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CAMINHOS TRILHADOS

NA LUTA
ANTIRRACISTA
Zélia Amador de Deus

R Cultura
Negra e
o Identidades autêntica
de Deus
Zélia Amador
Copyright@ 2020 SUMÁRIO
parte desta publicaçáo
reservadospela AutênticaEditora Ltda. Nenhuma
Todosos direitos seja por meios
mecânicos, eletrônicos. seja via cópia xerográfica, sem a
reproduzida.
poderáser
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autonzaçà0 prévia

7 Nota da Autora
DA COLEOO Bruna Emanuele Fernandes
NilmaLino Gomes Carla Neves 17 Prefácio: Zélia Amador de Deus, a Ananse da/na Amazônia
c APA Jane Felipe Beltrão
(Universidade de Coimbra);
Marta Araújo Alberto Bittencourt
e Silva (UFSCAR);
Petronilha Beatriz Gonçalves (Sobre ilustração de EV-DA/Shutterstock)
Emerson dos Santos (UEPJ);Maria
Renato
(AJC Minas);
Nazareth Soares Fonseca DIAGRAMAÇÃO
21 Apresentação
Kabenge/e Munanga (USP) WaldêniaAlvarenga
Nilma Lino Gomes
Repne Dias
CeciliaMartins

29 Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará

DadosIntemacionaisde Catalogação na Publicação (CIP) 33 Regidos pelo signo da violência:


(CâmaraBrasileira do Livro, SP, Brasil)
as dores do racismo e da discriminação racial
Deus, Zélia Amador de
Caminhostrilhadosna luta antirracista/ Zélia Amador de Deus . —1. ed.
43 O corpo negro como marca identitária na diáspora africana
BeloHorizonte: Autêntica,2020. —(Coleçáo Cultura Negra e Identidades)

ISBN 978-85-513-0712-0
51 Espaços africanizados do Brasil: algumas referências
1. Anttrraasmo- Brasil2. Brasil - Relações raciais 3. Desigualdades sociais de resistências, sobrevivências e reinvenções
4. Dtscnmnaçáoracial5. Negros - Identidade racial 6. Racismo - Brasil I. Título.
II. Série.
65 Os desafios da academia frente à Lei n.0 10.639/03
20-32655 CDD-305.8009

índicespara catálogo sistemático: 77 As personas (máscaras) do racismo


I. Racismo: Relaçóesraciais : Sociologia 305.8009

B" •Bibliotecána- CRB--V10014 89 A travessia: a saga do movimento negro brasileiro contemporâneo

99 Políticas de ação afirmativa como


GRUPO AUTÊNTICA estratégia de construção da igualdade racial
Belo Horizonte
Sáo Paulo
RuaCarlosTurre 420
Av. Paulista,2.073 . Conjunto Naoonal
31140-520 Hvsal .230 andar . Conj. 2310-2312
Belo Horizonte. MG
CerqueiraCésar . 01311.940 . Sáo Paulo . SP
rel.: (55 11) 30344468
vvw.grupoautentica.corn .br
Nota da autora

Ninguém é melhor do que tu! Ninguém!


Francisca Amador de Deus

Lembro-me de que, desde muito cedo, minha avó me dizia que eu


era preta, mas que não deveria me "abaixar",porque ninguém era melhor
que eu. Nasci no meio de uma fazenda de gado bovino do Marajó. No
tempo em que nasci, era município de Soure, hoje, é município de Salva-
terra. Minha mãe engravidou na adolescência;quando eu nasci, ela havia
acabado de completar 15 anos. Ela fez 15 anos em setembro; pouco mais
de um mês depois, em outubro, nasci. Minha avó ficou muito desgostosa,
e dali em diante meteu uma ideia na cabeça:tinha que sair daquele lugar,
pois eu teria que ter um outro destino, diferente do destino de minha
mãe. Deveria ir para a cidade estudar. Meu avô era vaqueiro da fazenda
e minha avó trabalhava no rancho, fazendo comida e lavando roupa para
os trabalhadores da fazenda.
Ideia na cabeça, minha avó era persistente: foi juntando um di-
nheirinho aqui, outro ali, e assim, quando eu tinha 1 ano e 6 meses, ela
comandou a ida para Belém. A missão era uma só: eu não deveria ser
criada naquele ambiente. Migramos para Belém.Essa história eu sei de
tanto que ela contava.
Creio que a chegada à Belémdeve ter sido traumática, mas minha avó
já tinha parentes que moravam em uma periferia da cidade. Quando me en-
tendi, achei que era o fim da cidade: sem serviço de saneamento, sem água
encanada, sem luz elétrica e com um parco serviço de transporte público.
Hoje, eu imagino o quanto deve ter sido duro esse corte, essa
mudança. A maior dificuldade talvez se devesse ao fato de, à exceção
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chamasse de mãe - portanto,
me pedia para que não a
de minha mãe (que e meu pai, 0 meu
avô), que estudara até a ordem das Vicentinas. Instituto Catarina Labouré era o nome do
colégio,
minha avó,
minha mãe era Fundamental 1, meus avós eram anal_ que tinha convénio com o governo do estado para atender as crianças do
série primária, hoje Ensino bairro. O colégio, como dizíamos, mesmo mantido pelo estado, cobrava
segunda de casa para trabalhar, aprendeu a
Meu avô, como precisava sair uma pequena mensalidade (disse, pequena, mas, para o bolso de minha
fabetos. e fazer contas; minha avó
ônibus, contar dinheiro
reconhecer as linhas de das notas do dinheiro. família, pesava).
sequer reconhecia o valor
se recusavaa aprender, em casa de família. Era Enfim, afastei-me da rua em que morava, pois, o colégio ficava —e
minha mãe foi trabalhar
Ao chegarà Belém, Tinha folga de quinze ainda fica —na avenida mais importante do bairro. O uniforme tinha que
regime de semiescravidão.
uma adolescenteem - grande folga. Mais ser impecável. Todos os dias, a caminho do colégio,eu tinha que escutar
domingos, a partir das 16 horas
em quinze dias, aos o coro de "nega do batuque". Não me importava muito, pois, eu adorava
achava isso um grande absurdo, mas essa era
tarde,quando me entendi, o batuque. Havia dois terreiros perto de casa e eu não perdia nenhum dia
contrapartida,o salário mal dava para ela, portanto,
a regrado jogo.Em de toque, achava lindo ver as pessoas dançando. Meu sonho era dançar
financeiramentemeus avós. Minha avó lavava roupa
mal conseguiaajudar igual, então, isso para mim não era ofensa. Mas não custou muito e veio
trabalhar como braçal em uma empreiteira
para fora e meu avô passou a a "nega do cabelo de palha de aço".Aí foi demais, aí me ofendi e logo veio
Trabalho pesado, ele abria buracos para
que faziao saneamento de Belém. à minha cabeça a fala constante de minha avó: "Não te abaixa, ninguém
a sol. Tinha as mãos cheias de calos,
enterrar os tubos, trabalhava de sol é melhor do que tu!". Ódio! Queria pegar a ofensora ou o ofensor, e, no
acordavatodos os dias às quatro da manhã. dia que consegui, descobri que era uma ofensora. Dei-lhe uns tabefes. Era
juntar um dinheiri-
O tempo foi passando. Quando conseguiram a Raimunda das Graças, que Deus a tenha. Mais tarde ficamos amigas,
ali que eu vivi por
nho, compraramum barraco de dois cómodos, e foi e ela passou a me respeitar. Éramos da mesma turma e eu só tirava dez
muito tempo. Para a escola, só fui aos 7 anos, pois eu era muito alérgica, em todas as matérias, até no catecismo;tinha boa memória e meu nome
alergiaalimentar que me acompanha até hoje. Então, minha avó me começava com "Z",então, seguindo a ordem alfabética, quando chegava
matriculouem uma escolaparticular,Externato Santo Expedito. A pro- a minha vez, eu já havia decorado tudo.
fessora—LourdesDayse Gonçalves Dias, Dona Dayse —era normalista e Em sala de aula, eu era a negra respeitada porque tirava notas boas
consideradaboa docente.Mantinha uma sala de aula, classe multisseriada —era negra, mas inteligente. Assim, eu ia levando. Era muito boa em
em que trabalhava desde a alfabetização até a quarta série primária, hoje, Matemática e ajudava a freira que era minha professora, Irmã Zoé. A
Fundamental. ajuda consistia em sentar ao lado das colegas fracas em Matemática e
Aqui,façouma breve digressão:a primeira vez que ouvi falar mal ajudá-las a fazer a tarefa. Irmã Zoé dizia que eu era sua monitora. Ela era
da classemultisseriada,leveium susto, pois eu havia me beneficiado dela. branca, muito branca, mas parecia gostar de mim, até que, ainda naquele
Explico:era uma criança muito atenta e bastante observadora e, por isso, ano, aconteceu. Aquele talvez tenha sido o fato mais marcante em minha
aprendiatudo, tanto o conteúdo da minha série quanto o das outras séries. vida de pessoa preta; por muito tempo fiquei remoendo e não o relatava,
Feitaa digressão,retorno à minha narrativa. Em um ano me alfabetizei, mantinha um silêncio sobre isso, mas hoje não faz mais diferença.
e fiz o primeiro ano em seguida. No ano seguinte cursei a segunda série. Com efeito, eis o fato: no meio da aula, mais ou menos no meio do
Devodizer que, na escola de Dona Dayse, eu não percebia o ra- ano, uma moça botou o rosto na porta e pediu licença à professora para
cismo.Quasetodasas criançaseram negras (pretas ou pardas); brancas, falar com a turma. Permissão dada, a moça falou: "Vai haver uma dança
nenhuma. Comecei a me dar conta do racismo quando fui para o colégio, chamada macumba, e eu estou passando nas salas para escolher meninas
na terceirasérie.No bairro onde eu morava não havia que queiram participar. A música da dança é 'La Bamba'"."La Bamba"
grupo escolar pú-
blico, mas existia o colégio das é uma música folclórica mexicana que surgiu no início do século XX
freiras, Irmãs Luísa de Marillac, ligadas à

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sucesso. Meu co_
Lopezl fazia muito
A gravação de Trini disso, a dança chamava-se Coitada da Benedita! Cheguei em casa triste e pensativa, e contei
em Veracruz. a música e, além o
Eu adorava
ração palpitou. meu sonho. Achava
lindo aquele jeito caso para minha avó, que se pôs a brigar comigo. Eu não tinha nada que
jeito de dançar que era 0
macumba, apenas com os pés. me levantar, pois ainda iria era arranjar despesa. Pobre não entra nessas
com o corpo inteiro, não
de dançar sequer percebi o racismo contido no título da coisas, essas freiras querem é dinheiro. Depois, ela virou para mim e disse:
Naquelemomento, qual reside o letramento racista de "Tu não és feia, ela disse isso porque tu és preta". Essa frase nunca mais
macumba - coisa de preto, na
dança O que é racismoestrutural?.2 Enfim, saiu da minha cabeça. Eu sou preta! Já não bastava ser pobre, eu também
Almeida em sua obra
que fala Sílvio a freira pediu que ficassem era preta, e nunca deixei de ser preta. Levei minha pretura comigo para a
após a fala da moça,
retomando a narrativa, da dança. Fui uma das vida. Continuei no colégio, no ano seguinte fiz a quarta série, e depois a
que quisessem participar
de pé todas as crianças levantaram. A freira foi quinta. Fiz o Exame de Admissão e entrei para o Instituto de Educação do
eu, outras meninas se
primeiras e, assim como Pará. Precisava de um diploma rápido, pois sabia que tinha que trabalhar
cada uma das escolhidas era convidada a
escolhendo uma por uma, e logo —aliás, nessa época eu já dava aula particular de Matemática para
todas que haviam ficado de pé, menos eu, que
se sentar. Escolheu quase conseguir dinheiro para pagar a passagem de ônibus para ir à escola, que
mandasse eu me sentar. Sentei, inconforma-
continuei de pé até que ela ficava no centro da cidade.
aula para mim. Não conseguia mais pensar
da. Dali em diante acabou a Continuei preta. Sei que minha presença incomodava, mas eu me
eu não havia sido escolhida. Um tempo
em nada, apenas no fato de que impunha porque era boa aluna. Quando estava na quarta série ginasial,
saiu da sala.
depois bateu o sino, e toda a turma participei de um campeonato entre escolas, que tinha perguntas sobre as
na sala, e me plantei na
Na verdade, quase toda a turma. Eu fiquei matérias História, Geografia e Ciências. Eu respondia as questões de Ciên-
senhora não me escolheu?". Senti,
frente da freira, perguntando: "Por que a cias. Cada escola participante inscrevia uma equipe de três alunos que, toda
me dizer, começou a dar
naquele momento, que ela gaguejou. Não queria quarta-feira, às 20 horas, se apresentava em um programa da TV Marajoara,
minha avó: "Ninguém
desculpas.Naquele instante me lembrei das aulas de a primeira emissora de televisão instalada em Belém. O certame se chamava
é melhor do que tu! E mais: se alguém quer parecer melhor do que tu, olha
Campeonato Colegial GuaraSuco, por ser patrocinado por uma fábrica de
para o meio da testa da pessoa, encara e pensa 'Ninguém é melhor do que refrigerantes local. Naquele ano, ganhei um fã clube com direito a torcida e
eu'. Pensa com toda a força e imagina aquela pessoa fazendo tudo o que tu tudo. Quase fui invicta, pois perdi apenas uma questão. Choro, choro e mais
fazes —come igual a ti, descome igual a ti —,aí você se sente à vontade". E choro, até que minha avó me disse: "Para com isto, não morreu ninguém".
assim fiz. Queria uma resposta, fosse qual fosse, até que ela me respondeu E eu pensei: É, de fato, não morreu ninguém. A vida segue.
meio que pouco à vontade, quase gaguejando: "É que na turma nós temos Estou me estendendo nesta narrativa pessoal para mostrar que o
crianças de todo jeito, umas ajeitadinhas, outras menos, e a gente escolhe fato de ser preta sempre caminhou comigo; em todos os lugares em que
para essas atividades as mais ajeitadinhas, as mais bonitinhas". Levei um estive nunca deixei de ser preta, e sempre acalentei a ideia de contribuir
susto: quer dizer então que eu era feia. Olhei bem para ela e disse: "Não para a criação de um mundo melhor. Nessa época, chegou para a paróquia
sou mais sua monitora". Fui para casa pensando: em absoluto, eu não me da Sacramenta um padre holandês da ordem dos Crúzios, simpatizante
achava feia —na verdade, pelo contrário —,mas a minha maior surpresa da Teologia da Libertação. Fiquei amiga do padre, e criamos um grupo de
foi que, entre as meninas que ela escolheu, tinha uma que eu achava muito jovens que se opunha ao já existente, de perfil muito carola. O nosso era
feia, a Benedita, pois ela tinha uma cara de cavalo. avançado, fazíamos grupos de estudos sobre as injustiças sociais; com a
ajuda do padre, discutíamos várias coisas, mas eu, como preta, até então
Disponívelem: <http://bit.Iy/383UKTu>.Acesso
em: 25 jul. 2019.
só ouvia falar de luta racial nos Estados Unidos. Muitas vezes, falei no
2 ALMEIDA, Silvio. O que é racismo grupo sobre a existência de preconceito contra negros no Brasil, mas
estrutural? Belo Horizonte. Letramento, 2018.

