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Sonia Kramer
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Patrícia Corsino
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo
Palavras-chave
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37, n.1, 220p. 69-85, jan./abr. 2011 69
Childhood and six-year-old children: Challenges of the transitions
in early childhood education and in Fundamental education
Sonia Kramer
Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro
Patrícia Corsino
Federal University of Rio de Janeiro
Abstract
Keywords
Contact:
Sonia Kramer
Av. Nossa Senhora de Copacabana, Early childhood education – Fundamental education – Reading
1344/1001 - 22070-012
Rio de Janeiro/RJ
and writing.
E-mail: sokramer@puc-rio.br
70 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37, n.1, 220p. 69-85, jan./abr. 2011
[...] grande parte de tudo o que foi criado fundamental são frutos de um processo histórico
pela humanidade pertence exatamente ao tra- de articulação entre duas dimensões: uma social,
balho criador anônimo e coletivo de inventores política e administrativa – que foi se expressando
desconhecidos. (Vigotski, 2009, p.16) ao longo dos últimos cem anos com os movimen-
tos sociais e de lutas de diferentes setores da socie-
A inserção das crianças de 6 anos no ensino dade civil organizada – e outra técnico-científica,
fundamental tem provocado indagações tanto para constituída por estudos da psicologia, antropologia,
a educação infantil quanto para o ensino funda- filosofia, sociologia, entre outros, que passam a
mental, especialmente no que tange aos espaços conceber a criança de forma ampla e integrada,
e práticas pedagógicas e sua adequação à faixa e a infância como um momento fundamental no
etária das crianças. O objetivo deste texto é analisar processo de formação humana. O diálogo entre
e discutir questões que atravessam essas etapas a estas duas dimensões – político-administrativa e
partir de uma pesquisa desenvolvida com foco nas técnico-científica – produziu a ideia de educação
práticas e interações entre crianças e adultos em infantil, com dois segmentos etários (0-3 e 4-5),
instituições públicas – creches, escolas de educação mas, em tese, sem fragmentação do processo edu-
infantil e escolas de ensino fundamental. cacional (Corsino, Nunes, 2009).
Com base em Benjamin (1987a, 1987b), A Lei nº. 11.274/2006 institui o ensi-
Bakhtin (1988a, 1988b) e Vigotski (1972, 2009), no fundamental de nove anos de duração e a
concebemos as crianças como produtoras de cultu- inclusão das crianças de 6 anos de idade. As
ra, constituídas a partir de sua classe social, etnia, crianças com 6 anos completos até o início do
gênero e com diferenças físicas, psicológicas e ano letivo não estão mais na educação infantil.
culturais. Elas brincam, aprendem, criam, sentem, A intenção foi evitar rupturas na qualidade da
crescem e se modificam ao longo do processo oferta e na trajetória educacional da primeira
histórico que dá corpo à vida humana, dão sen- infância, garantindo continuidade pedagógica
tido ao mundo, produzem história e superam sua no que se refere aos objetivos, organização,
condição natural por meio da linguagem. Seu conteúdos, acompanhamento, avaliação, no
desenvolvimento cultural implica construir a his- entender de Didonet (2007). Contudo, o ingresso
tória pessoal no âmbito da história social. Quando da educação infantil nos sistemas de ensino tem
interagem, aprendem, formam-se e transformam; implicações nas demais etapas, modalidades e
como sujeitos ativos, participam e intervêm na níveis de ensino, conduzidos a repensar concep-
realidade; suas ações são maneiras de reelaborar ções, rever práticas e adequar posições a partir
e recriar o mundo. Aos adultos, cabe a função das novas relações estabelecidas. Por outro
de mediação, iniciação, colaboração. O papel do lado, tem provocado o retorno, o reforço e a
outro é fundamental na constituição do eu e no continuidade de práticas que associam educação
desenvolvimento e nas aprendizagens que fazem à instrução, com atividades mecânicas onde as
ao longo da vida. Esses processos constroem re- crianças são treinadas a seguir instruções (cobrir
alidades individuais e históricas. Desde bem pe- pontilhado, copiar e repetir).
