da pipa com material cortante de origem fabril. Elas substituem as antigas linhas “puras” que obrigavam os
praticantes da arte preparar uma mistura de cola com vidro moído que originaria o “cerol”. Nessa mistura, quanto
mais fino o vidro – frequentemente eram utilizadas lâmpadas de luz fluorescentes – e sua moagem, mais cortante
tornar-se-ia o cerol nas competição de pipas nos céus. Nos últimos tempos essas linhas chilenas tornaram-se um
problema público com sucessivos acidentes causados entre motociclistas nas ruas da cidade. “Linha de pipa chilena
que corta 4 vezes mais é a nova ameaça para motoqueiros” – g1.globo.com Acesso em 07/07/2017.
116
O termo “marcar na boca” é utilizado pelos jovens que atuam no ponto de vendas de drogas para designar suas
funções na operação no mercado do varejo, além de impor o controle dos arredores do ponto de venda dentro do
território.
197
dificultar a entrada de viaturas e carros blindados da polícia no local. Poucas vezes observei
essas barras encaixadas nos buracos.
Os donos desses primeiros “barzinhos” eram dois jovens moradores do Relicário.
Estavam diariamente na função de comerciantes. Um deles, o do bar do meio, atuava de forma
muito discreta, sempre dentro do bar servindo os clientes. Poucas vezes, tive a oportunidade
de conversar com ele. O outro, dono do bar da ponta esquerda, atuava como uma liderança,
uma espécie de “gerente geral dos bares”, assim nomeado por um dos frequentadores do local.
Ele circulava permanentemente na fronteira entre os pavimentos um e dois, exercendo um papel
de observador local. Exercia influência direta sobre os jovens que se utilizavam das redondezas
do estabelecimento como ponto de encontro, sempre “passando a visão”117 sobre alguma
situação ou acontecimento no local. Segundo Seu Pedro, foi ele quem intermediou seu diálogo
como o “dono da boca” para que pudesse construir no espaço livre ao lado dos bares já
existentes. Lembro-me que logo nas primeiras vezes que passei por essa parte do conjunto, esse
“gerente geral dos barzinhos” passou e, provavelmente, percebeu algum sinal de insegurança
da minha parte. Ao notar minha presença, deu o sinal de “ok”, e disse: “tá calmo, mano. Pode
ficar aí tranquilão. Qualquer coisa tô aqui. É tudo nosso!”.
Segundo Paulo, o surgimento desses bares, ocorreu no momento em que confrontos
armados no interior das favelas do Complexo do Alemão tornaram-se mais frequentes e as
incursões policiais diminuíram dentro do conjunto residencial. À medida que os confrontos
intensificaram-se nas partes mais altas e internas das favelas do bairro, o policiamento no
conjunto passou a ser menos frequente, o que, fez com que a ocupação dos espaços internos
ocorresse com mais desenvoltura e sem o olhar vigilante e regulador da polícia..
Já o bar de Seu Pedro ficava na outra extremidade das construções, na ponta da direita.
Enquanto estive no campo era ele quem administrava a compra das comidas e bebidas, quase
sempre em um mercado de venda a atacado próximo ao Relicário. Quando as compras
chegavam era Dona Neusa, sua esposa, de 55 anos, quem ficava responsável pelo preparo das
comidas. Como os outros dois barzinhos, seus principais itens de venda eram cervejas e bebidas
destiladas (principalmente conhaque e cachaças). No entanto, diferentemente dos vizinhos, eles
ofereciam um cardápio de petiscos, principalmente de batatas e de linguiças fritas. Algumas

117
“Passar a visão” significa instruir o outro baseado na opinião ou percepção daquele que informa. Outro termo
equivalente e muito utilizado também é “vou te dar uma ideia”. Ambas as expressões tem a conotação de
orientação, de conselho sobre o que aconteceu ou pode vir a acontecer com o seu interlocutor. Em muitos casos
ganha a importância de “revelação”, pois somente aquele que profere o termo detém uma certa informação ou
conhecimento que deve ser considerado pelo outro.
198
vezes, preparavam comidas típicas do nordeste. Basicamente, era ela quem preparava as
comidas. Mas, Seu Pedro sempre que podia dizia que também cozinhava: “eu também sei fazer
uma comidas boas, Bruno! Cozinho umas rabadas, umas buchadas, uns torresmos... não fico
pra trás não!”. Dona Neusa, ao escutar, observava com os olhos virados para cima e um sorriso
no canto da boca. Em uma das minhas visitas ao barzinho de Seu Pedro, Dona Neuza contou
que tentava dar “uma cara mais família” ao bar. Mas ela estava mais presente na parte da noite,
pois, durante o dia, trabalhava como acompanhante de idosos. Durante o dia era Seu Pedro
quem abria o bar, mas somente quando está de folga do seu emprego como mestre de obra.
Logo, era um bar mais noturno do que diurno.
Com uma aparência mais clara formada por azulejos brancos e forte iluminação, o bar
de Seu Pedro diferenciava-se fisicamente também dos outros dois pintados de azul e possuía
iluminação mais fraca. Logo na entrada uma escada dava acesso ao interior do bar. Havia um
“chuveirão” instalado para os dias de calor intenso. Seu Pedro dizia que também servia para
curar ressaca. No platô superior, uma mistura de cadeiras e mesas de ferro e plástico, alguns
utensílios domésticos e restos de obra encostados nas paredes. Havia sempre uma caixa de som
com os forrós de sua preferência ligada em uma disputa sonora com o funk ou o pagode das
jukebox dos vizinhos. Seu bar ainda estava em construção, mas em expansão. Tinha
expectativas de ampliação do estabelecimento.
Em uma de nossas conversas, entre um copo vazio e outro cheio, Seu Pedro orgulhava-
se de ter erguido seu bar com as doações que recebeu do seu patrão na obra em que trabalhava
como encarregado, que ainda é a sua principal fonte de renda. As doações eram fruto da relação
de confiança que possuía com o seu chefe e orgulhava-se disso. Disse-me naquele dia:

Bruno, enquanto Deus quiser eu tô ali, eu só saio dali se alguém me mandar [embora],
abandonar não! (...) Essa cadeira foi o coronel [patrão] que me deu, ele já me deu
muita coisa. Isso aqui desse bar foi tudo ele que me deu! Tudinho! Piso, azulejo, essas
pedras mármore... foi tudo ele que me deu. O que eu preciso lá eu tenho na mão” [...]
“ô Bruno, a vida é assim, a gente uma hora perde, outra hora ganha, e assim a gente
vai vivendo, né? O segredo da vida tá aí!

Durante o dia, a frequência de seu bar era, basicamente, de homens com idade aparente
entre 30 e 40 anos. Muitos atuavam na área da construção civil. Pedreiros, encarregados e
mestres de obras que, em algumas oportunidades, trabalhavam juntos com Seu Pedro em obras
que o próprio conseguia. Paravam sempre para beber um “traçado”118 enquanto trocavam

118
O “traçado” ou “traçadinho” é a mistura de duas bebidas em uma dose. O mais comum observado é a
combinação de aguardente (cachaça) com conhaque. Em São Paulo é conhecido como “rabo de galo” e está
associada a chegada da fábrica da Cinzano nos ano 1950. Como o paulistano bebia cachaça e não vermute, a
199
algumas palavras com o dono. De uma forma geral, o público frequentador e o tipo de consumo
nos três bares era muito pouco diferenciado. A maioria do gênero masculino, morador do
Relicário com o perfil descrito acima. Sempre que estive presente, percebi que esses clientes
pediam, e bebiam de uma só vez suas bebidas. Os assuntos nas conversas quase sempre estavam
relacionados aos seus trabalhos, geralmente, sobre as obras em que estavam atuando, e à
“situação no morro”. A expressão “hoje tá brabo aí pra cima!” foi um comentário típico que
marcou, recorrentemente, a abertura de um diálogo e outro. Esse último aspecto foi muitas
vezes mobilizado, discursivamente, pelos frequentadores para justificar a procura desses
espaços internos para “beber uma”, ao invés de beber no boteco fora do Relicário..
Os três barzinhos juntos formavam um local bastante utilizado como ponto de encontro
de moradores, um importante espaço de sociabilidade interna. Até onde pude perceber, a relação
entre os donos dos três barzinhos era amistosa e de respeito mútuo. Percebia-se uma
convivência pacífica em que cada um reconhecia o lugar do outro no local, sem que houvesse
sobreposição ou disputas de interesses entre eles. Mesmo tendo um público consumidor muito
parecido, seus objetivos são relativamente distintos. Enquanto as dinâmicas dos donos dos dois
primeiros barzinhos aproximam-se, funcionando como comércios locais, mas também como
uma espécie de “primeira contenção” dentro do conjunto residencial, ou melhor, como a
primeira barreira aos olheiros do Relicário, Seu Pedro fazia de seu bar um espaço de encontros
e confraternização entre colegas de ofício e familiares, sem qualquer tipo de função ou papel
na dinâmica do controle territorial. Cada um cuidava do seu negócio sem que houvesse uma
postura competitiva ou de regulação entre eles, pelo menos aparente e sem declarações das
partes nesse sentido.
Nas noites de sexta-feira e sábado o movimento diferenciava-se dos demais dias da
semana. Eram os períodos em que havia maior concentração de pessoas em torno dos bares e
as caixas de som permaneciam mais tempo ligadas e em alto volume. O público principal nesses
dias era de jovens com idade aparente entre 14 e 17 anos. A circulação e a permanência desse
público no local era intensa. Na maior parte do tempo, estavam em rodas, conversando, alguns
jogando cartas de baralho e, como dizem no local, “torrando umzinho” (fumando maconha).
Todas às vezes, em que estive próximo presenciei poucas vezes o consumo de bebidas
alcoólicas entre eles. O consumo menos frequente desse tipo de bebida devia-se ao alto custo
do produto para um grupo rapazes sem renda fixa. A maior parte estava matriculado na escola,

empresa estimulou a mistura das bebidas nos balcões de bares e padarias, criando inclusive copos específicos com
a marcação das doses de cada bebida e com o fundo mais grosso para que aguentassem as batidas de mistura no
balcão.
200
mas não trabalhava. Alguns desempenhavam o papel de “olheiro”. Não havia “boca” no local,
mas a presença dos “meninos da marcação” era regular. Outros encaixavam-se na condição de
“nem, nem”, ou seja, nem escola, nem trabalho119.
Atualmente, os barzinhos são privilegiados por moradores que procuram algum tipo de
lazer ou até mesmo um simples ponto de encontro em um território cada vez mais marcado
pelos confrontos entre “tráfico” e policiais das UPPs. O local, por estar abaixo de uma parede
de rocha, gera certa sensação de maior de segurança. Para alguns moradores é a possibilidade
de beber uma cerveja próximo de casa. Tornou-se um espaço de convivência importante no
cotidiano dos moradores do Relicário. No entanto, o ambiente constituído provocou leituras e
reações dissonantes no interior do conjunto. Enquanto alguns viam esses estabelecimentos
como “barzinhos”, outros enxergavam a continuidade da favela no Relicário. O tipo de
construção e o comportamento de alguns frequentadores foram aproximados do “jeito de ser”
da favela. O olhar negativo sobre a construção, a permanência e a expansão provocaram reações
contrárias que vão desde pequenas críticas privadas (as “fofocas”) às ações de resistência velada
contra seu surgimento nos espaços livres do terreno.

7.1.2 Os trailers

Além dos barzinhos, existiam no Relicário outros estabelecimentos comerciais


informais que ocupavam os espaços livres do terreno. Basicamente eram trailers de lanche
(sanduiches) com cadeiras e mesas de ferro ao redor. Alguns colocavam pequenas caixas de
som e montam pequenas churrasqueiras ao lado para o preparo e a venda de “espetinhos”
(churrasco de carnes em espetos de madeira, com acompanhamentos como arroz, molhos e
farofa). Dentro do conjunto residencial haviam três trailers de lanche na entrada, que passaram
a funcionar já no final da minha pesquisa no campo, um trailer com “espetinho” no largo

119
Na literatura sobre juventude e mercado de trabalho a condição “nem, nem” é utilizada para representar a
situação de jovens com idade entre 15 e 29 que se encontram na condição onde nem trabalham, nem estudam. O
sociólogo e professor Adalberto Cardoso em seu artigo “Juventude, trabalho e desenvolvimento: elementos para
uma agenda de investigação” (2013) argumenta que diferente dos países ricos onde a crise econômica de 2008 e
os grandes protestos sociais contribuíram negativamente para o crescimento do número de jovens que não estudam
nem trabalham, em especial na Espanha e na Grécia, no Brasil, a condição dos “nem, nem” é estrutural. No mesmo
artigo, sugere que as mudanças estruturais no qual passou o país entre 2000 e 2010, com as políticas públicas de
redução de barreiras ao acesso à escola e ao mercado de trabalho, “reduziram o impacto das desigualdades
regionais e aumentaram o peso da pobreza na explicação da condição “nem, nem” dos jovens” (CARDOSO, 2013,
p. 293).

201
utilizado como estacionamento de automóveis e um trailer de lanches no alto do Pavimento 2,
na área do parquinho infantil. Seus horários de funcionamento eram sempre noturnos.
Em algumas oportunidades, no sábado à noite, enquanto comia um hambúrguer ou um
churrasquinho sempre que tinha condições, pois estavam sempre com muitos clientes,
conversava com dois desses donos de trailer: o dono do trailer do Pavimento 2 e o dono do
trailer com espetinhos. Em comum, tinham o caráter inicial do negócio e a forma de
viabilizarem os empreendimentos. Todos dois estavam em funcionamento há pouco tempo.
Disseram-me que possuíam experiências com esse tipo de comércio e tinham naquele momento
usado o dinheiro guardado para iniciar o negócio – comprar a estrutura do trailer e as
mercadorias para confecção dos produtos. Os dois tinham feito uma poupança com parte dos
rendimentos que recebiam de outras atividades profissionais. Essa poupança não provinha de
rescisões contratuais ou de qualquer indenização de contratos de trabalho formal, pois, nenhum
dos dois havia trabalhado com carteira assinada nos últimos anos. Esse dinheiro era fruto dos
lucros que tiveram em atividades que exerciam em paralelo: o primeiro era taxista e o outro
trabalhava com frete de móveis. Suas esposas já trabalhavam em casa com o preparo e venda
de alimentos caseiros (bolos, salgados e doces), o que facilitava a produção e a venda desse
segundo negócio próprio.
Mesmo com um pequeno capital acumulado e relativa experiência nesse ramo de
negócios com suas esposas, todos eles, de alguma maneira, tiveram que obter algum tipo de
permissão do “tráfico”, direta ou indiretamente, para iniciar seus trabalhos no local. Para ocupar
um espaço dentro do Relicário foi preciso pedir uma “licença”. Da mesma forma que Seu Pedro
obteve uma autorização para construir seu barzinho, esses comerciantes precisaram do
consentimento para montar seus trailers. No entanto, esses trailers estiveram sob condições
distintas de negociação para iniciar as atividades dentro do Relicário. Tal situação imputou as
suas rotinas de trabalho percepções e efeitos também distintos não só na maneira como
entendiam as dinâmicas locais, como também sobre os desdobramentos diretos de seus
negócios. Um, mais tolerante com as condições impostas, adequou-se aos ordenamentos locais.
O outro, mais crítico sobre tais condições, diferenciou-se dos demais a partir de uma
representação negativa dos outros comércios, dos barzinhos, principalmente. Foi interessante
perceber que a localização dos empreendimentos dentro do Relicário também se mostrou como
elemento relevante para a construção das representações e das práticas sobre o outro..

202
7.1.2.1 Diferentes espaços: táticas ajustadas

Artur, morador do Bloco A, que abrira um trailer de lanches na Parte Alta do Pavimento
Dois, estabeleceu uma negociação direta com a “boca” para instalar seu trailer. Esse foi
montado bem próximo a passagem que separava o conjunto residencial e a favela vizinha, quase
em frente a “Boca da Central”. Seu horário de funcionamento era no início da noite, por volta
das 18h, indo até as 2h da manhã. Os dias de maior frequência eram sextas, sábado e domingos.
No local, a circulação dos jovens que “marcavam na boca” era intensa em um fluxo constante
de entradas e saídas sobre suas motocicletas. A posição de Artur em relação aos jovens era de
contiguidade (LEITE, 2008), ou seja, percebia que sua rotina estava marcada pelo domínio que
exerciam no território e que, pouco tinha a fazer, em relação a essa condição. Artur sempre
fornecia os lanches encomendados pela “boca”, ora pagos no momento do pedido, ora deixando
no fiado. No entanto, segundo Artur, essa condição de fornecedor de lanches não foi uma
condição declaradamente imposta pelo “tráfico” para que montasse e mantivesse aberto o
estabelecimento. Ocorreu na própria dinâmica de funcionamento dos dois comércios juntos, o
trailer e a “boca”, que compartilhavam o mesmo espaço. Uma espécie de dominação velada,
conforme sua interpretação da situação: “tem coisas que não precisam ser ditas, né? A gente
sabe como funciona e faz. É assim, a gente vai levando. Não tenho problemas com eles não”.
Naquele momento, havia uma grande expectativa de Artur e de sua esposa em fazer
daquele empreendimento um negócio rentável, pois, o espaço era amplo, o que possibilitava
imaginar a oferta de outros serviços aos frequentadores, como grupos de música ao vivo e
brinquedos para as crianças. Da mesma forma, não havia outro estabelecimento próximo, o que
evitava qualquer tipo de concorrência mais próxima. Sua esposa já trabalhava em casa fazendo
massas de salgadinhos para fritar e confeitando bolos de aniversário. Tinham uma empresa
informal de buffet de festas infantis. À noite, concentrava suas habilidades culinárias a serviço
do trailer. Aquela era uma oportunidade de conciliarem e ampliarem seus negócios com a venda
de comidas. Na época, moravam como inquilinos e precisavam aumentar a renda familiar.
Com o passar do tempo e as constantes operações policiais na região, a frequência de
clientes começou diminuir. O espaço em questão, amplo, aberto e com pouca iluminação, que
já gerava certa insegurança aos frequentadores por estar associado ao lugar da “boca”, começou
a ficar menos frequentado pelas pessoas, não só clientes de fora, mas pelos próprios moradores
do conjunto residencial. As pessoas passaram a pedir os sanduíches, na maioria das vezes
hambúrgueres, embalados para comer em casa, ao invés de pararem no local. Na época,
conversando com o Artur e com outros moradores que consumiam seus lanches, esses
203
apontaram o “medo do tiroteio”, como principal causa pela diminuição da permanência das
pessoas no local do trailer. Nesse caso, ficou evidente que a localização do trailer no terreno foi
em grande medida o responsável pelos desdobramentos negativo daquele empreendimento. Na
medida em que os confrontos entre policiais e “tráfico” se intensificavam na região, o trailer
passava a abrir menos, até que um dia encerrou suas atividades. Hoje, ao passar pelo local,
pode-se observar o trailer fechado.
Diferente do trailer de Artur, o “espetinho” de André estava situado em uma parte
central do terreno, o que lhe fazia sentir-se “mais tranquilo”. “Aqui é calmo, mano. Não tem
estresse”, disse-me uma vez. Entre os blocos de apartamento, logo abaixo, e em frente aos
“barzinhos”, André mantinha seu trailer sempre em companhia de sua esposa, seu filho e sua
nora. Com um pequeno aparelho de rádio ligado com antigos hits musicais românticos, sua
rotina era servindo lanches para um público, basicamente, formado por jovens que retornavam
do trabalho ou da escola à noite, e paravam para fazer um lanche rápido. Havia uma certa
regularidade ritualística na maneira como as pessoas consumiam no trailer do André:
chegavam, faziam o pedido (pois já sabiam qual era o menu), sentavam-se nos bancos de
plástico, comiam, bebiam, pagavam e iam embora. Havia sempre um trânsito no local com a
breve permanência dos clientes enquanto comiam. Diferente dos “barzinhos”, onde havia outros
produtos à venda, músicas em jukebox, mesas de jogos (totó) e, principalmente, onde o consumo
maior era a bebida alcoólica, no trailer do “espetinho” o foco era a alimentação rápida. Na
maioria das vezes, as pessoas comiam em silêncio. Quando conversam estabeleciam diálogos
fugazes sobre assuntos da ordem do dia: violência no bairro, política/corrupção e a previsão do
tempo. Às vezes, futebol.
A princípio, segundo informações de Paulo, a instalação do trailer no local não exigiu
maiores esforços de negociações com a “boca”. André nunca entrou em detalhes comigo sobre
essa questão, até porque, não tivemos muitas oportunidades de conversa e de estabelecer maior
grau de confiança nas nossas interações. No entanto, afirmou em uma ocasião que “foi tranquilo
botar a barraquinha ali”. Disse-me que nunca tinha tido problema com ninguém: “rapaz, tô aqui
na minha, tranquilinho e ganhando meu dinheirinho sem perturbar ninguém”. De todo modo,
pensei alguns fatores que podem ter contribuído para sua “tranquilidade” no local, como por
exemplo: o fato dele ser o primeiro a utilizar aquele espaço, localizado no interior do terreno,
uma área de trânsito, menos exposta aos conflitos armados no bairro; pelo fato de seus produtos
comercializados apresentarem-se como uma alternativa de consumo no mercado interno do
Relicário; ou mesmo por ter um público consumidor diferente do público dos “barzinhos”.,.