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que aquilo era
pois todos achavam
0 que eu dizia, voltar. Eu era preta e mulher, e não tinha como me tornar proletária ou
ninguémconsiderava
cabeça. camponesa. Naquele momento, eu exibia minha negritude e usava um
coisa de minha no Brasil, estávamos em plena
veio maio de 1968.Aqui, cabelo blackpower. Black is beautiful! O período também coincidia com
Eisque migrando para 0 movi_
paróquia acabou
militar,e 0 grupo da liderado pelo partido as independências dos países africanos do jugo do colonialismo europeu.
ditadura
secundarista,naquelemomento
Eu vibrava com Amílcar Cabral e Agostinho Neto. Enfim, ganhei novos
mentoestudantil do movimento estudantil secunda _
Ação Popular(AP).Nós, ídolos, e a luta racial se tornava mais próxima de mim.
clandestino de Ação Secundarista Paraense
uma organização, a Frente Um belo dia, encontrei com uma amiga da Escola de Teatro que
rista, criamos Estudantes Secundaristas do Pará
à União dos também havia sido da AP. Ela me convidou para um outro partido
(FASPA),para se opor Jarbas Passarinho.
um preposto do coronel clandestino que estava chegando à Belém e se chamava Vanguarda
(UESP),presididapor vieram as ocupações da
clandestina. Em seguida Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Com esse nome,
Fazíamospolítica
repressão, enfim... Mais tarde, não tão mais
universidade,as passeatas,a pensei, lá deve ser discutida a questão racial. Aceitei, mas ledo engano:
na AP, que também não tratava da questão apesar do nome Palmares, a questão era de classe, e mais uma vez me
tarde, lá estava eu militando
sendo meu incómodo. A questão era de classe, frustrei. Definitivamente a esquerda não se importava com a questão
racial, esta que continuava
fazer a revolução. E eu ficava imaginando racial. Ficamos pouco tempo na VAR,pois, ela acabou. Lideranças de-
não de raça, e tínhamos que
eu já me via como mulher também, então, a sapareceram ou foram presas, mortas. Um dia, depois de algum tempo,
com meus botões: e nós? Aí
de classe e depois discutimos o pro- fiquei sabendo por um amigo o porquê do nome Palmares: ele me disse
sequênciaera: fazemosa revolução
o problema do negro, o problema que foi resultado de uma discussão, que aconteceu em um congresso,
blema do negro. Era assim que diziam:
mas continuava militando,
da mulher. Eu ficavadeveras incomodada, entre duas teses. Uma tese queria que o nome fosse Canudos, a outra,
sem injustiça. O tempo
afinal,queria mudar o mundo, queria um mundo Palmares, dois grandes movimentos de rebeldia que aconteceram no
foi passando, e eu estudando e militando. Brasil;ganhou Palmares porque Canudos tinha um caráter messiânico,
Antes de entrar para a universidade, levei um ano para me decidir enquanto Palmares era mais revolucionário. De fato, a esquerda branca
se fazia ou não o vestibular. Eu já estava trabalhando, pois terminei o brasileira não via importância na questão racial, tampouco na questão
pedagógicoe fiz um concurso público do estado, e, em 1970, já estava das mulheres. O importante era a luta de classes. Porém, eu continuava
dando aula. Houveum encontro do partido que até então se dizia mar- mulher e preta.
xista-leninista,mas que a partir desse dito encontro passava a ser maoísta Com efeito, a vida seguia, e eu continuava procurando meu espaço
e bradava que todos os militantes deviam se proletarizar. Fiquei besta! de militância. Entrei para a universidade como professora em 1978.No
Como que eu ia frustrar o sonho de minha avó? Além disso, proletária meu departamento eu era a única mulher negra em um lugar repleto de
eu já era, e muito. Olhava para aquelas pessoas brancas, bem-nascidas, de homens brancos e algumas mulheres brancas. E eu continuava mulher
classemédia, falando em se transformar em operárias ou camponesas. Eu e preta. Nesse momento, já havia estudado muito sobre a questão racial.
pensavacomigo:"Falasassim porque nunca passaste fome". Mesmo tendo Ao entrar na universidade, pensei, nunca vou deixar de ser preta, nunca
a certeza de que proletária ou camponesa eu jamais seria, fui ficando, e, no vou deixar de ser mulher, e essas serão sempre minhas bandeiras de luta.
ano seguinte, fiz o vestibular e entrei para cursar Licenciatura em Letras. Meu departamento, de artes e comunicação, ficava no Centro de
Ao mesmo tempo cursei Teatro,um curso livre de três anos oferecido pela Letras e Artes. Lá ocupei todos os cargos: coordenadora de curso, chefe de
Universidade Federal do Pará (UFPA). Enfim, deixei o partido. departamento e diretora do centro. Trabalheimuito, visto que, em 1980,
Continuei dando aulas, estudando, fazendo fui uma das fundadoras do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará
teatro e ajudando aqui
e ali os companheirosque queriam
a minha volta, mas eu não podia (CEDENPA). Enfim, meu espaço de luta. Continuei na universidade,

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vice-reitora, mas mal
devia. Cheguei a
mais do que quilombolas —embora só tenhamos conseguido aprová-la em 2012—,
sempre trabalhando universidade um dia viria a ser minha
a ideiade que a cujo método é o mesmo utilizado para os povos indígenas.
podia
trincheira de luta. participação importante em nível O Grupo de Estudos Afro-Amazônico criou uma Assessoria de
negro tenho uma
No movimento TrabalhoInterministerial para a Valo_ Diversidade Étnico-Racial, que só foi oficializadanesta gestão, iniciada
do Grupo de
nacional.Participei como GTI da Popu- em 2017. Quando fui convidada pelo reitor a elaborar na estrutura da
Negra, que ficou conhecido
rizaçãoda População grupo foi criado pelo presidente universidade um órgão que pensasse na diversidade e na inclusão, logo
devo dizer que esse
lação Negra.Antes foi criada a Assessoria da Diversidade e Inclusão Social (ADIS) da UFPA.
em resposta à marcha de celebração dos
FernandoHenrique Cardoso, Recentemente, a ADIS apresentou proposta de reserva de vagas para
dos Palmares. Intitulada Marcha Zumbi dos
trezentosanos de Zumbi refugiados, refugiadas e imigrantes, sendo essa proposta ampliada no
pela Vida e realizada no dia 20 de novembro
Palmarespela Cidadania e CONSEPEpela conselheira Jane Beltrão. A Resolução aprovada inclui,
exigiu políticas públicas de combate ao
de 1995,em Brasília,o evento para além de refugiados, refugiadas e migrantes, as pessoas asiladas, as
discriminação racial. O GTI foi criado em
racismoe de eliminaçãoda apátridas e as vítimas de tráfico de pessoas.
a sociedade civil.
1996 e eu dele fazia parte, representando Enfim, os parceiros foram aumentando na universidade. Os estu-
Educação e do Grupo de Políticas
No GTI,participei do Grupo de dantes que entram pelas cotas se organizam em coletivos, sobretudo as
essas políticas. Porém, na
de AçõesAfirmativas.Estudei muito sobre mulheres negras, indígenas e quilombolas, que criaram suas associaçõese
universidadeeu ainda era uma voz isolada - apesar de nunca me calar. pleiteiam fazer parte da representação estudantil nos conselhos superio-
Então,foi assim que, em 2003,em conjunto com alguns professores e res, além dos estudantes estrangeiros, advindos de convénios, que criaram
estudantes,criei o Grupo de Estudos Afro-Amazônico, na verdade o suas associações, de maneira que, hoje, a cara da UFPA é diferente do
primeiro Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros das universidades do norte que era antes das políticas de açóes afirmativas.
do país, chamado de grupo porque, conforme a estrutura da UFPA, os Os escritos deste livro consistem em uma pequena amostra das inú-
núcleos são espaços de Pós-Graduação. meras palestras ou artigos que publiquei na minha trajetória académica,
O primeiro projeto do grupo foi o de cotas para negros e negras na frutos de uma história de luta contra o racismo, porque se há uma certeza
universidade.Em 2003,demos entrada no processo de aprovação desse que carrego comigo é que sempre fui, e continuarei sendo, enquanto vida
projeto no Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE), tiver, uma mulher preta com o sonho de consertar o mundo.
entre engavetamentose reuniões que propositalmente ficavam sem quó-
rum para decisão, pois o reitor à época era contra as cotas. Porém, conse-
guirnos aprovar a proposta em 2005, embora, por embargo do Ministério
Público, ela só tenha sido efetivada em 2008. Ainda assim, a UFPA foi
a única universidadeda região Norte a ter o sistema de cotas até que o
projeto de lei aprovadopelo congresso o
tornasse obrigatório. Em 2009,
ajudei a professoraJane Beltrão a
criar reserva de vagas para povos in-
dígenas- duas vagasem cada curso
da UFPA, oferecidas para pessoas
indígenas. Essas pessoas se
inscrevem e participam de um processo
seletivoespecialcomposto de
uma redaçáo e uma entrevista para com-
provarseu pertencimento.
Aquidevo dizer que, em 2003, o Grupo de
EstudosAfro-Amazónico
apresentoua proposta de reserva de vagas para

14 15
Prefácio
Zélia Amador de Deus, a Ananse da/na Amazônia
l
Jane Felipe Beltrão

Creio que Ananse pode concordar que Zélia Amador de Deus é


uma entre muitas pessoas que, militantemente, espalha as histórias que
ela deixou, como herança, a todas(os) nós. No caso de Zélia, as histórias
escorregam, delicadamente, pelas poderosas mãos da narradora que,
incansável, a muitos encanta.2Conheço Zélia há mais de quarenta anos,
sempre atenta ao combate ao racismo e à agregação de pessoas negras
em benefício da causa, sem esquecer-se de estender os fios de sua teia de
Ananse em busca de aliadas(os) à causa entre outros segmentos sociais.
Deixei-me prender em sua teia. Ela nos leva a preparar uma sociedade
democrática e plural. Herdeira das africanidades, nascida no município
de Soure, hoje Salvaterra, no Arquipélago do Marajó, no Pará, Zélia é
mestre da oralidade. Sabemos nós que os textos "de circulação oral se
assenta[m] em torno de um eixo dinâmico e transitório, responsável por
fazer oscilar tanto seus contextos de interpretação como os de recepção e
armazenamento"? e, ao mesmo tempo, requerem da audiência memória
para nuançar e disseminar as narrativas. No Pará e na(s) Amazônia(s), as

Professora titular da UFPA.


2 Ananse, a aranha que foi capaz de tecer uma grande teia e conseguir o baú de histórias
das mãos de Kwame, permitindo que tivéssemos histórias. Ananse, a deusa, acompanhou
seus filhos espalhados pelo mundo. O mito de Ananse, originário da cultura dos povos
Fanti-Ashanti, da região do Benin, na África Ocidental, se espalhou, se renovou e se renova
em diversos lugares das Américas. Ananse, com suas teias e suas histórias, acompanhou seus
filhos na afro-diáspora (conceito cunhado por Zélia Amador de Deus no artigo "O corpo
negro como marca identitária na diáspora africana", publicado nesta coletànea).
LEITE, E. F.; FERNANDES, F. Trânsitos da voz: estudos de oralidade e literatura. Londrina:
EDUEL, 2012. p. 7.

