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Discurso de metafísica

e outros textos
G. W. Leibniz
Apresentação e notas
de Tessa Moura Lacerda

Martins Fontes
Podemos dizer que os três textos aqui reu-
nidos são fundamentais para a compreen-
são da filosofia de Leibniz; sao textos de
síntese e estão inseridos em uma unidade
de pensamento como textos que procuram
responder à questão essencial da metafísi-
ca leibniziana.
O Discurso de metafísica, a Monadologia
e os Princípios da natureza e da graça
sintetizam as grandes teses de metafísica
de Leibniz e, nesse sentido, são textos pri-
vilegiados para quem quer se introduzir
no pensamento desse autor.

CAPA
Imagem Retrato de Leibniz por Bernhard Francke,
detalhe.

Projeto gráfico Katia Harumi Terasaka


DISCURSO DE
METAFÍSICA E
OUTROS TEXTOS
«
DISCURSO DE
METAFÍSICA E
OUTROS TEXTOS
G. W. Leibniz

Apresentação
TESSA MOURA LACERDA

Martins Fontes
São Paulo 2004
Títulos dos originais: DISCOURS DE MÉTAPHYSIQUE,
LA MONADOLOGIE, PRINCIPES DE LA NATURE ET DE LA GRÂCE
FONDÉS SUR LA RAISON.
Copyright © 2004, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

Esta obra foi incluída na coleção Clássicos por sugestão de Homero Santiago.

Ia edição
abril de 2004

Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões grâficas
Mauro de Barros
Alessandra Miranda de Sá
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na l*ublicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Leibniz, Gottfricd Wilhelm, 1646-1716.


Discurso dc metafísica e outros textos / G. W. Leibniz ; apresen-
tação Tcssa Moura Lacerda ; tradução Marilcna Chaui c Alexandre
da Cruz Bonilha. - São Paulo : Martins Fontes, 2004. - (Coleção

clássicos)

Título original: Discours de métaphysiquc, la monadologie, prín -


cipes de la nature et de la grâce fondés sur la raison.
Bibliografia.
ISBN 85-336-1978-2

1. Leibniz - Metafísica 2. Leibniz, Gottfried Wilhelm, 1646-


17161. Lacerda, Tessa Moura. II. Título. III. Série.

04-2362 _________________________________________________________ CDD-149.7

índices para catálogo sistemático:


1. Lcibnizianismo : Filosofia 149.7

Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil
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Índice

[presentação ................................................................................. VII


Cronologia.................................................................................... XXIII

Discurso de metafísica............................................................. 1
Os princípios da filosofia ou A monadologia........................ 129
Princípios da natureza e da graça fundados na razão.... 151
«
Apresentação

Em fevereiro de 1686 Leibniz escreveu uma carta ao


Landgrave Ernest de Hesse-Rheinfels em que fez, pela pri-
meira vez, referência ao texto que, posteriormente, ficaria
conhecido como Discurso de metafísica. Segundo o filósofo,
estando em um lugar no qual, durante alguns dias, não tinha
nada a fazer , fez um pequeno discurso de metafísica . Uma
leitura prematura dessas palavras, aliada ao fato de este
texto não ter sido publicado em vida pelo filósofo, poderia
levar à falsa suposição de que Leibniz não atribuía muita im-
portância a esse pequeno discurso - escrito talvez por falta
do que fazer. Na verdade, Leibniz, então bibliotecário em
Hanover e conselheiro de justiça, se referia provavelmente
ao pouco tempo que lhe restava devido às tarefas exigidas
por suas funções oficiais. Além disso, embora não se possa
dizer se, ao escrever o discurso, Leibniz tinha a intenção de
atingir um grande público, o filósofo submeteu o texto (ou
pelo menos o sumário dele) ao crivo de Arnauld, então um
teólogo conhecido e representante ilustre do pensamento
na França - aliás, a referida carta é justamente um pedido ao
Landgrave para que sirva de intermediário entre o autor e
Arnauld. Ademais, nos anos imediatamente anteriores à reda-
ção do Discurso de metafísica, Leibniz publicou seu Nova
methoduspro maximis et minimis (outubro de 1684), um ar-
tigo dedicado à exposição do cálculo infinitesimal, e as Me-