204
Conversando, posteriormente, com alguns frequentadores do trailer do André, esses afirmaram
que era ótimo ter aquela opção ali dentro, pois, como chegavam tarde dos seus afazeres
profissionais diários, comiam alguma coisa perto de casa e evitavam ficar na rua até tarde da
noite, além de ser um “ambiente mais familiar”.
Em relação aos “barzinhos”, André enxergava a dinâmica das relações no local como
uma continuidade da favela dentro do Relicário. Para ele, tal dinâmica formada por um conjunto
de práticas cotidianas associadas à vida social na favela era um fator negativo naquele novo
ambiente de moradia. Esse conjunto de práticas manifestam-se para André por meio das
músicas, das conversas e dos risos em alto volume, das discussões e das brigas públicas de
familiares e casais e, na permanência no local de jovens identificados como os “bandidos”.
Essa leitura sobre os “barzinhos” foi compartilhada por outros moradores,
principalmente, pelo público evangélico morador do conjunto residencial. Esses espaços foram
vistos como o lugar da “bebedeira”, da “bagunça”, onde as pessoas não se comportavam
adequadamente. Um local que, em ultima instância, devia ser apenas evitado. Moisés,
evangélico, mesmo crítico das construções nos espaços livre, sempre dizia: “cara, cada um na
sua. Eles lá e eu aqui. É só não se misturar.” No entanto, essa percepção negativa não estava
circunscrita aos moradores que manifestavam suas preferências religiosas. Ela reverberava
entre moradores declaradamente não evangélicos que assumiam uma postura de não
envolvimento e distanciamento de comportamentos que consideram reprováveis. André, por
exemplo, não professou nenhuma religião, mas compartilhava da leitura de Moisés. Em uma
ocasião, ao fazer um lanche em seu trailer, relatou-me uma briga que acontecera em noites
passadas. Em tom de reprovação disse: “rapaz, esse pessoal não sabe beber não. Tem um aí que
quando bebe resolve ter ciúmes da mulher e arruma confusão com todo mundo! Pô, não sabe
beber! Ali o negócio não é fácil. Não tem jeito não.” Cabe destacar que, diferente do trailer de
Artur, o de André continuou em pleno funcionamento – aparentemente, e sem notícias
contrárias – sem problemas.
De todo modo, sob suas idiossincrasias, os dois tipos de empreendimentos – barzinhos
e trailers – podem ser aproximados quando consideramos as dinâmicas pelas quais eles se
inserem para manter seus negócios em funcionamento. Tanto os barzinhos, quanto os trailers
ocupam os espaços livres do conjunto Relicário sob o mesmo ordenamento espacial: ambos
submetem-se, direta ou indiretamente, e em alguma medida, a regulação do “tráfico”. Ainda
mais, todos instrumentalizam as ocupações, principalmente, com a necessidade da geração de
renda, seja ela primária – única ou principal fonte de renda familiar – ou secundária – que

205
agrega valor a renda principal, e de espaço de lazer. As percepções sobre seus negócios podem
ser diferentes, mas as regulações e as necessidades estiveram próximas nos processos rotineiros
da sociabilização local.
Contudo, olhando de fora do universo das construções, onde já existem as distinções
que situam os atores em posições conflitantes, havia um grupo no Relicário que mantinha uma
postura mais crítica em relação ao movimento das ocupações dos espaços livres.
Sistematicamente, esse grupo atuou na contenção das construções e das novas instalações por
meio de “táticas de resistência” (CERTEAU, 2008) veladas, onde o princípio foi a manutenção
de um ambiente condominial sem a “bagunça” de outros tempos da vida na favela. Em um
primeiro momento, cheguei a caracterizá-los como “plantadores” pela forma como agiam nos
espaços livres para resistir ao ordenamento vigente. Mas, com o tempo de convivência, percebi
que as formas de ação, seus papéis sociais e os significados construídos sobre suas ações
estavam para além das caracterizações que aprisionam sujeitos às representações estáticas.
Desempenhavam papéis variados no limiar das ordens em disputa., como veremos a seguir.

7.2 Plantações

Dona Sulamita, morava no primeiro andar do Bloco U, um dos primeiros prédios na


entrada do Conjunto Relicário. Ela me foi apresentada por Moisés, morador do Bloco J e que
também morava em um apartamento no primeiro andar. Suas trajetórias até o conjunto foram
marcadas por diferentes eventos, mas haviam sofrido a mesma ação do PAC: Sulamita fora
removida de suas casas no Morro das Palmeiras; Moisés, removido de seu trabalho, uma
barraca, na entrada da localidade conhecida como Grota.
Durante o tempo em que estive no convívio dos dois, percebi que Sulamita e Moisés
compartilhavam uma rotina em comum: o manejo da terra e o cultivo de plantas nos canteiros
do terreno. Tanto Sulamita, quanto Moisés (em parceria com outro morador, Amós) utilizam-
se desses espaços livres para o cultivo de seus jardins, cada um em uma parte do Relicário.
Frequentemente, encontravam-se para trocar informações sobre as novas mudas de plantas, os
frutos que estavam nascendo e as flores que perfumavam e coloriam os entremeios que separam
os prédios de concreto. Em suas falas, o cultivo das plantas e das árvores frutíferas estava
sempre relacionado como um tempo passado, de um morro em processo de ocupação ou de
uma infância na “roça”. Lembravam-se do Complexo do Alemão “de quando tudo era uma
grande fazenda”, como sempre rememorou Moisés.

206
No entanto, tal prática do manejo da terra estava para além das saudosas vidas passadas.
No dia a dia, as plantações ganhavam um sentido pragmático de ação quando se revelavam
como “táticas de resistência” (CERTEAU, 2008). O objetivo declarado por ambos era impedir,
ou pelo menos dificultar, a construção de “barracos” e a instalação de “bocas de fumo” dentro
do conjunto residencial. A consolidação de um comércio de drogas era uma preocupação
permanente, causando um sentimento crescente de insegurança e opressão. Tinham medo do
trânsito de “bandidos” e “viciados” nas portas de seus apartamentos. Além disso, consideravam
que esse comércio de drogas causassem impactos negativos no valor de mercado de seus
imóveis.
Cabe ressaltar que mesmo com uma tática de ação, Sulamita, Moisés e Amós atuaram
com perspectivas diferentes. Sempre individualmente, ela alternou entre uma postura de
resistência mais velada, por meio das plantações e outras ações, e o enfrentamento direto, por
meio do conflito, com seus opositores: os “meninos da marcação”.. Moisés e Amós, por sua
vez, atuaram sempre em parceria, nas bordas do terreno, sem declarar, abertamente, seus
descontentamentos, buscando ampliar o alcance de suas intervenções contra as construções de
maneira mais implícita. Vejamos a seguir.

7.2.1 O jardim de Sulamita

Dona Sulamita vivia no topo do Morro das Palmeiras, favela do bairro, onde atualmente
está instalado uma das estações do teleférico. Em seu apartamento no Relicário, essa senhora
de 62 anos, viúva, paraibana, mãe de seis filhos, dezoito netos e três bisnetos, morava sozinha.
Frequentemente tinha a companhia de duas netas adolescentes que, na saída da escola –
estudavam no Colégio Tim Lopes – sempre passavam pela casa da avó. Mas, Sulamita
queixava-se, constantemente, de sua solidão naquele espaço que chamava de “apertamento”,
indicando seu descontentamento quanto a tamanho de sua residência, fruto de uma das
indenizações que recebeu pela remoção de três casas suas no morro. Além dessa unidade
habitacional, recebeu como parte da indenização um valor em dinheiro que utilizou para
adquirir um terreno em uma cidade do estado da Paraíba, onde construiu uma chácara. Além
disso, por uma casa que foi demolida, recebia o benefício do “Aluguel Social”.
A casa de dois pavimentos que Sulamita morava no Morro das Palmeiras era grande e
estava em um amplo terreno. Dizia: “eu tinha um bom quintal que tinha de tudo, até pé de café,
meu filho... lá eu criava minhas galinhas, meus pintos, meus cachorros, minhas plantas... tinha

207
até porco! Aquilo que era casa de verdade!”, recordava, lamentando-se sempre da perda do
espaço que possuía. Sua casa era dividida entre a residência e uma pequena loja comercial de
onde tirava seu sustento mensal. Disse-me que enquanto morou no morro sempre trabalhou
com comércio, o que a possibilitou construir uma “clientela fiel” e “conhecer todo mundo”. Ao
mudar-se para o apartamento no Relicário precisou recomeçar. Da mesma forma que conjugava
espaço de moradia e trabalho na sua antiga casa, Sulamita reproduziu tal configuração
residencial em seu apartamento no Relicário. Na cozinha de seu apartamento montou sua
“vendinha”.
Como aponta Motta (2014) esse tipo de divisão da estrutura da casa entre a residência e
o comércio é algo comum em casas na favela. As casas são espaços mutáveis e podem
eventualmente ser alteradas cedendo partes (como a cozinha) a atividades que não são as de
manutenção da vida cotidiana do lar, como cozinhar. Diferente dos “barzinhos”, a vendinha de
Sulamita estruturava-se dentro do seu apartamento. Em sua cozinha, Sulamita acomodava dois
freezers com bebidas, uma geladeira, duas estantes de metal com seis prateleiras cada uma,
cheias de caixas de doces, balas, pipas e biscoitos, material de limpeza, além dos seus utensílios
domésticos.
Da janela gradeada da sua cozinha Sulamita atendia seus clientes. Não havia circulação
de clientes por dentro de sua casa. A própria configuração construtiva dos apartamentos impedia
que houvesse uma abertura maior para circulações, entradas e saídas de pessoas. Cabe lembrar
que uma das exigências do PAC era a de que os apartamentos não podiam ser utilizados para
fins comerciais, o que foi descumprido categoricamente em vários conjuntos construídos pelo
programa. As pessoas tinham seus negócios na favela antes de se mudarem compulsoriamente
para os apartamentos. Muitas vezes, a única fonte de renda familiar. Ao mesmo tempo, Sulamita
dizia prezar por sua “intimidade” dizendo que nunca gostou de “misturar as coisas”.
Sob seu balcão de atendimento construído na janela de sua cozinha, disse-me que abria
sua vendinha todos os dias, de nove da manhã as seis, sete horas da noite, mas o funcionamento
dependia muito do “clima do morro”. Mesmo morando no Relicário, em dias de intenso tiroteio
nas favelas ao redor, Sulamita dizia que fechava todo o apartamento e se trancava dentro de
casa “em oração”. Mas, quando o “clima” estava “tranquilo” abria sua janela-balcão e mantinha
suas atividades comerciais ativas. Era, basicamente, por essa janela que Sulamita acessava a
parte externa da sua moradia. Passava as manhãs no local conversando com os clientes, vizinhos
e fornecedores, principalmente sobre questões políticas do país e sobre o próprio Relicário.

208
O público consumidor da vendinha de Sulamita era formado principalmente por
crianças com idade entre sete e doze anos e jovens adolescentes. Os doces e as bebidas,
principalmente, a cerveja, os refrigerantes e os envelopes de suco em pó, compunham a lista
dos produtos mais vendidos. Dizia que eram “as moedinhas dos doces” que pagavam suas
contas da casa, complementando seu orçamento mensal proveniente de alugueis de duas casas
que conseguiu manter no morro, mesmo após a sua mudança de endereço. No entanto, dizia
que, nos últimos meses, tinha encontrado muitas dificuldades para gerar uma renda mínima,
capaz de arcar com certos custos da casa, como água, luz e taxa condominial, custos esses que
não possuía, quando morava na favela. Sulamita afirmou que essas dificuldades estavam
relacionadas com as suas condições de saúde, que a impediam muitas vezes de trabalhar, abrir
a vendinha. Também eram consequência dos tiroteios no morro, que a impediam de sair, quando
estava bem de saúde, para cobrar os seus aluguéis.
Além do seu trabalho no comércio, Sulamita tecia grande apreço pelo cultivo de plantas.
Na frente de seu balcão, ela mantinha, com todo cuidado, um frondoso jardim. Eram diversos
os plantios que ela realizava, principalmente de árvores frutíferas, hortaliças e grãos. Sulamita
fazia sempre questão de especificar cada uma das suas plantações. Para ela, o fato de poder
“mexer na terra” fazia com que se recordasse dos seus “tempos na roça”, em sua cidade natal,
Campina Grande-PB. Em uma ocasião, contou: “meu filho, aquela terra era boa que só ela.
Embaixo daquele céu estrelado da roça tudo que se plantava dava... que tempo bom que não
volta...”. Recorrentemente, criava uma narrativa sobre um passado de saudades, uma
representação idílica sobre um lugar de vivência diferente do que experimenta hoje dentro do
Relicário. Com as mãos na terra, Sulamita dizia sempre que fazia a sua “terapia diária” contra
seu sentimento de solidão e de medo. Para ela seu jardim era o que ela tem de “mais lindo e
precioso na sua casa”.

Meu filho eu tenho aqui de tudo um pouco: algodão, laranja, alecrim, abacaxi, manga,
abacate, pimenta, feijão guandu, cajá, coqueiro, mamão, caju, abóbora, alface,
pitanga, jambo, cupuaçu, fava... quando eu mexo na terra lembro do sítio que eu
morava na infância e se plantava de tudo. Aqui eu esqueço do tempo... faço minha
terapia aqui quietinha, conversando com cada uma delas. Elas me escutam e sabem
de tudo o que eu passo aqui dentro. (...) ô Bruno, eu sou muito sozinha aqui. Minhas
filhas veem aqui de vez enquanto. Sou só eu e Deus. Aí eu pego e vou mexer nas
minha plantas. É o que eu mais gosto de fazer para desanuviar minha mente. Meu
jardim é o que eu tenho de mais lindo na minha casa.

Em vários dos nossos encontros, enquanto movimentava uma muda de planta de lugar
ou atendia alguém na janela-balcão de sua vendinha, Sulamita e eu conversamos sobre algumas

209
dificuldades que ela deparava desde que havia se mudado de endereço. Além da sua insatisfação
relacionada ao formato de residência predial, muito diferente da sua casa no morro com seu
amplo quintal, Sulamita sempre se queixou de um “tormento em sua cabeça”: a permanência
de alguns jovens nas redondezas do bloco onde mora. Especificamente, Sulamita reclamava do
trânsito, do uso e da ocupação dos arredores do seu apartamento pelos “meninos do
movimento”, como ela chamava. Logo no início da chegada no Relicário, esses jovens
chegaram a montar uma “boca” bem na frente de sua janela-balcão tornando a situação
permanentemente tensa, mas que ao mesmo tempo não a intimidava.

No começo... foi luta, viu? Ficou todo mundo assim... Mas, eu não tenho medo, não
tenho medo de nada, se é pro meu bem eu parto. Não importa o que vai acontecer ali
na frente, pertence a Deus, mas eu quero saber agora! Eu tô aqui... montaram [a
“boca”] aqui no bico dessa palmeira ali, aí eu... agora não tem mais não, mas no
começo...

Sulamita relatou-me que o embate com o grupo de jovens foi recorrente, quase diário,
alternando em sua intensidade ao longo do tempo. O impacto negativo da circulação do grupo
para ela estava diretamente relacionado com a localização de seu apartamento – térreo e na
parte baixa do Pavimento 1 – e com uso compartilhado das suas dependências internas como
comércio. A área onde estava situada sua janela-balcão havia um pequeno corredor externo
recuado que levava aos fundos do Bloco U. Nesse local, os jovens mantinham uma rotina
intensa de encontros com pessoas “de fora”, principalmente, depois do entardecer. Música alta,
conversas e barulho de passos eram algo constante nas noites de Sulamita. Contou que diversas
vezes sofreu ameaças nas madrugadas com batidas em paredes, gritos e palavrões, além de
constantemente ao amanhecer ter que limpar urina em baixo de sua janela do quarto de dormir.
Em um primeiro momento, tentou dialogar com o grupo. Chamou os “meninos” para
explicar que aquele era o local dela de moradia e de trabalho e que eles não podiam fazer
daquele espaço um ponto de venda de drogas. Contou que, em um momento de desespero, visto
que a situação não se alterava, chegou a construir um banheiro nos fundos do Bloco U para que
“os meninos” parassem de urinar sob sua janela. Mas, de nada adiantou seu movimento de
conciliação. Os dias e as noites em torno do seu apartamento e da sua vendinha tornaram-se
insuportáveis para Sulamita, o que a fez mudar de postura.
Tentando diminuir a presença dos jovens na área, e até remover a “boca” do local,
passou a plantar no canteiro em frente a sua janela. Com a quantidade crescente de árvores e
plantas sua ideia foi dificultar a circulação das pessoas pelo local e impedir que se instalassem
em definitivo naquele ponto do Relicário. Derrubou o banheiro que tinha construído e montou
210
um galinheiro no mesmo local, nos fundos do prédio para bloquear a passagem por baixo de
sua janela. Colocou pedaços de madeira fincados no chão onde ficavam cadeiras e mesas. Com
toda essa “ruralização” do espaço, o conflito tornou-se mais intenso com ameaças de ambas as
partes. Diante do cenário caótico que se encontrou em um determinado momento, mesmo contra
a vontade, Sulamita recorreu ao “gerente da boca” para tentar solucionar a questão.

Aí fui falar com o gerente: “olha eu vou ser obrigada a fechar as minhas portas e vocês
vão pagar as minhas contas.” Aí ele falou: “tia, tá lhe incomodando?” Aí eu falei:
“meu filho, olha o tamanho [da vendinha]... A pessoa tem duas coisas pra vender, um
refrigerante e uma cervejinha, aí o pessoal empatando não tenho condições de
trabalhar, tão dificultando minha vida...”. Ele disse: “o pessoal tá te incomodando, tá
tranquilo, pode deixar que eles não vai parar mais lá não”. Evaporou, mas só por uns
dias. Agora mesmo, aqueles jornais foi eles que tavam ali, ainda agora tinham uns
cinco sentados. Aí eu falei: “agora aqui é lugar de comentário de cracudo?” Aí um
respondeu: “eu tenho cara de cracudo?” Eu disse: “não, mas vocês estão falando de
drogas. Eu já falei mil vezes que aqui é meu trabalho, eu não tenho descanso!” Me
olharam e saíram cara feia.

Sempre que a encontrei, Sulamita demonstrou um profundo sentimento de insegurança


e descontentamento com o seu lugar de moradia. Dizia que se sentia prisioneira em sua própria
casa. Suas atitudes revelavam claramente seu estado de espírito. Todas as janelas de seu
apartamento, inclusive a que servia como balcão de sua vendinha, possuía grades de ferro. Ao
fechar a porta da sua residência virava as chaves, repetidamente, na mesma direção. Mantinha
todas as cortinas fechadas. Suas saídas de casa estavam cada vez mais escassas, entre outras
atitudes de receio. A cada encontro nosso, sua fala diante da rotina vivida ganhava contornos
mais dramáticos. Não só os “meninos” a incomodavam em seus embates diários, mas, a própria
dinâmica de violência diária no território do Complexo do Alemão deixava-a em estado de
pânico.
Seu medo e suas restrições de movimento pelo bairro criavam um contexto de incertezas
em sua vida. Sulamita atribuía a essa sensação de medo constante a “mudança do morro”. A
chegada da UPP havia mudado as “regras do jogo”, como dizia. “No início, na nossa entrada
no Relicário, antes da invasão do Exército e a instalação das UPPs”, disse-me, “era tudo uma
maravilha, [pois] enquanto os meninos do morro mandavam não havia bagunça”. A mudança
de endereço havia acontecido em agosto de 2010. A invasão das forças armadas – como indico
no capítulo 1 – ocorreu em novembro do mesmo ano. A instalação da primeira base da UPP
aconteceria somente em 2012.
Aqui, cabe ressaltar que, com a permanente presença ao longo do tempo da Polícia
Militar no Complexo do Alemão por meio das UPPs, algumas situações de conflito armado

211
começaram a se deflagrar constituindo, assim, novas dinâmicas no cotidiano não só do
Relicário, mas do bairro e das favelas que a compõem. Se antes das UPPs a polícia entrava e
saía da favela, criando um rotina passível de ser lida pelos moradores, com a permanência da
polícia no território, o estopim para um confronto armado deixava de ser algo legível, Afetando
o cálculo dos sistemas de proteção pessoal. Os moradores passaram a se situar entre um “regime
de ‘campo minado’” permeado de incertezas e imprevisibilidades e a lógica do “fogo cruzado”
(MENEZES, 2015). Assim, toda essa dinâmica gerou uma apreensão permanente nas vidas dos
moradores de “favelas pacificadas”. No Complexo do Alemão não foi diferente. Diante desse
nova “regime”, pessoas desconhecidas, novos rostos começaram a circular não só na favela,
mas dentro do próprio conjunto residencial, gerando apreensão e desconfiança entre os
moradores. Essas duas situações podem ser percebidas nas próprias narrativas de Sulamita:

O que é ruim aqui são esses tiroteios do bairro… Não, não me sinto segura não…
Aqui dentro não tem tiroteio, mas os caras começaram perseguir, a policia desceu
atrás de uns cara aqui dentro, desceram por dentro, não fizeram um buraco ali? Não é
uma vez por ano não, Bruno! Quando os moleques descem pro lado de cá, a bala
gira.... isso aqui fecha de polícia! Quando você olha pra cá tem dois fuzis olhando pra
sua cara! Aí eu me acabo! Começo a chorar, dois, três dias chorando! A minha
insegurança é isso. A única coisa que está me matando aqui é essa sensação de
insegurança. Eu tenho medo, eu tenho medo de sair. Tem vezes que eu perco médico:
“tá dando tiro!” Eu escutei um tiro, aí acabou! Não manda eu sair que daqui eu não
saio. Ninguém me tira daqui de dentro.