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temas dizem respeito à negritude,
circulam e, quando os entendimento por muitos que, conscientemente ou não, reproduzem a
orais discentes são capazes
desponta. Amigas(os), colegas e sociedade, grosso modo, branca, classista e racista que afasta e corrói os
o nome de Zélia porém poucos
falas que consideram mais significativas, laços de solidariedade/sororidade que podem ser construídos entre os
de identificaras alguns de seus es_
de Zélia. A edição de povos, os grupos sociais, em busca de uma sociedade que afaste todas
nós temos acesso aos escritos
de de nossa mestra da oralidade,
acessoao pensamento as formas de intolerância, para ter Durban sempre em mente. Zélianão
critostraza público registro de passagens que deixaram
traz a lume é um venceu unicamente a travessia da Baía do Marajó - foi além, e muitas são
pois o livro que se diferenciados e por vezes
"trânsitos da voz" em tons as travessias que enfrentou, andando nas ruas, oferecendo cursos, fazendo
de ser unicamente sabe prender uma plateia,
é também atriz e conferências, atuando no teatro, sem esquecer que é mulher, é negra e é
dramáticos- afinal,a autora
adversa. A voz ganha os trânsitos dos registros amazónica. Símbolos de diferenças que os demais tentam transformar
mesmo que ela lhe seja
por caminhos "nunca antes navegados", em desigualdades e que, quando recaem sobre uma única pessoa, mal-
escritosque tambémse espalham
pois não os dominamos.
tratam, revelando desrespeito e intolerâncias, pois apontam o lugar da
de antes conquistam o privilégio desigualdade. Caro(a) leitor(a), não pense que Zélia arrefecepor conta das
As(os)leitoras(es) e as audiências
de, além de ouvi-la, lê-la narrando
histórias que precisam ser conhecidas marcas sociais da diferença: ela ressurge pleiteando políticas afirmativas
para que o respeito às diferenças de natureza
étnico-raciais sejam res- para recepcionar os vulnerabilizados, tentando convencer os incrédulos
peitadas.Os textosinformam o(a) leitor(a) sobre a criação do Centro de e racistas de que vale lutar e produzir ações contra as desigualdades e o
Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), hoje, reconhecido como racismo que assaltam nossas mentes.
Como Amador de Deus, Zélia é Ananse, aquela que nos oportuniza
um dosbraçosfortesdos movimentos negros que em muito vêm auxi-
liando na luta pelos direitos de negras(os) e pelos territórios pertencentes conhecimento académico associado à militância, suficiente para cantar:
aos coletivosnegrosno Pará.O conjunto dos textos mostra os caminhos muda, Brasil!
percorridospor ZéliaAmador de Deus, desde sua ativa participação
na III ConferênciaMundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Belém, 26 de julho de 2019.
Xenofobiae IntolerânciaCorrelata,ocorrida em Durban, na África, e
que deu origem à Declaração e ao Programa de Açâo de Durban, até as
recentes discussões que faz sobre os diversos assuntos referentes à negri-
tude, considerando os contextos e as mudanças políticas. A autora não se
intimida em falar das dores do racismo e da discriminação, estas sempre
custodiadas pela violência que não oferece trégua às(aos) filhas(os) de
Ananse e que se espalha pelo mundo a partir da
diáspora africana que
transplanta para a América e para o Caribe,
sobretudo, inúmeras et-
nias africanasque durante décadas
foram submetidas à escravidão pelo
colonizador.O lamentávelato colonial
deixa, no eixo equatorial e para
alémdele,marcasindeléveis
que, mesmo com a conquista da legislação
que insere o debate do
racismo nas escolas, ainda se fazem presentes e
dificultama transposição
das barreiras históricas que travam o combate
efetivodo racismo.O
racismo usa de várias máscaras,
em todos os se apresentandO
lugares, e, como vem
mascarado, esse disfarce dificulta seu
19
18
Apresentação

Nilma Lino Gomes l

É uma honra tornar pública uma parte da produção académica


da professora Zélia Amador de Deus, da Universidade Federal do Pará.
Este livro é uma homenagem pela grandeza do trabalho, militância, in-
tervenção política, conquistas como mulher negra, intelectual,ativista,
nascida e criada na região amazónica cuja história se confunde com as
lutas antirracistas e por democracia no país, com destaque para a região
Norte e se estendendo para outros estados e municípios brasileiros.
É também a oportunidade de homenagear em vida pessoas que aju-
dam a tornar a sociedade brasileira mais justa e menos desigual. Se hoje,
em nossa Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, no Plano Nacional de Educação e no Supremo Tribunal Federal
temos um lugar legítimo para a questão racial, é porque pessoas como a
professora Zélia existem e nunca se cansam de lutar.
Se podemos falar sobre a Lei n.0 10.639/03 —que dispõe sobre a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana
nos currículos das escolas públicas e privadas da educação básica —,a Lei
n.0 12.711/12 —de cotas sociorraciais nas Instituições Federais de Ensino
(IFES) —,a Lei n.0 12.990/14 —de cotas raciais nos concursos públicos
federais —,a Lei n.0 12.288/10 —do Estatuto da Igualdade Racial —,a
Portaria 13/2016, do Ministério da Educação - que induz a criação de
cotas raciais na pós-graduação —,e sobre outras conquistas e políticas de
igualdade racial implementadas em nosso país, é porque pessoas como a
professora Zélia denunciaram, militaram, apresentaram propostas efetivas
para a sociedade e para a universidade e concretizaram-nas, pressionaram

Professora titular emérita da Faculdadede Educaçãoda UFMG.

21
implementação de políticas
Executivo pela
Judiciário e0
negra. E 0 fazem até hoje. problemas centrais vividos por aquelas e aqueles que transformaram
Legislativo,0 e
para a população transformam a igualdade racial e o antirracismo não só em bandeiras
afirmativas de fazer do país um lugar melhor de
de e essavontade luta, mas também na sua principal razão de viver.
Essaperseverança como a escolhapolítica e a orientação de Vida
anecem mulheres negras que viv
Viver uma vida lutando contra o racismo e o machismo para que
tantas outras
de Deus e de as novas gerações negras possam usufruir dignamente do direito à vida.
de Zélia Amador Algumas são mais conhecidas, outras
amame Para que participem de uma sociedade mais justa.
educam,lutam,
compõem o Infelizmente, os índices de mortalidade dos nossos jovens negros, os
anónimas.Algumas lugares específicos sem necessaria_
outras atuam nos seus dados da violência que incide sobre a população negra, em especialsobre
do século XXI, político-organizativo, uma
presença na universidade
um vínculo as mulheres negras, e a situação de desigualdade das negras e dos negros
mente ter novas gerações negras,
as(os) estudantes
mídia. Mas será que as no mercado de trabalho revelam que ainda temos que lutar muito. As
ou na universidades conhecem e já leram os
negros das conquistas alcançadas ainda são poucas diante da forma como o racismo
cotistas,os coletivos Amador de Deus? Conhecem e
pela professora Zélia está incrustado na estrutura da nossa sociedade e articulado com o pa-
trabalhosproduzidos do eixo Sul-Sudeste do Brasil?
negros que estão fora triarcado e o capitalismo. E a professora Zélia Amador de Deus continua
leem autorase autores o trabalho da autora deste
conhecem livro lutando, reivindicando e transformando a região onde mora e o país.
Aquelase aquelesque
e fortalecidos por essa leitura. Mas os que A sua história de vida nos remete à história de muitas mulheres
certamentetémsido reeducados
perdendo a grande oportunidade de usufruir negras e pobres brasileiras. Ao ler a sua Introdução, tenho certeza de que
aindanãoconhecemestão
de uma intelectual negra e ativista cuja ação várias de nós nos identificamos com a história por ela contada. A sua
das ideias,reflexõese histórias
transformar a nossa sociedade e a univer- narrativa começa relembrando o seu nascimento, a dura condição das
políticae académicaajudoua
leitura deste livro, que traz alguns dos mulheres e dos homens negros que trabalham nas fazendas no estado
sidade na qual estudam. Por isso, a
as negras e os negros do Pará, nas quais é perceptível, até hoje, a continuidade das estruturas
seusartigos,é uma leitura obrigatória. Não só para
escravistas.Em muitos lugares do Brasil,ainda hoje os grandes latifun-
académicos,mas para todas as pessoas que querem compreender um pouco
diários e fazendeiros endinheirados desfilam a cavalo ou de carro pelas
mais sobreo pensamento negro brasileiro e o antirracismo em nosso país.
suas muitas plantações elou criações de gado e pelos seus canteiros enve-
Estapublicaçãopode ser considerada como uma autobiografia et-
nenados pelos agrotóxicos. Esses homens (e algumas mulheres), brancos,
nográfica,como a própria Zélia Amador de Deus nomeia a sua escrita em
herdeiros dos grandes senhores das casas grandes ou que se tornaram
um de seus textos.Nos oito artigos aqui reunidos, a autora apresenta, por
dimensões
novos-ricos por meio da exploração da terra e dos primeiros moradores
meio de uma produção teórica e politicamente posicionada,
por meio golpes financeiros possibilitados pelo sistema capitalistaem que
políticas,sociaise culturais que marcaram e marcam a história social e
vivemos, alimentam-se e perpetuam-se por meio do trabalho escravo,
políticabrasileiraaindapouco conhecida. É o olhar sobre essa história
da exploração dos trabalhadores e das trabalhadoras, da usurpação das
produzidopor umamulher negra, ou uma mulher preta, como a própria
terras quilombolas e indígenas do passado e do presente. É o que alicerça
Zélia faz questãode nomear a si mesma. Mas
essa jamais será uma história a sua riqueza. E se tornam intocáveis pela justiça, pois são eles que fazem
individual Ela faz parte de um coletivo,
e é construída dessa maneira. a sua própria justiça até hoje. Situação vivida pela família da professora
Como exímia narradora, que
teve o privilégio de participar como Zélia e por tantas outras do nosso país e que atinge a população negra,
protagonista
de momentosmarcantesda luta contra a ditadura militar,
do processode redemocratização os indígenas, os quilombolas, os trabalhadores do campo e tantos outros.
do país, da organização política do As nossas políticas sociais e a tentativa de construir a justiça social não
movimentonegrocontemporâneo
e da implementação das políticas de conseguiram extirpar esse grau de exploração da terra e do território da vida
igualdade racial, a
professora Zélia apresenta,
analisa e reflete sobre os
23
22
no campo brasileiro. A violência,
meio rural ou
no relato de uma experiência local, cuja publicação possibilita que a
das pessoas
que moram
continuam. Eles são estruturais e históricos. por iniciativa
e racismo tal, é preciso seja conhecida em outros lugares do país e que lhe seja feitajustiça
0 patriarcado poderá freá-los. Para só quando
uma mudança estatais, mas também pessoas narramos sobre o histórico das organizações negras no Brasil.
isso,só governamentaise "Regidos pelo signo da violência: as dores do racismo e
políticas desafio
mudançasnas que aceitem 0 de disputar da discrimi-
prudênciae perspicácia uma delas.
nação racial", de 2010, é resultado de uma apresentação no II Encontro
de coragem, apresenta da
Estelivro nos Sociedade Brasileira de Sociologia da RegiãoNorte. ZéliaAmador de Deus
desmascarar0 poder. de vida, a professora Zélia nos
narrar parte do seu percurso analisa os efeitos do racismo e da colonização sobre o corpo negro. Segundo
Ao de luta, garra e perseve_
na Introdução deste livro, a história ela, é "esse corpo que, estigmatizado pelo racismo, será a marca da discrimi-
apresenta, os sábios ensinamentos das mais
negra,principalmente nação, exposto aos castigos, aos trabalhos forçados e a toda forma de explo-
rançada mulher jovens negras não se deixem
crianças, adolescentes e ração. Por outro lado, esse mesmo corpo virá a ser instrumento de afirma-
velhas, para que as
dominar pelo racismo.
çâo de identidades no embate com os opressoresem um processo de tomada
de Deus, sua avó materna, interferiu de for- de consciência e, também, é esse mesmo corpo que poderá ser objeto de
DonaFranciscaAmador
especial da sua neta. A
de vida da sua famflia, em repulsa em um processo de autonegação" (grifos da autora).
ma enérgica na trajetória
negra que nasceu de um ventre adolescente, A reflexão sobre o corpo reaparece no artigo "O corpo negro como
criança Zélia,mais uma menina
que a força, a coragem, a sinceridade, o marca identitária na diáspora africana". Apresentado em 2011 durante o
compreendeudesdemuito cedo
do gesto deveriam fazer parte da sua XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, cujo tema era Di-
enfrentamento,o vigor da palavra e
parte da sua forma de ser e estar no versidade e (Des)igualdades, o texto trata da diáspora africananas Amé-
postura diantedavida Isso se tornou
conheça a professora Zélia Amador ricas. Para falar sobre a diáspora e a sua relação com o corpo negro, Zélia
mundo. Da sua identidade.Não há quem
na sua personalidade forte. Amador de Deus utiliza a metáfora de Ananse, mito originário da cultura
de Deus e não reconheça essas características
dos povos Fanti-Ashanti, da região do Benin, na África Ocidental.Ananse
Ao mesmo tempo, a doçura, a amizade firme e sincera, o gosto pela
é a aranha que foi capaz de tecer uma grande teia e conseguir o baú de his-
arte,o acolhimentoda maternidade e o cuidado com a família também
visíveisdessamulher guerreira. As amigas e os amigos tórias das mãos de Kwame, permitindo que tivéssemos histórias no mundo.
são características
A autora discute o corpo e a cultura como instrumentos de resistência
mais próximos são testemunhas disso.
que exercem um papel importante no processo de construção de identida-
"Ninguémé melhor do que tu." Esse ensinamento da avó Francisca
des dos africanos em condição de subalternidade. Analisa que o corpo do
acompanhaa vida, as escolhas, as recusas, as açóes políticas e académicas
africano e dos seus descendentes, para o bem ou para o mal, sempre vem à
da autora dos artigos aqui apresentados. Ele pode ser interpretado e lido nas
cena, se põe e se expõe, transforma-se em texto no discurso que enuncia e
entrelinhas dos seus artigos, na escolha das autoras e autores com os quais
anuncia. É um corpo que fala. Ao mesmo tempo que é um corpo estigmati-
trabalha. A leitora e o leitor poderão notar que algumas referências acadê-
zado pelo racismo, é também um instrumento de afirmaçãode identidades
micas são centrais no seu pensamento. Estas são sempre retomadas, e suas
no embate com os opressores em um processo de tomada de
reflexõessão apresentadasnos vários encontros, palestras e apresentações de
trabalhos em eventos científicos que
"Espaços africanizados do Brasil:algumas referênciasde resistên-
originaran-l os artigos aqui organizados. cias, sobrevivências e reinvenções", de 2012,trata da diáspora africana
No artigo "Centro de Estudos e
Defesa do Negro do Pará", de 1997, em um contexto em que a África trazida para as Américas,de alguma
fruto de uma das exposições
sobre o trabalho de militância
feitas pela autora, encontramos a sua narrativa
forma, sobreviveu e, ao mesmo tempo, funcionou como instrumento de
e de luta cotidiana desenvolvido pelo Centro as
de Estudose Defesa sobrevivência dos africanos e de seus descendentes. Nesse particular,
do Negro do Pará
(CEDENPA), a única organização em culturas de matriz africana, ao longo do tempo, foram e são utilizadas
Belémdo Parácriadae
fundada por negros, da qual ela é cofundadora. Um
25
24
de negociações, de
que forjam processos
políticas brasileiroscomo espaços african• "Políticas de ação afirmativa como estratégia de construção da
como estratégiascontemporâneos igual-
brasileira.
quilombos
de nacionalidade
dade racial", publicado em 2019 na Revista da ABPN, é resultado da parti-
presentes na
narrativa à Lei n.0 10.639/03" é um artigo, cipaçáo da autora no evento dos trinta anos de publicação do Caderno de
da Academiafrente
"Osdesafios desafios de implementar essa legislação Pesquisa Raça Negra e Educação, pela Fundação Carlos Chagas. O texto lo-
que trata dos
tambémde universitários alterem seus caliza as ações afirmativas no quadro das legislações internacionais e aponta
e os centros
universidades
sem que as o seu eixo de formação, tratando de a sua principal função, que é a reparação aos danos causados pelo racismo
que a Academia mude
culos e sem a
e culturas que formam nação às populações por ele vitimadas. Para a realização dessa tarefa, utilizou-se
as histórias
maneiraequânime formação de profissionais acontecem pelo como método a autobiografia etnográfica e, em consonância com ela, foram
equívoc os na
Analisa que os instrumentos epistemológicos de analisados os dispositivos legais pertinentes ao tema proposto. Constatou-se
trabalhar com
fato de a Academia capazes de fornecer condições para que a que o racismo começa a ser preocupação legal nos países europeus após
que não são
gem eurocêntrica, todas as dimensões. a Segunda Grande Guerra. Discute-se que a maneira como as legislações
analisada em
realidade do país seja texto de 2015. internacionais de combate ao racismo foi organizada e a sua interferência
do racismo" é um Apresenta
"Aspersonas (máscaras) na sociedade só foi possível graças ao protagonismo dos grupos vitimiza-
o racismo como fenóme_
sobre as diversas faces que
uma breve reflexão dos por esse mesmo fenómeno. A sua atuação deu um caráter estratégico
ao longo da história com o fito de manter-se
no socialtem adquirido A narrativa elabora ao conjunto legal e abriu caminhos para a construção da igualdade racial.
na tarefa de gerar subalternidades.
"mo" e eficiente A publicação deste conjunto de oito artigos não dá conta do extenso
utilizando as diversas personas (máscaras)
um breve perfil do racismo, trabalho realizado pela professora Zélia. Os textos aqui apresentadose
longo do tempo para se manter. Discute
que essefenómenoadquiriu ao escolhidos pela própria autora representam o núcleo central do seu pen-
um fenómeno que a cada
que a plasticidadedo racismo o induz a ser samento e da sua intervenção académica e política desde os anos 1990
momentohistórico,dependendo da situação, torna-se capaz de operar
até o ano 2019. Muito já foi produzido por ela na sua atuação acadêmica
váriasmetamorfosese adquirir e renovar a sua própria face. e na sua política de ensino, pesquisa e extensão. Aulas, peças teatrais,
No artigo "A travessia: a saga do movimento negro brasileiro con- palestras, seminários, minicursos, cursos de especialização,orientações
temporâneo",de 2017,Zélia Amador de Deus assume o papel de narra- académicas e gestão académica são algumas das atividades que compõem
dora-testemunhapara contar,de forma breve, uma saga do movimento a sua forma de intervenção na sociedade e na universidade.
negro brasileirocontemporâneo. Esta diz respeito à "invenção" do 20 de Como a própria autora diz:
novembro - Dia Nacional da Consciência Negra —como data significativa
Os escritos deste livro consistem em uma pequena amostra das inúme-
para o movimento negro brasileiro contemporâneo e símbolo da presença
ras palestras ou artigos que publiquei na minha trajetória académica,
históricade Zumbi,líder do Quilombo dos Palmares. Para a afirmação
frutos de uma história de luta contra o racismo, porque se há uma certe-
de algunsconceitosutilizadosao longo da narrativa, a autora se apoia za que carrego comigo é que sempre fui, e continuarei sendo, enquanto
em autores que são chamados à cena quando necessário. Nesse artigo, vida tiver, uma mulher preta com o sonho de consertar o mundo.
ela se vê como uma narradora que, com
certo privilégio, participou do
espetáculo- e não apenas como espectadora, Reitero a minha emoção e a honra de participar desta publicação-
mas como personagem homenagem a essa mulher negra, intelectual, ativista, amorosa e guerreira.
envolvidana cena.Mesmoquando
espectadora, o que pode ter acon-
tecido algumasvezes,a
autora relata que sempre interferiu na história'
assim como faz o espectador
que deve intervir na ação, de acordo com a
proposta do Teatro do
Oprimido, de Augusto Boal.