VII
G. W. Leibniz

ditationes de cognitione, veritate et ideis (novembro de 1684),


em que se posicionava no debate, que opunha Arnauld e
Malebranche, sobre a natureza das idéias. No mesmo ano
em que iniciou a troca de cartas com Arnauld, Leibniz pu-
blicou ainda um texto que deu origem a uma polêmica com
os cartesianos, Brevis demonstratio erroris memorabilis Car-
tesii. Assim, o período da redação do Discurso de metafísica
foi também um momento em que Leibniz, então com cerca
de 40 anos, queria dar a conhecer suas idéias, queria cons-
truir um lugar para si mesmo nos debates que ocupavam
os pensadores da época. O que talvez justifique o tom par-
ticularmente polêmico do Discurso e as inúmeras referências
não apenas a Descartes, mas também a Espinosa, Male-
branche e à tradição escolástica. O Discurso de metafísica é
parte dessa tomada de posição.
Mas qual é a importância deste texto - um dos mais cé-
lebres do autor e aclamado por tantos comentadores como
a primeira formulação do sistema filosófico de Leibniz no
interior da vasta obra leibniziana? Quando redigiu o Dis-
curso de metafísica, provavelmente entre o fim de 1685 e o
início de 1686, Leibniz já se aventurara nos terrenos da ju-
risprudência, física, metafísica, lógica, matemática, teologia;
já esboçara projetos políticos e religiosos; mantinha uma
correspondência com diferentes personalidades da época;
publicara resultados parciais de suas pesquisas (muitos re-
tomados no corpo do Discurso)... O que faz do Discurso de
metafísica um texto singular entre todos os outros? De certa
forma é o próprio Leibniz quem, no § 32 do Discurso, res-
ponde a essa questão: o Discurso trabalha o grande prin-
cípio da perfeição das operações de Deus e o da noção da
substância que encerra todos os seus acontecimentos com
todas as suas circunstâncias . Em outras palavras, ao abor-
dar a ação do Criador e a noção de substância individual,
este texto define princípios gerais da metafísica leibniziana,
apresentando, pela primeira vez em conjunto, temas essen-
ciais que inspirarão as grandes obras posteriores e que se

VIII
Discurso de metafísica e outros textos.

encontravam, até então, dispersos em diferentes textos. Cer-


tamente, seria um equívoco querer definir o Discurso de me-
tafísica como a primeira exposição, em sentido cronológico,
do sistema leibniziano. Aliás, a noção de sistema em uma
obra que, como afirma M. Fichant, está em perpétuo movi-
mento interior, um devir que não se completa em nenhuma
fórmula acabada - tal como mostram as variantes genéticas
dos textos de Leibniz publicados na edição da Academia de
Berlim e de Gõttingen1 -, é uma noção problemática, por mais
que haja um consenso entre muitos dos estudiosos em con-
siderar textos da velhice do filósofo, tais como a Monado-
logia e os Princípios da natureza e da graça, como exposi-
ções sistemáticas. Para comentadores da filosofia de Leibniz
como B. Russell, L. Couturat, E. Cassirer, J. Baruzi, Y. Bela-
val, entre outros, esse filósofo é um filósofo de sistema, e,
embora não tenha exposto esse sistema em uma obra úni-
ca, seria possível reconstituí-lo a partir dos vários textos e
de temas centrais (a lógica, a noção de substância etc.) es-
colhidos como origem para essa reconstrução. Essa multi-
plicidade de origens a partir das quais se pensa o sistema
leibniziano não é, segundo M. Serres2, um problema se forem
pensadas como perspectivas complementares e não exclu-
dentes - o interesse dessa interpretação está em ver que o
sistema leibniziano comportaria diferentes interpretações
ou pontos de vista tal como é o mundo para o próprio Leib-
niz. Comentadores mais recentes, como L. Bouquiaux 3, no
entanto, são descrentes em relação à possibilidade de re-

1. A edição da Academia (iniciada em 1900 pelas academias da Prússia e


da França, cuja colaboração foi inten'ompida pela guerra em 1914; publicou os
primeiros volumes, sob a direção alemã, em 1923), mesmo com as dificuldades
impostas pela história alemã até a reunificação, já conta hoje com mais de 40 vo-
lumes. Cf. Fichant, M. irt Magazine Littéraire, nQ 416, janeiro de 2003, p. 25.
2. Cf. Serres, M. Le Système de Leibniz et ses modeles mathématiques, Pa-
ris: PUF, 1982 [1968],
3. Cf. Bouquiaux, L. Préface , in Leibniz, Discours de Métaphysique suivi
de Monadoiogie, Paris: Gallimard, 1995.