quenas, criam e imaginam, expressam desejos e Analisar e problematizar as práticas na
emoções. Crianças da mesma faixa etária sofrem educação infantil, na investigação realizada,
ações da estrutura social em que estão inseridas e, favoreceu a reflexão sobre a inserção das crian-
nas interações com seus pares e com os adultos, ças de 6 anos no ensino fundamental. Tendo
recriam as culturas em que estão imersas. em vista a relevância da escola na formação
A opção brasileira pelo atendimento edu- das crianças e dos jovens, e as dificuldades dos
cacional a toda a faixa etária da primeira infância sistemas de ensino para responder às exigências
e a inserção das crianças de 6 anos no ensino em relação à linguagem, leitura e escrita, inú-
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meros desafios foram identificados no que se voltadas ao estudo da infância e da educação,
refere à transição da educação infantil para o as propagandas eleitorais e as preleções polí-
ensino fundamental, espaços reconhecidamente ticas se apropriam e difundem seus diferentes
educativos. No universo das instituições pesqui- significados de “educação infantil”. Do ponto
sadas, há uma gama de concepções de leitura e de vista da pedagogia e da organização escolar,
escrita que, quando traduzida em práticas, torna esta expressão referenda a educação infantil e
o desafio ainda maior: organização dos espa- a designa como base da educação básica, que
ços, planejamento da rotina/atividades, seleção tem no pacto federativo e na distribuição de
de materiais são experiências de cultura ou responsabilidades dele decorrente o seu alicerce.
priorizam ações instrucionais? Isto é, brinca-se Pensá-la como uma unidade educacional, um
sempre para aprender algo? As histórias conta- grupo constituído, com os mesmos objetivos
das e os livros, que funções exercem? e finalidades, e relacionar esses objetivos a
Pesquisar as práticas na educação in- uma idade definida1, se, de um lado, afirma
fantil permitiu problematizar o trabalho com esta etapa como a de ingresso à educação, de
as crianças de 6 anos no ensino fundamental. outro dissimula contradições nas condições de
Mais do que conceber as duas etapas de modo acesso e frequência, nos tipos de equipamentos
dicotômico, trata-se – na ótica deste texto – existentes, na formação de docentes, no ideário
de pensar, para além, transições e desafios na do gestor público e da sociedade em geral sobre
organização dos sistemas de ensino e em ter- a sua importância educativa para as crianças.
mos de políticas e gestão pública, de propostas Analisar os diferentes universos edu-
curriculares e de formação de professores e de cacionais em que creches e pré-escolas se de-
todos os profissionais envolvidos neste trabalho. senvolvem permite pensar as condições desta
Com estes focos, o primeiro item analisa etapa de ensino, suas diferenciações, bem como
as políticas da educação básica no contexto da os mecanismos de inclusão nas redes pública
expansão da obrigatoriedade e a os desafios e privada do país, nos sistemas de ensino: no
para se trabalhar com as crianças de 6 anos. O Brasil, a média do atendimento das crianças de
segundo apresenta e problematiza a pesquisa 0 a 3 anos é de 18%, enquanto para as de 4 e
que desenvolvemos (Kramer, 2009), no que 5 anos este percentual se eleva para 73% em
diz respeito às práticas de leitura e escrita ob- 2010 (IBGE, PNAD, 2008).
servadas. O terceiro sugere prioridades para o Desvelar e desnaturalizar a educação
trabalho com a leitura e a escrita na educação infantil como um todo indissociável, tal como
infantil e nos anos iniciais do ensino fundamen- formulado em lei, implica conhecer e reconhecer
tal, para a formação e as transições. que creches e pré-escolas guardam identidades
muito diversas, produzidas, ao longo da his-
Educação infantil – um conceito vigente? tória, em torno do conceito de educação para
crianças de pouca idade. A ideia de educação
A concepção de educação infantil que infantil é uma construção histórica e social,
orientou a Constituinte de 1988, a formulação sendo, portanto, impossível conhecê-la apenas
das políticas (Brasil, 1988,1990,1996) e que tem pelos critérios legais que a envolvem. O termo
orientado pesquisas e projetos curriculares na é circunstanciado na legislação, mas adquire
área está marcada pela indissociabilidade de significação a partir da experiência e do lugar
creches e pré-escolas, historicamente cindidas. que creches e pré-escolas ocupam no sistema
As publicações oficiais voltadas à forma- de ensino no Brasil e em outros países. Orga-
ção docente e à divulgação de dados estatísticos,
os discursos acadêmicos, por meio de pesquisas 1. Creche para as crianças de 0 a 3 anos e pré-escola para as de 4 a 6 anos.