27
26
Centro de Estudos e Defesa do Negrodo Pará

Nesta minha exposição falarei, especificamente, sobre um


trabalho de
militância, de luta no dia a dia que vem sendo desenvolvido pelo Centro
de
Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA),entidade que represento
e que é a única, em Belém do Pará, criada e fundada por negros.lEm 1979,
alguns negros começaram a se reunir, propondo-se a criar uma entidade
que denunciasse o racismo e lutasse contra ele. Aos poucos, fomos nos or-
ganizando. No início, timidamente, contando ainda com um quadro pouco
numeroso, passamos a promover manifestações nas datas significativas
para a comunidade negra: 20 de novembro, 13 de maio. Apenas no 20 de
novembro de 1980, então, já mais estruturado, o grupo resolveumudar
de tática, fazendo muito barulho, ocupando todos os espaços disponíveis
—Assembleia Legislativa, Câmara dos Vereadores —,enfim, se fazendo
presente. A importância dessa iniciativa foi tal, que essa data passou a ser
considerada como o início do grupo. A partir de então, a despeito do nosso
isolamento, começamos a nos integrar com os movimentos negros da re-
gião, participando de todos os Encontros de Negros do Norte e Nordeste.2

0 CEDENPA é uma entidade sem fins lucrativos, sem vínculos politico-partidários, fundada
em IO de agosto de 1980 e legalizada em 27 de abril de 1982, que, a partir do estado do Pará,
vem contribuindo para o processo de superação do racismo, do preconceito e da discri-
minação que produzem as desigualdades sociorraciais, de género e outras, prejudicando,
sobretudo, a população negra e indígena em todos os aspectos da sociedade brasileira.
Trata-se de uma associação composta por um bocado de negras e negros de diferentes faixas
etárias, níveis de escolaridade e de informação, profissões e ocupações,orientaçõessexuais,
níveis de renda, religiões, aparências fisicas, vícios e outros aspectos da individualidade.
Junto com esse punhado de negras e negros estão, também, um punhado de pessoas não
negras, as quais, de diferentes maneiras, apoiam esse dificil trabalho de protagonizar açóes
voltadas para a remoção de obstáculos antigos e novos, impostos pelo segmento racial-racista
hegemónico (Veja mais em: <www.cedenpa.org.br>).
2 As entidades negras do Norte e do Nordeste, desde 1981, têm se encontrado para discutir
a
suas questões. Os encontros têm sido realizados sempre no primeiro semestre e são abertos

29
à grande miscigenação
se a creditouque, devido discriminações, admitiam ter presenciado atitudes discrimi-
muito tempo Amazónia. Realmentg ter sofrido
Durante existissemnegros na
e a Bahia, somos pouco, natórias contra outros. Há como que uma dificuldade em aceitar esse
com índio, como o Maranhão
com estados principalmente em determinadas fato a nível pessoal. Entretanto, à medida que se adquire a confiança do
há muitos negros, entrevistado, percebe-se que as coisas não são bem assim, e que a pessoa
assim, destaco
mesmo entre os quais especialmente
Algunsestudos,3 mostram que o negro se já foi discriminada, já foi
vítima de atitudes discriminatórias.
regiõesdo no Pará,
Sales, O Negro Os dados que coletamos ainda não foram totalmente explorados.
de Vicente que se dedicavam ao cultivo da
o trabalho nos municípios
principalmente
concentra apontam, também, a Mashá informações importantes que merecem ser mais bem analisadas,
pecuária. Esses estudos
cana de açúcar
e à atMdade
região. Pretendemos, inclusive, re_ como a questão da identidade da mulher negra, por exemplo. Notamos
mocambos nesta
existênciade muitos desses mocambos que existem,
que o homem tem maior facilidade em se assumir como negro; já a mu-
com os remanescentes lher se define, mais frequentemente, como morena ou mulata, indício de
alizarum trabalho outros lugares do estado. A 90 km
rio Trombetas e em que a identidade racial passa pela identidade sexual.
ainda,ao longodo Pitimandeua,
comunidade negra denominada resquício
Nossa intenção não é só refletir melhor sobre esses dados, mas
de Belémhá uma nosso trabalho,
o desenvolvimento do começaram
de um mocambo.Com também ampliar o nosso conhecimento do ponto de vista quantitativo e
principalmenteda parte das escolas. Diante
a surgirinúmerassolicitações, qualitativo.Nesta pesquisa, nos concentramos, sobretudo, na população
data 13 de maio não devia ser festejada, os pro- pertencente às camadas médias. Todos sabemos que o negro está majorita-
de nossadenúnciade que a
sabendo como proceder nessas ocasiões.
fessoresse sentiam perplexos, não riamente representado nas camadas subalternas da sociedade. Nesse senti-
Começamos,então,a realizar uma série de palestras nas escolas a do, redefinimos a amostra (e também o questionário) para torná-la mais re-
eram esporádicos,
fim de discutir o negro. No início, esses contatos apenas presentativada realidade da população negra. Esperamos, com este estudo,
por ocasião das datas de 13 de maio e de 20 de novembro. Porém, com obter subsídios para elaborar estratégias a fim de atingir o negro da perife-
o correr do tempo as solicitações se avolumaram, colocando-se, para o ria. Como fruto do nosso empenho na procura de alternativas para realizar
grupo, a necessidadede se estabelecer estratégias de como agir perante um trabalho mais sistemático dentro das escolas, também procuramos
essa nova realidade.Todo esse processo engendrou uma série de preocu- estreitar relações com pessoas ligadas ao ensino, como supervisores e
paçóese questionamentossobre os nossos objetivos, sobre a nossa posição orientadores. No decorrer desses contatos, começamos a perceber que
dianteda discriminaçãoracial, e até sobre a nossa identidade. Inclusive, uma das grandes falhas do sistema escolar em relação ao negro diz res-
fizemosuma pesquisa,utilizando-nosde uma amostra composta por peito à maneira como a história oficial o retrata. Notamos que muitos
128negros,como objetivode verificar onde se concentra a população conceitos, muitas informações presentes nos livros didáticos de História,
negra no Pará, sua opinião e reação de Geografia e de Educação Moral e Cívica4teriam que ser modificados.
face à discriminação e sua posição
política. O interessante é que as Por outro lado, esses manuais omitem informações e fatos essenciais para
pessoas entrevistadas, embora negassem
se conhecer o negro. Começamos, então, a trabalhar na elaboração de
todos os negros das duas
regiões. O
primeiro encontro foi realizado em João Pessoa, Parajba•
textos alternativos, utilizando-nos de uma bibliografia que organizamos
em 1981;o segundo,em
em 1983;o quarto,
Recife,Pernambuco,em
1982; o terceiro, em São Luís, Maranhão especialmente para esse fim. Contamos, também, com a cooperação do
em
o sexto,em AracaA Salvador,Bahia, em 1984; o quinto, em Maceió, Alagoas, em 1985; Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão que se preocupa com
Sergipe,em 1986;o
sétimo, em Belém, Pará, no período de 09 a
No momento,
pesquisadoresda
Universidade Federal do Pará
estão realizando estudos
Amedo Marin,sobre Disciplina criada pelo Decreto Lei n.0 869/ 1968, que se tornou obrigatória no currículo
Maués,sobre a questão racial; Rosa
trabalhoescravona escolar brasileiro a partir de 1969, caracterizada pela transmissão da ideologia do regime
Amazónia; e Anaíza Vergolino e Silva, wbre
autoritário.

30 31
tendo em
livros didáticos. Entretanto,
Regidos pelo signo da violência:
nos alternativa indicada nos textos,
do índio
a imagem acesso à bibliografia
começamos a elaborar uma
dificuldadede
a sua utilização,
material didático. O processo de
as dores do racismo e da discriminação raciali
comprometia ausência de
que essa
suprir demandou discussões
alternativa para do material
sistematização
e chegar à redaçáo final.
modificaçõesaté se repercussão dessa cartilha junto
e inúmeras informações sobre a
Ainda não temos
junto às professoras de História
recebido,nem mesmo

Consideramos, entretanto, que esse nosso Então, desorientado, incapaz de ser livre como o outro, o Branco,
essa experiência
e refletir sobre de recuperação da história do
de material didático, que, impiedosamente me aprisiona, eu me distanciei de meu ser,
trabalho de produção muito importante na nossa luta. Porém, para bem longe, tornando-me um objeto. O que era para mim,
como um passo
negro, se constitui momento, estamos participando de um senão uma separação uma extirpação, uma hemorragia que
nosso trabalho não para por aí. No
o Paraenses, recentemente coagulava sangue negro sobre todo o meu corpo? Portanto, não
discute a disciplina Estudos
ciclo de debates que reivindicação é que essa disciplina trate queria esta consideração, está temática. "Queria apenas ser um
escolar.A nossa
incluídano currículo ainda, produzir outros materiais
homem entre outros homens."
negro. Pretendemos,
também, da questão do FANON,1983, p. 93
são muitas, e temos que estar preparados para
didáticos,pois as solicitações
algumas atividades culturais —temos
atendé-las.Desenvolvemos,também,
encenamos uma peça teatral, Face, negra face: pois A assertiva de Fanon nos dá a real noção do quanto a alma negra é
um grupo de dança e já
instrumento importante nessa luta. Estamos
percebemos que a cultura é um uma criação do branco, uma invenção do branco. Nessa obra, Pelenegra
entidades, como a Sociedade Para.
estreitandonossasrelaçõescom algumas máscaras brancas, Fanon compreende o que ele chama de preconceito
Comissão dos Bairros de Belém e de cor —e eu chamo de racismo —como um fenómeno superestrutural
ense de Defesados Direitos Humanos, a
Inclusive, a peça teatral a que me que reflete a irracionalidade da estrutura que o produz. Os estudiosos
a Federaçãode Associaçãode Moradores.
A peça é apresentada
referi foi montada em convénio com as duas últimas. de psicanálise costumam dizer que o que Fanon procura compreender
para debate com
nos centros comunitários e, após a encenação, abrimos é o duplo narcisismo produzido por esse fenómeno superestrutural: o
nossa
o público.Temosaproveitado essas ocasiões para vender ou doar a branco escravo de sua branquidade e o negro escravo de sua negrura. Mas,
seu
cartilha, tentando incentivar as pessoas a discutirem e a debaterem o então, o que é o racismo? Contemporaneamente o racismo é entendido
conteúdo. São essas as experiências que estamos desenvolvendo. como sendo um fenómeno eminentemente não conceitual; ele deriva de
fatos históricos concretos ligados a conflitos reais ocorridos na história
Referências dos povos.2 0 racismo acompanhou, durante certo tempo, um tipo de
CENTRO DE ESTUDOSE DEFESADO NEGRO DO PARÁ. Cartilha do CEDENPA:
raça negra, a luta pela liberdade. Belém: CEDENPA [S.d.l.
Texto apresentado no Grupo de Trabalho 15:Africanidades e Negros na Sociedade Amazó-
SALES,V.O negro no Pará. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, [S.d.l. (Coleçáo nica durante o II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte, realizado
Amazónia. Série José Veríssimo.) no periodo entre 13 e 15 de setembro de 2010.
Psiquiatra e político, Frantz Fanon nasceu em Fort-de-France, capital da Martinica. Foialuno
s O espetáculoFace,Negra Face de Airné Césaire e conviveu com Sartre, Lacan e Merleau-Ponty. Fanon faleceu em 1961,
é uma criaçáo coletiva do CEDENPA, e foi represe concebia
pelos membros da própria vitima de leucemia. A grande característica do psiquiatra Fanon era a de que ele só
entidade.

