Você está na página 1de 10

CURRÍCULO E CONHECIMENTO ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE ALGUMAS RELAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

CURRÍCULO E CONHECIMENTO ESCOLAR:


UMA REFLEXÃO SOBRE ALGUMAS
RELAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS
Curriculum and school knowledge: a refection about some relationships
between theory and practice

ANDRETTA, F. C.
Recebimento: 22/10/2013 - Aceite: 06/12/2013

RESUMO: O presente artigo objetiva promover uma refexão sobre as relações


entre currículo e conhecimento escolar, olhando para o modo pelo qual essas
relações infuenciam os processos educativos e o cotidiano da escola. Num
primeiro momento, destacam-se as diferenças entre conhecimento curricular
ou escolar e conhecimento não-escolar. Em seguida, considerando a impor-
tância da produção dos saberes na escola e os problemas que interferem neste
processo, apresenta-se, baseando-se em diversos autores, algumas concepções
sobre currículo. A partir das teorias de currículo surgidas no início do século
XX propõe-se compreender a relação existente entre currículo e conhecimento.
Tendo em vista que o currículo infuencia a ormação das pessoas e, também,
que ele é determinante no desenvolvimento do processo de aprendizagem e
produção do conhecimento nas dimensões individual e social, az-se necessário
alguns questionamentos a respeito, os quais são apresentados no decorrer deste
artigo. Após o estudo realizado em diálogo com diferentes autores na área de
Estudos Curriculares pode-se ter uma visão mais ampla sobre a importância
e a infuência que o currículo exerce na vida das pessoas, principalmente no
que diz respeito à constituição do conhecimento escolar.
Palavras-chave: Escola. Currículo. Conhecimento Escolar.

ABSTRACT: This article aims to promote a refection on the relationship


between curriculum and school knowledge, looking at how this relationship
infuences the educative process and the school routine. Firstly, the dierences
between curricular or educational knowledge and non-educational knowledge
are highlighted. Subsequently, considering the importance of knowledge
production in the school and the problems that interfere in this process, some
conceptions of curriculum based on several authors are presented. From the
curriculum theories at the beginning of the XX century, a comprehension of
the relation between curriculum and knowledge is proposed. Taking into ac-
count that the curriculum infuences people’s education and is also decisive

PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013 93


Fabíola Carla Andretta Teli

at the learning process development and knowledge production in individual


and social ambit, some questions come up, which are addressed in this article.
After the study performed in a dialogue with different authors in the Cur-
ricular Study eld, a broader perspective o importance and infuence that the
curriculum can have on people’s lives was achieved, especially regarding the
school knowledge constitution.
Keywords: School. Curriculum. School Knowledge.