IX
G. W. Leibniz

construir um sistema leibniziano e pensar os vários textos


de Leibniz como capítulos de uma mesma obra de fato,
seria desconsiderar as idas e vindas do próprio filósofo e a
maneira que tem, em diferentes momentos de sua obra, de
encarar os mesmos problemas ou de defrontar-se com pro-
blemas novos a cada nova circunstância.
O Discurso de metafísica seria, para os partidários da
idéia de sistema, um texto privilegiado, já que anunciaria,
pela primeira vez, um conjunto de temas que se fecharia de-
finitivamente como sistema com a Monadologia e os Princí-
pios da natureza e da graça, ambos de 1714. É claro, por-
tanto, que, nessa perspectiva, os temas desses dois últimos
textos não seriam propriamente novidade, não seria o fato
de resumirem as principais teses leibnizianas que os tornaria
expressão de um sistema filosófico, seria antes a forma de
apresentar motivos filosóficos que apareceram em conjun-
to trinta anos antes no Discurso de metafísica que significa-
ria uma visão sistemática. A Monadologia e os Princípios da
natureza e da graça estariam estruturados à maneira de um
sistema. O que significa isso?
Quase três décadas separam a redação do Discurso de
metafísica e a da Monadologia e dos Princípios da nature-
za e da graça. Mas estes textos não estão separados apenas
pelo tempo; além de pequenas diferenças enumeráveis, a
estrutura deles é essencialmente diferente. A primeira dife-
rença notável é o abandono, nos textos de 1714, do tom irô-
nico e polêmico que definia o Discurso de metafísica. Expli-
ca-se: os Princípios da natureza e da graça foram escritos
para o príncipe Eugênio de Sabóia, admirador de Leibniz que,
então, já gozava de certa notoriedade. Por muito tempo acre-
ditou-se que o texto destinado ao príncipe seria a Monado-
logia - talvez venha daí a celebridade, sugere A. Robinet em
sua edição . Sabe-se hoje que a Monadologia foi escrita para

4. Cf. Robinet, A. Principes de la nature et de la grâce fondés en raison.


Principes de la philosophie ou Monadologie, publiées intégralement d'après les

X
Discurso de metafísica e outros textos.

um também admirador de Leibniz ligado ao duque de Or-


leans, Rémond, que queria encaminhar o texto ao poeta Fra-
guier para que este o transformasse num poema. Mais do
que um posicionamento nos debates de sua época, mesmo
com referências a Descartes e a Bayle, por exemplo, estes tex-
tos mostram um Leibniz preocupado em expor temas essen-
ciais de sua filosofia (e de uma maneira absolutamente pes-
soal) e não em polemizar com seus contemporâneos.
Essa maneira absolutamente pessoal de expor temas
essenciais de sua filosofia representaria uma ruptura em re-
lação ã estrutura que caracterizava a exposição do Discurso
de metafísica. Este apresenta um ritmo binário de descen-
são, de Deus às criaturas, e ascensão, do mundo a Deus, ex-
primindo uma espécie de fluxo e refluxo ontológicos, o
que, como mostra Le Roy\ lembra, por um lado, o plano de
apresentação do Tratado da natureza e da graça de Male-
branche e, por outro, a ordem de exposição das Sumas me-
dievais e de Sistemas neoplatônicos. Leibniz apresenta seu
pensamento no Discurso seguindo este método clássico:
parte da idéia de Deus para o estudo das criaturas, definin-
do o mundo físico, e, em seguida, examina as substâncias in-
dividuais para mostrar, por fim, a união dos espíritos com
Deus na Cidade de Deus.
O texto divide-se, assim, em cinco grandes momentos ar-
gumentativos: num primeiro momento (§§ 1-7), sem se de-
ter nas provas da existência de Deus, Leibniz aborda a su-
prema perfeição divina como fundamento da excelência de
sua obra (§ 1). A conseqüência dessa perfeição é que, contra
aqueles que recusam a bondade intrínseca das coisas cria-
das (§ 2) ou que acreditam que Deus poderia ter feito me-
lhor (§ 3), o mundo é intrinsecamente bom e, por isso, o amor

manuscrits de Hanovre, Vienne et Paris et présentés d'après des lettres inédites,


Paris: PUF, 1954.
5. Cf. Le Roy. Introduction, texte et commentaire , in Leibniz, Discours
de Métaphysique et Correspondance avec Arnauld, Paris: Vrin, 1966.