33
32
índice de resistência
constitui-seem um cultural
zular, social. "Muitas vezes, mesmo
modo étnica,política e a
de um
no momento da travessia é
Espaços africanizados do Brasil: algumas
sobrevivên oculto referências
e de apare ntemente irrompendo das de resistências, sobrevivências e reinvenções
encontrava do Atlântico, profundeus
que se a travessia Entretanto, mesmo
DEUS, 2009). que tenha
(AMADORDE vezes pode voltar a ser
da memória" algum tempo, muitas
por permanência. Por exemplo, algo
sido estratégia de pode
te,como fugir da repressão, para, após passado
para
momentaneamente
mais vigor. O vigor da tradição.
ocultar-se
voltar a irromper com muito
perigo,poder
A composição desta narrativa parte da premissa
Referências de que as diversas
culturas trazidas pelos africanos, quando da diáspora forçada,
de Ananse: movimento negro, açóes foram
DEUS, Zélia. Os herdeiros capazes de minar e disseminar africanidades em todo o território
AMADOR DE 2008. Tese (Doutorado em Antro. bra-
cotaspara negro na universidade. sileiro. Nesse processo, os africanos e seus descendentes agiram sempre
afirmativas em Ciências Sociais, Universidade Federal
- Programa
de Pós-Graduaçáo com muita astúcia para não deixar fenecer suas manifestações culturais,
pologia)
2008 reprimidas pelo poder hegemónico que agia, e ainda age, sob a égide
do Pará, Belém,
Negra. In: FÓRUM NACIONAL DE PERFOR. do
Z Performance
AMADORDEDEUS Anais.... Salvador: Bando de Teatro Olodum racismo. O resultado desse embate se faz evidente, hoje, de norte a sul
MANCE 3., 2009, Salvador.
2009.
do país. A presença de espaços africanizados em território brasileiro é
e Cia. dos Comuns,
de Ananse: hilos ancestrales y modernos en el pacífico uma constante mesmo na região Norte, apesar do consenso popular de
AROCHA,J. Ombligados
Nacional de Colombia, 1999. que esta sofreu influência apenas dos povos indígenas. Rompendo com
colombiano.Bogotá:Universidad
1963:avant-garde, performance e o corpo efervescente esse senso comum em relação ao norte do país, manifestações de africa-
BANES, S. Greenwich Village
Rio de Janeiro: Rocco, 1999. nidades rasgam o tecido cultural branco que se quer hegemónico e fluem,
civilizações africanas no novo mundo. Tradução vêm à tona, sem pedir licença ao senhor branco. Ao contrário, se põem
BASTIDE,R AsAméricasnegras: as
São Paulo: DIFEL; EDUSP, 1974.
de Edmundo de Oliveira e Oliveira. e se impõem presentes nas performances culturais da região, e narram a
Myriam Ávila, Eliana Lourenço de
BHABHA, H. O localda cultura. Tradução de história cultural dos africanos e de seus descendentes.
Glaucia Renato Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
Lima Reis, Muitas vezes, mesmo aquilo que se encontrava aparentemente ocul-
Rio de Janeim
FANON,F.Pde nega máscarasbrancas.Tradução de Adriano Caldas. to no momento da travessia atlântica é capaz de revelar-se após esta,
1983.
irrompendo das profundezas da memória. Aquilo que irrompeu pode
GILROY,P. O atlânticonegro:modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro:
2001.
novamente ocultar-se por tempos, para fugir da repressão, por exemplo.
Editora 34; UCAM; Centro de Estudos Afro-Asiáticos,
2005.
Ainda assim, pode mais vezes revelar-se sem perder a sua estrutura ma-
GLUSBERG,J.A arte da performance. São Paulo: Perspectiva,
LE GOFF,J. História e memória. Campinas: Editora Unicamp, 1996.
triz. Desse modo, abrindo fendas, brechas e frestas, pode rasgar o tecido
MAUSS, São Paulo: EPU;
da cultura oficial e vir à tona exercendo um papel de resistência, estabele-
As técnicascorporais em sociologia e antropologia.
EDUSP,
19a cendo uma espécie de guerra silenciosa, porém, contínua e ininterrupta.
QUEIROZ, R.;OTA, E. A beleza em foco: condicionantes culturais e psicobiológw Uma "guerra fria" que, em longo prazo, foi capaz de minar a instituição
na definiçãoda estéticacorporal. In:
QUEIROZ, R.; OTTA, E. O corpo do
brasileiT. por dentro e forçar processos de negociações.
tipo de
Diáspora, segundo Zegarra (2005, p. 345), "representa um
estudo de estética e beleza. São
Paulo: SENAC, 1999. p. 15-33.
SILVA, E.; REIS, J. J. Negociação de experiências
e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. agrupação social caracterizado por uma história comum
São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
51
50
exibe uma base comum de fatores his
ais que ainda renova o passado, refigurando-o como um
de ordem mundiali «entre-lugar" contingente,
pelo sistema que inova e interrompe a atuação do presente.
condicionados
tóricos no continente americano decorre do O "passado-presente"
diásporaafricana histórica torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia,
de viver (BHABHA,
A do tráfico transatlântico e do sistema
do colonialismoeuropeu, 1998, p. 27, grifos do autor).
processo que distinguem
características essa diáspora,
As principais O "entre-lugar", o passado-presente misturando-se, ressignificando-
de escravidão. outros grupos socialmente diferencia.
umaformaçãoglobal, de se e reatualizando-se para imprimir sentido ao futuro. Essa parece
como históricas: migração e deslocamento ter sido
experiências
dos são as seguintes a constante na vida dos africanos no processo da diáspora nas Américas,
da população -, opressão social —relações de
geossocial- a circulação luta e ação política e cultural.
uma vez que a cultura destes foi o grande "capital social" que os ajudou
dominaçãoe subordinação-, resistência, em seus processos de resistência e persistência em território estrangeiro.
processo da diáspora forçada vivido pelos afri-
É provávelque, no Roger Bastide (1974, p. 26), em Américas Negras, assinala que "os na-
dos diversos grupos tenha sido posta em jogo
canos,a memória coletiva vios negreiros transportavam a bordo não somente homens, mulheres
pelo poder.
na luta das forças sociais e crianças, mas ainda seus deuses, suas crenças e seu folclore".Eu diria
dominadores
SegundoLe Goff (1996, p. 246), os tornam-se senhores que transportavam muito mais: valores civilizatórios,visões de mundo,
esquecimentos e os silêncios da história
da memóriae do esquecimento."Os memórias, ritmos, cantos, danças, dúvidas existenciais, alteridadeslin-
são reveladoresdessesmecanismos de manipulação da memória coletiva". guísticas; enfim, suas histórias e culturas.
o processode reelaboraçãoda memória faz intervir não
Entretanto, Esse arsenal que atravessou o oceano foi de fundamental impor-
só na ordenaçãodessesvestígios de africanismos, mas também em suas tância para que os africanos pudessem se reconstituir e agir contra a
releituras,que,na maioria dos países do continente americano, estão opressão. No caso dos africanos da diáspora, a origem está localizada,
presentesna cultura, mas que foram relegadas à estante do folclore e à geograficamente, no continente africano. Entretanto, essa origem terá
estanteda culturapopular. Mas elas, as releituras, estão presentes apesar que interagir com o novo espaço geográfico desconhecido e com a nova
disso,porque não é possível apagar memórias e eliminar culturas senão condição imposta pelo colonizador aos africanos escravizados.
ao preçoda destruição física daqueles que são seus portadores. A cultura O fato de as performances dos africanos escravizados,na afrodiás-
é aqui entendidacomo processo que permite ao ser humano compreen- pora, terem sido construídas de pedaços, fragmentos de comportamentos
der suaexperiênciano mundo e conferir restaurados, irá fazer com que cada uma delas seja singular, na medida em
sentido à sua existência. Nessa
rede de interação,as múltiplas que esses comportamentos podem ser recombinados em infinitas variações
culturas africanas que se espalharam pelo
mundo preservaram marcas
visíveis dos traços africanos. e em diferentes contextos. Quero dizer com isso que a "África"que chega
Portanto,aindaque em fragmentos, da cultura do ao continente americano não é um todo homogéneo, e sim um pedaço
nos interstícios
senhor, as culturas dos
africanos escravizados e rea-
daquele continente marcado pela heterogeneidade de culturas e etnias. Não
resistiram, persistiram
lizaramprocessos
incessantesde trocas, fusões e ressignificaçóes. Esses pro- obstante, as açóes de resistência silenciosas e tenazes fundadas na cultura
cessosnão ocorrem
em uma via de mão e desempenhadas no cotidiano dos africanos e de seus descendentes nem
duasmãos.A única, mas sempre em uma via de
inscriçãodessas sempre têm o seu grau de importância percebido pelos estudiosos. A impor-
memórias caminha pelo tempo e pelo espaço
constituindo umrepositórioque tância é dispensada muito mais aos grandes eventos guerreiros —formação
Homi Bhabha chama de "entre-lugares•
O trabalho de mocambos, organização de levantes, rebeliões, insurreições, etc. —e
fronteiriçoda cultura
que não seja exige um encontro com "o novo quase nada se dispensa às açóes cotidianas, muitas de caráter coletivo,e
parte do continuum
ideiado novo de passado e presente. Ele cria uma outras de caráter individual. São as vozerias. Dessas diversas vozerias e
dos
como ato
insurgente de tradução cultural. Essa arte africana
apenasretoma
o passado diversos tambores, surgirão as manifestações culturais de origem
como causa social ou precedente estético;