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Lahire (2003), o pesquisador deve se empenhar automática e das políticas de não reprovação,
na tarefa de conhecer a gênese tomaram a cena no debate.
A despeito destas medidas, de acordo
[dos] processos de legitimação, de deslegi- com os resultados de proficiência em leitura
timação ou de relegitimação dos diferentes obtidos no Programa Internacional de Avalia-
tipos de atividades ou saberes, pois só assim ção de Alunos (Pisa)2 em 2006, o Brasil teve
será possível explicitar as lutas para a defini- um desempenho bastante aquém do desejado3 ,
ção social do “que conta”, do “que tem valor”, pois a maior parte dos jovens (27,7%) na faixa
em suma, do que faz “capital” aos olhos da etária de 15 anos está concentrada no nível 1 de
maioria das pessoas. (p. 995) proficiência – o que significa dizer que apenas
sabem “localizar informações explícitas em um
Para o autor, o discurso sobre as desi- texto, reconhecer o tema principal ou a pro-
gualdades sociais de acesso à escola só pode ser posta do autor, relacionar a informação de um
instaurado se e quando a cultura escolar passa a texto de uso cotidiano com outras informações
ser um valor social coletivamente compartilhado. conhecidas” – e apenas 1,1% no nível 5 – que
A tendência internacional de ampliação demonstram que sabem “organizar informações
da escolaridade obrigatória e a inclusão das contidas, inferindo a informação relevante para o
crianças com menos idade no ensino fundamen- texto, avaliar criticamente um texto, demonstrar
tal é determinada pela complexidade do mundo uma compreensão global e detalhada de um tex-
contemporâneo. No Brasil, desde o período de to com conteúdo ou forma não familiar”4 (Brasil,
redemocratização, esse tema integra ações de 2006a). Vale, ainda, chamar a atenção para o
organizações não governamentais e movimentos fato de que estes resultados são coincidentes com
sociais por melhoria na educação, e a impor- a Prova Brasil, que destaca que os alunos não
tância do debate é corroborada, também, nas sabem interpretar textos com linguagem verbal
discussões em torno dos planos decenais de e não verbal, nem inferir informações marcadas
educação. Em alguns municípios brasileiros, as por metáforas (Brasil, 2009a).
crianças de 6 anos já estavam matriculadas no Além disso, segundo dados do Ministério da
ensino fundamental desde a década de 1990, Educação veiculados em 20105 , 79 mil crianças de
conforme atestam os dados do Censo Demográ- 6 anos foram reprovadas no ensino fundamental,
fico de 2000, tanto pela presença das classes de número que representa 3,5% das matrículas do
alfabetização quanto pela matrícula das crianças primeiro ano de ensino. A matéria, alardeada na
de 6 anos no ensino fundamental. mídia, apresentava como motivo do fracasso a au-
Assim, há pelo menos dez anos, 29,6% das sência de experiência da criança na pré-escola ou
crianças brasileiras de 6 anos estavam no ensino o despreparo dos professores pré-escolares, criando
fundamental e 13,6% frequentavam as classes de o estigma de uma pré-escola que não se baseou no
alfabetização (IBGE, 2000). A vitória das oposições preparo para o ensino futuro. Porém, essa reprova-
ao governo militar produziu mudanças na política ção indica problemas na pré-escola ou no ensino
educacional brasileira, que acenava para uma fundamental? Houve estratégias de transição?
nova visão do papel da escola pública, e trouxe a
urgência de medidas inovadoras para a melhoria 2. Pisa: Programa internacional de avaliação comparada cuja principal
do quadro de repetência, evasão e distorção idade/ finalidade é produzir indicadores sobre a efetividade dos sistemas educa-
cionais, avaliando o desempenho de alunos na faixa dos 15 anos, idade
série, principalmente na rede pública de ensino. em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na
Políticas de ciclos escolares para regularizar o fluxo maioria dos países.
3. 49º lugar no ranking dos 56 países.
e limitar a repetência e a evasão dos alunos, bem 4. Níveis de proficiência do Pisa.
como da progressão continuada, da promoção 5. Divulgado na Folha de São Paulo em 23/02/2010.