E segue:

A vizinhança aqui é cada um na sua. Eu não conheço. Tem gente de todas as


qualidades. Tem todas as espécies de formiguinha aqui. Expulsaram tudo quanto é
qualidade de gente, expulsaram o morro nas costas. Com isso veio Estados Unidos,
África, Alemanha, França, Itália, veio tudo que... veio tudo escarnaçado! Um foco só.
Então, eu não quero me envolver, eu não quero… então é tudo muito complicado...
porque se eu tiver numa obra de fogo, como é que eu vou me safar? Não conheço
ninguém, entendeu? Conheço o seu Moisés, agora depois, não sei da onde veio de
onde saiu. Conheço o Amós que cuida... e é oi, oi, ele tá cuidando das plantas dele e
eu cuidando das minhas... conheço a do quarto andar... pronto, essa moça que
acharam ela desanimada (!) em casa, não conheço, não sei de que lado saiu. (...) Então,
eu não tenho muito tempo, não gosto de estar em roda, gosto de ficar em casa, sempre
na minha casa (...) tenho trinta e oito anos de Complexo do Alemão. Não admito esse
abuso, esse desrespeito comigo não... eu também tenho conhecidos lá em cima, tenho
sobrinhos, muitos sobrinhos, mas não quero usar disso para me fazer respeitada aqui
não. Quero resolver as coisas por mim mesma, aqui dentro. Na favela era a lei do dono
do morro, a lei do bem, agora aqui eles acham que podem fazer tudo, que qualquer
pau de bosta pode mandar e desmandar aqui dentro. Uma bagunça! Qualquer dia eu
pego minhas coisas, vendo tudo e volto para a minha terra, volto para a Paraíba...

Sulamita buscou afirmar seu lugar de autoridade diante daquela nova configuração
cotidiana. Para ela, era inadmissível alguém com sua trajetória, com trinta e oito anos de vida

212
no Complexo do Alemão ser tratada de forma desrespeitosa pelos “meninos”. Seu desabafo
reivindicava reconhecimento de uma trajetória de vida. Consequentemente, ao não ter tal
reconhecimento, construiu uma representação extremamente negativa do lugar onde vive.
Uma das explicações que encontrou para a situação foi um descolamento entre a “lei do
morro” e a “lei do conjunto”. Para ela, mesmo estando no Complexo do Alemão, é na favela
que “a lei do dono do morro... a lei do bem” é obedecida. Para Sulamita, há uma distinção de
ordenamentos entre os dois espaços. Diferente da favela, dentro do Relicário, “qualquer pau de
bosta quer mandar”. Assim, entendo em sua fala que, para ela, o ordenamento daquele espaço
de convivência dentro do Relicário ainda não estava consolidado. Como se aquele novo espaço
de moradia estivesse, ao mesmo tempo, dentro e fora da dinâmica territorial do bairro e das
favelas do entorno. Aqui não haveria disputa, para um conflito de ordens, mas, o vácuo de
ordenamento causado por uma indefinição sobre um regime interno de organização do conjunto
residencial, ainda em construção.
Diante de suas condições, as disputas entre os “meninos” e Sulamita ganharam uma
perspectiva mais individualizada, onde as táticas de resistência e ocupação foram pensadas
dentro das expectativas de cada um – “cada um por si e Deus por todos”. Sulamita não deixava
de pensar alternativas com viés de interesse mais coletivo. Chegou a mencionar a possibilidade
de criar uma ação de “agricultura coletiva” para solucionar o problema das construções de
barracos nos espaços livres. Mas, rapidamente, deu-se conta de que, mesmo com todas as
desregulações, há quem mande no espaço. Para ela seria preciso ter “autoridade” para fazer
algum tipo de mudança dentro do Relicário.

Podiam criar aqui um espaço onde as pessoas pudessem se encontrar e decidir sobre
questões internas. Criar um grupo para realizar uma ação de plantios, uma espécie de
"agricultura coletiva"... mas, qual o espaço que tem aqui? Se fizesse [num] galpão pra
ter reunião uma vez por mês, com o povo, o que a gente podia fazer, para ter uma
solução, uma reciclagem, e aí? Um trabalho de escola com as crianças, ter uma pessoa
responsável... Ah! Aquele espaço tá ocupando, vamos plantar uma árvore que amanhã
os meus filhos vão poder comer, isso dá fruto disso, daquilo... você tá entendendo?
Mas, isso aqui não temos, Bruno... Que espaço nós temos? Né? Quer dizer, um terreno
daquele, se eu pudesse cercar e me dessem autoridade me dessem... o que [eu] ia
fazer? Ia colocar uma plantação de fava... mas como é que alguém [vai] fazer isso,
dois ou três, se tem quase mil pessoas morando aqui. Aí você, dois faz, três quer
destruir. Tinha que ter o quê? Uma ajuda de quê? O que tem que fazer para tornar
realidade? Olha, ter condições de comprar um arame, botar umas estaquinhas, pronto!
Botava a baixo... ia fazer um negócio ali, ia mandar um cara buscar... já sair semeando,
plantar ali, que é pra botar no buraco, pra esticar uns cabos que eu achei, peguei juntei
ali, pra eu esticar já, pra eu ir fazendo... ia fazendo pra ninguém ter espaço... porque,
sabe qual é o plano desse povo aqui que tem um monte? Já planejando de fazer
barraco! Se nós ocupar esses espaços, ninguém vai fazer isso. Porque ninguém vai
invadir isso aqui mais, por quê? Porque o espaço já está com alguma coisa. Já pensou
viver isso aqui, botar com um monte de barraco de tábua nesses espaços desses prédio

213
aqui, qual o valor que isso vai ter? Sabe porque botaram ali [apontando para uma
construção], porque tem braço forte, meu amor. Vai mudar ali pra você ver...

Por fim, um dia, enquanto tomávamos um café em sua sala de estar, ouvi uma conversa
que vinha do lado de fora de seu apartamento e que me chamou a atenção. Discretamente, pela
janela-balcão de sua vendinha consegui observar dois homens, vizinhos do bloco da frente,
compartilhando entre si a ideia de se ocupar alguns espaços livres dentro do conjunto Relicário.
Um dos homens falou: “rapaz, temos que ocupar esses espaços vazios aí... daqui a pouco tá
cheio de barraco aqui dentro! Aí já viu, né? Vira bagunça de vez.”. O outro respondeu: “tem
mesmo. A gente tem que encher tudo isso de árvores frutíferas!” As táticas estavam em plena
operação em diferentes frentes de ação no Relicário...

7.2.2 As “ocupações verdes” de Moisés e Amós

A preocupação sobre os processos de ocupação dos espaços livres do Relicário sempre


foi algo permanente nas falas de alguns moradores. Da mesma forma que Mateus e Josimar,
Moisés e Amós, vizinhos e parceiros de atuação dentro do conjunto residencial, faziam parte
desse grupo. Desde que se mudou para o local, vislumbraram um novo lugar de moradia. Sem
negar suas trajetórias de vida nas favelas do bairro, buscaram criar uma outra forma de organizar
o espaço. Como diziam: “um outro tipo de ambiente”.
No entanto, perceberam que não poderiam isolar-se do entorno, muito menos criar um
lugar independente – político e economicamente – do restante do bairro. “O Relicário é o
Complexo do Alemão, e o Complexo do Alemão é o Relicário”, definiu Moisés, quando
perguntei-o como percebia o conjunto residencial no bairro e sua localização no território,
apontando que o Relicário era marcado pelas vicissitudes que compõem a vida entre o “asfalto”
e a favela na cidade. Disse-me: “aqui não tem essa de separação, meu filho. Está todo mundo
junto e misturado. O que respinga pra um, respinga pra todos. É tudo Complexo do Alemão!”.
Porém, completa dizendo que a vida no bairro poderia ser “mais tranquilo”. E nessa direção,
seguiram em suas empreitadas pelos canteiros do conjunto.
Moisés, 57 anos, mineiro de nascimento, chegou ao Complexo do Alemão com os pais
ainda criança, aos 8 anos de idade. “Vim da roça, lugar de pés descalços e de céu estrelado”,
me contou. Morou no Morro do Alemão até a chegada ao Relicário. Atualmente, vive no
conjunto com a esposa e a única filha deles, uma adolescente de 16 anos. O apartamento onde
mora pertence ao seu irmão, quem, de fato, recebeu a indenização pela remoção feita pelo PAC.
214
Moisés disse-me em uma ocasião, que morava nesse apartamento porque seu irmão sofria de
um problema de saúde e precisava morar com parentes. Assim, trocou de residência com ele,
pois, os familiares que o ajudam, permanecem morando no morro. “Uma troca boa pra todo
mundo”, disse-me.
Até a entrada do PAC possuía uma “lojinha” que compunha o cinturão de
estabelecimentos informais localizado em uma das principais ruas comerciais no bairro. Era
uma loja de sapateiro herdado de seu pai, motivo de orgulho de Moisés, um artesão de formação.
Com as obras de urbanização no local, teve sua loja removida pelo “choque de ordem pública”
da Prefeitura sob gerência do PAC. Sempre que nos encontrávamos, esbravejava sua indignação
pela maneira como havia perdido sua loja. Dizia que a Prefeitura, “de forma truculenta”,
derrubara todos os barracos do bairro para atender os interesses “de fora”, de “grupos
econômicos interessados no novo filão de consumo do bairro”120.
Moisés, tendo em sua trajetória uma formação baseada em atuações por organizações
sindicais da indústria local (trabalhou por anos na fábrica da Coca-Cola), mostrou-se sempre
muito crítico e politizado com relação a maneira como o PAC havia entrado e sido
implementado no bairro. Sempre denunciou irregularidades e privilégios nas relações entre
lideranças locais e governamentais. Moisés disse-me que até hoje não havia recebido “um tostão
sequer”. Nenhuma indenização foi paga pela remoção das lojas no local, tendo como
justificativa, por parte dos atores governamentais, a ilegalidade na permanência dos
estabelecimentos. Segundo Moisés, todos os comerciantes trabalhavam no local há pelo menos
uns 30 anos.
Desde então, Moisés passou a fazer “bicos”, trabalhos pontuais de curta duração
(reparos domésticos) dentro e nas proximidades do Relicário. No entanto, na mesma época das
remoções, Moisés sofrera um acidente que afetou a mobilidade de uma de suas pernas. A causa,
segundo o mesmo, teria sido um buraco deixado na rua pelos operários do PAC. Disse-me que
a situação prejudicou muito sua vida profissional, forçando-o a recorrer ao auxílio do INSS para
que não ficasse sem renda. Sua esposa é dona de casa e não exerce qualquer função remunerada.
Atualmente, Moisés sustenta sua família com esse benefício governamental acionado por
invalidez. Mas, não deixou de recorrer à justiça, o que exige um acompanhamento permanente

120
Com a ocupação militar na região e a expansão das obras na localidade houve um “boom” comercial com a
entrada de grupos de cadeias varejistas de eletrodomésticos e diversos bancos que passaram a oferecer crédito
aqueles que até então sequer tinham conta bancária. Havia, inclusive, segundo alguns moradores da região
interesse de grupos nacionais e internacionais na construção de um shopping center dentro do bairro.

215
junto a Defensoria Pública. Enquanto estive no campo, dividiu-se entre o acompanhamento dos
processos judiciais contra a prefeitura, o cultivo de suas plantações, minhocários caseiros 121 e
os assuntos referentes a Associação de Moradores do Conjunto Residencial Relicário.
Moisés atuava como vice-presidente da Associação. Entendia seu papel de liderança,
não só dentro do Relicário, mas no bairro, como uma “vocação” (WEBER, 2003), como alguém
que devia viver para a política, ou uma atividade de caráter mais público, “porque mantém seu
equilíbrio e sua auto-estima fundados na consciência de que sua existência tem um sentido à
medida em que está a serviço de uma causa” (Op. Cit. p. 22). Em um de nossos encontros, disse-
me que era uma coisa que trazia dentro de si há muito tempo, que possuía “desde de moleque”
essa “vontade de ajudar”. Da mesma maneira que outros interlocutores com quem conversei,
como Mateus e Tomé, Moisés dizia que sentia-se responsável pelas pessoas e pelo lugar onde
morava. Evangélico praticante, utilizava-se sempre de algumas passagens bíblicas para ilustrar
o que pensava sobre seu papel na comunidade. Para ele sua “vontade de ajudar” era uma missão
que não ia negar, pois, “Deus nos ensina por meio de seus filhos”, falou..

Quando eu era mais novo eu queria jogar na loteria e pegar meu cartão e pensava: “e
esse pessoal que vai ficar pra trás?” Ao invés de me preocupar comigo, eu me
preocupava com as pessoas que iam ficar. Aí eu não jogava. É como se eu fosse o
líder do povo e quisesse protegê-lo, quisesse ficar dentro na favela, entendeu? E eu
não jogava na loteria porque eu pensava isso. Ah... eu vou sair... vou tá lá, o pessoal
tudo aí em situação difícil... sinto que tenho uma missão e não vou negar isso. Deus
me ensinou e ele ensina por meio de seus filhos.

Mas, Moisés não atuava sozinho nessa “missão”. Amós de quarenta e cinco anos,
mantinha junto com Moisés uma rotina de responsabilidades e funções dentro do Relicário.
Juntos exerciam as principais atividades de interesse coletivo e formal dentro do Relicário.
Amós também morava no Morro do Alemão, antes de chegar ao Relicário. Chegou um pouco
mais velho ao bairro, já com seus vinte e cinco anos. Natural do estado da Paraíba, era casado
e pai de uma filha adolescente estudante do terceiro ano do ensino médio, que fazia planos para
entrar na faculdade. Queria ser arquiteta. Como “encarregado de obra”, Amós trabalhava com
carteira assinada na área da construção civil em um regime de horário de 40h semanais. Mesmo
com uma carga de trabalho que lhe tomava grande parte do tempo na semana, desempenhava
um papel importante na organização do Relicário: atuava como síndico do bloco onde reside.

121
Minhocários são sistemas de reciclagem do lixo orgânico caseiro, onde as minhocas transformam restos de
alimento em húmus, ou seja, adubo.

216
Com o fim das comissões gestoras, a inexistência de reuniões condominiais e os
processos deliberativos para escolha de síndicos, no dia a dia do Bloco L, Amós era quem
tomava a iniciativa de resolver questões que envolviam o cotidiano daquele grupo de
moradores. Na maior parte das vezes, sua principal função era mobilizar e arrecadar o dinheiro
necessário para realizar reparos ou melhorias nos espaços internos do Bloco onde morava.
Como em outros Blocos, no L também não havia taxa condominial instituída. Muitas vezes, em
reparos do telhado do prédio ou no conserto do sistema da caixa d’água era o próprio Amós
quem realizava o trabalho.
Amós também ocupava o quadro administrativo da Associação de Moradores do
Relicário. Como membro e conselheiro da associação, tinha como função principal realizar o
manejo interno do fluxo de entrada da água no conjunto. Tal função teria se instituído, segundo
Amós, com um problema no “automático da bomba” – equipamento responsável pela
automatização da distribuição da água pelo conjunto – não solucionado pela empresa
responsável pela manutenção da bomba d’água, a Companhia Estadual de Água e Esgoto do
Rio de Janeiro, a CEDAE. Rotineiramente, fazia o controle manual da entrada da água. Quando
chegava do trabalho, no final da tarde, ligava a bomba, e quando saía para trabalhar, ao
amanhecer, desligava para evitar o transbordamento. Realizava esse trabalho de controle do
fluxo da água diariamente, praticamente, disse-me, desde que chegou ao Relicário.
Em uma ocasião, questionei porque a empresa não resolvia o problema, já que esta é a
responsável pela manutenção do equipamento. Emendei na pergunta sobre o próprio papel da
associação nessa intermediação junto as empresas e órgão governamentais, e ele me respondeu:

Bruno, ninguém que saber de resolver nada, o governo só quer saber de cobrar. Se não
tiver uma indicação, alguém do meio político, as coisas não se resolvem. Aqui é assim.
A Clarissa Garotinho122 quando veio fazer campanha aqui no Complexo mandou o
presidente da CEDAE resolver. No dia seguinte vieram aqui. Mas, logo depois
queimou de novo e ficou assim.

Em seguida, perguntei se não seria interessante dividir com outras pessoas a


responsabilidade sobre esse manejo da água, se não era uma atribuição “pesada” e que recaía
somente sobre ele. Amós respondeu: “é melhor não, rapaz... todo mundo já sabe que somos nós
que fazemos esse trabalho aqui. Se der algum problema já sabem quem procurar para resolver.
É melhor a gente ficar no controle da situação”.

122
Deputada Federal do Rio de Janeiro pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB).

217
Ao dizer “nós”, “a gente”, entendia o exercício dessa função como atribuição da
associação. Ao mesmo tempo era um meio de exercer um tipo de poder e ter reconhecimento
dos outros moradores da importância do grupo dentro do Relicário. Como coloquei no capítulo
3, desde a sua criação, a Associação de Moradores do Relicário sempre encontrou dificuldades
para legitimar sua representação formal perante os moradores que, quase sempre, criticavam
ou, até mesmo, negavam a atuação e a relevância da organização no Conjunto. Desse modo,
controlar a água seria uma forma da Associação reificar a sua autoridade, mostrando, não só a
sua eficiência, como também, exercendo controle sobre a vida dos condôminos, uma vez que
regulava algo tão fundamental à vida de todos: a água.
Mesmo com todas as atribuições, juntos, Moisés e Amós cultivavam muitas plantas nos
canteiros que contornam os blocos da Parte Baixa do Pavimento 1. As práticas de plantio faziam
parte de uma rotina que aliava satisfação a um tipo de tática de ocupação dos espaços livres. A
respeito de suas satisfações, como Sulamita, Moisés resgatava, em suas narrativas, um passado
de vida da “roça” no interior de Minas Gerais, que o conectava a uma origem que ele valorizava.
Gostava de fazer doces de frutas e distribuir para seus vizinhos e parentes próximos, pois
entendia ser esse um exercício de “conexão com a natureza”, uma forma de manter suas “raízes
vivas”, como dizia. Ao mesmo tempo, manter um contato com a comunidade. Como chegou ao
bairro ainda criança, no tempo em que “tudo era mato”, pôde exercitar essa prática também no
morro onde morou. Já Amós, além de aproximar-se do gosto de Moisés, via no cultivo e no
trabalho com a terra um ato para a reeducação da cultura local.
A variedade de plantas e árvores que Moisés e Amós cultivavam nos canteiros era
grande. Plantas como espada-de-são-jorge, camomila e boldo eram muito valorizadas por eles,
tanto pela beleza, quanto por suas funções medicinais123. No entanto, privilegiavam a
manutenção e o cultivo de árvores frutíferas, principalmente, bananeiras, parreiras, goiabeiras,
mamoeiros e mangueiras, pelo gosto e paladar e pelas sombras que essas proporcionavam no
local. Além disso, acreditavam que o fato de cultivarem essas frutas fazia com que as pessoas
se comprometessem em mantê-las vivas, pois serviriam à todos. Em um processo contínuo de

123
É de grande conhecimento popular que as plantas possuem propriedades terapêuticas utilizadas em processos
de curas que vão de pequenos ferimentos a tratamentos de doenças crônicas. No caso da camomila é conhecida
por suas propriedades relaxantes e calmantes. O boldo é utilizado para limpezas gastrointestinais e para “curar
ressaca” de bebidas alcoólicas. No caso da espada-de-são-jorge, uma planta de coloração esverdeada, tronco firme,
de origem africana, possui grande resistência ao clima, mesmo em jardins onde há baixa ou nenhuma manutenção.
Em alguns lugares é chamada de “espada-de-santa-bárbara”, “espada-de-Ogum”, “Planta-cobra”, “língua-de-
sogra”, “rabo-de-lagarto” ou sanseviéria. É conhecida na cultura popular por ser uma planta muito tóxica e com
funções para a proteção espiritual. Amós, mesmo afirmando não ter qualquer religião, disse algumas vezes que “é
bom ter sempre uma espada-de-são-jorge no canteiro, traz proteção contra os olhos-grandes”.
218
“ocupação verde” dos canteiros vazios do Relicário, buscavam criar, em suas palavras, uma
“pedagogia da preservação”, não só ambiental, mas do próprio patrimônio que adquiriram com
o processo de indenização do PAC. Moisés e Amós afirmavam que o trabalho que mantinham
nos canteiros deveria gerar “conscientização”, principalmente, nos mais jovens, pois, para eles,
eram os jovens de hoje que podiam fazer alguma diferença em um futuro próximo no
Complexo.
No entanto, aliada a satisfação e como complemento à “conscientização”, Moisés e
Amós praticavam o cultivo e trabalho na terra com um outro objetivo: evitar o surgimento de
barracos dentro do Relicário. Eles acreditavam que, com esse duplo movimento (o de ocupação
e o de conscientização) podiam dificultar tanto iniciativas externas, de entrada de pessoas de
fora, quanto internas, de moradores do próprio conjunto, que pretendessem iniciar algum tipo
de construção no terreno. Como a necessidade por moradia e geração de renda no bairro eram
situações sempre presentes , uma autoconstrução em um pedaço do terreno com mato alto, sinal
de que a terra está “parada”, era algo sempre possível de ser autorizado pelo “pessoal de cima”,
como se referiam ao “tráfico”. Assim, focavam nas ocupações verdes para que não surgisse
qualquer tipo de empreendimento nesses locais, como os “barzinhos”, o que para eles imporia
e fortaleceria no local um tipo de sociabilidade que ambos reprovavam moralmente. Como
outros moradores, não queriam “bagunça” perto de seus apartamentos.
Moisés e Amós agiam por iniciativa própria, sem qualquer tipo de movimento mais
organizado. Diferentemente do manejo da água feita por Amós em nome da Associação de
Moradores, as plantações eram de iniciativa dos dois. Eles não solicitavam qualquer tipo de
autorização ao “tráfico”. De forma tática, ocupam os espaços livres com as plantações até que
o primeiro reclamasse ou reivindicasse o local. Um movimento de resistência velada e
silenciosa, sem qualquer tipo de mobilização coletiva ou publicização. Do mesmo modo, diziam
que não buscavam uma exposição de suas imagens com a prática do plantio. Pelo contrário,
tentavam manter uma certa discrição “para não chamar a atenção”. Entendiam que se a
permissão viesse “de cima” para construírem, não haveria outro jeito se não recuar. “Contra
eles não dá pra brigar não... tem que ser tudo assim quietinho”, desabafou Amós.
Para os dois esse trabalho já rendia, literalmente, bons frutos. Eu mesmo, algumas vezes,
vi cachos de banana e alguns sacos de goiaba sendo distribuídos para senhoras que desciam as
escadas que ligam os dois pavimentos do conjunto. Crianças com suas latas de linha de pipa em
baixo dos braços lambuzavam-se com as mangas que escorriam pelos braços no final das tardes.
Senhoras “donas de casa” conversavam sobre algumas receitas que faziam com as frutas do

219
“seu” Moisés. Amós contava sobre os chás de boldo que tomava sempre após uma grande
refeição. E assim, o trabalho seguia.