53
52
nesseprocesso da afrodiáspora
nasAméricas festivo dos europeus. da narrativa nacional. Hoje, a nação brasileira não pode mais
pelo calendário pensar sua
brechas abertas narrativa de nacionalidade sem considerar os quilombolas.
tando as
pelas Américas observando as manifestações cul_
Secaminharmos várias Aliás, quilombo, Zumbi e Palmares sempre foram
decerto encontraremos semelhanças em elementos caros
turais de origem africana, aos herdeiros de Ananse. Utopias a alimentar não apenas a luta e a resis-
nos cabe buscar correspondências
manifestações.E aí não tência, mas também o sonho de construção de uma sociedadeequânime
muitasdessas em processos históricos que, se
foram forjadas por um
exatas,poistodas escravidão —,por outro envolvem, em que o racismo e a discriminação racial não se fizessem presentes.
Esses
- condição de
lado são semelhantes elementos pinçados da memória foram referência para o movimento
formas de lutas e de negociações. O certo é que
separadamente,diferentes negro na década de 1920,haja vista a criação do Centro CívicoPalmares,
descendentes sempre irão utilizar como instrumento
os africanose seus em 1926,em São Paulo. Correia Leite, redator de O Clarim d'Alvorada,l
que compõem o mosaico da cultura de seus
de lutapolíticafragmentos se refere ao objetivo do Centro Cívico Palmares da seguinte forma:
ancestrais.
para as Américas, mesmo O objetivo do Centro Cívico Palmares foi fazer aproximação do negro
Nesseparticular, os africanos trazidos
destruição de tudo o que lhes era mais caro, para uma tentativa de levantamento para acabar com aquela dispersão
tendo sofridoa tentativade que havia e está havendo até hoje. O que o Palmares queria era que
foramcapazesde, no continente americano, reinventar outras Áfricas. E o negro se tornasse um elemento de força, de conjunto (LEITE,1992,
essasoutrasÁfricasestão presentes em todos aqueles lugares para os quais p. 74, grifo do autor).
essesafricanosforam levados na condição de escravos, e estão presentes
aquientre nós, muitas vezes ressignificadas, seguindo, ao longo do tem- Mais adiante, ressaltando o caráter de organização, é ainda Correia
p, um ciclocompostode três elementos: repetição, revisão e improviso. Leite (1992, p. 74) que afirma: "Toda preocupação era aquela: unir os
E é atravésdesse ciclo que, creio, seremos capazes de redimensionar a negros para uma luta de reivindicação".Na década de 1930,surgiu, em
cultura de modo que ela venha a ser um instrumento São Paulo, a Frente Negra Brasileira, formada por militantes egressos do
hábil para o posi-
cionamentopolíticodo movimento negro. São elementos da memória Centro Cívico Palmares. A bandeira da Frente Negra Brasileiratinha a
coletivapinçadospara dar coerência a uma cor verde representada por um ramo de palmeira, simbolizando a Guerra
narrativa que se quer épica,
género em que cabe o herói clássico, dos Palmares (LEITE, 1992).
forte, valoroso, imbatível.
Nesse sentido, é significativa Na mesma esteira, na década de 1940,Abdias do Nascimento
a recuperação dos quilombos como
instrumento/testemunhode uma resistência criou o Teatro Experimental do Negro, cujo órgão de divulgação era o
que, até 1988, se encontrava
invisível"para o estado brasileiro, jornal Quilombo (1948 a 1950).Na apresentação da edição fac-similar
sob o nome genérico de "comunida-
des negras rurais".
Em agosto de 1986,
do jornal, Abdias diz:
a Constituinte, quando do congresso O negro e
acontecidoem Brasília, Numa época em que não existia a noção de "açáo afirmativa" ou de
os históricos o movimento negro ressignifia
quilombos e consegue
fazer constar na Constituição de políticas públicas especificamente voltadas ao atendimento das ne-
1988 0 Artigo
68 das disposições cessidades da população afrodescendente, Quilombo trazia uma série
comunidades transitórias: "Aos remanescentes das
dosquilombos de demandas nesse sentido, como de bolsas para alunos negros nas
que estejam ocupando suas terras é reco-
a propriedade escolas secundárias e nas universidades, inclusão nas listas de partidos
definitiva, devendo
respectivos".Dito
de outra
o Estado emitir-lhes os títulos políticos de números significativos de candidatos negros a cargos ele-
forma, africana.
pedagógico", os quilombolas atravessam o tempo tivos, a valorização e o ensino de matriz cultural de origem
destroem os
invadema cena "princípios constantes" e
para narrar da cultura nacional
na qual,por suas histórias,
séculos,protegidos emergindo da invisibilidade
por Ananse, Jornal da imprensa negra brasileira criado em São Paulo. Circulou entre 1924e 1932.
viveram, sempre à margem
55
54
Negro havia apresentado à Assembleia
Nacional do de propostas que incluíam, escrito por Gianfrancesco Guarnieri —Arena conta Zumbi,
A Convenção 1946uma série como ficou
Constituintede conhecida a peça, que ganhou fama não apenas pelo conteúdo
Nacional impostos para microempresários, questio-
isenção de
além desses
itens, a 2003, p. 8). nador do espetáculo, mas também pela trilha musical de autoria de
(NASCIMENTO, Edu
grosem sua maioria. Lobo, Guarnieri e Ruy Guerra. A voz de Elis Regina incumbiu-se
obra O quilombismo. de
Abdias publica a divulgaralgumas composições.
de 1980, o mesmo
Na década que sua geração
de movimento negro tem O texto de Guarnieri e Ruy Guerra constrói o personagem
autor afirma Zumbi
Nela, 0 referido do quilombismo. como o grande herói de uma tentativa de sociedade livre, o que respon-
histórico- humanista Para
edificar a ciência geral e,
a tarefa de de um modo em particular, dia, naquele momento histórico, aos anseios de muitos brasileiros,na
mostrar à sociedade
tanto,teria que que ser capaz de significar organização medida em que se vivia sob o peso da ditadura militar que se instalara em
"quilombismo" tem
aos negros,que comivência; enfim, comunhão existencial 1964.Zumbi e Palmares se constituíram na grande metáfora da liberdade
solidariedade e
fraterna e livre, do movimento negro do Rio de ansiada por vozes que foram caladas à força e, portanto, só podiam se
militante
Beatrizdo Nascimento,2 manifestar através do símbolo metafórico.
feito por Raquel Gerber, Órí, utiliza o termo
Janeiro,no documentário Sem perda de tempo, o poeta afro-brasileiro OliveiraSilveira(2003)
à resistência negra contemporânea. O dia 20
"quilombo"para se referir de assume a função de arauto de seu tempo —capaz de anunciar a boa nova.
pelo grupo de teatro Palmares, Porto Alegre,
de novembro foi lançado, Ou melhor, assume a função de griot, captando a mensagem e convidando
pelo segmento negro brasileiro em 1971. A
como data a ser celebrada
Oliveira Silveira. 0 13 de maio não cor- a comunidade à reflexão. Com a palavra, o poeta:
proposta veio da parte do poeta
negras como data que pudesse ser
respondiaàs expectativasdas pessoas Trezede maio traição
ocorrido no papel, não resultando Liberdade sem asas
celebrada, afinal, a abolição só havia
práticas na lei. E fome sem pão
em nada de concreto em termos de medidas
Portanto,era necessário buscar outra data. Era necessário recontar
Oliveira Silveira (2003, p. 24), em depoimento, afirma que, embora
a história do Brasil.Esse não é um discurso novo. Ele está presente e esses versos "tenham sido escritos em 13 de maio de 1969,o crítico mais
persiste no dizer de lideranças do movimento negro desde a década de
veemente da data 13 de maio e da lei Áurea era o integrante do grupo que
1920,conformeanteriormenterelatado, com a criação do Centro Cívico se chamava Jorge António dos Santos". E o poeta prossegue:
Palmares e, posteriormente, com a Frente Negra Brasileira. Entretanto,
O grupinho de negros se reunia costumeiramente em alguns fins de
em que pese o fato de não ser um discurso novo, ele volta a emergir em
tarde na rua da Praia (oficialmente,dos Andradas),quase esquina
consequência
dascircunstânciasda luta, e emerge, de forma ressignifi-
com Marechal Floriano, em frente à Casa Masson. Eram vários esses
cada, falando pela via do símbolo metafórico.
pontos de encontro, havendo às vezes deslocamentos por alguma
O grupo de teatro Palmares, de Porto Alegre, fundado em 1967,
razão. Pontos negros (OLIVEIRASILVEIRA,2003, p. 24).
vinha de experiências do Teatro Novo
Floresta Aurora. Portanto, carre-
gava consigo a tradição da hoje
centenária Sociedade Floresta Aurora.3
O poeta continua:
O grupo já encenara diversas
peças, e é provável que tivesse conhecimen- Circulava na época o fascículo número seis da série Grandes Perso-
to da montagem, feita
pelo Teatro de Arena, no Rio de Janeiro, do texto nagens da Nossa História, da Editora Abril Cultural. Essa publicação
sido o
fortaleceu a ideia em Oliveira Silveira de que Palmares teria
Afinal, foram
2 Beatrizdo Nascimento,
historiadora,militante do momento mais marcante da História do negro no Brasil.
movimento negro, foi morta em 1987. (OLIVEIRA
do movimento
negro
cem anos de luta contra o império colonialportuguês
criada em Porto Alegre há mais
Silveirarefereque a de cem anos. oliveira SILVEIRA,2003, p. 24).
surgiu por volta de
1870, 1871.
57
56
também que não podia se
(2003)afirma
Silveira apoiar
Oliveira motivo, buscou como fonte de consulta É importante ressaltar que o padre
esse não tratava
fascículo e, por escravo,pois os negros nascidos em Palmares Franciscocomo
apenas no (2011), de Edison Carneiro. Lá estava não
dos Palmares eram
O Quilombo
Agora não há mais dúvida, eis a data. O escravos. Isso, segundo Décio Freitas (1990), se considerados
020 de novembro. prudência do Conselho Ultramarino que, mais
explica por uma juris-
confirmado: 20 de novembro.
celebrou o primeiro tarde, será consolidada
era 1971, e o grupo peloAlvará Régio de 1682.
ano invenção da tradição, entra em cena a palavra
Colaborandopara a O padre que criou o pequeno Francisco
acabara de chegar ao Brasil. Conforme lamenta que, ao
historiador Décio Freitas, que quinze anos, seu coroinha, portador de "cordura completar
do celebração do dia 20 de novembro,
assistiuà primeira perfeitamente cristã",
seu próprio relato, movido por notícia na imprensa tenha fugido para a companhia dos negros levantados
de teatro Palmares, de Palmares. E
realizadapelo grupo Décio ressalta a declaração do padre para compor
o perfil letrado de
(FREITAS,1990). Zumbi: "Engenho jamais imaginável na raça negra
que Décio Freitas, que professava o e que bem poucas
É importante ressaltar vezes encontrei em brancos. Aos dez anos, Francisco
no Uruguai, em Montevidéu, por causa da conhecia
todo o
munismo, havia se exilado latimque há mister e crescia em português e latim
exílio, escreveu e publicou a obra Palmares: muito a contento"
ditadura militar. Durante o (FREITAS,1990, p. 125).
publicação, segundo relato do autor, foi editada
Ia guerrilla negra. Essa Isso demonstra que o herói pinçado pelo poeta
em Montevidéu. Décio Freitas dizia OliveiraSilveira
em 1971pela Nuestra América, (2003) está pronto para se vingar, uma vez que possui
Palmares com um exemplar do os atributos fun-
haver presenteadoo grupo de teatro damentais necessários a um herói. Zumbi é corajoso, inteligente,
bastante
livro (FREITAS,1990). sagaz como estrategista, possui senso de sacrificio pessoal
em nome do
Com efeito,a obra de Décio Freitas, mais tarde, foi traduzida para coletivo. O desenho, portanto, ressalta qualidades morais
que são encar-
o português com o título Palmares: a guerra dos escravos, e publicada no nadas pelo personagem e que, ao mesmo tempo, serão veículos
de valores
BrasilpelasediçõesGraal, do Rio de Janeiro. A obra será importante para tradicionais que precisam ser recuperados pela população
negra em seu
o processo de "invenção" e "construção" da tradição sobre Zumbi e sobre processo de afirmação.
o Quilombo dos Palmares e contribuirá para o processo de consolidação E, ainda mais: o herói é letrado, o que significa dizer que, além da
do Dia Nacional da Consciência Negra. tradição, ele também traz consigo o princípio "civilizador". Sobre isso,
é
O personagemZumbiconstruído por Décio Freitas (1990, p. 125) JoséMurilo de Carvalho quem se manifesta:
é delineadocomo um líder socialista. O Zumbi de Décio é um letrado.
Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações,
"Zumbi nasceu no começo do ano de 1655, numa das inúmeras povo-
pontos de referência, fulcros de identificação coletiva, ele, o herói, terá
açóespalmarinas.".
Portanto,Zumbi já era nativo do território de Pal- a responsabilidade de responder a alguma necessidade ou aspiração
mares. Décio Freitas continua: "O negrinho recém-nascido foi dado de coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou de comportamento
presenteao padreportuguêsAntónio Melo, do distrito de Porto Calvo, que corresponda a um modelo coletivamentevalorizado (CARVALHO,
cujos limites marcavam a fronteira 1990, p. 55).
entre o povoamento luso-brasileiro e
a repúblicanegra"(FREITAS,
1990,p. 125). Além de nativo de Palmares, Pronto está o herói para a elaboração de uma nova narrativa fun-
Zumbiforacriadonos arredores
do território. É provável que por isso dante que possa se contrapor ao "mito da democracia racial". Zumbi vem
não tenha perdido o
contato com seus pares. E o perfil do herói continua servir aos anseios de vozes que há muito falavam à margem, pois a busca
a ser traçado: "Conta
o padre que batizou o pretinho de uma afirmação de ser negro sempre existiu no Brasil, como vem com-
de Francisco. Ensinou-o e lhe deu o nome
a ler e o fez seu coroinha provando a moderna historiografia, que, pondo em xeque uma visão tra-
dez anos de idade" quando contava com
(FREITAS,1990, p. 125). dicionalista, se dispõe a rever o ponto de vista que propaga uma imagem