XI
G. W. Leibniz

do homem por seu Criador não deve ser passivo ou quie-


tista, o homem deve contribuir para o bem geral (§ 4). A per-
feição divina explica ainda o ato de criação que gera uma
riqueza de efeitos através de meios simples (§ 5), donde o
mundo ser obra de uma única vontade geral e eficaz que
se exprime na ordem criada (§§ 6-7). No segundo momento
do texto (§§ 8-16), Leibniz passa a falar das substâncias in-
dividuais criadas, definindo sua natureza, em analogia com
o sujeito lógico, como sujeito metafísico que contém desde
sempre todos os seus atributos: a substância é um mundo
completo (§§ 8-9). Eis por que se pode retomar a noção es-
colástica de forma substancial, embora sem aplicá-la na ex-
plicação particular dos fenômenos, para explicar a nature-
za da substância e os corpos (§§ 10-12). Essa teoria da subs-
tância individual esclarece a questão da liberdade humana:
a inerência do predicado ao sujeito não se dá por uma cone-
xão necessária, mas contingente (§ 13). Por fim (§§ 14-15),
Leibniz explica a relação entre essas substâncias individuais
cujas naturezas envolvem todos os seus acontecimentos: se
cada uma é um mundo à parte, uma perspectiva singular do
mesmo conjunto de fenômenos, elas não agem umas sobre
as outras, seus fenômenos se entrecorrespondem e todas ex-
primem a totalidade do mundo criado, incluindo o concurso
extraordinário de Deus compreendido na ordem universal
(§ 16). Num terceiro momento argumentativo (§§ 17-22), Leib-
niz passa ao estudo do universo físico mostrando, primeiro,
como a noção de força, e não a de quantidade de movimen-
to como supunha Descartes, exprime a natureza dos fenô-
menos físicos (§§ 17-18); e, segundo, como a noção de fina-
lidade, que reconduz a física a seu fundamento metafísico,
fornece a explicação do universo físico (§§ 19-22). Tendo
completado o momento de descensão do Discurso de me-
tafísica com o exame do universo físico, Leibniz volta, na
quarta parte do texto (§§ 23-31), a tratar das substâncias ima-
teriais a fim de pensar o retorno a Deus que os espíritos po-

XII
Discurso de metafísica e outros textos.

dem fazer pela via do entendimento (§§ 23-29) - o filósofo


examina a natureza (§§ 23-25) e a origem (§§ 26-29) das idéias
- e pela via da vontade (§§ 30-31) - Leibniz distingue incli-
nação e vontade, a espontaneidade livre que tende para o
bem (§ 30) e apresenta sua doutrina da graça (§ 31). Leibniz
encerra a ascensão do Discurso, na quinta parte argumenta-
tiva do texto (§§ 32-37), mostrando como se dá a união dos es-
píritos com seu Criador na Cidade de Deus.
Na Monadologia e nos Princípios da natureza e da gra-
ça, a ordem binária que caracterizava o Discurso dá lugar a
uma construção progressiva que parte do simples, a môna-
da, examinando a hierarquia dos seres, para o complexo, e
terminando pela consideração de Deus, como ser absoluta-
mente perfeito, e da união entre o Criador e os espíritos na
Cidade de Deus, que representa a harmonia entre o mundo
físico e moral ou o equilíbrio harmônico de um mundo hie-
rarquizado. A argumentação desses textos pode ser dividida
em três grandes momentos: no primeiro deles (Monadologia,
§§ 1-36; Princípios, §§ 1-6), Leibniz apresenta as mônadas ou
substâncias simples, considerando, primeiro, sua natureza
de um ponto de vista externo (a mônada é simples, sem ex-
tensão, sem figura, indivisível, não pode começar nem pere-
cer naturalmente, não pode ser modificada por outra subs-
tância) (Monadologia, §§ 1-7; Princípios, §§ 1-2) e de um
ponto de vista interno (a mônada é dotada de percepção, que
exprime a multiplicidade do mundo na unidade da subs-
tância, e apetição, a tendência de passar de uma percepção a
outras mais distintas) (Monadologia, §§8-17; Princípios, § 2);
e considerando, segundo, os graus de perfeição das môna-
das (Monadologia, §§ 18-36; Princípios, §§ 3-6). Nos seres
compostos há uma mônada central, que é seu princípio de
unidade, cercada por uma infinidade de outras mônadas
que constituem seu corpo orgânico (Princípios, § 3)· A mô-
nada nua ou enteléquia possui uma percepção e uma ape-
tição em sentido geral (Monadologia, §§ 18-24). A mônada