A gente vai fazendo, vai plantando, mas tem que ser árvore frutífera... até agora
ninguém falou nada. Os moleques passam aqui comem as frutas, eu mesmo distribuo
para alguns moradores que perguntam, pedem... a gente precisa ocupar com
plantações aqui, se não daqui a pouco tá cheio de barraco na porta dos prédios.
Também é uma forma da gente educar essa garotada aí que fica o dia inteira pra lá e
pra cá.

Para além de uma crítica estritamente moral da “bagunça”, Moisés e Amós justificavam
suas ocupações verdes (ou a necessidade de impedir as autoconstruções) a partir de dois
aspectos: 1) queriam evitar a desvalorização dos seus imóveis e; 2) buscavam consolidar outro
tipo de ordenamento interno. Os dois aspectos relacionavam-se entre si, mas, operavam de
modos distintos em suas justificativas. O primeiro aspecto está relacionado com a expectativa
em relação à conquista do patrimônio, ao seu valor de mercado. O modus vivendi das favelas
deporia contra um novo formato de moradia e, consequentemente, sobre os aspectos de seu
valor comercial. O segundo, sobre os efeitos das práticas que caracterizam a dinâmica dos
grupos armados que controlam os territórios das favelas, não só na dimensão do mercado
varejista de drogas, com a regulação do fluxo de entrada e saída no local de mercadorias,
operadores e consumidores, mas, sobretudo, sobre o comportamento resultante do domínio e
da opressão históricas que exercem o “tráfico” sobre os demais moradores em suas rotinas de
vida.
Como demonstrei logo no início dessa tese, desde a construção dos primeiros conjuntos
residenciais do programa de urbanização de favelas, o valor simbólico atribuído pelos atores
governamentais aos novos apartamentos do PAC foi, prontamente, incorporado pelos
moradores. Isso fez com que esses espaços de moradia fossem significados como diferenciados
na paisagem do Complexo do Alemão, pois possuiria uma estética urbana de formato
condominial e, além disso, seria uma moradia, que possibilitaria uma vida mais segura física e
juridicamente, quando comparadas com aos padrões de moradias nos morros do bairro. Morar
nos “predinhos” representava não só a solução de alguns problemas históricos relacionados a
residência na favela, como a informalidade, a violência e, muitas vezes, a precariedade das
construções, mas sobretudo, uma vida promissora em relação as formas de reprodução material
e simbólica da vida cotidiana.
Assim, diante dessa nova realidade residencial, o valor da moradia passava a ser não só
mensurado em seu valor de uso, mas também em seu valor de troca, em um mercado imobiliário

220
local, que incorporava, cada vez mais, esses novos espaços de residência em suas ofertas e
transações comerciais124. Como outros moradores com quem conversei, Moisés e Amós
reiteravam esse entendimento sobre o significado do Relicário naquele contexto do Bairro. Para
eles, era fundamental consolidar a representação desse local como espaço de moradia,
diferenciado da moradia nas favelas. Um apartamento do PAC representava a conquista de um
patrimônio familiar que proporcionaria, não só a integridade física de seus ocupantes e de suas
futuras gerações, mas, um possível retorno financeiro para os proprietários, caso necessitassem
comercializá-lo – o que já ocorria dentro dos conjuntos do PAC desde o início de suas
existências. Ademais, morar nos “predinhos” era a possibilidade de reconhecimento da
formalidade da propriedade privada na favela. Mesmo que o documento de posse ainda não
tivesse sido emitido pelos órgãos de governo responsáveis, ter um apartamento no Relicário
representava para fora uma maior estabilidade financeira, quando comparado aos demais
moradores residentes nos morros. Dito de outro modo, morar nos “predinhos” também indicava
uma condição de vida melhor.
É importante ressaltar que em nenhum momento, tanto Moisés quanto Amós, negaram
ou desqualificaram o fato de estarem no Complexo do Alemão, mesmo com todos os atributos
negativos que compõem a representação socioespacial desse território na cidade. Pelo contrário.
Reafirmavam com orgulho suas “origens” a partir de suas histórias de superações e resistências
no bairro. Mas, dentro das possibilidades que vislumbravam de constituição de uma nova
dinâmica da moradia no bairro, prezavam pela manutenção de suas expectativas e projeções
sobre seus bens imóveis. Assim, os barracos no terreno eram interpretados, não só como uma
possibilidade de reprodução de práticas divergentes do que se esperava em relação ao espaço
condominial, mas, como um mecanismo de forte desvalorização de seus patrimônios. Barracos
no terreno, para eles, desvalorizavam seus imóveis. As autoconstruções no terreno
configurariam assim, um padrão de construção e ocupação conflitante com o padrão de moradia
mais valorizada dos conjuntos residenciais. Para eles, provocavam a “favelização dos
conjuntos” desvalorizando o seu capital imobiliário, incidindo negativamente sobre o valor de
mercado de seus imóveis.
Para Moisés e Amós as autoconstruções no terreno resultariam ainda em um
agravamento de problemas estruturais existentes no Relicário, tendo como elemento central da

124
De acordo com alguns moradores do Complexo do Alemão os valores dos aluguéis dos apartamentos nos
“predinhos” eram em média de trinta a quarenta por cento mais elevados que os valores de casas no morro. Em
algumas páginas de anúncio em redes sociais é possível constatar a diferença nos preços ofertados.

221
crítica a “falta de compromisso” dos moradores com o zelo e a boa preservação daquele espaço
de moradia. As principais questões apontadas por eles foram a permanência e o aumento de
lixo na entrada do conjunto residencial e a depredação das partes construídas. Sobre o lixo,
afirmavam que mesmo com a definição de um local específico para o despejo dos dejetos
(caçambas) e a periodicidade de coleta mantida pela COMLURB – sempre à tarde em dia
alternados na semana –, podia se observar recorrentemente móveis, aparelhos domésticos,
caixas vazias, pedaços de madeira e papelão, e sacos de lixo espalhados pelo chão, muitas vezes
bem ao lado das caçambas. Sobre as depredações, reclamavam que os jovens que circulavam
pelo Pavimento I arrancavam a numeração dos prédios com o objetivo de dificultar a ação da
polícia na identificação de pessoas dentro do Relicário, além de picharem as iniciais do
Comando Vermelho (“CV”) em diversas partes do conjunto para “marcar o território”. Tanto
Moisés quanto Amós disseram-me que pediam recorrentemente para que depositassem os sacos
de lixo e demais resíduos dentro dos compartimentos para evitar mal-cheiro, bem como a
presença de ratos, baratas e outros insetos. Mas, para eles, seus pedidos não surtiam efeito.
Moisés reclamava:

[...] rapaz, isso aqui não tem jeito não... as pessoas em vez de valorizarem o que elas
conquistaram, repetem os mesmos erros do passado. Aqui tinha tudo pra ser um lugar
direitinho, sem problema, sem bagunça, sem estresse, tudo organizado. Mas, parece
que tá entranhado... um jeito de viver na comunidade que não muda... sabe qual é o
nome disso? É memória muscular [grifo nosso]. Tá no jeito de ser... Não tem jeito
não, meu irmão... tá no morro, é da favela...

E segue:

[...] não adianta, meu irmão... e a gente fala, mas nem pode falar muito porque não
sabe qual vai ser a reação. Tem gente aqui que bate no peito pra dizer que é amigo,
sobrinho, parente de fulano, beltrano... não tem consciência do coletivo, que todo
mundo mora no mesmo lugar. Aí o que acontece? Cada um faz o seu. Eu faço o meu
aqui e me junto com quem quer fazer também.

A ideia de “memória muscular”, tal como é trazida por Moisés, carrega um caráter de
especificidade comportamental de um grupo. Aproximando-o da leitura de Pierre Bourdieu
(1996; 2006) sobre um tipo de condicionamento pré-reflexivo, automático e não intencional de
disposições práticas, a “memória muscular” estaria próximo da ideia de “habitus”. Segundo o
autor, o conceito de habitus pode ser entendido como um “princípio gerador de práticas
objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação de tais práticas (...),
que constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida” (BOURDIEU,

222
2008, p. 162), ou ainda, uma “unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente
singular ou de uma classe de atores (...) produzidos pelos condicionamentos sociais associados
à condição correspondente” (BOURDIEU, 1996, p. 21). Na fala de Moisés, determinadas
práticas (como a da não observância sobre o cuidado com o lixo, por exemplo) tipificam a vida
na favela e estão implicadas em um conjunto de significados que remetem a condições de
existência históricas. Em grande medida, Moisés cria uma unicidade na sua forma de
representação do morador da favela quando homogeneíza “um jeito de viver na comunidade”.
Classifica certos comportamentos e gostos de maneira negativa, e que para eles (e tantos outros
residentes no conjunto) estão em desacordo com a maneira como entendem suas novas rotinas
no Relicário.
No entanto, a partir das palavras e Moisés, ideia de “memória muscular” (ou habitus)
pode ser interpretada como uma espécie de “pedagogia da opressão”, ou seja, uma forma de
agir condicionada por dispositivos de violência históricas que delimitaram a maneira de agir de
parte da população submetida a uma relação de submissão ao controle dos grupos armados. Ou
seja, esse “jeito de viver” denotaria a imposição de um conjunto normativo baseado na
vigilância severa das práticas, bem como sobre as formas de punição impostas em caso de
descumprimento das regras, formando assim um tipo de comportamento condicionado e
ajustado a essas condições. Nesse sentido, tal situação ao longo do tempo impossibilitou que as
pessoas pudessem construir um sentimento de coletividade e respeito com o outro, pois somente
agiriam de uma determinada maneira para não sofrerem retaliações e punições dos grupos de
opressão, no caso aqui, o “trafico”. Como disse Moisés, “só fazem as coisas porque não querem
parar na ‘boca’”. Ou seja, um acúmulo histórico de práticas reguladas pela força e a opressão
que dificultam o compromisso com o coletivo. A ideia da “pedagogia da preservação” por meio
das ocupações verdes seriam uma tentativa por parte de Moisés e Amós de mudarem a realidade
vivida. Uma passagem de Amós exemplifica essa interpretação:

Quando a gente morava no morro, o lixo ia sempre parar na caçamba, direitinho.


Ninguém queria parar na ‘boca’ para prestar conta do lixo na porta do vizinho. O
problema é que só andavam na linha porque não queria tomar castigo, entende? Um
dia o filho do ‘seu’ José, com preguiça de levar o lixo lá em baixo, porque a caçamba
da COMLURB ficava lá no pé do morro, tentou jogar o saco lá de cima. Rodou, rodou,
rodou... quando jogou bateu na janela do quarto da minha filha. Sujou tudo! Rapinho
foi lá e pediu mil desculpas dizendo que nunca mais ia fazer isso. Medo, né?

Sobre seus papéis na Associação de Moradores, Moisés e Amós ainda afirmavam que a
organização desempenhava um papel de mantenedora responsável pela preservação e o bom

223
funcionamento dos equipamentos e serviços do espaço público do conjunto – como solicitação
para troca de lâmpadas dos postes internos, para troca ou reparo de encanamento de esgoto e
colocação de quebra-mola nas ruas internas. Ou seja, em alguma medida exerciam o papel de
zeladores do Relicário. Como já indicado na fala de Josimar no capítulo 3, a Associação atuava
de maneira limitada, pois, sua autonomia era regulada. Mas é interessante perceber que, ao
mesmo tempo em que reforçavam a perspectiva da regulação do “tráfico” sobre o conjunto,
diziam não deixar de atuar pelo coletivo. Se ajustavam as condições impostas pelo contexto da
vida no Bairro.
Com relação as ocupações por barracos, cabe aqui ainda uma consideração. Era de
notório saber local que somente com a permissão do “chefe da boca” podia-se ocupar e/ou
construir nos espaços. Como as ocupações surgiam continuamente, Moisés e Amós percebiam
as ocupações, bem como quem ocupava, cada vez mais associados ao “tráfico”. Esse
ordenamento espacial estaria baseado pelas relações de confiança e autoridade dos grupos
armados. Para eles, qualquer alternativa de organização e ordenamento interno tornar-se-ia
prejudicada com a interferência direta e mais incisiva do “tráfico”.
Como solução mais radical, assim como Mateus, além das plantações, recorrentemente
anunciavam a vontade de “fechar o conjunto”. Para eles transformar o Relicário em
“condomínio fechado” diminuiria tanto a possibilidade de circulação de pessoas de fora, quanto
a interferência dos atores do “tráfico” no ordenamento interno. Todo o terreno estaria sob
regulação privada, ou seja, o regime de ordenamento condominial não estaria restrito somente
aos blocos individualmente, mas, contemplaria todo o espaço de caráter mais público
privatizando-o coletivamente, instituindo o que Caldeira (2003) denominou como “enclave”. A
fala de Moisés reafirma a expectativa para a “solução do problema” a partir de medidas de
privatização do espaço comum:

Rapaz, a gente tá tentando aí junto com a prefeitura para fechar aqui. A gente
conseguiu na época do PAC que colocassem essas grades lá do lado de fora. Mas, eles
dizem que o espaço aqui dentro é logradouro público. Enquanto isso aqui for aberto,
não tem jeito, não vamos diminuir, muito menos resolver o problema. Daqui a pouco
aqui dentro está igual aí fora. Os moleques correndo aqui dentro e a polícia descendo
e acertando criança lá no parquinho.

As ações promovidas por Moisés e Amós buscam redefinir ordenamentos que eles
percebiam como “problema”, tanto relacionados a lógica da opressão do “tráfico”, quanto na
dinâmica dos conflitos armados entre policiais e operadores do mercado de drogas que há
décadas conformam uma “modalidade de sociabilidade distinta” (MACHADO DA SILVA,
224
2002; 2008; LEITE, 2008). No entendimento dos meus interlocutores, além da tentativa de se
construir outra representação sobre a moradia associada ao seu valor de mercado, bem como
sua preservação patrimonial, impedir a construção de barracos era evitar que a dinâmica do lado
“de fora” ocorresse dentro do conjunto.
Nesse sentido, as atuações de Moisés e Amós mostram de maneira explícita a
desconstrução do mito da conivência direta entre moradores de favela e “bandidos”. O fato
destes últimos operarem seus negócios e regularem territorialmente os espaços compartilhados
de moradia (o espaço público) não determina qualquer tipo de associação moral ou aproximação
de pessoas por meio de práticas relacionadas aos grupos identificados com o crime. Pelo
contrário. Moisés e Amós orientaram-se na direção contrária a percepção comum da qual Leite
(2008) já denunciava em um artigo como a ideia de submissão dos moradores de favelas à
chamada “lei do tráfico” percebida como uma escolha entre esta e a “lei do país”, como uma
opção por um estilo de vida que rejeitaria as normas e os valores intrínsecos à ordem social”
(Op. Cit., 2008, p. 117). No entanto, Moisés não deixou de apontar para os mecanismos que
incidiriam sobre alguns comportamentos considerados naturalizados, ou seja, para uma
“memória muscular” resultante de um longo período de “pedagogia da opressão”. Suas
plantações ou qualquer outra medida adotada por Moisés e Amós configurar-se-iam exatamente
como ação tática de oposição contra o que entendiam como a regulação da ordem pelo “tráfico”,
ou como chamam, da permanência da “bagunça”.

* * *

Diferente da relação entre Sulamita e os “meninos da marcação”, é importante apontar


aqui que, por parte dos donos dos barzinhos, ou mesmo por parte dos donos dos trailers que se
colocaram de maneira mais crítica em relação a “bagunça”, não houve em nenhum momento
uma postura de enfrentamento ou de disposição para o conflito em relação aos moradores que
agiram de maneira a resistir as ocupações. Até mesmo porque, até onde pude perceber, não
houve uma exposição entre as partes sobre suas disposições contrárias em relação ao outro.
Logo, o embate mais direto não aconteceu. De todo modo, pode-se perceber que há uma disputa,
principalmente no campo simbólico, entre duas formas de representação e ordenamento do
espaço da moradia: uma que orienta-se pelo padrão estético construtivo e normativo dos
conjuntos residenciais em compasso com o discurso de integração à cidade formal/legal,

225
baseado em modelos de organização da moradia de tipo condominial; e o outro, que atua no
espaço regido pela possibilidade de atendimento de necessidades históricas incorporando o
novo espaço à dinâmica da própria favela, mas sob a chancela de quem manda. Como ficou
evidente na passagem de “seu” Pedro, ou mesmo de Moisés e Amós, não há muita margem para
ações mais autônomas.
Mas, mesmo sob perspectivas diferenciadas, é importante perceber que o processo de
ocupação de todos ocorre sob um mesmo princípio tático: a privatização dos espaços públicos.
Tanto os donos dos “barzinhos” e dos trailers, quanto os que “resistem” com suas plantações –
Moisés, Amós e Sulamita – fazem dos espaços públicos do Relicário em grande medida seus
espaços particulares. É no processo de ocupação privada dos espaços livres que encontra-se a
dinâmica de disputa em torno do ordenamento interno do Relicário, ou melhor, de seu
significado. A diferença entre as ocupações não está na forma, mas nos sentidos narrados pelos
atores sobre suas ações a partir de suas condições de existência e suas expectativas em relação
ao conjunto Relicário. A configuração daquele espaço social decorre exatamente de uma mesma
prática compartilhada entre grupos opostos em torno das apropriações e dos usos dos “vazios”
urbanos: privatizando-os. Mas, as justificativas apresentam-se de maneira opostas – ora
afirmando a necessidade de se construir uma “nova realidade” do conjunto residencial – de
caráter mais cívico –, ora (re)afirmando o lugar da favela no conjunto – de caráter tradicional
ou doméstico.
Assim, o que parece estar em jogo – mais do que uma disputa de aparências, ou
movimentos que buscam uma “limpeza moral”, formas de distinção entre pessoas do mesmo
estrato social – é o processo contínuo de formação de um novo espaço de vivência onde as
“antigas” e as “novas” formas de regulação espacial se sobrepõem configurando um espécie de
ordenamento híbrido de organização socioespacial. O que costumou-se denominar como
“favelização dos conjuntos” seria exatamente, utilizando-me dos termos de Lefebvre (2008), o
resultado de um processo permanente de acomodação de práticas de uma “ordem próxima”
dentro de espaços previamente pensados e estruturados sob a perspectiva de uma “ordem
distante”. Ou seja, um conjunto de práticas e formas de existência na cidade – com todo o
arcabouço cultural que compõem a realidade social e econômica das favelas – que defronta-se
com novos processos e ordenamentos da “cidade legal” em contínuo constituir espaço-temporal
da moradia urbana. Fica claro que está em curso uma disputa de significados sobre a moradia
aqui representadas entre conjunto prático-sensível histórico e espacialmente situadas com o
conteúdo valorativo de uma cidade (LEFEBVRE, 2001, p. 51-55).