58 59
revisão histórica que se comprova a
processo de mente para combater invasores.
É nesse capazes de serem Estabeleceram igualmente
de submissão. movimentos de resistência económicas para garantir a sobrevivência. práticas
de rebeliõese Caribe, particularmente no Haiti,
Foi a criação deste
mundo
existência aconteceu no (como possibilidade) que assustou
o que sobremaneira a Coroa
comparadoscom escravizados organizaram uma rebelião e, Ao findar o primeiro quartel do século portuguesa.
os negros XVII, os habitantes de
quando conseguindo sua libertação já eram milhares. Não somente a fuga Palmares
em 1804, tomaram 0 poder, fazia crescer aqueles
armas, mocambos.
pela força das As primeiras gerações de Palmaristas
começavam a nascer (GOMES,
país. 2005, p. 73, grifos do autor).
independência do brasileira recupera um histó_
roisão da historiografia
O processode e de participação dos negros em todas
dos escravizados Com efeito, o Quilombo dos Palmares, após a visão
rico de rebeliões Reinado. É natural que, a partir de de Décio Freitas
insurreiçõesacontecidasno Segundo (1990), passa por um processo de ressignificação. Deixa de ser
as fundante que pudesse servir de símbolo simples-
em uma matriz mente um quilombo na estrita acepção colonial. Na acepção
então, se pensasse "cordialidade" não
da será mais sufi- colonial do
etapa, na qual a imagem Conselho Ultramarino, quilombo é "toda habitação de negros
para mais uma portanto, se contrapõe tanto
fugidos, que
Zumbi, "a fúria sagrada", passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham nele
ciente.O personagem conformada" ran-
submissão
"negro pacífico" e "da presentes Choslevantados e nem se achem pilões nele" (CONSELHO
aos protótipos do ULTRAMARINO,
como à figura da "mãe preta" ou do "pai João". 1740 apud ALFREDO,2000, p. 163).
no imagináriobrasileiro
desenhado por Décio Freitas (1990) é o de Nesse sentido, Palmares, após Décio Freitas (1990), rompe com essa
Se o perfil de Zumbi
aquele chefe que comanda tendo antes
um líder "letrado", racional — acepção e se transforma em uma república socialista forte que, paralela ao
táticas necessárias à sobrevivência
pensado e elaborado as estratégias e Império colonial, persistiu por mais de um século. Palmares, então, passa
palmarina—,o Quilombo dos Palmares é pintado por ele
da sociedade a ser o reencontro do sonho perdido de uma sociedade forjada na luta e na
como uma repúblicasocialistabaseada na cooperação e na solidariedade: qual, decerto, poderia haver prevalecido a verdadeira democracia racial.
A figura de Zumbi, da forma como foi tratada pelo movimento ne-
Nascomunidadesnegras reinava uma fartura que oferecia um vivo gro contemporâneo, não pode ser analisada fora dos prismas da "nação"
contrastecom a perene miséria alimentar das populações do litoral. A e das culturas nacionais. Por esse motivo, trago à cena Stuart Hall (2003):
abundânciade mão de obra, o trabalho cooperativo e a solidariedade
socialhaviam aumentado extraordinariamente a produção (FREITAS, As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições cultu-
1990, p. 73). rais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacio-
nal é um discurso, um modo de construir sentidos que influencia e
Déciodiz:"Era uma república peculiar a que não se poderiam apli- organiza nossas ações quanto à concepção que temos de nós mesmos
car conceitoshistóricos ou políticos de inspiração europeia" (FREITAS, (HALL, 2003, p. 50).
1990,p. 104).E continuaem um outro trecho: "Palmares foi a manifesta-
ção mais eloquentedo discurso
antiescravista dos negros brasileiros nos
Se uma cultura nacional é um discurso construído, discursos pa-
quase três séculos da escravidão" ralelos podem surgir elaborados por grupos que, por uma razão ou ou-
(FREITAS, 1990, p. 210). Ainda sobre
o território de Palmares,
o historiador Flávio Gomes (2005) também tra, não foram contemplados pelo discurso "oficial"da suposta cultura
esboça um desenho: nacional. E é exatamente nesse jogo de contrastes e oposições que são
forjadas as identidades. Dessa forma, o mesmo personagem pode ser alvo
Palmaresfoi um mundo expressar,
de faces africanas reinventado no Brasil pelos de representações inversas daquilo que se quer ou se pretende
palmaristas- africanos
além
de grupos de procedências étnicas diversas,
daquelesnascidoslá -,
seja por grupos que contestam a imagem ou personagem "oficial",seja
e originais.
os quais forjaram espaços sociais próprios por grupos que, de uma forma ou de outra, pretendem firmar e afirmar
Recriaramculturas,
religiões e organizaram-se militar-
61
60
tramas do tecido homogéneo que
livrando-sedas como homogéneo" (BHABHA, 1998, p. 209).
—aridade, identidade. Esses tempos são
sempre
construir sua própria articulados de forma agonística, caminham em estado de
sufoca,buscando grupo pelo reconhecimento
Desse ponto de vista, é a valorização do tempo
constante tensãQ
tempo pelas "bordas" da narrativa "performativo" que
ao longo do conduz à inscrição da subjetividade dos diversos "povos" que
que consti-
personagem entendida como uma atitude retrÓgrada
do país não deve ser tuem uma nação. É por essa valorização do tempo "performativo"
histórica foi construído e nos é apresentado que se
a ordem daquilo que pode ouvir as "vozes" das consideradas minorias marginalizadas. Dessa
que Pelo contrário, essa luta se constitui
•cade uma nação. forma, no dizer de Homi Bhabha (1998), é que grupos conseguiriam,
narrativapedagóg a construção e formação de identidade
fundamental para simbolicamente, contestar o discurso centralizador e "pedagógico"
em um elemento ponto de vista, pode-se perguntar.
de
dito grupo. Desse nação e, acima de tudo, questionar o poder desse discurso, no sentido
própria e coletiva do
e revelado à nação brasileira? Um per- de consolidar e generalizar uma única dimensão social em nome de uma
é esse apresentado
que personagem mas que insiste em ser incluído e
apenas é apresentado, nacionalidade que se quer unificadora.
sonagemque não
da cultura nacional, do discurso oficial? Com efeito, os territórios quilombolas espalhados pelo país são
fazerpartedo discurso
entender melhor a questão que se pós, peço auxilio espaços vivos de africanidades e resistência cultural. Bhabha (1998), ao
Paranos ajudar a
articulado por Homi Bhabha (1998).0 analisar as culturas pós-coloniais, afirma que são culturas que caminham
do conceitode "dissemi(naçáo)"
responde à necessidade de se ler a nação sempre em processo de tensão com a cultura nacional e aproveitam-se
conceitode "dissemi(naçáo)"
culturais. O termo "disseminação" se refe- sempre dos vagos, dos vazios que a linearidade da narrativa pedagógica
com todas as suas diferenças
tempos históricos existentes em um de nação não deu conta de preencher. É dessa forma que se escrevem e
re simbolicamenteà ideia de dois
de qualquer
projetoda construçãoda narrativa ideológica nacional se inscrevem as inúmeras histórias dos negros nas Américas. O tempo
Para Bhabha(1998),é necessário reconhecer a existência de dois níveis político (performativo) vem escrevendo "o tempo dos descendentes dos
temporaisque fazem parte da imaginação e da narrativização ideológica africanos" no continente americano, o tempo daqueles que vêm cons-
de uma nação, ou seja, daquele espaço em que se "escreve a nação". Isso truindo suas identidades hifenizadas, no sentido referido pelo antropó-
quer dizer que a nação não pode ser lida apenas horizontalmente, como logo indiano Arjun Appadurai (2004): afro-brasileiro, afro-colombiano,
metáfora de uma paisagem nacional, o que equivaleria à existência de afro-jamaicano, e assim por diante.
uma identidadecoesa e homogénea que anularia as diferenças. A nação
também deve ser lida em sua temporalidade disjuntiva, ambivalente e Referências
produtiva que manifesta a diferença ou as diferenças culturais, muitas ALFREDO, W. Os quilombos e as novas etnias. Revista Palmares, Brasflia, v. 5,
vezesprovenientesde grupos subalternos exigindo a valorização de seus n. 5, p. 163-176, nov. 2000.
papéiscomo participantes ativos da mesma nação. AMADOR DE DEUS, Z. Os herdeiros de Ananse. movimento negro, açóes afir-
O primeiro tempo, o mais tradicional, aquele que articula a tem- mativas, cotas para negros na Universidade. 2008. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais) —Programa de Pós-Graduaçáo em Ciências Sociais, Universidade Federal
poralidadelinear,contínua e cumulativa,
é chamado por Bhabha (1998, do Pará, Belém, 2008.
p. 222) de tempo pedagó-
"pedagógico"; o segundo, "performativo". O tempo APPADURAI, A. Dimensões culturais da a modernidade sem peias.
gico "é uma forma de
tempo homogéneo e vazio", é o tempo já referido por Tradução de Telma Costa. Lisboa: Editorial Teorema, 2004.
WalterBenjaminem Tradução
"Experiência e história" (1992). O tempo performatiV0 BASTIDE, R. As Américas negras. as civilizações africanas no novo mundo.
é a forma de tempo EDUSP, 1974.
das intersecções, é o tempo pelo de Edmundo de Oliveira e Oliveira. São Paulo: DIFEL;
das transversalidades,
qual caminham as 0 Lisboa:Relógio D'Água,
histórias "subterrâneas".
"É o tempo que interrompe BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política.
tempoautogerador do 1992.
da produção nacional
e desestabiliza o significado
63
62
Ávila, Eliana
Tradução de Myriam Lourenço
local da cultura.
BHABHA,H. K. O
Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998 Os desafios da academia frente à Lei n.010.639/031
e Gláucia
de Lima Reis Martins Fontes, 2011.
Palmares. São Paulo:
Quilombodos
CARNEIRO,E.
o imaginário da república no Brasil. São
J. M. A formação das almas:
CARVALHO, 1990.
das Letras,
Paulo: Companhia
Janeiro: Fator, 1983.
máscaras brancas. Rio de
FANON,F.pele negra
São Paulo: Graal, 1990.
a guerra dos escravos.
FREITAS,D. Palmares:
e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto,
GOMES,F.Palmares:escravidão
2005.
In: SOVIK, L. (Org.). Da diáspora: identidades e
HALL,S. Questão multicultural. A Lei n.0 10.639, que foi sancionada pela presidência
Adelaine LaGuardia Resende. Belo Horizonte:
mediaçõesculturais.Tradução de da república
Editora UFMG, 2003. p. 277-286.
em 2003, tem uma longa trajetória de discussão no seio do
movimento
Campinas: Editora Unicamp, 1996. negro,pois desde a década de 1940 que publicações organizadas
LE GOFF,J. História e memória. pelo
movimento já registram a reivindicação de que os conteúdos
LEITE, C. ...E disseo velhomilitante. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, curriculares
1992. nacionais tratem da história da África e da cultura afro-brasileira.
Início,
NASCIMENTO,A. O quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. portanto, apresentando a lei. Posteriormente, farei um breve
histórico
NASCIMENTO,A. Jornal quilombo. São Paulo: Fundação de apoio à USP; Editora
sobrea questão racial e apresentarei alguns comentários sobre a tarefa
34, 2003. dos docentes a partir da vigência da lei.
OLIVEIRA,S. Depoimento. Revista do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Altera a Lei n.0 9.394, de 20 de dezembro de 1996,que estabeleceas
EducacionaisAnísio Teixeira(INEP), Brasília, v. 93, n. 233, p. 20-35, jan./abr. 2003.
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
ZEGARRA, M. C. Açóes afirmativas e afrodescendentes na América Latina: aná- oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e
lisede discursos,contra-discursos
e estratégias. In: SANTOS, S. A. (Org.). Ações Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências (BRASIL,2003, s/p).
afirmativase combateao racismo nas Américas. Brasília: Secretaria de Educação
Continuada,Alfabetizaçãoe Diversidade, 2005. p. 340-365.
Valeressaltar que a aplicação da lei se apresenta como um grande
desafiopara os docentes, pois muitos desconhecemqualquerconteúdo
que trate da África e da cultura afro-brasileira. Nessa perspectiva, o papel
do educador assume grande dimensão, pois, além de buscar formação
para cumprir suas funções, na medida em que são poucas as universidades
brasileirasque já adequaram seus currículos visando à aplicabilidadeda
lei,esse docente tem que iniciar um processo de desconstruir imagens
estereotipadasque sempre enfocam a África ressaltando aspectos nega-
tivos:atraso, selva, fome, doenças endémicas, AIDS,guerras,miséria,
pobreza. Essas imagens estereotipadas precisam sair de cena e dar lugar

Artigo originado de intervenção da autora sobre a Lei n.0 10.639/03 durante 0 190Seminário
Educação e a V Jornada Desigualdades Raciais na Educação Brasileira, eventos organizados
pelo Núcleo de da Univer-
Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (NEPRE),
sidade Federal de Mato professora Maria Lúcia Rodrigues Muller.
Grosso, coordenado pela

64 65
A travessia: a saga do movimento
negro brasileiro contemporâneol

Introdução

Neste momento, assumo o papel de narradora-testemunha para


contar, de forma breve, um episódio da saga do movimento negro brasi-
leiro contemporâneo. A saga a que me refiro diz respeito à "invenção" do
20 de novembro como data significativa para o movimento e à forma
como Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, foi pinçado das profunde-
zas da história para ser símbolo de liberdade e marco zero da construção
de uma nova identidade coletiva dos herdeiros de Ananse.
Devo dizer que, para a afirmação de alguns conceitos utilizadosao
longo desta narrativa, estarei apoiada em autores que serão chamados
à cena quando necessário. Assumirei o papel de uma narradora que, com cer-
to privilégio, participou do espetáculo —e não como espectadora, mas como
personagem envolvida na cena. E, mesmo quando espectadora, o que pode
ter acontecido algumas vezes, sempre interferindo aqui ou ali - como faz o
espectador que deve intervir na ação, de acordo com a proposta de Augusto
Boal (2008), no Teatro do oprimido.2 0 relato é composto de três estações,
cadauma delas contendo um número de cenas variado.

Artigo apresentado no GT 02 - Movimentos sociais e lutas socioterritoriais: olhares sobre a


África e a América Latina, durante o II Seminário Internacional América Latina:políticas e
conflitos contemporâneos, de 27 a 29 de novembro de 2017, no Centro de Eventos Benedito
Nunes, na Universidade Federal do Pará, em Belém.
2 Augusto Boal, autor e diretor teatral, ligado ao grupo Teatro de Arena de São Paulo. Boal,
perseguido pela ditadura militar, como muitos intelectuais questionadores o foram, passa
um período exilado. Em seu exílio, elabora uma proposta estética de teatro para a América
Latina, fundada na pressão sofrida por esse território. A tal estética ele atribui o significativo
nome de estética do Teatro do Oprimido. A proposta foi publicada em O teatrodo oprimido
e outras poéticas políticas.

89
0 20 de novembro pânico dos governadores de Pernambuco quando se
primeira estação: soube da existência
de oficinas de ferreiros em Palmares, sobretudo por causa
Antecedentes da possibilidade
de confecção de armas.
económicos e sociais da cons-
antecedentes históricos, políticos,
Os me ater aos mais recentes para con_ Segunda estação: nação e culturas
estão alhures. Vou nacionais
trução dessa saga terei que me distanciar um pouco
Em raros momentos,
textualizar o fato. Zumbi e do Quilombo dos Palmares,
Cena 1: Um convite à reflexão
seja para falar de
mais na história, elaborado pelos antilhanos. No E é exatamente aproveitando
conceito de negritude a fenda que se abre no
seja para falar do tecido da nar-
históricos não serão distantes no tempo, e servirão rativa pedagógica de nação que o fio/ação movimento negro
mais, os antecedentes brasileiro
ação dramática. Os antecedentes a que me refiro são insere a figura de Zumbi dos Palmares. Um símbolo capaz
para contextualizara de elaborar
no Brasil com o golpe de 1964, e o Maio de uma narrativa de liberdade, uma vez que o dia 13 de maio,
a ditaduramilitar, instalada data da abo-
França. Naquele maio, os
ideais utópicos de liberdade efervescem lição da escravatura, e a figura da "redentora princesa Isabel",
1968,na inscritos
respingando no Brasil. Passeatas estudantis no tempo "pedagógico" e linear, não foram suficientes. Não
e se espalhampelo mundo, deram conta
qual paira uma atmosfera de receio e de resolver a situação de subalternidade dos descendentesdos africanos
passama agitar o cenário sobre o
para além do medo, é preciso trazidospara o Brasil na condição de escravos.
medo da repressivaditadura militar. Mas,
partidos de esquerda —colocados à
ousar! É preciso desafiar o regime! Os Cena 2: Identidade nacional
força na clandestinidade- continuam atuando e se articulam ao movimento
estudantil, ampliando seus quadros. A arte é chamada à cena para falar. Se Essa reflexão nos conduz, inevitavelmente, ao debate sempre revi-
não se pode falar abertamente, que se fale pela via da metáfora artística. sitado de identidade nacional, e, neste caso, busco o auxflio de Renato
Ortiz, que, em sua obra Cultura e identidade nacional (1986),afirma que
Cena 1:E 0 13se fez 20 não existe uma identidade nacional autêntica. Para ele, o que existe é:
Upa! Tem "neguinho na estrada", e, ainda mais, tem "estatuinha" que [...] uma pluralidade de identidades construídas por diferentesgrupos
afirma: "Se a mão livre do negro" se dispuser a fazer, ela faz. Ela é capaz sociais em diferentes momentos históricos, portanto, a identidade não
de criar, e, portanto, o sujeito de mão tão criativa será capaz de tornar-se pode ser entendida como algo imóvel, imutável, que se almeje atingir,
sujeito de sua própria história. Então, vamos a ela: pois se assim o fosse tratar-se-ia de uma ideologia,a identidadedeve
Palmares,segundoFreitas(1990),era uma república capaz de abri- ser entendida como um conceito aberto, como síntese inacabada,que
gar os deserdados do sistema: negros, indígenas e brancos desertores. DO se institui simbolicamente no percurso dos vários movimentosque a
ponto de vista da organização, Palmares era constituído de vários povo- constituem (ORTIZ, 1986, p. 19).
ados, e cada um possuía um chefe, que era escolhido pelos méritos da Renato Ortiz (1986) situa a identidade perseguidapor grupos
força, inteligênciae destreza. Os chefes eram controlados por um conse- negros em um espaço multidimensional no qual a identidadenegra se
lho, e as decisões mais importantes põe como uma das dimensões. Será apenas por meio da organização, da
eram tomadas em assembleias gerais,
das quais participavam todos justaposição de certo número dessas dimensões, que se construirá uma
os habitantes adultos. Com o aumento da
população em Palmares, a identidade, o que implica dizer que esta, assim como a individualidade,
atividade produtiva foi se diversificando, e a
economia foi se tornando é uma estrutura, construção que resulta de uma verdadeirabricolage.
complexa. Além da agricultura (policultura),
se tem notícia de que "Aidentidade não é fim nem começo; ela se situa no próprio processo de
trabalhavam com o ferro. Existia em Palmares 0
trabalho com forja. Décio Freitas sua construção" (ORTIZ, 1986, p. 138).
(1990) se refere a isso ressaltando 0