XIII
G. W. Leibniz

dotada de memória, ou alma, como no caso dos animais, é


capaz de consecuções empíricas que imitam a razão (Mona-
dologia, §§ 25-28; Princípios, §§ 4-5). E, finalmente, a mônada
dotada de razão, que conhece as verdades necessárias e eter-
nas e é capaz de reflexão, isto é, apercepção ou consciência,
é chamada de espírito (Monadologia, §§ 29-30; Princípios, § 5).
A partir da apresentação dos princípios que fundam o ra-
ciocínio dos espíritos, o princípio da contradição e o da razão
suficiente (Monadologia, §§ 31-36), Leibniz passa ao segun-
do grande momento da argumentação cujo tema é Deus (Mo-
nadologia, §§ 37-48; Princípios, §§ 7-9)· Trata, então, da exis-
tência de Deus (Monadologia, §§ 37-42; Princípios, §§ 7-8) e
de sua natureza (Monadologia, §§ 43-48; Princípios, § 9)·
Por fim, no terceiro grande momento de sua argumentação
(Monadologia, §§ 49-90; Princípios, §§ 10-18), Leibniz de-
duz da perfeição divina a perfeição do mundo (Princípios,
§§ 10-13), apresentando a harmonia universal (Monadolo-
gia, §§ 49-60; Princípios, § 13) e a hierarquia dos seres cria-
dos (Monadologia, §§ 61-90, que retomam os §§ 3 e 6 dos
Princípios), para mostrar como a natureza conduz à graça e
os espíritos, os mais elevados dos seres, entram em socieda-
de com o Criador na Cidade de Deus.
Para Boutroux6, é possível dizer que o percurso argu-
mentativo da Monadologia é inicialmente ascendente ou re-
gressivo, indo das criaturas para Deus, e depois descenden-
te ou progressivo, de Deus às criaturas. Ora, nesse sentido,
aparentemente, Leibniz não teria abandonado um ritmo bi-
nário de apresentação, teria apenas invertido a ordem de apre-
sentação do Discurso de metafísica. Apenas aparentemente,
porque a explicação do mundo no momento descendente da
Monadologia - e os Princípios da natureza e da graça re-
produzem a mesma ordem é também, como aponta Bou-

6. Cf. Boutroux, E. Éclaircissements", in Leibniz, La Monadologie, Paris:


Librairie Delagrave, 1925.

XIV
Discurso de metafísica e outros textos.

troux, uma explicação progressiva, ou seja, o mundo é con-


cebido a partir de sua causa, Deus; é a ação de ser essencial-
mente perfeito que explica a harmonia que define o mundo
criado. Como afirma Leibniz nos Princípios (§ 7), ao passar,
por um movimento regressivo que vai das coisas a sua causa,
das criaturas a Deus, não é mais possível falar como sim-
ples físicos; (...) devemos elevarmo-nos à metafísica nos
valendo do grande princípio pouco empregado habitual-
mente, que sustenta que nada se faz sem razão suficiente,
isto é, que nada ocorre sem que seja possível (...) dar uma
razão que baste para determinar por que é assim e não de
outro modo . Terminologias à parte seja o caminho ascen-
dente das mônadas a Deus, com a consideração da hierar-
quia do seres, um movimento progressivo do simples para o
complexo, seja esse caminho um movimento regressivo das
criaturas a sua causa -, o fato é que, nesse movimento de ex-
pressão de sua filosofia, Leibniz apresenta a questão funda-
mental de sua metafísica: por que o ser e não o nada?