226
7.3 Do salão de festas e sede da Associação ao templo de Sarah

Umas das primeiras histórias que ouvi quando iniciei minha pesquisa foi a da “tomada”
do prédio do salão de festas dos moradores do Relicário por uma pastora evangélica que ali
montou sua igreja. Tal situação teria deixado muitos moradores do conjunto contrariados e
decepcionados com o papel e a capacidade da Associação de Moradores do Relicário em
resolver a questão. Afinal, aquele seria o local que usariam, não só como salão de festas, mas,
para encontros causais, e até mesmo, como sede da Associação. Expectativas frustradas pelo
controle e pelo uso privado da tal pastora.
Em formato circular, o prédio, remanescente construção da antiga fábrica de tecidos,
teve no passado um uso misto: foi usado como cisterna – parte inferior com capacidade de
armazenamento de 1.600.000m3 de água – e como escritório administrativo da empresa – parte
superior. No início da ocupação dos apartamentos, cheguei a visitar o local como gestor do
PAC e presenciei um cenário de abandono. Suas instalações internas estavam bastante
danificadas, resultado da própria ação do tempo e dos recorrentes saques. Torneiras e pias do
que parecia ser uma antiga cozinha, vasos sanitários e canos d’agua de velhos chuveiros de
plástico utilizados pelos antigos funcionários da fábrica, quadros de energia abertos e sem
disjuntores, todos danificados, entre outros objetos danificados evidenciavam a precariedade da
estrutura local.
Segundo informações dos próprios moradores, com o fechamento da fábrica no final
dos anos de 1990, este prédio e demais construções passaram a ser utilizados como locais para
consumo de drogas e “esconderijo de bandidos”, que transformaram aquele antigo complexo
fabril em uma grande “ruína urbana”. No entanto, observando “de fora”, o cenário encarnava
um duplo sentido visual: trazia consigo as memórias de um tempo vivido de possível
prosperidade, crescimento econômico e desenvolvimento industrial, aliado as marcas do
presente da sua própria decadência e falência no espaço urbano (MENEGUELLO, 2008).
Naquele momento bem inicial de formação do Relicário, e diante das expectativas de
todos em relação ao futuro virtuoso que se anunciava, solicitaram-me enquanto gestor do PAC
que eu acompanhasse de perto uma reivindicação dos moradores do Relicário sobre o desejo de
utilização desse prédio, mediando o conflito que se anunciava com o governo do estado,
detentor dos direitos de uso do prédio. A ideia era realizar uma reunião entre as partes para
esclarecer as dúvidas e resolver os impasses que impediam o uso do prédio por parte dos
moradores. No dia agendado para o encontro entre “moradores” e “governo”, a reunião ocorreu
227
no próprio prédio. As principais reivindicações dos recentes moradores presentes era que o
governo fizesse uma reforma do local conforme promessa feita no período eleitoral pelo diretor
presidente da empresa de obras públicas do estado (EMOP).
No dia do encontro uma forte chuva caía sobre nós, e as inúmeras goteiras e poças de
água no chão davam a dimensão das condições físicas precárias do local. Segundo Mateus, que
naquele momento desempenhava ativamente seu papel de liderança local, o prédio era o único
espaço que possuíam para fazer as festas dos moradores. Os demais prédios e galpões
remanescentes da implosão, ou estavam em péssimas condições para uso (tanto na estrutura
predial quanto nos destroços deixados após a implosão e a obra), ou já estavam ocupados por
grupos locais e instituições governamentais. Durante a reunião a poeira acumulada de uma
década levantava e compunha o ambiente com o vento frio e forte daquela chuva moderada de
inverno. A lama que se formava em volta de nossos pés e a tensão entre as representantes
presentes tornavam o local um lugar de impaciências.
Entre um pingo e outro, a principal justificativa colocada pelos moradores foi a de que
todos os outros conjuntos tinham infraestrutura condominial, e somente o Relicário não tinha
sequer um salão de festas. Cabe relembrar rapidamente que naquele momento, concomitante a
construção dos conjuntos do PAC, outros conjuntos residenciais foram erguidos com recursos
do programa “Minha Casa, Minha Vida”. Esses, em seus projetos originais, caracterizavam-se
formalmente como “condomínios fechados”. Com o arrendamento de dois desses condomínios
pelo governo do estado para alocar famílias desabrigadas, gerou-se um entendimento entre
muitos moradores do Relicário de que “todos eram condomínios”125. Além disso, lideranças
locais – como Mateus – vislumbravam o uso daquele prédio como sede da Associação de
Moradores do Relicário, naquele momento ainda “no papel”.
Ao longo da reunião os diálogos foram tensionados pelas expectativas geradas em torno
das promessas outrora realizadas. Os ânimos alteravam-se com frequência e evidenciavam o
desconforto de quem não queria mais estar presente. A todo instante um pedido de “calma”
soava em meio aos berros e a vermelhidão dos rostos brancos dos atores estatais postos lado a
lado. Os moradores cobravam a promessa feita. O diretor presidente da empresa pública alegava
não ter prometido nada, mas formulava outra promessa com frases do tipo “vamos ver o que
nós podemos fazer” ou o “vamos estudar a situação”. Todo o universo que compôs a dinâmica
daquela primeira disputa conflagrada tornou aquele encontro um momento marcante para

125
A questão sobre a definição da configuração formal desses novos espaços de moradia popular foi debatida no
capitulo 3 dessa tese.
228
muitos dos presentes – inclusive para mim –, ocasião sempre lembrada por Mateus e outros
moradores em nossas conversas mais recentes.
Lembro-me que nos encaminhamentos finais daquele encontro, todos os que estiveram
mais envolvidos com as reivindicações tomaram ciência de uma condição que até então não
estava muito clara para eles, e que em grande medida mudaria a maneira como conduziriam as
práticas sobre aquele espaço do “salão”: o conjunto Relicário não era e nem poderia ser um
“condomínio fechado”. Os gestores presentes disseram em alto e bom som que o terreno havia
sido desapropriado pelo governo do estado para que as secretarias de governo desenvolvessem
“ações sociais”. O projeto elaborado para o local da antiga fábrica contemplava a construção
de diversos equipamentos públicos como escolas, creches, centros de atendimento social, entre
outros. Assim, todo o arruamento que compõe o interior do terreno configurava-se como espaço
público. Havia, inclusive, planos por parte do governo para ampliar o acesso aos equipamentos
públicos construídos pelo PAC no topo do Morro da Alvorada passando por dentro do terreno
do Relicário.
Com essa revelação sobre a configuração formal do terreno, bem como de todo o aparato
fabril remanescentes da implosão, construiu-se o entendimento entre os presentes que, para o
uso do prédio, o governo deveria autorizar. A utilização do espaço para quaisquer fins somente
seria possível por meio de uma concessão pública. Mesmo que informalmente, seria necessário
que aqueles representantes governamentais dessem um sinal positivo para os moradores do
Relicário. Não era um direito adquirido, mas uma concessão que estava-se fazendo. E assim se
fez. O diretor presidente da EMOP “deixou provisoriamente” que os moradores ocupassem o
local e o utilizassem para quaisquer fins. No entanto, não havia qualquer “obrigação” por parte
dele, do governo, que o impusesse realizar qualquer ação de reforma ou reestruturação do local.
Aquele prédio, como as demais “ruínas”, tornar-se-iam, assim, como muitas outras antigas
fábricas do antigo subúrbio operário, mais um “espaço livre” improvisado e transformado.
De acordo com Mateus, em conversas mais recentes, o diretor presidente nunca mais
retornou ao local. Disse-me: “nem se quer recebeu as pessoas que ouviram da sua boca a
promessa do ‘estudo’ para uma possível reforma do salão”. As promessas sobre possibilidades
futuras nunca se cumpriram. Assim, mesmo com essa indefinição e a falta de retorno dos
representantes governamentais,, mesmo em um ambiente bastante degradado, um grupo passou
a vislumbrar possíveis ações e tomaram iniciativas próprias no local. Como desdobramento
daquele encontro Mateus, Moisés, Amós, Tomé e Josimar decidiram ocupar o prédio e
compuseram o primeiro grupo que logo criaria a Associação de Moradores do Conjunto

229
Residencial Relicário. Este último, Josimar, presidente eleito por aclamação para conduzir esse
processo, desempenharia um papel central nos primeiros movimentos para a organização do
desejado “salão de festas do condomínio”.

7.3.1 Nem salão, nem sede

Com a pesquisa em andamento reencontrei Josimar, agora presidente da associação de


moradores. Já se passavam cinco anos desde o dia que nos encontramos pela primeira vez,
naquela manhã chuvosa de reunião com os representantes governamentais. Em uma manhã de
temperatura amena no Complexo do Alemão126, Josimar concedeu-me uma entrevista nos
bancos próximos a alameda do conjunto. Naquele momento, compartilhou algumas das suas
experiências a frente da associação de moradores do Relicário, bem como muitos dos
desdobramentos daquela primeira reunião, bem como de sua curta, mas, segundo o próprio,
“traumática” participação como liderança comunitária local. Josimar tornou-se um dos atores
centrais na disputa pelo uso e apropriação do espaço do “salão”.
Logo que chegou ao Relicário tornou-se síndico. Pela primeira vez desempenhou um
papel de caráter mais público. Enquanto morador da Comunidade Pedra do Sapo – “... quarenta
anos de Complexo do Alemão, parceiro!”, como me disse – era bastante conhecido na
vizinhança. No entanto, em nenhum momento em sua trajetória havia atuado como
representante dos moradores ou assumido qualquer cargo em associações ou grupo/movimentos
comunitários locais. Foi com a sua chegada aos “predinhos” que despontou como liderança.
Em sua breve experiência como síndico Josimar começou a vislumbrar, junto com outros
síndicos do Relicário, a possibilidade de criar uma “gestão ampliada” do conjunto. Como
síndico passou a mobilizar os moradores em torno das questões internas, levando-o mais tarde
a torna-se presidente da associação de moradores.
Mesmo com toda a mobilização em torno dessa proposta de “gestão ampliada”, não
obteve a adesão que esperava. A participação de outros moradores no acompanhamento
compartilhado de problemas comuns – a maioria deles relacionados a infraestrutura dos prédios
(vazamentos, infiltrações) e a segurança (gradeamentos, portas eletrônicas) – foi diminuindo
com o passar do tempo, restando somente o que ele chamou de “núcleo duro”, que passou a

126
Cabe registrar que nesse dia a Profª. Eugênia Motta me acompanhou e participou da entrevista, contribuindo de
maneira significativa com questões que se tornaram importantes na discussão sobre o cotidiano da moradia no
Conjunto Relicário. Fica aqui registrado o meu sincero agradecimento a ela.
230
responsabilizar-se sobre essas questões de caráter mais público. Foi desse movimento de
mobilização dos síndicos que surgiu a primeira formação, bem como a formalização jurídica,
da Associação de Moradores do Conjunto Relicário127.
Definindo-se como “caseiro”, “um cara tranquilo”, foi com a sua chegada ao Relicário
que Josimar experimentou uma vivência mais pública e política diante de seus vizinhos. Abaixo
ele expõe as questões que o levaram a desempenhar o papel de síndico, bem como suas
intenções.

Foi minha primeira experiência como presidente de associação, porque eu acabei


sendo síndico, né? Porque as pessoas que vieram morar nos prédios já me conheciam,
assim, na realidade, umas duas pessoas ou três me conheciam... eu sou caseiro, um
cara tranquilo... as outras [pessoas] eu conhecia porque que vieram de outro morro
vizinho. Aí eles falaram: “não, pô! O síndico tem que ser o Josimar! Eu conheço o
Josimar, todo mundo conhece o Josimar no morro, é uma pessoa que nunca vimos
falar mal dele” e isso, e isso... aí [me] empurraram pra ser síndico. Tinha outro rapaz
que queria ser, era lá do morrão, mas aí o pessoal, aí a Dandara falou: “o fulano não!
Ele é ladrão! Ele não pode porque ele é ladrão mesmo, porque ele faz isso, isso e isso...
porque na Vila Olímpica ele roubava leite das crianças e tal... pergunta pro Mateus se
ele não é ladrão? Mateus pegou ele! Eu vi, eu vi." Aí o cara ficou queimado... aí eu
disse: tá bom, eu vou ser síndico, mas vou trabalhar assim, assim... então vamos lá.
E segue:
Queríamos uma gestão ampliada, entende? Aí foi quando começamos a convidar as
pessoas. Pô, seriam o quê, vinte e dois síndicos e vinte e dois subsíndicos, já daria
quarenta e quatro. E convidamos os moradores também. A gente esperava também
que chegasse duzentas pessoas lá. Só chegaram uns trinta. E depois foi caindo. As
pessoas não tem interesse e foi caindo, caindo, até chegar a dezesseis. Desses
dezesseis ficaram os nove que foi a comissão de nove pessoas. Presidente, vice,
secretario, um secretário, dois secretários... e virou a associação. Ficou só o núcleo
duro mesmo. Aí, com a ajuda de uma pessoa também nos orientando, nós fizemos a
associação e chegamos ao CNPJ. Com o CNPJ demos entrada em vários documentos
para fazer consertos, fizemos festas, com CNPJ fomos ao supermercado, e isso deu
material pra fazer festa para as crianças, aqui no mercado em volta... e aí a associação
começou a abrir portas.

Josimar contou que desde o início o grupo almejou consolidar uma associação de
moradores no Relicário. A possibilidade de criar uma sede, uma espécie de escritório para eles,
tinha como objetivo fortalecer o grupo em duas dimensões – nos acessos e no financiamento
interno. Primeiro, um espaço físico seria uma maneira de consolidar a representação formal da
associação junto aos órgãos públicos, facilitando os acessos (KUSCHNIR, 1993), “abrindo
portas” para a solução de problemas e atendimento de pedidos dentro do conjunto residencial.
Dessa forma, estabeleceriam certa autonomia sobre os assuntos e problemas internos, tendo em

127
O processo de constituição da associação foi apresentado e discutido de maneira mais específica no capítulo
5.
231
vista que outras duas associações de moradores do Complexo do Alemão já atuavam nas
imediações; por outro lado, um “prédio da associação”, além de construir a imagem da
formalização da atuação comunitária, possibilitava-os também criar meios para o financiamento
do próprio grupo. Fazer do local um uso misto com um salão de festas e sede da organização
seria chave para suprir os custos de manutenção, por exemplo: “pô, assim, a associação
estipularia um valor de aluguel do espaço e ficaria responsável pela sua manutenção periódica.
Eu achava justo, todo mundo ganhava”, disse-me Josimar.
Mesmo diante das precárias condições estruturais do prédio, a associação passou a
organizar as festas dos moradores – aniversários de 15 anos, batizados e churrascos. A criação
do "salão de festas" foi o primeiro movimento, ou melhor, o primeiro ato que o grupo promoveu
para iniciar seu trabalho comunitário no conjunto Relicário. Usar regularmente aquele local
tornava-se elementar para as expectativas de Josimar e seus companheiros que tinham como
objetivo consolidar um espaço para aa associação. “Tomar conta para que ninguém entrasse”
foi o principal argumento utilizado pela recente diretoria para justificar a ocupação e controle
do prédio, justificativa que atendia diretamente as expectativas dos demais moradores que
desejavam um espaço para confraternizações: “precisamos de um salão de festas!”,
exclamavam sempre uns para os outros. Ter a associação a frente, naquele momento, era ideal
para todos.
No entanto, Josimar afirmou que a associação nunca chegou a cobrar efetivamente “um
aluguel sequer”. Para arcar com os custos de manutenção do prédio, principalmente depois das
festas (limpeza, reposição de material como lâmpadas, papéis etc), chegaram a sugerir uma
contribuição mensal de todos os moradores do Relicário, mas, peremptoriamente foram
negados. Josimar, como outras lideranças locais, justificou esse comportamento como “falta de
compromisso das pessoas”. Para ele, disse-me, “as pessoas só querem usar, mas não pensam
que para manter o espaço é preciso ter dinheiro”. Depois, conversando com algumas pessoas
sobre o porque da não adesão, percebi que na crítica encontravam-se elementos de desconfiança
em relação aos interesses de alguns membros do grupo da associação. Uma das moradoras
revelou: “esse pessoal já chega querendo cobrar, pedir dinheiro. Eu não vou ficar sustentando
ninguém não! Não fazem nada!”. Ficava evidente que a resistência para a contribuição estava
muito atrelada a representação negativa que faziam da postura de alguns membros de
associações visto como “aproveitadores”, ou seja, alguém que utilizava-se da imagem da
associação como justificativa “para se dar bem”, levar vantagem sobre os outros.

232
Mas, segundo Josimar, mesmo com todas as dificuldades decorrentes de um fraco
envolvimento das pessoas com o que poderia ser entendido como um processo de
institucionalização da associação, conseguiam isenções e doações de comerciantes locais que
mantinham relações mais próximas de amizade com alguns membros do grupo. Também
juntavam dinheiro entre eles e pagavam reformas e reposições de material de limpeza do salão
com recursos próprios. No final, com todo o movimento de arrecadação externa, mantinham o
local e acabavam cedendo o prédio para a realização de festas sem qualquer tipo de pagamento
interno – "ninguém queria contribuir", reclamou diversas vezes Josimar.
Para Josimar, como a utilização do espaço era feita de maneira informal, não havia como
impedir que outros utilizassem o local. Além disso, na maior parte das vezes, havia sempre
alguém que se dizia conhecido ou que tinha proximidade com o “dono da boca” para autorizar
o uso – “chegavam dando carteirada”, disse-me Josimar e outros membros da associação com
quem conversei. Diante desse tipo desse contexto tornava-se difícil impor qualquer tipo de
regulação alternativa ao modus operandi dos ordenamentos estabelecidos naquela rotina. Com
a o conhecimento e a autorização “de cima” algumas pessoas passaram a utilizar o salão sob
quaisquer condições. Assim, como em outras situações e declarações já descritas aqui nessa
tese, a crítica de Josimar fundamenta-se sobre dois aspectos a respeito do processo de
organização do espaço: a “falta de compromisso” das pessoas e a influência do “tráfico” no
Relicário. E isso, para ele, era algo “cultural”: “as pessoas se acostumaram a não pagar nada,
né? Ainda por cima batem no peito pra dizer que é amigo ou parente de fulano ou beltrano. E
cultural!”.
Diante dessas dificuldades passaram a buscar alternativas para financiamento e
permanência da associação no prédio. Em uma dada situação, após uma articulação entre
membros da associação, atores governamentais e engenheiros das empreiteiras que atuavam no
bairro pelo PAC, receberam uma proposta para alugar o “salão”. O objetivo era realização um
curso de formação de pedreiros para recém-contratados e moradores das favelas do Complexo
do Alemão. Por três mil reais mensais a associação iria alugar o espaço interno do prédio para
realização do curso. Josimar recordou-se em nossa conversa: “o contrato já estava assinado,
cara! Tava tudo pronto para começar!”. Mas, eis que aconteceu um “problema”: “perderam” o
local para uma igreja.
Josimar contou que naquele período viajava bastante a trabalho (possuia uma
microempresa de refrigeração e conserto de eletrodomésticos), situação que para ele facilitou a
entrada de outras pessoas, pois, como permanecia longos períodos ausente, pessoas “de fora”,

233
sem qualquer relação com a associação e os demais moradores do Relicário, passaram a utilizar
o prédio para fins particulares. Desde então, segundo Josimar, o espaço passou a ser usado com
frequência para realização de cultos evangélicos, dificultando o trânsito mais livre pelo local.
Percebendo que os cultos tornavam-se cada vez mais frequentes, Josimar contou que tentou
retirar a pastora da igreja do local, mas não obteve sucesso. Disse-me que foi “impedido por
forças maiores” a desistir do espaço.

A menina abriu o espaço para igreja (...) quando eu estava viajando a trabalho. Quando
eu voltei eu falei que não podia porque não pode misturar as coisas. Ali é um local
para festa do condomínio, não pra fazer cultos de religião, nada, né? Que não podia
abrir pra esse tipo de coisa. Aí eu tive um problema que quando eu fui retirar eu não
consegui mais, entendeu? Veio "forças maiores", né, e me impediram de fazer o
processo. Me convenceram a força, na base da ameaça. Eu ainda tentei, ainda... aí eu
fui ameaçado, então, eu achei melhor recuar, aí eu recuei com tudo, né? Bateram na
porta da minha casa de madrugada. Quando atendi, batiam com a mão na cintura e
mandaram eu pegar a chave e entregar dizendo que eu tinha perdido o local. Quando
eu perdi o espaço, eu chamei as pessoas na minha casa da associação [e disse]: olha
eu estou fora! não dá mais pra mim. Eu não gosto de brigar, eu tô fora. Pra mim a
associação acabou. Aí, a associação acabou, perdemos o local, só que a associação
ainda existe no documento, documento está aí, eu sou o presidente ainda, o vice é o
Moisés... tem tudo, um secretário, dois secretários, suplentes e outros... mas, só no
papel.