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afetos, valores; constitui a consciência e organiza num contexto partilhado. Nessa perspectiva, as
a conduta: nela e através dela, são assimilados análises dos discursos que circulam no campo
conceitos e preconceitos. A linguagem verbal – empírico da pesquisa foram construídas na
materializada nas relações sociais como oralidade tensão entre a singularidade e a universalidade.
ou como escrita – tem todas essas características Os eventos recolhidos em campo foram tratados
e as potencializa. nessa tensão: enunciam algo singular e, por se
Para Bakhtin (2003), linguagem e vida inscreverem em contextos mais amplos, trazem
são indissociáveis. Em “Arte e responsabilida- algo além. Remetem aos contextos das políticas,
de”, o autor afirma que ciência, arte e vida são da formação, das práticas de oralidade, leitura e
campos da cultura humana que se articulam, escrita e enunciam aspectos do trabalho realiza-
mas tanto podem adquirir unidade no indivíduo do nas escolas na educação infantil, no ensino
que as incorpora, como permanecer cindidos e fundamental e nas estratégias de transição.
manter entre si apenas uma relação mecânica e Os estilos de comunicação entre adultos
externa. Se a cisão acontece, a arte ou a ciên- e crianças eram marcados por ambiguidades nas
cia passa a ser entendida de forma autônoma, formas de uma mesma professora agir e interagir
autossuficiente, isolada da vida. Essa postura com a turma, alternando diálogo e imposição,
tem consequências éticas que empobrecem carinho e rispidez, respeito e deboche, afetividade
culturalmente o homem: e autoritarismo. O modo como as crianças eram
nomeadas pelos adultos e entre si, nas diferentes
[...] o poeta deve compreender que sua poesia instituições – onde várias crianças se chamavam
tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que por Nem e muitas haviam chegado à escola sem
o homem da vida saiba que sua falta de exigên- saber o nome –, é motivo de preocupação. O
cia e de seriedade nas questões vitais respondem tratamento indiferenciado parece caracterizar o
pela esterilidade da arte. (2003, p. XXXIV) anonimato a que são submetidos outros atores
da esfera escolar, onde professoras são Tia, os
A articulação entre ética e criação – na pais, Pai e as mães, Mãe.
ciência ou na arte – desafia a produção de Foram identificadas professoras que
conhecimento e o agir humano. Para Bakhtin desenvolvem um importante trabalho em torno
(1976), o discurso da vida e o discurso da arte do nome da criança (fazendo rima, cantando,
têm o outro como interlocutor. A alteridade identificando em fichas etc.), conferindo-lhe
supõe a diversidade e a pluralidade, já que o reconhecimento e diferenciação das outras
outro – situado fora de mim – tem horizontes crianças, mas muitas imprimiam um tratamento
vivenciados não coincidentes com o meu. Nas impessoal nessa relação. Psiti, psiu, outro, ei,
inter-relações entre eu e o outro se confrontam você menino, menina, amiguinho, pequeno,
múltiplos discursos e, nesta arena, nos constitu- pequena eram formas utilizadas pelos adultos
ímos e somos constituídos mutuamente. A pes- para designar crianças tornadas anônimas. Em
quisa em Ciências Humanas, nesta perspectiva, uma das instituições, as crianças saíam do
renuncia à ilusão de transparência do discurso anonimato quando a professora, em momentos
tanto dos sujeitos pesquisados quanto dos pes- de denúncia, de reprimenda ou mesmo em
quisadores. Mas, alerta Amorim (2001), a ilusão situações de dificuldade de aprendizagem,
de transparência a que se renuncia não deve enunciava em voz alta seus nomes. Algumas
ser confundida com uma renúncia à teoria e a professoras referiam-se a si mesmas na terceira
todo trabalho de objetivação e conceitualização. pessoa do singular (a tia está falando, a Maria
O acontecimento único do ato enun- quer que vocês...), como um ele. O eu parecia
ciativo – singular e irrepetível – está situado ficar escondido na impessoalidade da terceira
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mas estas serviam, muitas vezes, como fio que (direito e tutela, liberdade e controle, inclusão e
conduz a atividades dirigidas. Nem todos os exclusão) geram condutas em que ora as crianças
dias as professoras liam histórias e raramente são consideradas pela ótica da falta, ora pela da
as crianças tinham oportunidade de folhear, de competência. A dificuldade em se romper com
escolher, de fazer suas leituras. uma visão linear e mecânica da história também
O controle e o direcionamento das está presente nas práticas com as crianças e no
professoras muitas vezes perderam o caráter de seu desenvolvimento. As crianças vivem o tempo
colaboração e tornaram-se tutela. As práticas presente nas inter-relações com os inúmeros
pedagógicas expressavam o trabalho feito nas outros que as constituem. Pensar a sua atualidade
salas (em muitas instituições, chamadas de “salas no entrecruzamento entre passado, presente e
de aula”), o que adultos e crianças falavam futuro (Benjamin, 1987a) motiva a indicação de
sobre o que aprendiam, como e de que forma prioridades para a educação infantil e o ensino
compartilhavam ou não. Explicitando tensões fundamental. É o que o item seguinte focaliza.