Introdução produção de saberes na escola, uma vez que


a escola constitui-se “no lócus privilegiado
O presente artigo, composto por três se- de um conjunto de atividades que, de forma
ções, objetiva promover uma refexão sobre metódica, continuada e sistemática, responde
as relações entre currículo e conhecimento pela formação inicial da pessoa, permitindo-
escolar, olhando para o modo pelo qual essas lhe posicionar-se frente ao mundo.” (DIAS,
relações infuenciam os processos educativos 2008 p. 158). Nesse sentido, conforme argu-
e o cotidiano da escola. Num primeiro mo- menta Libâneo (2002), na escola, produzem-
mento discute-se o conhecimento escolar e se saberes cientícos ou não, sistematizados
os saberes produzidos na escola, a partir dos ou não, conduzidos por professores e alunos.
quais são apresentados alguns questiona- No entanto, os resultados de pesquisas têm
mentos sobre os sujeitos e as infuências que mostrado que, em geral, crianças e jovens
permeiam o processo de construção do co- concluem suas etapas escolares sem de-
nhecimento escolar. Em diálogo com diver- monstrarem grandes avanços da qualidade da
sos autores, mais diretamente com Michael aprendizagem escolar, esta que é tão almejada
Young, é possível identicar as dierenças pela sociedade.
entre conhecimento curricular ou escolar e Diante dessa discussão, novos questio-
o conhecimento não-escolar. Na sequência, namentos emergem, dentre eles: Seria res-
buscando dar continuidade a temática do ponsabilidade dos professores promover a
conhecimento escolar e voltando o olhar às qualidade da aprendizagem escolar? Seria,
questões inerentes ao currículo, discorre-se talvez, por que muitos pais de estudantes,
sobre os enlaces entre currículo e conheci- na maioria das vezes, com pouca instrução
mento, baseando-se em uma perspectiva que escolar, acreditam que o importante para seus
aborda a compreensão dessa relação. Para lhos é aprender a ler, escrever e calcular?
tanto, inicia-se pelos trabalhos de Bobbit até Esses pais, por essa condição, têm possibili-
chegar às análises propostas por Young, que dade de acompanhar os processos de ensino
servem de base para fundamentar as discus- e aprendizagem dos seus lhos e perceber
sões propostas neste artigo. que a formação escolar vai além dessas três
habilidades básicas?
Sobre isso, ressalta-se que é inegável
Conhecimento escolar e que os pais, muitas vezes, desconhecem os
conhecimento não-escolar: problemas que permeiam o ambiente escolar,
uma breve introdução principalmente no que diz respeito à forma-
ção dos professores. Para Libâneo (2002, p.
Abordar o tema do conhecimento es- 13), “a precariedade da ormação prossional
colar pressupõe uma refexão a respeito da dos professores está implicada nos baixos

94 PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013


CURRÍCULO E CONHECIMENTO ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE ALGUMAS RELAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

resultados da aprendizagem escolar”. De- mento escolar pelos estudantes envolvidos


ciências de ormação inicial, insuciência nesse processo.
na formação continuada, atreladas a um Fetzner e Souza (2012, p. 685, apud AP-
contexto de diversos fatos à realidade que PLE, 1989) armam que se “entendemos os
atinge a escola hoje resultaram, como aponta conhecimentos escolares como conhecimen-
Libâneo (2002, p. 14), “num grande contin- tos em disputa”, será mais fácil promover um
gente de professores mal preparados para as debate dos conteúdos desenvolvidos na esco-
exigências mínimas da prossão (domínio la, tornando-os mais expressivos no coletivo
dos conteúdos, sólida cultura geral, domínio social. Nesse sentido, retomam as habilidades
dos procedimentos de docência, bom senso de ler, escrever e calcular como ferramenta
pedagógico)”. do saber para entender a sociedade e não
São preocupantes os problemas relativos somente para seu m.
à formação de professores, pois implicam Nesta perspectiva, esses autores consi-
em diculdades de como lidar com as mais deram que compreender essas habilidades
dierentes situações que se azem presentes colabora para a separação entre as questões:
na escola, além dos refexos que reproduzem “O que azer? Por que azer? Como azer?”
sobre a prática pedagógica na sala de aula e (FETZNER; SOUZA, 2012, p. 685). Sem dú-
a interferência à elaboração de uma proposta vida, estas indagações orientam as discussões
curricular, por exemplo. Sabe-se ainda que, sobre currículo, suas relações com a didática
neste cenário educacional, predomina uma e, para além, infuenciam a aprendizagem.
pedagogia tradicional de ensino em que boa Galian (2011, p. 765), ao azer uma refe-
parte dos professores não se preocupam em xão sobre a relevância do conhecimento esco-
converter suas disciplinas em saberes peda- lar, argumenta que “à escola cabe transmitir
gógicos e, também, em conectar estes saberes uma seleção desse saber que deveria permitir
às aplicações sociais, as quais os estudantes o uso, a compreensão e o questionamento das
estão inseridos. inormações e dos instrumentos disponíveis
No entanto, conforme relata Libâneo na sociedade”. Assim, vale destacar que
(2002), a responsabilidade por esses proble- “a escola pública faz sentido à medida que
mas da educação brasileira não é exclusiva do consiga realizar seu trabalho especíco, de
professor. Sabe-se que esses problemas exis- conhecimento e de ampliação de horizontes,
tem, mas por detrás do declínio da qualidade de compreensão de mundo.” (SAMPAIO,
de aprendizagem escolar, há outros fatores 1998, p. 22).
relevantes. Dentre eles, políticas educacio- Young (2007), ao escrever seu artigo
nais mal desenvolvidas, baixa remuneração intitulado “Para que servem as escolas?”,
dos proessores, insuciência de inraestru- promove uma discussão sobre a diferenciação
tura das escolas e, sobretudo, de condições do conhecimento curricular ou escolar e co-
mínimas de trabalho do professor e demais nhecimento não-escolar, a qual será abordada
prossionais da escola. Além disso, a alta de neste momento. Quando o autor reerencia
coordenação adequada e acompanhamento escolaridade ao termo “transmissão de co-
pedagógico dos trabalhos realizados na es- nhecimento”, confere à palavra a transmissão
cola contribuem para agravar esta conjuntura. de um signicado dierente ao que encon-
Diante do exposto, ca evidente que a prá- tramos no dicionário, não é apenas a “ação
tica pedagógica nesse contexto, com certeza, e/ou efeito de transmitir ou comunicar o
interere e reproduz refexos signicativos no conhecimento1”, uma vez que subentende “o
que diz respeito à constituição do conheci- envolvimento ativo do aprendiz no processo

PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013 95


Fabíola Carla Andretta Teli

de aquisição do conhecimento” (YOUNG, objetivam transmitir tal conhecimento. As


2007, p. 1293). Neste sentido, o autor nos escolas, por sua vez, necessitam de pro-
instiga a pensar que conhecimento cabe à fessores que tenham se apropriado desse
escola transmitir. Que tipo de conhecimento conhecimento especializado, caso contrário
é esse? Qual é o, então, chamado conheci- não faria sentido dizer que a escola capacita
mento escolar? as pessoas a adquirir o conhecimento que não
Considerando que há um conhecimen- pode ser adquirido fora dela.
to pelo qual a escola compromete-se em De acordo com Young (2007, p.1295), no
abordar, Young (2007) preconiza que, no processo de apropriação do conhecimento
campo educacional, alguns conhecimentos poderoso, as relações que se estabelecem
são mais importantes e valem mais do que entre professores e alunos apresentam algu-
outros. Aspecto esse que tem servido de base mas especicidades, dentre elas, a dierença
para diferenciar conhecimento curricular (ou das relações entre colegas e, portanto, hie-
escolar) e conhecimento não-escolar. Para o rárquicas.
autor, “existe algo no conhecimento escolar Diferentemente do que sugerem algumas
ou curricular que possibilita a aquisição de políticas governamentais recentes, elas não
alguns tipos de conhecimento” (YOUNG, serão baseadas em escolhas do aluno, pois,
2007, p. 1294). em muitos casos, o mesmo pode não ter o
Ao questionar sobre “Para que servem conhecimento prévio necessário para fazer
as escolas?”, Young (2007, p. 1294) arma tais escolhas.
que “elas capacitam ou podem capacitar Em contrapartida, Young explica que o
jovens a adquirir o conhecimento que, para fato do estudante não dispor do conhecimento
a maioria deles, não pode ser adquirido em prévio necessário para fazer escolhas, não
casa ou em sua comunidade, e para adultos, signica que as escolas não devam considerar
em seus locais de trabalho”. Portanto, tal co- a bagagem e o conhecimento trazido pelos
nhecimento, nessa perspectiva, assume uma estudantes à sala de aula. Essa “autoridade”
natureza distinta, que é a de conhecimento do professor em conduzir por outro ângulo é
curricular ou escolar. Esse conhecimento é essencial à instrução da educação pela escola.
denominado por Young (2007) de “conhe-
Retomando o ponto de partida referente
cimento poderoso”, que refere-se ao que
à diferenciação entre conhecimento escolar
o conhecimento realmente tem o poder de
e conhecimento não-escolar, cabe ponderar
fazer, ou seja, proporcionar um novo jeito
a importância de como o conhecimento
de pensar sobre o mundo.
escolar é e deve, de fato, ser diferente do
Em síntese, embora muitos pais aceitam não-escolar. Para Young (2007), a diferença
e se preocupam com o que seus lhos desen- básica entre tais conhecimentos relaciona-se
volvem na escola como habilidades mínimas ao fato de que o conhecimento não-escolar,
de leitura, escrita e cálculo, eles não deixam que é dependente do contexto, direciona-se
de esperar que seus filhos adquiram, de à resolução de problemas especicamente
acordo com Young (2007), o conhecimento cotidianos. O conhecimento escolar, que é
poderoso, conhecimento esse não acessível independente de contexto, relaciona-se com
livremente dentro de casa. as ciências. É a esse conhecimento, que inde-
Este conhecimento poderoso, ao qual pende de contexto que se adquire na escola,
se refere Young, torna-se, cada vez mais, que Young (2007) chama de conhecimento
especializado, tendo em vista que as escolas poderoso.