Em sua fala, Josimar expõe uma coação que sofreu quando se posicionou contrário ao
uso constante do espaço para realização de cultos. Para ele havia um conflito de interesses
incompatíveis: um de caráter mais coletivo e geral; outro, privado e restrito. Naquele instante,
“perder o local” significou a perda de sentido sobre o trabalho que vinha tentando realizar pela
associação, como explicita sua frase: “a associação acabou, perdemos o local”. Diante daquelas
condições Josimar recuou. Ponderou sobre a dimensão de imprevisibilidade posta naquela
situação, uma vez que não podia antecipar com segurança como suas críticas seriam tomadas
pelo tráfico. Josimar disse que caso o “tráfico” entendesse seu movimento como uma intenção
de confrontação, tal entendimento poderia resultar em ações violentas contra ele e sua família,
como processos de expulsão do local de moradia e até algo mais grave como castigos físicos.
Além das possíveis retaliações, Josimar fez questão de ressaltar que sua opção em não levar a
questão as “instâncias superiores”, quer dizer, “desenrolar na boca”, fazia parte de seu
posicionamento contrário ao ordenamento vigente no Relicário. Junto com os outros membros
da associação vislumbrou a organização social do espaço do Relicário sob um outro regime de
ordenamentos: sob consensos e acordos em sua “gestão ampliada”.
Diante desse primeiro momento de divergência mais aguda, cabe trazer a referência de
Freire (2008; 2016) para pensar o movimento de Josimar. Ela indica que em situações onde a
234
sociabilidade violenta dificulta simultaneamente qualquer possibilidade de tratamento público
dos problemas sociais definidos nas arenas públicas, os atores tendem a se esboçar nessas
situações sob o regime do silêncio e da evitação. No entanto, a autora não desconsidera outras
formas de competência desses mesmos atores como a capacidade de avaliação e o
enquadramento de situações consideradas “problemáticas”, para agir de forma ajustada às
situações de recurso e/ou de ameaça do uso da força (FREIRE, 2008, p.148).
No entanto, como consequência não esperada por Josimar, com sua recusa em conciliar
os interesses – o compartilhamento de uso do espaço entre a associação/salão de festas e a igreja
–, esse sofreu uma forte reação contrária por parte dos moradores que costumavam frequentar
o local. Foi chamado de “frouxo”, “vacilão”, “comédia”, termos recorrentemente utilizados
para denegrir a imagem do outro perante o grupo diante de situações onde de demonstra algum
tipo de fraqueza para resolver questões de interesse de todos. Nesse caso, indicava sua
incapacidade para negociar, “desenrolar na boca”, como era comum em situações como essa de
conflito. Estar a frente, representar por meio da associação de moradores pressupõem, em
alguma medida, saber negociar com quem manda. Justificando sua decisão, Josimar, em sua
entrevista, afirmou que não queria se envolver, que nunca tinha negociado nada na “boca” e
que se fosse para ser desse jeito ele realmente “estaria fora”. Pensava em sua família, em suas
filhas e esposa.
Com a permanência da igreja no prédio e com o que Josimar definiu como “fim da
associação”, a rotina dessa organização comunitária dentro do Relicário se pautou quase que
exclusivamente na representação formal junto a algumas empresas concessionárias prestadoras
de serviço (Rio Luz e Cedae) e no trabalho que Moisés e Amós realizavam na “manobra” da
água dentro do conjunto, como já mencionado. A associação do Relicário – diferente de outras
associações locais que mantém uma série de atividades e responsabilidades junto aos moradores
de sua circunscrição – como receber e distribuir correspondências (Correios), atestar processos
de compra e venda de casas, e emitir declarações de propriedade nos morros – não fazia
qualquer outra atividade além das que mencionei acima. Da mesma forma, não realizava
qualquer regulação dos espaços comuns dentro conjunto. Das atividades que se prontificavam
a realizar, faziam com recursos de seus próprios membros, segundo informações de Josimar.
Quanto ao “salão de festas” ou a sede da associação, nesse exato momento, pertence a igreja e
a obra da pastora Sarah, de sua família e de seus fiéis.

235
7.3.2 “Com muita luta, Deus operou aqui”

Meu contato com a pastora Sarah demorou para acontecer, bem como, meu acesso ao
prédio onde hoje acontecem os cultos da Assembléia de Deus dentro do Relicário. Desde o
início da pesquisa tive dificuldades para encontrar um meio de chegar até ela. Durante um ano
e meio de trabalho de campo poucas vezes observei movimentos de entrada e saída de fieis do
templo. Não havia conhecido uma pessoa que frequentasse sua igreja. Da mesma forma, ainda
não tinha visto a pastora circular pelo interior do conjunto, se quer conhecia sua fisionomia.
Até aquele momento Sarah existia para mim somente como mera representação dos meus
interlocutores – e não era das mais positivas. Entre todos que eu me relacionara, até então a
narrativa que circulava sobre a pastora era de alguém que tinha vindo “de fora” e que não
deveria estar naquele lugar. De alguém que havia tirado o único local que possuíam para as
confraternizações do Relicário. De alguém que se utilizou de “forças maiores” para se apoderar
individualmente do que era de todos.
Além disso, como eu havia entrado em contato primeiro com seus principais desafetos
na disputa pelo prédio, logo no início da pesquisa, só havia escutado um lado da história. A
representação da pastora construía-se sob narrativas permeadas de adjetivos negativos,
principalmente sob a acusação dessa ter “ligação” com “meninos do tráfico”. As “fofocas”
(ELIAS e SCOTSON, 2000), sobre a pastora foram constantes. De alguma maneira, além de
estabelecer a distinção entre os grupos internos do Relicário, tinham como objetivo indicar que,
era ela a intrusa no local, alguém de fora que não deveria compartilhar do mesmo espaço. Elias
e Scotson contam que em Winston Parva, povoado inglês onde realizaram sua pesquisa
empírica sobre a sociabilidade local, onde se havia distinções entre famílias estabelecidas e
moradores novos considerados outsiders baseados nos valores da tradição e da antiguidade no
território, a fofoca tinha, entre outras funções, “excluir pessoas e cortar relações” (idem, p.125).
Da mesma forma, costumavam indicar o grau de competição entre pessoas e grupos que
disputam o ouvido e a atenção de seus semelhantes (Ibid. Idem). Para alguém “de fora” como
eu, ouvir certas histórias naquele momento suscitava-me um certo receio em procurá-la, pois,
na minha cabeça podia ser mal recebido, ser visto como um “x9” ou algo próximo a isso. Cabe
sempre relembrar que no Complexo do Alemão vivia-se (e em algumas partes ainda se sente)
um ambiente de muitas desconfianças e rumores sobre as dinâmicas que envolvem policiais da
UPP e o “tráfico” no território, corroborado pelas incessantes e crescentes tiroteios nos morros.
Alguém como eu – pensava –, poderia ser visto facilmente como alguém de fora que buscava
informações para passar para os “inimigos”. Uma neurose completa.
236
Passado o tempo, em uma noite de muito calor, bebendo algumas cervejas na birosca de
seu Pedro ao lado de Paulo e Josué, algumas possibilidades de contato com a pastora
começaram a se aventar. Entre uma conversa e outra surgiu o assunto do antigo “salão de
festas”. Contraditoriamente, queixando-se da falta de local para realização das festas, Paulo, de
maneira um tanto quanto orgulhosa, disse-me que tinha “ajudado” a pastora a permanecer no
local e que “de vez enquanto” participava dos cultos da igreja.
Até então – e já se passavam muitos meses desde o nosso primeiro encontro – não tinha
conhecimento de qualquer relação entre Paulo e a pastora. Perguntei se ele a conhecia e se sabia
como ela tinha conseguido se fixar naquele local. Paulo respondeu:

Mano, a pastora Sarah é muito gente boa. Ela já falou uns lances sobre o Miguel [filho
de Paulo] que eu fiquei de cara. Disse que ele ia ficar doente com dois anos e que
depois ia ser mais forte que um touro. E foi isso, mano. Miguel é um touro! E tem
mais: eu e os outros moleques aqui dos predinhos que demos aquele espaço pra ela.
Ela tá fazendo um trabalho bom aqui pra comunidade, ajudando as pessoas... tiramos
daqueles vacilões da associação que não faziam porra nenhuma. Tudo vacilão.

Por um segundo fui pego de surpresa, pois, até então, foram “forças maiores” –
referência direta ao “tráfico” – os responsáveis pela autorização do uso do local como igreja.
Afinal, quem de fato eram as “forças maiores”? Paulo e os “moleques do predinho”? Paulo, que
um dia atuou na dinâmica do comércio varejista de drogas no Complexo do Alemão, não
pertencia mais ao “mundo do crime”. Logo, como compunha esse enredo? Quem era o
“tráfico”, a “boca”, o “mercado varejista”, a “força maior” naquele embate em torno do controle
e da utilização daquele prédio tão disputado? Quais atores e grupos estavam de fato envolvidos
nessa disputa? Por que no final a pastora “venceu”? Esse era o momento que eu esperava para
entender esse processo de consolidação da igreja. Chegava a hora de conhecer a pastora Sarah
e ouvir sua versão sobre aquela disputa.
Rapidamente comentei com Paulo e Josué que gostaria muito de conhecê-la. Paulo,
sentindo a importância dessa história para o meu trabalho, com um certo olhar superior de quem
tinha o domínio da situação, ao mesmo tempo demonstrando entusiasmo, fez uma sequência de
perguntas: “quer falar com ela? Quer entrevistar ela? Quer que eu te apresente?”. Sem
pestanejar respondi: sim! Paulo sorriu e ressaltou que seria importante que ele comentasse sobre
mim antes do encontro, pois, muito já havia sido dito sobre aquela igreja e que seria bom avisá-
la sobre a visita de alguém “de fora”. Paulo fez questão de afirmar que me acompanharia nessa
visita. Saímos daquela conversa com uma data: sexta-feira seguinte, dia do “culto de
libertação”.
237
Na sexta, as oito horas da noite, como de costume iniciarem os cultos, chegamos ao
interior do templo. Sarah de maneira muito simpática, mas um tanto quanto agitada, recebeu-
nos e pediu que eu aguardasse um pouco que ela logo me atenderia. Imediatamente respondi
afirmando não ter o menor problema e que ela não se preocupasse comigo. Que estava ali
naquele momento para conhecê-la, assistir o culto e ouvir suas palavras. Paulo e eu fomos os
primeiros a chegar. Em seguida, chegaram o filho de Sarah e algumas pessoas que passaram a
ajudar na arrumação do salão. Sentei-me logo na frente, na terceira fileira (de dez) à esquerda,
próximo ao púlpito. O local possuía boa iluminação e razoável capacidade de circulação de ar.
Era a primeira vez em cinco anos que eu retornava aquele prédio, desde a reunião entre as
lideranças locais e os atores governamentais.
Dos problemas físicos que eu me recordava, somente alguns buracos nas paredes que
permaneciam sem janelas. No mais, o espaço encontrava-se limpo, aromatizado e
extremamente organizado. A estrutura predial – pintura, instalações elétricas, instalações
sanitárias etc. – era completamente diferente da última imagem que eu tinha do local. Uma
senhora encontrava-se na cozinha, em pé e frente a uma grande mesa de madeira, preparando
os cálices de vinho para o culto. Era a mãe de Sarah. Ao lado da cozinha, mais a frente, próximo
ao altar, havia uma área reservada com uma televisão ligada em um telejornal noturno. Parecia
um local utilizado como quarto, o que depois foi confirmado pela própria Sarah. Aquele local
também era a casa dela e de sua família.
Antes do início do culto Paulo saiu para buscar sua família. Sarah, ao me observar
sozinho fazendo anotações em meu caderno de campo, comentou alguma coisa com seu filho e
dirigiu-se em minha direção. Senti naquele instante uma certa apreensão da sua parte. Sentou-
se a minha frente e perguntou no que ela poderia me ajudar. Com seu filho realizando alguns
testes no som, expliquei resumidamente a pesquisa que realizava no Relicário e perguntei se
ela poderia me conceder uma entrevista. Como quem já esperava pelo pedido, começou falando,
em tom de desabafo, “o quanto ela tinha lutado para chegar até ali”. Que muito já haviam falado
dela, de muitas calúnias e fofocas, mas que ela era uma “guerreira”, uma “lutadora” e que nada
a tiraria do seu caminho de fé. Percebi a urgência com que Sarah procurou se defender
adiantando sua fala como quem quisesse resolver a entrevista naquele instante. Perguntei se não
poderíamos agendar um outro dia, pois, seria importante registrar seu depoimento em um
momento em que não estivesse tão ocupada. Afirmei que ficaria ali até o final do culto. Ela
sorriu. Em momento de interrupção do nosso diálogo, Paulo retornou com sua esposa e seu
filho Miguel, todos arrumados para o culto. Cumprimentaram a pastora e sentaram-se todos ao

238
meu lado. O início do culto se aproximava e alguns fiéis já se posicionavam próximos a cozinha
e o púlpito para iniciar os trabalhos da noite. Sarah observou ao redor, olhou para seu filho
como quem pedisse algum tipo de permissão, e em seguida, concordou com a minha sugestão
para a entrevista. Disse-me para que eu ficasse “à vontade”. Agradeci e assim permaneci como
observador e observado. Ao final do culto, ficamos de combinar por telefone nosso próximo
encontro. Esse, ocorreu uma semana depois, em uma manhã ensolarada e temperatura amena
de outono, em seu escritório dentro do prédio da igreja.
* * *

Sarah, quarenta e quatro anos, chegou ao Rio de Janeiro com alguns desejos na mala a
realizar. Trazida aos vinte e seis anos pelos tios para estudar, logo percebeu que a vida não daria
trégua para alguém que vinha com mais sonhos na bagagem do que berço para sustentar seus
anseios de melhora de vida. Mãe de Jeremias, dezessete anos, Sarah é natural do município de
Feira de Santana (BA). Morou com os tios por um período, mas logo precisou alugar um
apartamento, tendo que trabalhar e estudar ao mesmo tempo para arcar com as despesas de sua
nova realidade. Sua relação com a espiritualidade manifestou-se desde de sua chegada ao Rio,
sendo esta a dimensão de sua vida que a orientaria dali para frente.

Pra entender minha trajetória de vida tem que começar desde o início [...] a vida não
tão foi fácil como eu esperava. Então, assim, eu passei a praticamente a me bancar
sozinha. E, comecei a estudar passei por muitas dificuldades no estudo [...] eu
estudava e trabalhava. Então assim, fiz meu segundo grau e quando passei para a
faculdade foi quando eu tive muita dificuldade. Logo depois eu me casei também, e o
casamento não deu certo. Não foi fácil... então, eu procurei a igreja e foi onde eu
conheci a igreja evangélica por causa dos processos que eu estava passando... não
conhecia muito o ambiente aqui no Rio de Janeiro... primeiramente nem foi a igreja
[...] eu procurei o espiritismo “mesa branca”, kardecista e ali eu fiquei um tempo
atendendo um povo, porque eles falavam que eu era médium. Entrei numa depressão
profunda, pois não era aquilo que eu esperava, não era aquilo que no momento eu
estava precisando... e foi aí que parti para buscar Jesus de uma outra maneira. No
início não aceitava a igreja evangélica, até eu ter o entendimento de que era aquilo
mesmo... achava muito assim blá, blá, blá, mas aos pouquinhos eu fui tendo o encontro
com Jesus e quando eu vi já tava ali servindo a Deus de forma diferente.

Com a sua entrada no universo evangélico, mais precisamente na Igreja da Graça, Sarah
passou a desenvolver ações junto aquela institucional religiosa e assumir responsabilidades na
sua estrutura organizacional. Com o passar do tempo, seu trabalho ganhou importância, o que
a levou a ser intitulada “segunda pastora”. No entanto, Sarah relata uma série de problemas para
permanecer naquela congregação – brigas internas, separação do marido, gravidez, dificuldades

239
para os estudos religiosos, entre outros. Com a sua saída, tanto da casa dos tios, quanto da Igreja
da Graça, iniciou sua trajetória como “pastora presidente” de sua própria igreja, agora da
Pentecostal Assembléia de Deus. Segundo a própria Sarah, iniciou-se ali “um trabalho que lhe
deu bagagem de mais de 15 anos de ajuda aos mais carentes”, inclusive com trabalhos em outros
estados e pretensões de abertura de igrejas em países da América do Sul, como a Bolívia.
Mesmo queixando-se da “falta de ajuda”, Sarah relatou com vivacidade e emoção sua trajetória
de obras espirituais e sociais junto a população mais “necessitada” em áreas periféricas da
cidade.

Quando eu saí de lá [da Igreja da Graça] eu vim morar em Benfica, aqui… de Benfica
eu passei por Jacaré, Manguinhos, e depois eu fui morar em Campo Grande (...)
[Depois] de um ano e pouco foi quando eu voltei novamente para a igreja, eu abri uma
igreja em Manguinhos, outra no Jacaré, trabalhei com povo ali que envolvia é...
pessoas que tem problema é... de rua, de moradia, e eu passei a dar uma atenção a esse
povo. Era um desejo no meu coração de dar uma atenção a esse povo. Eu sempre fui
ligada a obra social, né? Tudo que era algo que eu pudesse beneficiar, fazer alguma
coisa pra comunidade eu sempre fui assim. Só que eu nunca tive muito apoio (...) mas
assim, pelo o que a Bíblia diz que a gente não tem que orar por eles, é buscar por eles,
não tá se envolvendo com muitas coisas que ele querem que a gente... esses meninos
do tráfico, né? Então assim, eu fiz muito trabalho social sozinha. Então, chegou a um
ponto que eu não tinha patrocínio de ninguém. Era... eu trabalhava com sopa de
madrugada, dava assim sopão, sopa de ervilha, dava comida aos mendigos, aos mais
necessitados, era uma necessidade muito grande no meu coração de fazer isso,
entendeu? Até hoje. Eu só parei porque, assim, eu não tenho pessoas que me ajudem.
Mas, o trabalho cresceu, assim, em matéria de... expandiu, de divulgação, mais de
quantidade de pessoas pra ajudar foi diminuindo, e eu não conseguia ficar sozinha. Lá
era Assembléia de Deus, não foi da Graça não. Eu orei e mudei de igreja e aí eu tive
uma liberdade pra trabalhar. Porque na Assembléia você tendo o básico como pastora
você já pode atuar na área de pastora presidente sem que precise terminar os estudos
(...) Hoje eu tenho uma igreja na Bahia, uma em Minas, ganhei um terreno na Bolívia
para fazer a obra lá, de uma forma ou de outra expandiu o trabalho. Mas, assim,
sempre eu comecei a fazer o trabalho independente de igreja. Isso já era uma coisa
minha mesmo, de ajudar, né?

A chegada de Sarah ao Complexo do Alemão ocorre pela entrada do PAC-Favelas em


Manguinhos, bairro localizado no antigo subúrbio industrial da zona norte do Rio de Janeiro.
Além de sua igreja nesse bairro e uma outra no bairro vizinho do Jacaré, Sarah possuía um salão
de beleza onde trabalhava como cabelereira. Era desse salão que ela obtinha toda a sua renda
mensal. Segundo minha entrevistada, todo o trabalho na igreja era voluntário, sem qualquer
tipo de “patrocínio”, “quando não tirava do próprio bolso para fazer a obra128 da igreja”, como
me informou.

128
Sarah utiliza-se com frequência do termo “obra” para significar o trabalho que pastores e demais religiosos
desenvolvem em suas localidades de ação. A “obra” é a materialização da vontade de Deus, o trabalho de Deus
240
Com o início do PAC na região, Sarah relatou que teve sua casa e seu salão demolidos,
e que não recebeu qualquer assistência ou indenização por parte do governo. Da noite para o
dia teve que pensar em alguma alternativa de vida, pois “tinha ficado literalmente sem chão”,
como afirmou. Foi quando soube por comerciantes em Manguinhos que o PAC-Favelas no
Complexo do Alemão estava “distribuindo lojas” para pessoas em condições iguais as suas.

A minha história no Complexo [do Alemão] começou pela minha loja, a minha lojinha
ali. Quando eu tava no Jacaré, em Manguinhos, foi quando eu perdi a minha loja e
minha casa, demoliram a minha loja de salão de beleza... fiquei literalmente sem chão,
não me deram nada, não me deram a minha loja nem apartamento. Aí eu fiquei
sabendo lá em Manguinhos que o PAC tinha feito umas lojinhas aqui [no Complexo
do Alemão] e tavam distribuindo as lojas para aqueles que tinham perdido suas lojas.
Só que no meu caso não foi isso. Eu vim de aluguel. Eu vim pagar um aluguel, montei
o meu salão aqui, tentei falar com as pessoas que tinha perdido lá em Manguinhos,
mas ninguém resolveu o meu problema. Só sei que fiquei aí pagando meu aluguel
quatro anos (...) queria que só um dia eles reconhecessem que tinham que dar minha
loja. Foi onde eu abri um processo judicial, mas não consegui porque não tinha provas
lá na loja (...) Aí o que que aconteceu? Fui trabalhando, trabalhando, trabalhando e fiz
uma clientela. Logo depois me apareceu um rapaz que trabalhava no PAC, alguém
tinha levado essa história pra ele que eu estava ali, pagando aluguel e no direito tinham
que me dar uma loja ali... tinha gente ali que tava tendo loja e descobriram ali que
neguinho tava tendo loja e nunca tinham tido loja em lugar nenhum. Foi onde ele se
interessou. E aí o rapaz me chamou pra ir lá na prefeitura pra conversar... e aí ele
perguntou: "dona Sarah, me conta um pouco da sua história aí”. Eu comecei a falar
pra ele. Eu tava tão sensível com essa situação, tanta ‘perca’, que eu já contei
chorando. Que eu tava assim, sabe? Aí ele assim: “olha a partir de hoje eu vou falar
com o rapaz lá que a sra. tá lá. Ó, por direito a loja já é sua. A sra. vai fazer cinco
anos lá. A sra. cuida da loja direitinho, fez modificações, o pessoal falou a loja está
bonitinha, a sra. não vai pagar mais aluguel não.” Eu não tava nem contando mais... e
aí eles me cederam a loja (...) Tudo começou de lá, de Manguinhos.