e contradições, revelavam práticas de leitura,
escrita e outras formas de expressão presentes Prioridades: conhecimento, arte e agir
nas instituições, delineando um quadro em que ético na formação de crianças e adultos
predominavam práticas instrucionais constituídas
pelo ensino de conteúdos predefinidos, repetição, As análises no âmbito das políticas públicas
modelos a serem copiados, gestos, atitudes e e as observações da pesquisa voltada às práticas
habilidades aprendidas, com formas escolares sugerem reflexão e exigem o delineamento
rígidas e a presença forte da cultura escolar de diretrizes para a ação. Neste terceiro item,
com ênfase a rotinas, tempos de espera, filas, optamos por um tom propositivo, sugerindo
separação dos grupos por gênero. prioridades para o trabalho pedagógico – em
O desafio foi ter um olhar e uma escuta suas mais diversas alternativas curriculares – na
sensíveis, entender a linguagem para além do educação infantil e no ensino fundamental que
que era dito, compreender significados do corpo considerem as crianças como sujeitos de cultura,
e movimentos, tensões e apreensões, sentidos do pessoas de pouca idade, cidadãos de direitos. A
choro, do riso, de disputas, demonstrações de inserção nas diversas esferas traz perguntas, exige
carinho, raiva, partilha. Em muitas instituições, respostas, ensina, mobiliza, provoca, motiva-
as crianças estavam visíveis, mas em outras a nos ao estudo, à ação e nos possibilita propor.
invisibilidade era a marca. Os limites impostos Tais prioridades foram definidas com base na
pelos adultos cerceavam as interações, limitando experiência e no conhecimento produzido: i) na
as brincadeiras e restringindo as ações. As atuação direta em creches, pré-escolas e escolas,
crianças eram controladas até nas festas. Os nos anos 80, como professoras e/ou gestoras e,
aportes teóricos da teoria crítica da cultura, da em seguida, como docentes do ensino superior; ii)
antropologia, da sociologia da infância pairavam em práticas pedagógicas observadas, fotografadas
sobre elas, largos demais. A despeito dos avanços e analisadas na trajetória do Grupo de Pesquisa
teóricos, das mudanças nas políticas públicas sobre Infância, Cultura e Formação (Infoc) desde
e nas propostas curriculares, predominaram o início dos anos 90 (Nunes, 1995; Corsino,
práticas instrucionais voltadas ao ensino, mesmo 2003; Kramer,2005, 2009); iii) em consultorias
em relação às crianças bem pequenas. realizadas junto a diversos órgãos públicos
A coexistência no mundo contemporâneo desde os anos 80; iv) em projetos de intervenção
de diferentes concepções de infância, de educação junto a creches, pré-escolas e escolas; v) na
e do próprio conhecimento, as ambivalências e participação em movimentos sociais, em fóruns
paradoxos nas relações entre adultos e crianças locais, estaduais e federal.