96 PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013


CURRÍCULO E CONHECIMENTO ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE ALGUMAS RELAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

A partir da refexão aqui proposta é possí- e aos métodos consensuais de comunidades


vel esclarecer, pautando-se na concepção de intelectuais especícas” (LOPES; MACEDO,
Michel Young, a diferença entre o conheci- 2011, p. 71). A partir de uma perspectiva
mento curricular (ou escolar) e não-escolar. que aborda a compreensão dessas relações,
O conhecimento não-escolar tem sua devida iniciada pelos trabalhos de Bobbit, em 1918,
importância, porém deve-se ter a clareza se até as análises propostas por Michel Young,
que ele se direciona a solucionar questões es- em 1971, currículo e conhecimento devem
pecícas do cotidiano. Desse modo, chama- estar atrelados de forma a educação atender
se a atenção para a expressiva relevância que um determinado objetivo, que podem diver-
o conhecimento escolar possui, pois permite gir em função da corrente teórica adotada.
universalizar diversas explicações. É essa a Assim, considera-se necessário revisitar a
função da escola: transmitir esse conheci- teoria de importantes autores no campo do
mento poderoso, o qual é capaz de ampliar o currículo, desde o início do século XX para
conhecimento individual do estudante a partir compreender a relação existente entre currí-
do que ele ainda desconhece. culo e conhecimento a partir de teóricos que
Com base no que foi discutido até aqui, a marcaram o período.
seguir serão abordadas as relações entre cur- De acordo com Lopes e Macedo (2011),
rículo e conhecimento escolar, apresentando na perspectiva instrumental expressa pela
a discussão entre o que propõem diversos teoria da eciência (BOBBIT, 1918), que
autores em diferentes momentos históricos. defendia um currículo voltado à administra-
ção escolar, o conhecimento selecionado para
este tipo de currículo deveria se direcionar à
Currículo e conhecimento formação de habilidades, objetivando produ-
escolar: algumas compreensões zir para atender a economia e a sociedade. A
teoria do conhecimento progressivista, de-
Estudos sobre currículo vêm assumindo senvolvida por John Dewey, chegou ao Brasil
importância no cenário atual da pesquisa pelo movimento da Escola Nova. Movimento
em educação, infuenciados por mudanças este que infuenciou signicativamente e
signicativas em propostas curriculares que promoveu mudanças no ensino na década
vem sendo implementadas. Isso se justica de 1920. A teoria progressivista tomava por
também pela multiplicidade de estudos que base a experiência das pessoas e objetivava
podem ser realizados no campo do currí- construir uma sociedade democrática.
culo, ao ponto que torna difícil, inclusive a Teorizando sobre a produção de conheci-
sua delimitação. De acordo com a base de mento cientíco, Bachelard deende que em
dados do Conselho Nacional de Desenvol- tal processo deve-se considerar o conheci-
vimento Cientíco e Tecnológico – CNPq2, mento prévio que os sujeitos dispõem, bem
encontram-se disponíveis cento e dezessete como suas experiências, mas chama a atenção
entradas para o descritor currículo, o que que essa ação “não se trata, portanto, de ad-
revela tamanha pluralidade de temáticas quirir uma cultura experimental, mas sim de
sobre o tema. mudar uma cultura experimental, de derrubar
Adentrando na discussão sobre as relações os obstáculos já sedimentados pela vida co-
entre currículo e conhecimento, destaca-se tidiana”. O autor, assim, aponta este desao
que, na perspectiva acadêmica, o conheci- como um obstáculo pedagógico. (BACHE-
mento é “um conjunto de concepções, ideias, LARD, 1996, p. 23). Corroborando com as
teorias, fatos e conceitos submetidos às regras ideias de Bachelard, Lopes e Macedo (2011,

PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013 97


Fabíola Carla Andretta Teli

p. 76) o “conhecimento escolar deve levar o objetivo que se pretende atingir e com o
em conta o desenvolvimento e a maturidade contexto em que são desenvolvidas.
dos alunos, suas experiências e atividades”. De acordo com Sacristán (2000), con-
Já a teoria curricular de Tyler (1949) ceber o currículo como um conjunto de
articula as técnicas ecientistas com o pen- atividades que visam transformar o mundo
samento progressivista. O autor preocupou-se signica pensar em um currículo articulado a
em denir objetivos de ensino, selecionar e uma prática refexiva e considerar ainda que
criar experiências de aprendizagem, garantin- nele interagem relações culturais e sociais.
do maior eciência para o processo e avaliar Destaca-se, então, que essa práxis não se re-
o currículo. fere tão somente a comportamentos didáticos
da sala de aula.
De acordo com Lopes e Macedo (2011,
p. 25-26), existem elementos comuns no Em ace das considerações apresentadas,
que tange as denições de currículo entre as compreende-se o currículo em um cenário
teorias de Bobbit, Dewey e Tyler. Em todas educativo complexo, no qual é necessário
elas, “é enfatizado o caráter prescritivo do conhecer práticas “políticas e administrativas
que se expressam em seu desenvolvimento,
currículo, visto como um planejamento das
às condições estruturais, organizativas, mate-
atividades da escola realizado segundo crité-
riais, dotação de professorado, à bagagem de
rios objetivos e cientícos”. Vale lembrar que
ideias e signicado que lhe dão orma e que
essas ações ainda repercutem nos métodos de
o modelam em sucessivos passos de transfor-
elaboração do currículo.
mação” (SACRISTÁN, 2000, p. 21). Nessa
A partir dos debates propostos por di- perspectiva, o signicado real do currículo
ferentes autores e das teorias apresentadas, se constrói a partir de todos esses contextos.
distintos entendimentos sobre o signicado Segundo Sacristán (2000), o cruzamento
de currículo são evidenciados. Ressalta-se, dessas práticas, distintas entre si, convergem
neste sentido, que o despontar das discussões à prática pedagógica da sala de aula que, por
na área de estudos curriculares se deu em sua vez, contribui diretamente à constituição
1971, em face do movimento da Nova So- do conhecimento escolar. Agregado a esse
ciologia da Educação (NSE), conduzido por conjunto de ações estão implícitos pressu-
Michael Young. No bojo desse movimento, postos teóricos, crenças e valores, os quais
discutiam-se questões como: “por que esses condicionam à teorização sobre o currículo.
e não outros conhecimentos estão nos currí- Para Silva (2010, p.14), a “questão central
culos? quem os dene e em avor de quem que serve de pano de fundo para qualquer
são denidos? que culturas são legitimadas teoria do currículo é a de saber qual co-
por aí?” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 29). nhecimento deve ser ensinado”. Em outras
Ou seja, segundo as autoras, foi nessa época palavras, o currículo constitui-se como o
que se passou a entender que “o currículo centro da prática pedagógica, questão essa de
não forma apenas os alunos, mas o próprio extrema relevância, pois nos permite discutir
conhecimento, a partir do momento em que e denir qual conhecimento é válido ensinar
seleciona de forma interessada aquilo que é e o que deve compor o currículo.
objeto da escolarização”. Posterior à etapa de denir quais conhe-
Prosseguindo a refexão sobre as relações cimentos que devem fazer parte do currículo
entre o currículo e o conhecimento, verica- escolar, as teorias, por sua vez, “buscam
se que tais concepções são dinâmicas, uma justicar por que “esses conhecimentos” e
vez que elas se modicam de acordo com não “aqueles” que devem ser selecionados.”