O movimento de deslocamento feito por Sarah revelou-se interessante na medida em


que observamos sua capacidade de articulação com atores governamentais e demais pessoas
com quem passou a conviver diariamente (“clientela”), estabelecendo conexões entre as
urgências de diferentes localidades afetadas por uma mesma política pública. Aqui, tal conexão
entre territórios não ocorreu somente por meio da perspectiva planificadora dos projetos de
urbanização, mas, por meio de seus desdobramentos sobre a vida das pessoas que sofreram os
impactos indesejados dessas políticas. Sem sua loja e sem qualquer tipo de amparo
indenizatório, considerando que nada resolveria permanecendo em Manguinhos, Sarah
vislumbrou no PAC do Complexo do Alemão a solução para a sua questão, o que, de fato,
ocorreu.. No Complexo, com a presença constante de gestores públicos circulando pela região,

entre seus filhos. Diz respeito a um conjunto de práticas orientadas teologicamente na propagação do evangelho,
bem como no atendimento de pessoas pobres e enfermas de uma dada comunidade de atuação evangélica.

241
Sarah ampliou sua rede de relações e seu campo de possibilidades sob condições materiais bem
adversas: estava sem casa e sem trabalho. Passou a se relacionar com atores sociais e políticos
que, até então, não tinha se relacionado em Manguinhos, e estabeleceu novos acordos sob novas
condições sobre aquele momento que vivia.
Sarah conseguiu um espaço no Centro Comercial do Itararé e abriu seu salão de beleza
novamente. Havia resolvido uma parte dos seus problemas. Concomitante ao processo de
instalação do salão, Sarah precisou mudar-se de onde morava (bairro Benfica), principalmente
por motivos financeiros, tendo em vista que sua clientela ainda se formava. Precisou alugar um
apartamento mais barato. Da mesma forma, passou a considerar morar em um lugar “mais
sossegado”. Alugou um apartamento em um condomínio do “Minha Casa, Minha Vida” no
bairro de Campo Grande, Zona Oeste do Rio. Contudo, com sua igreja instalada na região do
Jacaré, viu-se obrigada a realizar grandes deslocamentos pela cidade, utilizando somente o
transporte público: do extremo da Zona Oeste, passando pelo Complexo do Alemão, para
depois seguir para a favela do Jacaré, em dias de culto. Passou a vislumbrar outras
possibilidades para amenizar sua rotina de pouco descanso e muito trabalho. Sarah começou a
se orientar na confluência de todas as suas instâncias de vida: trabalho, moradia e a
religiosidade. Disse-me:

Bruno, eu precisava melhorar minha qualidade de vida. Não aguentava mais ter que
ir de um lado pro outro, pegando ônibus, pegando trem lotado, empurra-empurra,
sacolejo... era uma coisa em cada lugar: um [casa] em Campo Grande, outro [salão de
beleza] no Alemão, a igreja no Jacaré... eu ficava exausta todo dia... não era vida não.

Com o seu salão de beleza agora instalado no Centro Comercial do Complexo do


Alemão, Sarah começou a considerar a possibilidade de trazer sua igreja para mais perto de seu
trabalho. Resolvia uma parte de suas dificuldades. Como uma “benção” – termo que ela utiliza
para qualificar o momento – soube por uma cliente que morava no Relicário que dentro do
conjunto havia um galpão vazio e que o mesmo era utilizado pelos moradores para realizar
festas. A cliente orientou-a procurar Josimar, então, presidente da Associação de Moradores.
Imediatamente, foi o que Sarah fez: procurou Josimar e perguntou-lhe se poderia alugar o “salão
de festas” para realizar algumas reuniões com seu grupo da igreja. Sua justificativa principal
para o pedido foi a tentativa de diminuir seu esforço para conciliar suas atividades em lugares
muito distantes na cidade. Aproximando seus trabalhos – salão e igreja –, ela não precisaria
mais se deslocar do Complexo do Alemão para o Jacaré todos os dias. Assim, segundo Sarah,
com a autorização do presidente da associação – contrariando a versão de Josimar – ela ocupou

242
o prédio do “salão de festas” com o primeiro encontro de fiéis que chamou de “chá missionário”.
Sarah contou que se “encantou” com o espaço.

Em 2012 eu aluguei esse espaço aqui pra fazer um chá missionário, que é chamado de
conferência missionária. (...) E aí, tudo começou daí. Em 9 de maio o primeiro
encontro que aconteceu aqui. Mas, eu fiquei muito assim, é.... muito satisfeita, me
encantei com o espaço, porque o espaço era muito assim... eu olhava e via que o
espaço, que precisava de melhoria, mas que eu não tinha acesso, não tinha como
melhorar isso. Aí passou, mas também eu só fiz um chá...

Depois desse primeiro encontro, Sarah passou a utilizar o prédio com frequência para
reuniões com seus obreiros e fiéis da igreja, “sempre com o consentimento de Josimar”,
conforme me relatou. Ao mesmo tempo, revelou que com a frequente utilização daquele local
para suas reuniões passou a considerar a cada dia a vinda das “obras de Manguinhos e Jacaré”
para o Complexo do Alemão. Mas, continuava morando em Campo Grande. Precisava resolver
sua dificuldade de deslocamento, sua relação entre trabalho e moradia. E, essa solução ocorreu
de uma maneira inesperada: “foi a obra de Deus em minha vida”, emocionada declarou.
Sarah contou que perdeu a propriedade de seu imóvel no condomínio em Campo Grande
para o “tráfico”. Disse-me que como havia alugado o apartamento de “terceiros” descobriu mais
tarde que o antigo proprietário era “bandido” e este em um dado momento pediu o imóvel de
volta. O contrato tinha sido feito “de boca”, não havia qualquer formalização do acordo de
aluguel, pois, a documentação definitiva do imóvel ainda não havia sido entregue pela
prefeitura. Com a perda de sua casa, trabalhando em duas frentes de ação no Complexo do
Alemão – salão de beleza e igreja –, Sarah voltou-se inteiramente para o Complexo do Alemão
e alugou um apartamento no bloco “A”, do próprio Relicário, por indicação de uma outra cliente
do salão. Dessa forma, com sua permanência no bairro sua rede de contatos ampliou-se ainda
mais, da mesma forma que suas possibilidades de mudança também aumentaram. Conseguia,
enfim, aproximar as três principais dimensões de sua rotina de vida – moradia, trabalho e a
espiritualidade.

7.3.2.1 Revoltas, acordos e a “vitória” de Sarah

Com o tempo, Sarah utilizou-se cada vez mais do prédio do antigo “salão de festas”.
Primeiro, com seu trabalho religioso, que se consolidou por meio de uma rotina de encontros
cada vez mais frequentes e público participante crescente. Sarah conseguiu mobilizar um grupo
243
de aproximadamente vinte pessoas que compôs o primeiro grupo de fiéis e ajudantes
colaboradores. Assim, fundou no local a “Igreja Assembléia de Deus – Ministério Deus é vida”,
passando a realizar quatro encontros semanais – domingo “adoração: escola dominical”; terça-
feira, “família”; quinta-feira, “doutrina” e; sexta-feira, “libertação”.
Além dos encontros espirituais, junto com as atividades da igreja, montou um pequeno
escritório de advocacia em uma das dependências do prédio. Dentro de uma pequena sala
improvisada com quatro computadores, pequenos armários e arquivos de documentos passou a
orientar juridicamente moradores das favelas da região. Em nossa entrevista, disse-me que
cursou Direito até o sétimo período, sem concluir. Como estudante, desde o terceiro período,
ela já atuava indiretamente em processos por meio de um grupo de advogados recém-formados,
organizando documentos e encaminhando clientes. Naquele momento, com três profissionais,
que ela chamou de “equipe”, atendia casos que surgiam em sua igreja, principalmente
relacionados aos jovens presos acusados de associação ao tráfico de drogas. Sarah ampliou suas
competências e seus usos sobre o local.
Com a presença cada vez permanente de Sarah no prédio, as possibilidades de utilização
do espaço para outros fins tornaram-se inconciliáveis. Sarah contou que Josimar começou a ser
pressionado por todos os lados, tanto pelos seus pares da associação de moradores, quanto pelos
demais moradores que recorrentemente utilizavam o local para fazer suas festas. Como relatei
mais acima, exigiram que Josimar tomasse uma atitude e “desenrolasse” a questão para ter o
“salão de festas” e a “sede da associação” de volta. Os moradores interessados no salão
acusavam Sarah de “invasora” e revoltaram-se com sua postura diante do interesse deles que
consideravam legítimos, pois “era um espaço do condomínio”. Sarah por alguns momentos
pensou em desistir do local. Ela disse: “(...) aí começou a entrar em guerra, briga pelo espaço.
Aí eu ia sair fora. Eu chamei o pessoal daqui [da igreja] e falei: olha, onde dá muita confusão,
Deus não opera. Vamos sair fora”.
Mas, mesmo com a revolta dos moradores, Sarah contou que buscou conciliar a situação
indicando a necessidade de realizarem reuniões entre as partes interessadas no prédio. Disse
que percebia o momento crítico em que se encontrava e buscou um modo de sair dessa situação
por meio de um “acordo” para que todos pudessem utilizar o local, pois reconhecia como
legítima a reivindicações dos moradores. No entanto, Sarah estava estruturalmente – em todas
as instâncias de sua vida – instalada no prédio. Nesse momento ela já não pedia emprestado,
mas propunha um “acordo”. Quando a pastora mobilizou o termo “acordo”, em grande medida,
entendeu que aquele espaço também podia ser seu. Como era público, ou seja, pertencia ao

244
mesmo tempo aos governos do estado e a “comunidade”, era de todos e não era de ninguém ao
mesmo tempo. Podia ser dela também. Mas, a disputa estava aberta. Segundo a pastora, Josimar
começou a desistir e a entregar os pontos da “briga pelo espaço”. Sarah passou, como diz um
ditado popular, a “dar as cartas do jogo”.

[...] o movimento todo foi primeiramente fazer uma reunião, que foi a reunião com o
rapaz o qual atuava aqui antes que você conhece, né? [Josimar] A gente fizemos uma
reunião. E nessa reunião foi convidado algumas pessoas da diretoria da Igreja e
convidei ele e a esposa. Ele veio, mas a esposa não veio. Nessa reunião houve alguns
acordos. Qual foi o acordo? Da gente atender o chamado da prefeitura em relação ao
espaço, que ele queria o espaço pros moradores fazer a festa... nunca desconcordei
com ele disso, até mesmo porque o Relicário precisava de um espaço pra festa e não
foi dado o espaço, entendeu? Assim chegou ao meu conhecimento que esse espaço
não foi dado, que estava entre esse galpão, esse ali do Afroreggae e o da FAETEC.
Um ia ficar com espaço da comunidade. Então, como houve essa situação de que não
poderia ficar sendo Igreja e festa, porque tava atrapalhando, a gente ia fazer um acordo
e foi chamado lá na prefeitura pra que a gente pudesse ver o que ia acontecer. Quem
ia ficar de frente, como é que ia acontecer, tudo isso era um acordo. E nesse acordo,
o rapaz o qual estava de frente disse que não queria mais problemas, ele [disse] que
preferia parar por ali mesmo e que realmente a Igreja tava fluindo, o povo tava
gostando e ele daria a palavra dele - ele falou isso chorando aqui - ele daria a palavra
dele que ele estaria liberando esse espaço até mesmo porque o espaço não era dele, o
espaço era do estado, e ele estaria liberando o espaço porque as festas mesmo não tava
fluindo tanto por aqui. Não tinha água aqui, não tinha luz e muita gente tava
reclamando do ambiente... que não tinha conforto nenhum e ele não tinha ajuda
nenhuma, ajuda de custo nenhuma da prefeitura, de nada pra que viesse melhorar o
espaço. Como os fiéis e eu tavam ajudando o espaço a melhorar, que ele estaria
abrindo mão de tudo, né? Assim foi a fala dele no dia da reunião. Ele pediu desculpa,
dele ter me difamado, algumas coisas aí que ele falou que não era pra ele ter falado.
Pediu desculpas. Eu desculpei. Falei: “tudo bem”. Falei pra ele que se ele precisasse
de alguma parte, de alguma sala para continuar a... que ele falou pra mim que isso
aqui ... uma hora ele falava que era um espaço de festas, hora ele falava que era
associação de moradores. Não se decidia.

Junto com o movimento de conciliação da pastora crescia também os laços de


proximidade e compromisso entre Sarah, seus colaboradores e fiéis, entre eles frequentadores
da igreja considerados influentes129 na localidade. Essa “influência” decorria dos contatos que
essas pessoas mantinham com representantes dos poderes institucionais locais e supra locais
atuantes no bairro – vereadores, secretários e atores de estado – e com próprio “tráfico”. A
rotina de trabalhos em frentes variadas de ação mantida por Sarah naquele prédio proporcionou

129
O termo “influente” foi utilizado algumas vezes por Sarah e outros moradores para definir pessoas que eles
consideravam ter acessos diferenciados às instâncias de poder e decisão no bairro. Em muitas situações eu também
fui visto como alguém que poderia resolver alguma questão de ordem mais pública tendo em vista meu trabalho
como assessor técnico no PAC, como já apresentado e discutido na introdução dessa tese. Teoricamente, o termo
“influente” pode ser aproximado do conceito de “capital social”, ou seja, dentro de uma perspectiva bourdiesiana,
a capacidade dos atores garantirem benefícios em virtude do seu pertencimento a determinadas redes e estruturas
sociais. (BOURDIEU, 2001; 2008).

245
a constituição de uma rede de contatos que lhe garantiu, não só a permanência naquele espaço
do Relicário, mas o seu controle. Dessa rede, dois movimentos concomitantes consolidaram a
“missão” de Sarah no prédio.
O primeiro decorreu da intermediação que uma das frequentadoras da igreja fez junto a
um vereador local. Muito próxima a um antigo assessor político do PAC do Complexo do
Alemão e vereador eleito com expressiva votação na região (mais dez mil votos) – o mesmo
que apoiou a formação da Associação de Moradores do Relicário, como relatado no capítulo 3,
página 52) essa frequentadora intercedeu por Sarah junto ao “poder público” que se
materializava na figura do vereador. Ela pediu que o vereador ajudasse Sarah a se manter no
local. Tal “ajuda” seria a garantia – mesmo que verbal – que o vereador como representação
institucional reconhecida daria perante a “comunidade”. Sua “autorização” para que Sarah
continuasse seu trabalho naquele prédio não lhe dava qualquer garantia jurídica sobre uma
possível propriedade do imóvel, mas, lhe proporcionou uma certa chancela institucional que
precisava para se fixar no local. Sarah sempre reiterou o caráter público do local e seu uso
“emprestado”. No entanto, como era o “Estado” quem a autorizava permanecer, justificava sua
permanência com base em certa ideia de legalidade a partir da permissão. Era a aprovação de
uma instância formal e legal que precisava para continuar realizando a obra da igreja diante dos
seus críticos.
O segundo veio de uma ação direta dos “meninos do tráfico”, em uma tomada de posição
desses em defesa de Sarah. Com toda a revolta que ocorreu de parte dos moradores do Relicário,
ela diz que “os meninos compraram o seu barulho” por que reconheciam que o “trabalho estava
fluindo”. Da mesma forma, pais e mães desses “meninos” passaram a frequentar a igreja. Na
época a mãe do chefe da “boca” era uma das fieis mais assíduas das reuniões da congregação.
Outros frequentadores apresentavam-se como pessoas que haviam “saído do crime” e naquele
momento também participavam dos cultos da pastora Sarah, como o caso de Paulo. Para eles,
a permanência da igreja de Sarah tornava-se uma questão de necessidade, justiça e
reconhecimento do valor positivo daquele trabalho, pois “era ela quem fazia alguma coisa pela
comunidade”, conforme declarou Paulo em uma de nossas conversas. Especificamente no caso
de Paulo, esse não atuava mais no mercado varejista de drogas, mas, o fato de um dia ter sido
“bandido” fez com que sua posição em relação a igreja no local fosse respeitada e acatada por
todos. Em grande medida, Paulo mobilizou seu “capital social acumulado” para fazer valer o
que considerou ser “justo”. Sarah afirma que em nenhum momento fez qualquer pedido para

246
que eles intercedessem por ela, mas, quando ocorreu, garantiu-se em grande medida naquela
proteção.
Em uma longa exposição, Sarah relata os momentos mais tensos e difíceis que passou
para continuar com a sua “obra”, e como se deram os encaminhamentos:

Agora, foi aquilo, uma peleja muito grande, porque quando eu anunciei que aqui que
ia ser igreja, os moradores vieram tudo pra me bater aqui dentro. Vieram mesmo com
tudo: com pedra na mão, ferramenta, etc. Sério... Gente fumando, jogando na minha
cara, cigarro aqui dentro... vieram mesmo, sabe? Aí foram obrigados os meninos a
descerem, o chefe da boca descer. Aí nesse dia foi algo assim que eu não esperava.
Porque naquele dia, com certeza, eles viriam de choque mesmo. Aí eu não entendo,
porque eles falam, né, que os meninos não se metem... infelizmente ou felizmente é
comunidade. E se numa situação dessa ele não se meterem como é que fica a situação?
A pessoa morre! Mas, foi como eu te contei... quando eu ia sair foram os meninos
[que] se meteram. "Não a senhora vai ficar". Aí ficou aquela coisa: sai, não sai, sai,
não sai... e aí os moradores acharam que eu me juntei aos meninos, ao tráfico e não
foi isso. Eles tavam vendo que o trabalho estava fluindo e estavam gostando. E pediu
pra que ele [Josimar] fosse a outra reunião pra saber qual era o fundamento dele querer
que eu saísse daqui. Olha a conversa que ele trouxe que não tem lógica: que tem um
macumbeiro espírita - Josimar me falou - que queria fazer uma festa aqui. Ele deixou
bem claro que era o Zé Pilintra, o malandro, e que ele não podia negar porque o
espaço... porque eles iam entrar com um processo contra ele dizendo que se aqui tinha
movimento evangélico deveria ter movimento espírita. Eu falei: meu filho, o que que
tem? Dá o espaço pra ele! Deixe ele fazer! Acho que se o problema esse, tá resolvido!
Eu abro o espaço pra eles também. Mas, eu vi que não era esse o problema. Ele achou
que eu como pastora ia fechar o coração pra ele [...] [Ele disse:] "não, mas vai chegar
ao conhecimento da prefeitura, do Estado e a gente pode perder isso aqui..." Nada a
ver, Bruno, nada a ver! [...] mas aí foi onde que os meninos viram que não havia
sinceridade nele, porque se fosse isso tinham resolvido o problema. Ele preferiu mais
uma vez me difamar. Se você conversar com quatro, cinco moradores aí, ou dez, você
vai ouvir: eu odeio aquela mulher! Mas é tudo má informação. Porque quem vier
conversar comigo aqui vai ver que não é nada disso. Aí eu fui obrigada a abrir um
processo contra ele. Tá correndo aí... ele me difamou dizendo que eu tomei o espaço.
Teve uma primeira audiência e ele não apareceu, e eu abri novamente. Porque ele
falou que disse que me uni aos “meninos”, a bandidagem pra ir pra casa dele e que
quase a filha dele morreu. E eu de maneira nenhuma, eu jamais fiz isso. Eu morava
perto dele. Pelo contrário. A filha dele foi levar a chave lá pra mim falando que o
[Programa] Bolsa Família ia pesar as crianças130 aqui e se tinha como eu vim abrir
porque ele não queria mais abrir isso aqui. Aí eu falei: não filha, eu não posso abrir
isso aqui...aí ela falou: “meu pai disse que não pode porque a [técnica de saúde] vai tá
lá tal hora e a senhora vai abrir.” Acho que o meninos já estavam pressionando ele e
ele ficou com medo de abrir. Aí eu vim aqui e abri. Aí quando foi no outro dia ele
boatou [mentiu] que eu tomei a chave da mão dele. E não foi. E eu inocentemente vim
abri porque era o Bolsa Família que vinha pesar.. porque o Bolsa Família pesa aqui
[...] então, assim o morro todo, a comunidade toda começou a me odiar, moradores,
pelo fato que ele levou as pessoas, né? Mas, graças a Deus que hoje está tudo
tranquilo. Alguns procuram, alguns viram que não era isso, aí melhorou a situação.