* * *

O princípio de razão suficiente que exprime o axioma


nada é sem razão e dá inteligibilidade à pergunta pelo
Ser (nada é sem razão) parece definir mais que a passagem,
nos Princípios da natareza e da graça, de um registro físi-
co para um registro metafísico; esse princípio não caracte-
riza apenas o percurso argumentativo da filosofia de Leibniz
nesse texto, mas a própria concepção do que seja a filoso-
fia para Leibniz.
Dado o princípio de razão suficiente, a primeira pergun-
ta que temos o direito de formular será: porque bá algo e não
antes o nadai" (Princípios da natureza e da graça, § 7). Por
que o mundo existe? Podemos explicar as coisas do mundo
a partir de seus estados anteriores, um movimento por um
movimento anterior, um homem por outro anterior, através

XV
G. W. Leibniz

de um trânsito de um ente contingente a outro ente contin-


gente e assim sucessivamente. Cada vez que procuramos dar
a razão de algo existente no mundo, porque não encontra-
mos na própria coisa essa razão, somos levados a uma exis-
tência anterior no tempo que necessita ainda uma análise
semelhante. Mas, por mais que avancemos na pesquisa das
causas segundas, não encontramos, nesse progresso infini-
to, a razão da existência de um mundo simplesmente, nem
deste mundo. A razão da existência do mundo que vemos
e experimentamos deve estar fora dessa série de eventos con-
tingentes que o compõem, não como última causa da série
condicional, mas como causa transcendente, necessária e uni-
versal (Monaclologia, §§ 36-38). Considerando que a razão de
um existente só pode provir de um outro existente, deve-se
admitir a existência de um ser necessário e eterno: Deus.
Para Leibniz, há uma analogia entre o entendimento di-
vino, que ilumina, e o entendimento humano, iluminado
pelas mesmas leis da razão, e essa analogia garante o movi-
mento metafísico de superação da experiência. A reflexão
metafísica não prolonga a experiência, ela implica uma pas-
sagem ao limite e procura atingir o fundamento mesmo de
qualquer empirismo. Embora a experiência seja fundamental
não apenas para a constituição da ciência, mas, principal-
mente, para provocar o desenvolvimento de nossas rique-
zas implícitas (cf. Discurso de metafísica, § 27), deve ser en-
tendida como um procedimento provisório. Graças a ela so-
mos capazes de entender como as coisas do mundo estão
dispostas, mas não por que são postas. A pergunta que con-
duz a pesquisa filosófica não consegue encontrar eco no do-
mínio experimental: por quê? . O pensamento filosófico
procura explicações a priori; são as causas reais dos efeitos
que a ciência estuda e as razões dos fatos que constituem
seu objeto por excelência. Leibniz retoma a definição aris-
totélica da filosofia - a ciência dos princípios primeiros das
coisas , fazendo da busca de origens e de causas insensí-
veis sua idéia mestra.

XVI
Discurso de metafísica e outros textos.

A melhor maneira de conhecer é pelas causas e razões.


A causa é um princípio de explicação da ordem do mutável
(ou uma razão real); a razão, da ordem do imutável, já que
é causa não apenas dos nossos julgamentos, mas da pró-
pria verdade. Desse modo, a causa nas coisas corresponde
à razão (ou causa final) nas verdades. Dar a razão de algu-
ma coisa significa introduzir finalidade e, logo, inteligência;
por isso, o verdadeiro conhecimento de Deus, causa primei-
ra e razão última cie tudo, é a sabedoria mais elevada. A filo-
sofia consiste precisamente no pensamento da razão suficien-
te do mundo que é Deus: em Filosofia trata-se de dar razão,
fazendo conhecer de que maneira as coisas são executadas
pela sabedoria divina (Système nouveau de la nature, § 13).
Não se trata de desprezar uma explicação física do mun-
do. A ciência constitui uma ordem diferente da ordem filosó-
fica e é complementar a ela, não contraditória. A extrava-
gância seria embaralhar esses dois planos distintos (o que
não se confunde com a preocupação de um Leibniz conci-
liador na busca de acordo entre a linguagem metafísica e a
linguagem prática). Mesmo nas questões em que se percebem
problemas cuja solução exigiria um longo debate que colo-
casse em pauta princípios gerais, é possível proceder a uma
explicação particular que seja válida; de outra forma, se des-
conheceria as exigências da análise científica. A linguagem
metafísica possui o privilégio do rigor, mas a natureza deve
poder se explicar sem que se considere a existência de Deus;
assim, Leibniz preserva todos os direitos do método expe-
rimental e de uma linguagem mais próxima do senso comum,
de modo que se conceda autonomia à ciência. Essa expli-
cação, no entanto, permanece subordinada, em seu funda-
mento (não no detalhe), a afirmações metafísicas que a ultra-
passam: os princípios das ciências particulares (já reconhe-
cia Aristóteles) dependem de uma ciência superior que lhes
dá razão; e esta ciência superior deve ter o ser, e, conseqüen-
temente, Deus, origem do ser, por objeto (Essais de Tbéo-