98 PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013


CURRÍCULO E CONHECIMENTO ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE ALGUMAS RELAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

(SILVA, 2010, p. 15). Ainda de acordo com o currículo é capaz de modicar compor-
esse autor, o ato de selecionar, privilegiar tamentos, conduzir caminhos e, ao mesmo
um tipo de conhecimento e destacar uma tempo, repercutir na identidade e nas práticas
identidade entre múltiplas possibilidades sociais dos sujeitos.
estabelecem relações de poder. De acordo com Young (2007, p. 1296), “as
Portanto, a compreensão das teorias de escolas nem sempre têm sucesso ao capacitar
currículo é relevante nesta discussão, uma alunos a adquirir conhecimento poderoso”.
vez que possibilita refetir a respeito das un- Ele destaca a importância da escola no que
ções que o currículo exerce sobre os sujeitos se refere à convivência e à promoção da
que serão formados segundo suas diretrizes. igualdade social com a comunidade escolar.
Em relação a isso, Silva (2010) diz que o No entanto, arma que as escolas precisam
currículo atua como instrumento modicador considerar o conhecimento como elemento
sobre o sujeito. central do currículo. O autor coloca um ques-
Considerando que o currículo infuencia a tionamento às escolas: o currículo elaborado
ormação das pessoas, pode-se armar que o “é um meio para que os alunos possam ad-
mesmo é determinante no desenvolvimento quirir conhecimento poderoso?” (YOUNG,
do processo de aprendizagem e produção 2007, p. 1297).
do conhecimento nas dimensões individual, Nessa perspectiva, Young (2007, p. 1297)
cultural e social. Sob esse aspecto Lopes e considera que para alguns estudantes social
Macedo (2011, p. 26) armam que “aprende- e economicamente menos favorecidos, parti-
se na escola não apenas o que é preciso saber cipar ativamente na escola “pode ser a única
para entrar no mundo produtivo, mas códigos oportunidade de adquirirem conhecimento
a partir dos quais deve agir em sociedade”, ou poderoso e serem capazes de caminhar, ao
seja, o desenvolvimento social do ser humano menos intelectualmente, para além de suas
é gestado também no ambiente escolar. circunstâncias locais e particulares”. Ou
Nesse sentido, Silva (2010, p. 15) ques- seja, a escola pode ser a única possibilidade
tiona: “Qual é o tipo de ser humano desejável de acesso ao conhecimento, externa ao seu
para um determinado tipo de sociedade”? contexto individual.
Destaca-se, pois, que o ser humano se consti- Sob este olhar, compreende-se que a fun-
tui e se modica de maneiras distintas. Assim, ção mais importante da escola é transmitir o
“a cada um desses modelos de ser humano conhecimento escolar, porém se o currículo
corresponderá um tipo de conhecimento, for construído em torno da experiência dos
um tipo de currículo. Além de uma questão estudantes, o mesmo não será útil. O refexo
de conhecimento, o currículo é também dessa prática seria mantê-los no mesmo cami-
uma questão de identidade” (SILVA, 2010, nho. Isso não signica construir um currículo
p.15-16). distante da realidade local dos estudantes,
Concordando com Silva (2010), Lopes e mas esse conhecimento cotidiano trazido
Macedo (2011, p. 41) apontam que o currí- pelos estudantes à escola “nunca poderá ser
culo, concebido como uma relação de poder, uma base para o currículo” (YOUNG, 2007,
“constrói a realidade, nos governa, cons- p. 1299).
trange nosso comportamento, projeta nossa Para Young (2010, p. 174), a aquisição
identidade, tudo isso produzindo sentidos”. do conhecimento é “o propósito-chave que
Isso posto, a infuência do currículo na distingue a educação (seja ela básica, pós-
formação das pessoas torna-se evidente, pois obrigatória, vocacional ou superior) de todas

PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013 99


Fabíola Carla Andretta Teli

as outras actividades”. Dessa maneira, desta- modicador, ormando, assim, não apenas
ca que este é o motivo pelo qual as discussões os estudantes, mas o próprio conhecimento.
sobre conhecimento são difíceis, não no que Dentre as infuências até aqui discutidas
diz respeito aos conhecimentos especícos, e em consonância com os autores abordados
mas aos conceitos de conhecimento implíci- no artigo, compreende-se que existe uma
tos ao currículo. relação estreita e direta entre o currículo e a
Young (2010) relata que, até o momento, constituição do conhecimento escolar pelos
foram poucas críticas na área que circuns- estudantes. O modo como a estrutura curri-
creve os estudos curriculares. No entanto, cular é elaborada e desenvolvida pela escola
demonstra preocupação com as políticas infuencia, sobretudo, na maneira pela qual o
curriculares governamentais, pois as mesmas estudante constitui o conhecimento escolar e
apresentam propósitos externos à educação, como se relaciona em sociedade. Para além,
assumindo que o emprego futuro é o que condiciona, também, a forma como o estu-
motiva os jovens a continuarem a aprender. dante compreende e pensa sobre o mundo.
Isso se conrma, pois existe uma agenda
globalmente estruturada que dene a globa-
lização como um “conjunto de dispositivos
Considerações nais
político-econômicos para a organização da
economia global, conduzido pela necessidade De acordo com o exposto, no decorrer
de manter o sistema capitalista, mais do que do texto, depreende-se que existem dois
qualquer outro conjunto de valores” (DALE, tipos de conhecimentos, o conhecimento
2004, p. 436). curricular ou escolar e o conhecimento não-
escolar, e que é responsabilidade da escola
Nesse sentido, é possível armar que o transmitir o conhecimento escolar. No en-
modo como o conhecimento escolar é produ- tanto, o conhecimento escolar não deve ser
zido na escola é infuenciado pelas relações transmitido de forma isolada, mas sim, com
sociais, econômicas e culturais. Sendo o a implementação efetiva de currículos que
conhecimento escolar a criação especíca do têm como elemento central o conhecimento.
contexto da escola, ele é mutável e, portanto, Diante disso, é papel do professor conduzir
fabricado socialmente (SANTOS, 1995). os estudantes ao processo pedagógico para
Dessa forma, é possível inferir que a escola que, efetivamente, possam construir o co-
não produz o conhecimento novo, mas ela nhecimento escolar.
reconstrói o conhecimento com os sujeitos
Considerar os conhecimentos que os estu-
no contexto. dantes já constituem e conhecem, bem como
Diante do exposto, compreende-se cur- suas experiências, sempre será relevante na
rículo como um conjunto de experiências prática pedagógica. No entanto, enquanto
vivenciadas pelo indivíduo, as quais são professores, preocupados com a formação
capazes de modicar comportamentos que de seres humanos capazes de contribuir
repercutem na identidade desse indivíduo. para uma sociedade cognitivamente melhor,
Logo, a função que o currículo exerce sobre precisamos conduzir com responsabilidade
os sujeitos no processo de aprender e conhe- o processo de elaboração e implementação
cer, bem como constituir o conhecimento de uma proposta curricular, para que esta
escolar, é explícita, pois o currículo produz possibilite ações para constituir, ampliar e
infuências diretas e signicativas na práti- promover novos conhecimentos nos estu-
ca pedagógica. Ele atua como instrumento dantes. Portanto, é necessário considerar o

100 PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013


CURRÍCULO E CONHECIMENTO ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE ALGUMAS RELAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