130
A pesagem de crianças com idade até sete anos faz parte de um conjunto de condicionalidades que os
cadastrados no Programa Bolsa Família (PBF) devem cumprir para continuar recebendo o benefício. Tais
condicionalidades estão referenciadas nas lei n. 10.836, de 09 de janeiro de 2004, no Decreto n. 5.209 de 17 de
setembro de 2004 e nas portarias interministeriais n. 3.789 no Diário Oficial da união (DOU) de 19 de novembro
de 2004 (frequência escolar), n. 2.509 de 22 de novembro de 2004 (ações de saúde) e n. 321 de 29 de setembro de
2008 (gestão das condicionalidades). Para mais informações sobre o PBF - http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-
familia/gestao-do-programa/condicionalidades
247
Sarah foi amparada pelas principais representações que exerciam o poder local: do
“Estado” e do “tráfico”. Os “fechamentos”131 necessários para manter o domínio sobre o espaço
e dar continuidade aos seus trabalhos no Complexo do Alemão estavam selados. Na narrativa
de Sarah, percebe-se que esses fechamentos ocorreram de maneira processual na constituição
do próprio espaço, onde as representações de poder acabaram por significar o local em
consonância com os seus próprios anseios. Em sua narrativa, a igreja não se constituiu por meio
de um interesse único e individual de Sarah, mas na consonância de interesses e necessidades
compartilhadas por todo o grupo que usa o espaço para fins religiosos. O sentido do espaço
como igreja construiu-se na prática compartilhada de seus frequentadores, tendo nos
“influentes” a garantia para a sua permanência. Assim, a legitimidade da igreja como instância
de ação naquele espaço estava na própria construção de sentido consolidada nas práticas dos
cultos compartilhados entre Sarah, seus fieis colaboradores e a rede que se formara em torno
das atividades da igreja.
Na relação de Sarah com seu principal oponente, ficou evidente que o movimento de
recuo de Josimar esteve diretamente relacionado com a leitura que o mesmo faz das correlações
de força que se estabeleceram de maneira desigual na disputa pelo salão. Naquele momento,
sem o peso representativo da recém criada associação de moradores diante dos moradores do
Relicário e das instâncias de regulação política e territorial no Complexo do Alemão, Josimar
não conseguiu articular uma alternativa a força operativa do trabalho de Sarah no local,
amparado, com o desejo direto ou indireto de Sarah, do “tráfico”. Como o movimento de revolta
dos moradores aconteceu de maneira desorganizada e fragmentada em queixas e ofensas
(difamações) individuais, Josimar ficou praticamente sozinho até o momento que se considerou
vencido na disputa e “entregou” o salão para a igreja.
Diante dos desfechos que garantiram a permanência da igreja no local, Sarah relatou
que começou a ter problemas em seu apartamento alugado dentro do Relicário. “De uma hora
para outra”, como me relatou, o proprietário rescindiu o contrato e pediu o imóvel, deixando-
a sem lugar para morar. Foi quando decidiu que a partir daquele momento também faria do

131
O termo “fechamento” é utilizado pelos moradores como expressão da relação de confiança, o alinhamento de
entendimentos sobre algum tema comum ou mesmo o reconhecimento de compromissos mútuos. Ser fechamento
em alguma medida é compartilhar um conjunto de significados construídos nas relações cotidianas em um
determinado grupo situado em um espaço social. Portes (2000) a partir de sua leitura de Coleman (1988) diz que
o termo pode ser entendido como “a existência, entre um certo número de pessoas, de laços suficientes para garantir
a observância das normas” (Op. Cit. pg. 137), corroborando assim com a ideia de aceitação compartilhada de certo
tipo de ordenamento socioespacial.
248
templo sua nova morada. Junto com a igreja e o seu escritório de advocacia, Sarah fez
intervenções mais estruturais no local e criou um quarto onde dormem ela, seu filho e sua mãe.
Desde então, Sarah manteve sua rotina de encontros religiosos em um espaço que se tornou a
expressão de toda a sua vida. Em nossa conversa, reconheceu as dificuldades para morar
naquele lugar, mas, ao mesmo tempo, sob distintos significados, Sarah faz do antigo “salão de
festas” e “sede da associação” a expressão máxima de sua múltiplas representações sociais
dentro do Relicário, entendidas por ela própria como a sua “missão” no Complexo do Alemão.
Assim, Sarah permaneceu no antigo prédio da fábrica demolida. Daquele espaço em disputa,
deu prosseguimento a sua “missão” e entendeu que, no final de tudo, aquele espaço era a sua
possibilidade de fazer valer toda a sua luta em nome daqueles que precisam de sua “ajuda”.
Sarah, ao final de nossa conversa, reconheceu-se como uma “vencedora”.

As minhas principais dificuldades hoje aqui, alguns foram resolvidas que era água que
não tinha aqui que foi colocada, a luz também e a moradia também, não é confortável.
Tira um pouco a sua privacidade a gente está morando aqui dentro, isso tá… não tem
me deixado triste por morar aqui porque tem gente que não tem nem moradia. Mas,
tem me angustiado tirado um pouco essa privacidade de casa. É diferente. Aqui é um
templo. Tem tudo que uma casa tem: tem cozinha, banheiro, mas é uma porta só....
quando os advogados tão aqui eu perco a privacidade. Isso tem me deixado angustiada
(...) quando eu ganhei [grifo meu] isso aqui, ganhei fixamente, eu ganhei pra igreja,
porque até dois anos funcionava como igreja e festa. de um ano e pouco pra cá
começou a funcionar só pra igreja. (...) eu resolvi vir morar aqui porque foi pressão,
eles pediram o apartamento, tudo por conta do que esse moço abençoado fez, aí tive
que praticamente improvisar uma moradia, aí eu fiz dois cômodos do lado, lá dentro,
um banheiro, tudo eu tive que fazer as pressas pra vim morar aqui. Tentei ver se o
PAC pudesse me ajudar me botasse num apartamento. Mas, não aconteceu. Isso aqui
foi o que aconteceu pra mim. Com muita luta Deus operou aqui.
[...]
Minha missão aqui primeiramente é ajudar o próximo. Eu tenho essa missão. Seja ele
dentro da comunidade seja fora. Eu tenho um propósito que é de salvação. E hoje pra
resumir tudo que eu passei aqui eu resumo só em uma palavra: vencedora, vencer.
Diante de todas as dificuldades, todas as lutas que eu passei aqui eu posso dizer que
eu venci. Muitos obstáculos, e não vou desistir. Me sinto aqui dentro dessa
comunidade uma lutadora pelos meus direitos, direitos de alguns que precisam e não
tem nem conhecimento dos direitos, e hoje resumo tudo em vencedora... porque não
foi fácil passar por tudo que eu passei aqui e agora desistir. A palavra que eu finalizo
é como uma vencedora.

* * *

A disputa em torno do “salão”, como as outras disputas aqui discutidas, ora veladas, ora
mais declaradas, evidenciam a forma como o espaço do conjunto residencial Relicário esteve
em um processo permanente de usos e (re)significações. Um espaço que não se finaliza com
construções e concepções externas ao modus vivendi das pessoas, mas se constrói na dinâmica

249
permanente das disputas de sentidos divergentes, permeadas pelas relações de poder que
configuram a própria natureza da vida social.

250
NOTAS FINAIS

Nessas notas finais, algumas questões, que acredito, são caras ao processo de formação,
de consolidação e de transformação dos bairros do subúrbio – como o Complexo do Alemão –
e consequentemente, as favelas e todo o aparato urbano que compõem aquele o espaço vivido
– como o conjunto Relicário –, precisam ser postas aqui para algumas reflexões finais. Utilizo
o termo “notas” nessa seção justamente para ressaltar a perspectiva interpretativa desse
trabalho. Mais que “conclusões”, aqui eu compartilho com o leitor minhas impressões,
entendimentos ou fechamentos provisórios, resultantes de todo o período de trabalho –
recortado no tempo e no espaço –, de relações de poder e acordos estabelecidos no campo
etnográfico.
Primeiramente, o processo pelo qual eu passei no curso dessa pesquisa de doutorado
instigou-me com uma série de possibilidades de análises que, até o começo do trabalho, não se
mostrava de maneira muito evidente. Para isso foi preciso “reentrar”, tanto no bairro, quando
no próprio conjunto residencial. Ressignificar o meu lugar e, consequentemente, a interação
que estabelecia com as pessoas e com os grupos, que atuam e produzem conhecimento no
Complexo do Alemão. Ao longo desta caminhada, articulado com as perspectivas etnográficas,
busquei construir um exercício inspirado no que Giddens (1991) definiu como “hermenêutica
dupla” (Idem, 1991, p. 25). Para esse autor, o caminho epistemológico da sociologia deve ser
seguido relacionando-se, por um lado, com “o desenvolvimento do conhecimento sociológico
[que] é parasítico dos conceitos dos leigos agentes”; e, por outro, com “as noções cunhadas nas
metalinguagens das ciências sociais”, que retomam “rotineiramente o universo das ações onde
foram inicialmente formuladas para descrevê-lo ou explicá-lo” (GIDDENS,1991, p. 25).
Como princípio, essa pesquisa teve como foco de apreensão e de reflexão dos dados
coletados e organizados a perspectiva das pessoas que vivem no interior do conjunto Relicário,
tomando como parâmetro para a análise as narrativas sobre suas trajetórias, as formas como
entendiam os desdobramentos das recentes políticas de urbanização, como atuaram no interior
daquela arena pública, bem como se estabeleceram em seus novos locais de moradia no bairro.
A ideia mais ampla foi captar os significados que eles atribuíam a todo esse processo de
mudança da paisagem do Complexo do Alemão, e de que forma esses significados incidiam
sobre as transformações internas do Relicário, considerando suas condições históricas de
permanência na cidade, práticas cotidianas e suas narrativas sobre os espaços.
Minha interpretação a partir do que li, presenciei, participei e ouvi ao longo de todo esse
tempo ampliado de pesquisa – de abril de 2010, quando chego ao Complexo do Alemão pelo

251
PAC-Social, a novembro de 2016, quando considero encerrada a pesquisa do doutorado – insere
o PAC-Favelas dentro de um contínuo de intervenções históricas sobre os espaços de favela no
Rio de Janeiro. Em nenhum momento, o PAC-Favelas inaugurou um “novo paradigma” com
sua proposta de “urbanismo social”, tentando aliar participação popular e permanência de
moradores no território de origem, como bem mostra, por exemplo, a experiência da
CODESCO (VALLADARES, 1980; 1981). Pelo contrário, reiterou, com a máscara de
participação popular, práticas históricas antigas, que mostram como o “urbanismo” anda de
mãos dadas com autoritários e seletivos processos de exclusão e de remoção, atuando
fortemente nas porosas fronteiras entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, quase sempre
nas “margens do estado” (DAS e POOLE, 2008). Como aponta Harvey (1996; 2013), grandes
projetos de modernização urbanística estão vinculados as expectativas de atendimento de
demandas dos grandes grupos econômicos que veem nos espaços da cidade as oportunidades
para ampliarem seus negócios comerciais e suas taxas de lucro. O “urbanismo” como
“oportunidade de investimento” que os capitalistas reivindicam junto aos governos para que
sua mais-valia seja reinvestida, ampliando a acumulação do capital, justificada pelas
“necessidades” de reformas urbanas com obras de mobilidade, saneamento, equipamentos
esportivos e segurança. Como vimos, o PAC do Complexo do Alemão esteve sob esse aparato
prático-ideológico.
No entanto, tal experiência de intervenção também evidenciou a maneira como as
pessoas em situações de emergência – ou mesmo de sobrevivência – atuaram para resolver suas
“situações problemáticas” (FREIRE, 2008), ressignificando suas atuações individuais e
coletivas entre os parâmetros institucionais disponíveis e os arranjos personalizados, fazendo
com que seus posicionamentos tivessem um caráter estritamente pragmático em uma arena
pública (CEFAÏ, 2002) de disputas e negociações. No caso do Complexo do Alemão, uma arena
marcada pelas assimetrias de atores e grupos, e as relações de poder que constituem
caracteristicamente esses espaços de reivindicações.
Pelo viés da análise crítica sobre a ação governamental, a individualização das
negociação e inclusão dos nomes nas listas para sorteio dos apartamentos desdobraram-se em
um processo de fragmentação da ação e da perspectiva da política pública transformando uma
agenda nascente de “luta pela moradia” – principalmente no momento em que a comoção
pública em torno das consequências das chuvas possibilitou a mobilização mais intensa das
pessoas desabrigadas em torno da questão habitacional e comum – a perda e a necessidade de
uma nova casa – em trocas de “mercadorias política” (MISSE, 2002). O resultado visto sob a

252
perspectiva da estratégia governamental foi a cooptação de lideranças locais e o atendimento
“caso a caso” que expunham as diferenças de representação política postas no jogo daquela
arena pública. Essa visão é compartilhada por muitos moradores com quem conversei e
entrevistei, pois entenderam também que o processo participativo foi desigual, injusto, com
fortes indícios de corrupção entre agentes públicos e comunitárias com vistas a consolidação
da máquina política (DINIZ, 1982) do governo estadual naquele ano eleitoral, incidindo
negativamente sobre os resultados do programa.
Visto sob a perspectiva dos moradores participantes, e hoje muitos deles residentes do
Relicário, pode-se também interpretar a dinâmica da arena pública do PAC a partir das suas
atuações “táticas”, ou seja, tomando práticas de ação com os recursos que tinham disponíveis
para mobilizar e agir frente a lógica remocionista e a estrutura técnica e política de
implementação do programa. Bons exemplos são: a mobilização dos “conhecimentos locais”
para o “suporte na negociação” em torno das desapropriações, a insistência na cobrança pessoal
que faziam junto aos gestores do PAC, bem como o posicionamento tático sob situações
bastante adversas – como a permanência no abrigo da prefeitura após o desabamento das casas
para a inclusão do nome na listagem para o sorteio dos apartamentos. O caso de Dandara é
emblemático para esse tipo de contexto.
Nesse sentido cabe trazer novamente o que Michel de Certeau (2008) coloca sobre as
“trajetórias”, as “táticas” e as “retóricas” dos “homens ordinários... heróis comuns” (Idem, pg
41-57). Em uma “série temporalmente irreversível”, disse ele, é fundamental analisar as táticas
como a necessidade constante de jogar com os acontecimentos para transformar em “ocasiões”.
Logo, “sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhes são estranhas... a própria
decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’... [onde as táticas] pequenos sucessos, artes de
dar golpes, astúcias de ‘caçadores’... performances operacionais de saberes muito antigos”
(Idem, p. 47). Aqui, nas trajetórias que remonto, foram as “táticas sucessivas”, as “astúcias
pragmáticas” e as “maneiras de fazer” dos “mais fracos” que se impuseram como mecanismo
de ação, de realização das necessidades e desejos, e até mesmo, de sobrevivência (Idem, p. 51).
Assim, desse arranjo sociopolítico “nascem” os novos “condomínios do PAC” como novos
espaços de moradia no bairro.
Sobre o processo de transformações internas que o Relicário vem apresentando
recentemente, bem como, a constituição de relações imbricadas em disputas pelo uso dos
espaços livres, gostaria de afirmar que as consequências desses fenômenos observados
possibilitam pelo menos duas dimensões complementares de análise: primeiro, a dimensão da

253
“espoliação urbana”, no termos cunhado por Kowarick, (2000), ou seja, a consequência
histórica de uma
somatória de extorsões que se opera pela inexistência ou precariedade de serviços
de consumo coletivo, que juntamente ao acesso à terra e à moradia apresentam-se
como socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda
mais a dilapidação decorrente da exploração do trabalho ou, o que é pior, da falta
desta. (KOWARICK, 2000, p. 22)

O autor afirma que o termo “espoliação” deve ser entendido enquanto um mecanismo
de extorsão das camadas mais pobres de seus direitos elementares e do acesso aos serviços de
consumo coletivo. Ações de moradores que empreenderam suas autoconstruções explicitam
necessidades e desejos que não se materializaram com o empreendimento da urbanização.
Trabalho/renda, lazer e moradia tornaram-se questões relevantes nas justificativas dos
moradores que ocuparam os espaços livres – como vistos nos “barzinhos, trailers e a própria
consolidação da igreja evangélica. Do mesmo modo, a própria indefinição sobre os termos da
formalização do conjunto Relicário expõe a fragilidade dos mecanismos de inclusão e
reconhecimento da cidadania baseada no ideal de urbanismo. A espoliação aqui encontra-se
aqui na garantia do direito a propriedade da moradia, pois, encontra-se irregular diante a
legislação, cujo o responsável é o próprio Estado.
Segundo, a dimensão da sobrevivência, como invenção, como criatividade, como
capacidade de se posicionar criticamente sobre as questões da vida prática, diante das
adversidades e das necessidades individuais e coletivas de se ressignificar no cotidiano das
favelas. Aqui, mais do nunca, as práticas das “classes populares” observadas no interior do
Relicário também se mostram como resistência a essa fragmentação da vida moderna, a
espoliação da vida social e a opressão dos ordenamentos baseados na força. As cervejas nas
biroscas em ambiente familiar (ou não), as plantações e as frutas distribuídas, as pipas no céu
compartilhado por dezenas de meninos na dinâmica dos “cruzes”, as senhoras idosas sentadas
lado a lado conversando sobre suas famílias, o futebol descalço no asfalto, as crianças correndo
de um lado para o outro, os encontros dos jovens nas mesas e bancos de cimento, também
configuram um espaço vivido de usos compartilhados. Essas práticas da vida cotidiana denotam
as possibilidades de uma coletividade que, nas suas rotinas diárias marcadas pelos os limites da
força e da violência, também ganha um respiro de comunhão e afetos solidários entre seus pares.
* * *

A conclusão desse trabalho marca o fim de um ciclo para mim no Complexo do Alemão.
Desde os primeiros momentos de entrada no bairro, a questão das obras de urbanização e seus
254
desdobramentos na vida cotidiana dos moradores foi algo permanente nas minhas perspectivas
profissionais, tanto sob o viés da intervenção mais direta como gestor público, quanto mais
tarde como pesquisador e profissional das ciências humanas. No entanto, não o entendo como
o fim de história, mas, uma possibilidade de outros recomeços. Com a conclusão dessa tese
enxergo daqui para frente possibilidades de aprofundar temas abordados nesse trabalho – como
estudos nas áreas da sociologia e antropologia da moral e da pragmática –, que apontam,
inclusive, para outras possibilidades de pesquisa no próprio bairro. Uma delas é o papel e a ação
do Movimento das Mulheres do Alemão – o MMA.
No meio da pesquisa para essa tese conheci Camila Santos, moradora do Complexo do
Alemão e fundadora do Movimento das Mulheres do Alemão (MMA). Essa organização local
é composta por cerca de dez mulheres com perfis muito parecidos: negras, com baixa
escolaridade formal, “donas de casa” e com uma série de responsabilidades de ação junto aos
vizinhos e pessoas próximas de onde residem. Com a implosão de uma fábrica em ruínas, a
remoção de centenas de famílias da chamada Favela da Skol, e inclusão no benefício do
“aluguel social” que se arrasta desde de 2010, o MMA surge como instrumento de organização
de mulheres faveladas em torno da agenda da luta por moradia. Sua aproximação com o
Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto de São Paulo, bem como, suas mobilizações por meio
das “ações comunitárias” dentro e fora do Complexo do Alemão, têm evidenciado uma alta
capacidade de articulação de Camila – principalmente por meio de redes sociais digitais –
mesmo diante de condições adversas na rotina das favelas do Complexo do Alemão.

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267
APÊNDICE A – Roteiro de entrevista

Perfil
Nome: Naturalidade: Data de nascimento:
Bloco: Ap:

Eixo 1 - Trajetória
1) O que é o Complexo do Alemão para você?
2) Como e quando você chegou ao Complexo do Alemão?
3) Onde você morava antes de vir pra cá?
4) Por que você mora no apartamento? Quando chegou?
5) Quantas pessoas moram com você? Quem são?
6) Atualmente, qual a sua atividade profissional?

Eixo 2 – Participação no PAC


7) O que representa o PAC para você no CPX?
8) Você participou dos “encontros de integração”? Se sim, como foi?
9) Qual a sua memória do Complexo antes do PAC?
10) Como foi sua relação com “o pessoal do PAC”? Quem foi seu principal contato?
11) Participou de outras atividades do PAC (cursos, capacitação profissional p. ex.)?

Eixo 3 – A vida no “condomínio”


12) Como foi a mudança física? E sua adaptação?
13) É diferente morar aqui comparando com outros lugares em que vc morou? Por quê?
14) Tem alguma função administrativa no condomínio? Se sim, relate.
15) Qual o seu principal lazer? O que mais gosta de fazer?
16) Frequenta alguma organização (como sindicatos, associação, igreja)?
17) Como você acha que as pessoas do entorno enxergam os condomínios do PAC?
18) Qual o maior benefício em morar aqui?
19) Qual a maior dificuldade que você encontra aqui?
20) Você utiliza os serviços públicos ofertados após o PAC? Qual? (FAETEC, teleférico, UPA,
escola, creche).
21) Pretendem continuar morando na POESI?
22) Se tivesse que resumir esse espaço de moradia em uma palavra, qual você usaria?

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