XVII
G. W. Leibniz

dicée, II, § 184). Pois, como dizia Platão, uma coisa é a cau-
sa verdadeira... e outra, o que não passa de condições para
a causa poder ser causa... (Discurso de metafísica, § 20). É
desarrazoado admitir uma inteligência ordenadora das coi-
sas e, em seguida, recorrer unicamente às propriedades da
matéria para explicar os fenômenos. Anaxágoras e todos que
seguiram uma forma diferente de entender as coisas, deixa-
ram de perceber que, no estudo concreto dos fenômenos, é
preciso distinguir a causa final e as condições sem as quais
essa causa não pode ser eficaz. A explicação metafísica fun-
da e justifica a explicação física do mundo, mas se diferen-
cia profundamente dela. A tarefa do filósofo, que não queira
falar como simples físico, consiste em definir, em todos os
domínios, a ação de uma causa final a que se subordinam
as causas eficientes secundárias, mostrando a insuficiência
da consideração da causalidade física. Eis por que a primeira
pergunta que tem o direito de formular é por que há algo e
não antes o nada? (Princípios da natureza e da graça, § 7).
A reflexão filosófica exige, em última instância, que alcan-
cemos, em toda sua originalidade, o ato original que faz sur-
gir a ordem do mundo a partir do nada. O desejo do meta-
físico é remontar aos primeiros possíveis atributos de Deus,
e, embora Leibniz, numa atitude de reserva diante de sua pró-
pria definição de bem filosofar, admita a impossibilidade des-
sa tarefa infinita para uma criatura submetida às condições
de tempo e espaço, não concorda que o homem não possa
obter um conhecimento de Deus e explicar racionalmente
certos mistérios.
Não podemos compreender Deus, não entendemos tudo
o que sua noção encerra, mas somos capazes de explicá-lo.
Não podemos sondar a profundidade de Deus a respeito dos
fatos particulares, mas estamos em condição de precisar o
princípio universal de sua atividade. Não podemos enxer-
gar a conexão universal dos eventos; nos basta, entretanto,
uma demonstração a priori de que este é o melhor dos mun-

XVIII
Discurso de metafísica e outros textos.

dos possíveis. Assim, embora um conhecimento perfeito das


coisas que nos cercam esteja acima das nossas possibilida-
des, as nossas faculdades são suficientes para nos levar ao
conhecimento do Criador, e, por conseguinte, a uma visão
mais clara das coisas nos aproximando clo olhar penetrante
de Deus. Para Leibniz, é na metafísica que essa proximidade
a Deus, ou, em outras palavras, a espiritualidade do homem,
se manifesta de modo mais vigoroso, fazendo com que a di-
ferença de natureza entre Criador e criatura se desvaneça e
apareça como simples diferença de grau.

* * *

Ora, se considerarmos que a pergunta que conduz a


investigação de Leibniz e determina inclusive sua perspec-
tiva a respeito da filosofia é a pergunta pela razão do ser,
então é inegável que há uma unidade especulativa na obra
leibniziana. Resta saber se essa unidade especulativa é ori-
gem de um sistema e se os textos do filósofo podem, então,
ser vistos como capítulos de uma mesma obra ou versões de
um sistema acabado.
Se há sistema, então o Discurso de metafísica poderia
ser o texto inaugural de uma nova fase no pensamento de
Leibniz, encerrando o momento de formação e dando iní-
cio às tentativas de formulação clo sistema leibniziano que,
a partir de então, permaneceria sempre o mesmo, buscan-
do a forma mais acabada de expressão, forma essa que o fi-
lósofo construiria na Monadologia e nos Princípios da natu-
reza e da graça.
Todavia, a pergunta pelo ser é uma questão bastante
ampla para englobar não apenas os três textos aqui apre-
sentados, mas muitos outros que poderiam, todos, ser vistos
como perspectivas parciais dessa mesma busca pela razão do
ser. Além disso, as diferenças entre os três textos não devem
ser ignoradas: se elas podem, em parte, ser explicadas pelas

