Sabemos que uma das maiores perversidades de todo o sistema de
controle e colonização de algo que vai “da economia mundial globalizada” ao “destino de meu filho que acabou de ingressar na escola”, tem a ver com um triplo exercício de des-humanização. O primeiro é o apressamento de tudo e de todos em direção a não-se-sabe-onde: Um cronômetro universal torna virtude tudo o que pode ser feito em menos tempo, vivido em menos minutos, resolvido em exíguos instantes. A lentidão do viver e do agir e fazer cada vez mais – a não ser em cursos de zen budismo – confunde-se com a própria incapacidade pessoal ou coletiva de se viver “os tempos de agora”. Tempos em que uma demora de três segundos a mais na velocidade de minha Internet já é motivo para uma manhã mal-humorada. O segundo é a descartabilidade, e ele é apenas a continuidade do primeiro: Não apenas máquinas e emoções, mas as pessoas também cada vez mais nos aparecem, ou são forçadas a se realizarem e a aparecerem como um breve fulgor. Como um cometa arisco, dotado por algum tempo de efêmera vida. Como um elo sem cor-e-vida numa cadeia cada vez mais impessoalizada de seres e vidas esquecíveis, substituíveis, descartáveis. Acaso existe algo mais terrivelmente espantoso do que as estatísticas a respeito do “tempo de vida” de um número cada vez maior e sempre progressivamente aumentado de jovens deste país. Afinal, sejamos práticos, oh senhores do poder! Em nome do quê reduzir a idade de jovens para que cada vez mais cedo possam ser punidos como adultos, se a própria mecânica da modernidade líquida já se apressa a liquidar cada vez mais cedo um número cada vez maior de crianças precocemente pré-condenadas à morte ou a uma vida que no seu correr em apenas muito pouco se diferencia da morte. Terceiro é a extrema funcionalização de todos e de tudo: Vale apenas o que funciona. E a própria educação que deveria formar gota a gota, passo a passo, o mistério generosamente não utilitário de uma pessoa, cada vez mais se destina a fabricar peças humanas úteis cada uma à função pragmática em que se deve encaixar, se quiser contar como alguém em quem afinal valha a pena investir: o dócil e eficiente operário na ponta da produção; o submisso e obediente comprador na ponta do consumo. Contra estas três sequências perversas do apressamento da vida, da instrumentalização da vocação e da descartabilidade da pessoa, sonho com uma educação às avessas. Uma educação constituída sobre fundamentos de lentidão, de experiência demorada e saborosa da aventura da partilha do saber, do aprendizado do lento e denso diálogo de um jovem com ele mesmo, como os seus outros, com o seu mundo, do maravilhamento do mundo e da capacidade de se somar a outros para criar um mundo em que de fato valha a pena viver… lentamente. Dever do Estado: artigo 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente assegura: ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiverem acesso na idade própria; extensão da gratuidade e obrigatoriedade ao ensino médio; atendimento especializado a crianças e adolescentes com deficiência. a criança e ao adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”
Eca e o Currículo da Escola Pública
conforme estabelece seu artigo terceiro. E que possamos entender como “oportunidades e facilidades” o que crianças e adolescentes necessitam, efetivamente, para terem uma vida digna e uma educação de qualidade sociocultural e socioambiental. Isso significa que devemos estar atentos quando educamos e nos educamos com os(as) nossos(as) alunos, aos seus direitos fundamentais – à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à família natural ou substituta, à tutela, à doação, ao direito fundamental à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à proteção no trabalho e a todo o tipo de prevenção, proteção e políticas públicas de atendimento que a criança e ao adolescente exigem para serem, como defendemos sempre, os cidadãos e as cidadãs de hoje e do amanhã. Currículo tem a ver com caminho, com percurso, como o quê, o onde, o quando, o como, o porquê, o com quem, para quem, o para quê e o para quando devemos ensinar e aprender. Nesse sentido, refere-se a que crianças e jovens queremos para o nosso mundo e que mundo oferecemos a eles. Refere-se, enfim, a tudo o que tem a ver com a vida feliz, digna, curiosa, prazerosa e aprendente das nossas crianças e adolescentes, o que está muito bem previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Cabe, portanto, a todos(as) nós, salvar, defender e utilizar o ECA no dia a dia das nossas vidas, das nossas escolas e no acontecer dos nossos currículos escolares. Associar currículo e ECA significa incluirmos no espaço-tempo da escola as “oportunidades e facilidades” para que crianças e adolescentes tenham assegurados os seus direitos de um desenvolvimento pleno – “físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade de dignidade”, conforme estabelece seu artigo terceiro. E que possamos entender como “oportunidades e facilidades” o que crianças e adolescentes necessitam, efetivamente, para terem uma vida digna e uma educação de qualidade sociocultural e socioambiental
Eca e a Relação com o cotidiano da Escola Pública
Os princípios expressos no artigo 4º do ECA¹ colocam a criança e o ado-lescente como centralidade no que deve ser garantido a elas, para terem um desenvolvimento pleno na perspectiva da prioridade absoluta. Esta inversão coloca o Estado, a sociedade em geral, a família e a comunidade como os atores responsáveis e garantidores da saúde, da educação, do respeito, da dignidade, da profissionalização e da convivência familiar e comunitária. Por isso, nesses 25 anos do ECA se faz necessário compartilhar experiências da materialização de seus princípios e diretrizes no cotidiano da escola pública. Conforme prevê o artigo 3º : A criança e ao adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Essa obrigatoriedade progressivamente tem sido reconhecida como legítima e necessária pelos educadores. A despeito de todas as demandas a que somos expostos cotidianamente, nós, trabalhadores da educação, não temos todas as receitas, mas caminhos na direção do pensar certo quando procuramos criar vínculos capazes de estabelecer com nossas crianças, adolescentes e famílias uma relação dialógica, aquela da qual falava Paulo Freire.1 As desigualdades sociais também se expressam fortemente por meio das desigualdades territoriais; em espaços periféricos das grandes metrópoles a população enfrenta dificuldades de várias ordens como a fragilidade das políticas públicas e a segregação socioespacial que marcam esses territórios. Nesse sentido, as escolas localizadas em bairros periféricos das grandes cidades são muitas vezes a principal ou até a única presença do estado nessas áreas, e acabam recebendo incontáveis demandas que se não atendidas, colocam sérios riscos para a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes que crescem nesses territórios. O ECA é importante pois constitui-se como ferramenta de trabalho para os profissionais da educação em suas ações pedagógicas, como também orienta todo o sistema educacional. É um instrumento que, também, garante as políticas públicas tão necessárias à infância e à juventude em situações de risco e de vulnerabilidade social.