conjunto de práticas que compõem a escola, fazem parte sujeitos únicos (estudantes e
pois, é na escola, talvez para muitos, a única professores, principalmente) que comparti-
possibilidade para constituir esse tipo de co- lham contextos diversicados. Ou seja, para
nhecimento. Mantê-los no mesmo caminho além do ambiente escolar, o conhecimento ali
não despertaria a motivação para que tantos constituído que já sofreu, continuará sofrendo
pais se preocupassem em levar seus lhos infuências das relações sociais, econômicas
às escolas. e culturais. Portanto, o conhecimento se mo-
Entretanto, é preciso olhar para a prática dica, se produz e se reconstrói socialmente.
pedagógica da sala de aula e, sem exceder em E, por m, a partir da refexão apresentada
criticidade, questionar: estão os professores neste artigo, compreende-se que as lacunas na
preparados para promover a formação que ormação dos proessores têm se refetido no
visa constituir o conhecimento escolar pre- âmbito da prática pedagógica na sala de aula
conizada pelas atuais propostas curriculares? e na escola com um todo e, por conseguinte,
qual o nível de participação dos professores tem infuenciado a apropriação do conhe-
na elaboração das propostas curriculares cimento escolar e, portanto, na qualidade
colocadas em prática nas escolas? da aprendizagem dos estudantes. Assim,
Nesta perspectiva, discutir o tema cur- enfatiza-se a necessidade de se repensar,
rículo e suas relações com o conhecimento também, os processos de formação de profes-
escolar transmitido pela escola é complexo, sores, inicial ou continuada, como uma forma
pois cada proposta curricular seleciona e de colaborar com a escola em seus desaos.
organiza seus conteúdos. A cada estrutura

NOTAS
1
Disponível em: <http://www.dicio.com.br/transmissao/>. Acesso em: 20.ago.2013.
2
Lopes e Macedo, 2010, p.17

AUTOR

Fabíola Carla Andretta Teli - Licenciada em Matemática – URI Erechim - Universidade


Federal da Fronteira Sul – UFFS – Campus Erechim - Técnica Administrativa em Educação
- Mestranda em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Chapecó. Mem-
bro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Matemática e Tecnologias – GEPEM@T
– UFFS/Erechim. - E-mail: fabicarla.andretta@hotmail.com

REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A ormação do espírito científco: contribuição para uma psicanálise do


conhecimento. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013 101


Fabíola Carla Andretta Teli

DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “cultura educacional


mundial comum” ou localizando uma “agenda globalmente estruturada para a educação”?
Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, 2004.
DIAS, A. A. A escola como espaço de socialização da cultura em direitos humanos. In: Zenaide,
Maria de Nazaré Tavares, et al. Direitos humanos: capacitação de educadores. Fundamentos
Culturais e educacionais da educação em direitos humanos. João Pessoa: Editora Universitária
da UFPB, 2008, v. 2, p. 157-161.
FETZNER, A. R.; SOUZA, M. E. V. Concepções de conhecimento escolar: potencialidades do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência. Educação e Pesquisa, São Paulo,
v. 38, n. 03, p. 683-694, 2012.
GALIAN, C. V. A recontextualização e o nível de exigência conceitual do conhecimento
escolar. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n 4, p. 763-778, 2011.
LIBÂNEO, J. C. Produção de saberes na escola: suspeitas e apostas. In: SILVA, Aida Maria
Monteiro et al. Didática, currículo e saberes escolares. 2 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p.
11-45.
LOPES, A. C.; MACEDO, E. Teorias de Currículo. 1 ed. São Paulo: Cortez, 2011.
SACRISTÁN, G., J. O currículo: uma refexão sobre a prática. 3 ed. Porto Alegre: Artmed,
2000.
SAMPAIO, M. de M. F. Um gosto amargo de escola: relações entre currículo, ensino e
fracasso escolar. São Paulo, EDUC, 1998.
SANTOS, L. L. O processo de produção do conhecimento escolar e a didática. In: MOREIRA,
Antônio Flávio Barbosa. Conhecimento Educacional e formação do professor. Campinas:
Papirus, 1995, p. 27-37.
SILVA, T. T. da. Documentos de Identidade: Uma introdução às teorias do currículo. 3 ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
YOUNG, M. Para que servem as escolas? Educação e Sociedade, Campinas, vol. 28, n 101,
p. 1287-1302, 2007.
YOUNG, M. F. D. Conhecimento e Currículo: Do socioconstrutivismo ao realismo social
na sociologia da educação. Portugal: Porto Editora, 2010.

102 PERSPECTIVA, Erechim. v.37, n.140, p. 93-102, dezembro/2013

Você também pode gostar