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escrever com correção, vencendo o medo e pro- escolaridade que tiveram não garantiu seu direito
duzindo textos com sentido, expressando suas à educação de qualidade, o que significa dizer à
ideias, sentimentos, planos e desejos. Assegurar leitura ficcional, à literatura. Atuar na formação
que todos saibam ler e escrever, queiram ler e dos professores de educação infantil e dos primei-
escrever e tenham espaços e condições concretas ros anos do ensino fundamental como leitores deve
nas instituições para fazê-lo são conquistas da ser prioridade, de modo que eles enfrentem suas
escola de ensino fundamental e de seu papel na dificuldades e percebam, no exercício do magisté-
formação e na produção cultural. rio, que é possível passar a gostar de ler, voltar a
Além disso, é prioridade que instituições gostar de ler (se já tiveram este gosto e prática e
de educação infantil e ensino fundamental in- os perderam) e realizar práticas de leitura literária
cluam no currículo estratégias de transição entre com as crianças, deleitando-se com os livros em
as duas etapas da educação básica que contri- seus mais diferentes gêneros.
buam para assegurar que na educação infantil Para favorecer o papel da educação in-
se produzam nas crianças o desejo de aprender, fantil e do ensino fundamental na formação do
a confiança nas próprias possibilidades de se leitor e de crianças e adultos que gostem de es-
desenvolver de modo saudável, prazeroso, com- crever e queiram escrever, as instituições de am-
petente e que, no ensino fundamental, crianças e bas as etapas da educação básica devem ampliar
adultos (professores e gestores) leiam e escrevam. a experiência estética com música, artes plásti-
Ambas as etapas e estratégias de transição devem cas, cinema, fotografia, dança, teatro, literatura,
favorecer a aquisição/construção de conhecimen- diversificando as atividades das crianças com a
to e a criação e imaginação de crianças e adultos. leitura e a escrita como narrativa, a apreciação
e interação com a linguagem oral e escrita, o
Formação cultural e o papel da arte convívio, repetimos, com diferentes suportes e
e da leitura literária gêneros textuais orais e escritos.
É prioridade, no trabalho com leitura e es-
Pesquisas desenvolvidas desde os anos 90 crita na educação infantil e no ensino fundamen-
mostram que predominam práticas estéreis, me- tal, evitar ações instrucionais, informativas, mo-
cânicas e instrumentais na educação infantil (em ralizadoras, mecanicistas, instrumentais; é preciso
creches, pré-escolas e escolas) e nos primeiros anos resgatar a dimensão cultural da pedagogia e dos
do ensino fundamental. Prevalece uma concepção conhecimentos (Kramer, 1993; 1995). As políticas
de língua como objeto, conjunto de informações, públicas devem viabilizar a formação do gosto,
normas e regras. Ao contrário, a língua é viva, a valorização dos clássicos, a formação cultural
circula, transforma-se na tensão entre a sua ma- de professores e gestores na formação inicial e
terialidade e seus sentidos, tem história (Bakhtin, na continuada. Para tanto, objetivos, intenções,
1988a). Professores de creches e escolas se con- precisam se alicerçar em condições concretas em
duzem como se o mais importante fosse ensinar termos de espaço (bibliotecas, salas de leitura) e
gramática, não importando a língua que falamos, tempo (para ler, estudar, planejar).
mas a que supostamente deveríamos ensinar. Pou-
co se explora a oralidade, a expressão gráfica ou Formação e agir ético
plástica, o teatro e a literatura; mais se ocupam
adultos e crianças com o treinamento motor, os Escrita de professores – planejamento
exercícios repetitivos e a cópia. e avaliação 1
Segundo várias pesquisas, os professores ou
gestores não aprenderam a gostar de ler e não se Muitos professores têm medo de escrever.
percebem como leitores (Oswald, Kramer, 2001). A Tremem diante da página em branco. A escola-
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Conhecimentos científicos, arte e agir ético e crianças. Isso requer que o trabalho com as
entrecruzam-se nas práticas, na forma como crianças de 6 anos na educação infantil e no
professores e gestores planejam as práticas, ensino fundamental e com suas professoras e
refletem e enfrentam problemas que necessitam professores favoreça situações de narrativa de
ser alterados no cotidiano, nas condições materiais experiências vividas, de leitura literária e de
e em nós mesmos. O papel do outro na consru- escrita como registro da vida e de tudo o que
ção do meu conhecimento é central tanto no que foi aprendido.