90 91
peço a ajuda de Manuela
ao tema da identidade, da nação que, em um determinado momento,
Dando continuação a etnicidade, parte do princípio irrompem em um
que, ao refletir sobre sc)"que se aproveita da fissura do "tempo "discur-
Carneiro da Cunha, forma situacional e contrativa, ou seja, performativo".
é constituída de Renato Ortiz ( 1986), ao propor o
de que a identidade conjuntura, resposta articulada debate sobre identidade
resposta política a uma destaca o papel dos intelectuais como mediadores nacional,
"que ela constitui desse processo de cons-
em jogo, com as quais se forma um sistema. É truçâo, e o exemplo citado por ele é exatamente
com as outras identidades ORTIZ, 1986, p. 139). o fio/ação movimento
diferenças" (CUNHA, 1985 apud negritude. Nesse particular, faço uma analogia da
uma estratégia de com o fio/ação movimento
identidade coletiva de um grupo é forjada
Portanto,a construçãoda negro brasileiro da atualidade:
conflituosas no qual o dito grupo, para se afirmar,
em um jogo de relações O movimento da negritude só pôde
de uni-lo. Manuela Carneiro da Cunha (1985), surgir no momento em que
busca algo em comum capaz um grupo de intelectuais tomou como
objeto de reflexão a condi-
libertos e sua volta à África, demonstra
em Negros,estrangeiros:os escravos çáo do negro diante do homem branco.
Césaire, Senghor, Diop são
os africanos que, escravizados no Brasil,
o processo que aconteceu com intelectuais que se voltam para a África na
busca de uma identidade
Golfo do Benin. Esses africanos
retornaram à África, sobretudo, à região do
negra que é, no entanto, algo virtual. Isto é, eles
tomam a cultura negra
a língua portuguesa, e constroem uma identidade étnica que se
passaram a se identificarcomo brasileiros. Cultivavam contrapõe à dominação
branca (ORTIZ, 1986, p. 141).
celebravam várias "tradições" que os iria identificar coletivamente.
Ressaltoque, sobre os brasileiros na África, Milton Guran (2000) Nessa linha, o fio/ação movimento negro da atualidadeopera de
publicouuma obra denominada Agudás, ou "amaros", nomes pelos maneira análoga. Ou seja, busca formas concretas de expressõesculturais
quaissão reconhecidos,ainda hoje, os descendentes dos "retornados"3 para integrá-las e reinterpretá-las dentro de uma perspectiva mais ampla.
em Benin.Conforme aponta Manuela Carneiro da Cunha (1985), a A cultura afro-brasileira, conforme aponta Ortiz,
noçãode partilha de uma determinada experiência histórica será o polo não é simplesmente vivenciada na sua particularidade, mas o singular
unificadordo grupo. Na mesma linha, Stuart Hall (2000, p. 108) remete passa a definir uma instância mais generalizada do conhecimento.Ao
identidadecultural "àqueleeu coletivo ou verdadeiro que se esconde integrar em um todo coerente as peças fragmentadas da história negra
dentrode muitoseus —mais superficiais ou artificialmente impostos —candomblé, quilombo, capoeira - os intelectuais (agentes) constro-
- que um povo,com uma história e uma ancestralidade partilhadas, em uma identidade negra que unifica os atores que se encontravam
mantém em comum". anteriormente separados. A identidade é, nesse sentido, elemento de
Desseponto de vista, a identidade cultural se faz um eu coletivo unificação das partes, assim como fundamento para a ação política
capazde estabilizar,fixarou garantir o pertencimento cultural ou uma (ORTIZ, 1986, p. 141).
"unidade".O eco de uma consciência negra que ressurge em um discurso
engajadona luta contra a opressão —reivindicando igualdade de trata-
mento, denunciando o "mito da democracia" e Terceira estação: a consolidação do 20
buscando elaborar uma
narrativa de libertação cujo símbolo é Zumbi
—se constituirá no marco cena 1: E surge o MNUCDR
zero da construção dessa
identidade coletiva. São as vozes dissonantes que
artigo
caminharam à margem do
"discurso" elaborado no "tempo pedagógico" Neste momento, passo a palavra a Hamilton Cardoso. Em
do Mo-
publicado na revista Afrodiáspora, ele documenta o lançamento
(MNUCDR):
Sobreo assuntq outros
autoresjá se pronunciaram. vimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial
Pierre Verger- com sua Entre eles, destaco: Alberto Costa e Silva'
obra Fluxo e refluxo do
a Bahia de Todos tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e no dia 7 de julho, às 19
horas,
os Santos - e Manuela
Carneiro - com o já citado Negros, Estrangeiros: os Logo após as greves operárias de 1978, Paulo e
Escravos Libertos e sua
Teatro Municipal de São
três mil negros reuniram-se diante do
volta à África.

92 93
através de um sonoro "Não" ao racismo. do aniversário de 2() anos do MNU, em 1998,
sua história,
disseram"Sim"à operários de braços caídos do ABC de continua o silêncio
sobre o
como os achado do poeta Oliveira Silveira. O silêncio só
Inesperadamente, é rompido com o
afro-americanos do norte, decididos como mineiro Marcos António Cardoso, militante do historiador
radicais como os
1977, e expressando a nova consciência fio/ação movimento negro
africana, revoltados que, ao reconstituir a trajetória do dia 20 de
a libertação cercados por policiais como novembro em sua dissertação,
maioria dos brasileiros,
nacionalcomo a militar. Disseram "não" faz jus ao grupo Palmares e ao poeta Oliveira Silveira,
Disseram "não" ao regime destacando a atuação
todosos oprimidos. Disseram "não" ao racismo. Disseram
do grupo no conjunto das ações do movimento
negro. O fio/ação movimento
capitalista.
à super exploração racial (CARDOSO, negro contemporâneo ressurge em uma época em
que a influência interna-
e à igualdade 1984, p. 28).
"sim" à sua independência cional, quer das Antilhas e da África das independências,
quer dos Estados
vai ficar conhecido
lançamento do MNUCDR, que Unidos, propicia uma espécie de revigoramento aos herdeiros
No eventode de Ananse
é veiculado o manifesto do grupo que, entre brasileiros. 0 20 de novembro, portanto, surge como polo
nacionalmentecomo MNU, aglutinador; é
dia 20 de novembro como Dia Nacional da Cons- uma motivação nacional, afro-brasileira, negra.
outras questões, cria o
0 13de maio como Dia Nacional de Denúncia do
ciênciaNegrae institui Cena 2: Negritude presente
Cardoso (1984), a receptividade do movi-
Racismo.SegundoHamilton
muito grande entre os negros brasileiros, Nesta cena, quero recuperar um pouco da trajetóriada negritude
mento,que se quer nacional,é
três meses após o ato de lançamento, brasileira e de seu diálogo com a negritude transnacional. A noção de
tantoassimque, em um espaço de
legitimidade, espalhou-se pelo país. Além denominadores comuns capazes de transcender a mera noção do fenó-
o movimento,talvezpor sua
Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Espírito tipo quer ir além. Quer transcender tecendo uma noção de partilha de
de São Paulo, chegou ao Rio de
Rio Grande do Sul, Santa determinadas situações históricas que se caracterizempela reivindicação
Santo,e contavacom simpatizantes em Brasília,
de valores próprios e avalizem a ação e o discurso do fio/ação movimento
Catarina, Pernambuco e Maranhão.
negro que ressurge no final da década de 1970. É nessa esteira que esse fio/
A atmosferapolíticaem que vivia o país permitiu o ressurgimento
ação do Brasil se articula com o fio/ação movimento negro internacional,
dos movimentossociaisque haviam sido sufocados pela intensa repressão.
particularmente com os negros norte-americanos, com o Caribe e com as
É nesse bojo, portanto, que ressurge o movimento negro brasileiro contem-
poráneo.Trata-seda época da "abertura política", período em que a ditadura
lutas de independência da África, rompendo, assim as fronteiraslocais.
militar, sob o comando do General Ernesto Geisel, se dispõe a implantar o Hoje, as fronteiras estão bem mais abertas, e isso se tornou bastante
processo de abertura, que deve ser lento e gradual, como pregam os milita- evidente durante o processo preparatório para a III ConferênciaContra o
res.Seé verdadeque o MNU não marcou presença em todas as unidades Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, que
da federação,é verdadetambém que em todos os estados brasileiros, no aconteceu em Durban, na África do Sul, em 2001. E, ainda mais recente-
mesmoperíodo,surgiramorganizações do fio/ação movimento negro. mente —julho de 2006 —,em Salvador, Bahia, quando da II Conferência
Algumaspermanecematé o momento presente, como o Centro de Cultura de Intelectuais da África e da Diáspora.
Negrado Maranhão(CCN/MA),o Centro de Estudos e Defesa do Negro O que pretendo recuperar, neste ponto, é o sentimento de negri-
Tento
do Pará(CEDENPA),e muitas outras tude, uma ressignificação do conceito desenvolvido por Césaire.
espalhadas pelo país inteiro. colonizadore,
A grande novidade é que recuperar o sentimento interior de recusa aos valoresdo
esse fio/ação de Ananse que ressurge pos- cena para que
sui umcaráterpolítico-reivindicativo ao mesmo tempo, a reivindicação de abertura de espaço na
muito forte. Devo dizer que, embora
a data do 20 de novembro os negros possam reencontrar suas subjetividades.
já venha sendo celebrada em diversos lugares
momentos da histó-
no país,desdeo início
da década de 1970, o manifesto do MNU não faz Tal sentimento vai estar presente em diversos
fac-símiledo jornal
nenhuma referênciaà
origem da proposta e, inclusive em publicação quando ria brasileira, como se pode verificar na publicação

95
94
Nascimento, abrangendo 0 período de CARDOSO, H. Movimentos negros: é preciso.
dirigido por Abdias do Afrodiáspora:Revista
Trimestraldo
Quilombo,
a julho de 1950.O jornal era a publicação do Teatro MundoNegro, Rio de Janeiro, n. 3, 1984.
dezembrode 1948 grupo fundado em 1944 e dirigido, também, CARNEIRO, E. Quilombo dos Palmares. São Paulo:
Experimentaldo Negro, Martins Fontes, 2011.
finalidade de abrir as portas da cena cARVALHO, J. M. A formação das almas: o imaginário
do
Abdias Nascimentocom a da república no Brasil. São
por atores negros e atrizes negras. Paulo: Companhia das Letras, 1990.
para
do teatro brasileiro CUNHA, M. C. da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e
sua volta à África. São
Cena 3: E a luta... Paulo:Companhia das Letras, 1985.
negro brasileiro contemporâneo, ao cons- BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
O fio/açáomovimento alguns
lança mão de fragmentos BOAL, A. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro:
truir a saga que acabei de contar, que Civilização
Brasileira,2008.
de seus ancestrais.
compõemo mosaicoda cultura FREITAS, D. Palmares: a guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
bojo desse processo, para dar mais coesão
É nessa esteira que, no
remanescentes de quilombos. Saindo de GURAN, M. Os agudas: os "brasileiros" do Benin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
à saga, entram em cena os 2000.
a titulação de suas terras e o
séculosde "invisibilidade"para reivindicar HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2003.
a rede das teias de
reconhecimento de seus territórios. Assim, ampliam
HALL, S. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, T. T. (Org.).Identidade e diferença:
Ananse,elaborandomais um episódio da narrativa, partilhando experiên- a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:Vozes,2000.p. 108-134.
ciashistóricassemelhantes, buscando laços de solidariedade, construindo
MOURA, C. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo: Ática, 1993.
relaçõesde tecnicidade que se encontram em pleno processo.
ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Dessemodo,encerro este capítulo, porém não sem antes recorrer
OLIVEIRA, S. Depoimento. Revista do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
mais uma vez a Homi Bhabha, inspirado em Frantz Fanon:
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Brasília, v. 93, n. 233, p. 20-35, jan./abr. 2003.
A crítica feita por Fanon das formas fixas e estáveis da narrativa na-
cionalistatorna imperativo questionar as teorias ocidentais do tem-
po horizontal,homogéneo e vazio da narrativa de nação. Será que a
linguagemda instabilidade oculta da cultura tem pertinência fora
da situaçãode luta anticolonial? Será que o incomensurável ato de
viver —frequentemente descartado como ético ou empírico —tem
sua próprianarrativa ambivalente, sua própria história da teoria? Ele
pode modificar a maneira como identificamos a estrutura simbólica
da nação ocidental? (BHABHA,1998, p. 223).

Portanto,guiadapelosfios das teias de Ananse, sigo em frente na


elaboraçãode mais uma versão da deusa
do protagonismo dos herdeiros
Aranã.A cena,portanto,está
aberta, e a narrativa, inacabada.

Referências
APPADURAI, A. Dimensões
Traduçãode Telma culturais da globalização: a modernidade sem peias
costa. Revisão científica
de Conceição Moreira. Lisboa: Editorial

96 97

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