se refere às crianças quanto aos adultos. A linguagem é material e instrumento de
Em que pesem as contradições próprias ação no mundo, sobre o outro, com o outro e
do ser humano, o agir ético impõe uma res- com os muitos outros que constituem o pen-
posta ao outro que se expressa na estética de samento e a consciência. No agir no mundo,
gestos, entonações, palavras, vozes. O trânsito produzimos discursos e também somos por eles
entre polos díspares constatado nas instituições produzidos. É com a linguagem que os sujeitos
pesquisadas denota a cisão do sujeito e remete se relacionam com a cultura, que produzem sig-
às condições de produção destes discursos na nificados nas interações que estabelecem com
esfera das políticas, da formação profissional e as pessoas e com as produções culturais que os
pessoal. A assimetria geracional entre adultos cercam, que criam e recriam o que está à sua
e crianças não pode prescindir do agir ético volta. A linguagem das crianças está impregna-
entre sujeitos. Falar, ouvir e ser ouvido, man- da de marcas de seus grupos sociais de origem,
ter uma relação de afeto, carinho, respeito, valores e conhecimentos. Seus modos de falar e
troca e confiança mútua são condições para agir fazem parte de suas bagagens culturais, de
as relações interpessoais fluírem. São ações vida – são modos de ler a realidade. Colocar a
necessárias à relação ensino-aprendizagem em lente da pesquisa nas ações, produções e apro-
qualquer nível de ensino ou etapa educacional. priações das crianças propiciou a reflexão sobre
Historicamente, o foco das políticas dos a complexidade da linguagem e do trabalho
primeiros anos de escolaridade sempre foi o com a linguagem tanto na educação infantil
desempenho. Nas classes de pré-primário, nas quanto no ensino fundamental.
classes de alfabetização, classes de adaptação, A escolarização está pautada em um
turmas de aceleração entre outros (ou mesmos?) modelo de conhecimento que cinde ciência,
modos de denominar tais grupos em diversas arte e vida e no controle do conhecimento,
políticas públicas de municípios, estados ou com propostas de soluções prefixadas e previ-
em distintos projetos pedagógicos de escolas síveis. É urgente que as práticas pedagógicas
específicas, o foco sempre foi, vale repetir, o na educação infantil e no ensino fundamental
desempenho das crianças e a medida de suas se desloquem desse modelo e favoreçam a
fragilidades, faltas, deficiências. Para que a atual construção de significados singulares não só
política do MEC – de inclusão das crianças de 6 previamente determinados, mas constituídos
anos no ensino fundamental – não seja apenas nos acontecimentos da história. E que sejam
mais uma, instituindo o mesmo, reiterando o delineadas estratégias de transição entre as
que existe, a proposição aqui encaminhada – etapas, cuja omissão se constitui em grave
para as políticas e para as práticas – é de que a problema. Atuar nas transições pode con-
prioridade seja colocada nas crianças e adultos tribuir para criar nas escolas de educação
que com elas trabalham. Isso significa garantir infantil e ensino fundamental espaços para a
condições para que a prática pedagógica se prosa do dia a dia, onde as narrativas tecidas
realize como processo de humanização e formação favoreçam os nexos, os sentidos, as mudanças
cultural, e especialmente literária, de adultos institucionais e pessoais.
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa, 2001.
BAKHTIN, M. Discurso na vida e discurso na arte. Trad. Cristóvão Tezza). In: Voloshinov, V. N. Freudianism: a Marxist critique. New
York: Academic Press, 1976 (mimeo).
BENJAMIN, W. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987a.
_______. Obras escolhidas II: rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987b.
_______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
_______. Censo demográfico 2000. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2000.
_______. A ampliação do ensino fundamental para 9 anos. Lei nº. 11.274, de 6 de fevereiro de 2006b.
_______. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2008 (PNAD 2008). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, 2008.
_______. Resolução CNE/CEB 5/2009. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil. O Diário Oficial da
União de 18 de dezembro de 2009b.
_______. Emenda Constitucional nº. 59. Institui nova redação aos incisos I e VII do art. 208, de forma a prever a obrigatoriedade
do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a abrangência dos programas suplementares para todas as etapas da Educação
Básica de 11 de novembro 2009c.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37, n.1, 220p. 69-85, jan./abr. 2011 83
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Maria Fernanda Rezende Nunes é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1981), com mestrado
em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1995) e doutorado em Educação pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (2005). É professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Unirio e professora da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: fernandanunes@domain.com.br
Patrícia Corsino é pedagoga pela Universidade Santa Úrsula (1978), com mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (1996) e doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003).
É professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: patriciacorsino@terra.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37, n.1, 220p. 69-85, jan./abr. 2011 85