XIX
G. W. Leibniz

datas de redação, a distância temporal não é jamais uma ra-


zão suficiente delas7. Vale notar, por exemplo, que as refe-
rências às Escrituras e aos Santos Padres, presentes em todo
o Discurso de metafísica, são escassas nos outros dois tex-
tos, talvez porque a perspectiva predominante naquele seja
a perspectiva teológica; daí a razão do Discurso se concen-
trar, ao falar das substâncias criadas, nas almas racionais e
em sua relação com Deus, enquanto a Monadologia e os Prin-
cípios apresentam toda a hierarquia dos seres, das mônadas
nuas ou enteléquias aos espíritos, trazendo contribuições da
biologia da época que não aparecem no texto de 1686.
Para concluir, podemos dizer que os três textos aqui reu-
nidos são fundamentais para a compreensão da filosofia de
Leibniz, são textos de síntese e estão inseridos em uma uni-
dade de pensamento como textos que procuram responder
a questão essencial da metafísica leibniziana. Mas tomá-los
como textos de sistema pode levar a desconsiderar as dife-
renças que eles guardam entre si e as particularidades do
pensamento de Leibniz em cada um daqueles momentos: cor-
re-se o risco de interpretar o Discurso de metafísica como um
mero esboço da Monadologia, ou os Princípios da nature-
za e da graça como a conclusão lógica do Discurso. O con-
texto em que os textos de 1714 foram redigidos é fundamen-
talmente outro em relação ao ambiente em que Leibniz vivia
em 1686. Talvez possamos dizer que, sim, os temas essen-
ciais da metafísica leibniziana estavam postos desde o Dis-
curso de metafísica - ou, antes, as opções filosóficas essen-
ciais já estavam feitas em 1686. Mas como temas essenciais
que seriam estudados, pensados, depurados por trinta anos.

7. Seria interessante estudar também as diferenças que a Monadologia e


os Princípios da natureza e da graça guardam entre si (o que não fizemos aqui,
já que nos interessava salientar as diferenças desses textos em relação ao Dis-
curso de metafísica): embora as grandes linhas argumentativas desses textos se-
jam muito próximas, há pequenas diferenças no interior dessa ordem geral, como
talvez tenha aparecido na descrição das partes componentes desses textos.

XX
Discurso de metafísica e outros textos.

Não se pode dizer que apenas a forma de apresentação des-


ses temas essenciais tenha mudado - mesmo que se veja
nessa mudança de expressão a constituição de um sistema.
Não se pode afirmar sem ressalvas que a noção completa de
substância seja equivalente à mônada simples. Se o Discurso
de metafísica, a Monadologia e os Princípios da natureza
e da graça são textos de síntese das grandes teses metafísi-
cas de Leibniz - e nesse sentido textos privilegiados para
quem quer se introduzir no pensamento deste autor é pre-
ciso tomar o cuidado de ler as diferenças que eles guardam
entre si como diferenças, para não enrijecer um pensamen-
to vivo.

TESSA MOURA LACERDA

XXI
Cronologia

1646. Nascimento de Leibniz em Leipzig, Alemanha, em l s


de julho.
1648. Tratados de Vestfália, que favoreciam a França, pondo
fim à Guerra dos Trinta Anos.
l652-l66l. Leibniz estuda na Nicolái-Schule e lê livros varia-
dos da biblioteca deixada por seu pai (que havia sido
jurisconsulto e professor de moral na Universidade de
Leipzig), morto este ano.
l66l. Ingressa na Universidade de Leipzig onde recebe
ensinamentos aristotélico-tomistas; segue o curso de
Jakob Thomasius, historiador da Filosofia e pai de
Christian Thomasius.
1663. Apresenta tese de conclusão cle curso, Disputatio me-
taphysica de principio individui, que é publicada. No
verão segue o curso de Erhard Weigel, matemático, ju-
rista e metafísico, na Universidade de lena. No outono
retorna a Leipzig e se dedica à jurisprudência.
1664. Morre a mãe de Leibniz. Estudos jurídicos com seu tio,
o jurista Johann Strauch. Torna-se mestre em Filosofia
com o texto Specimen quaestionum philosophicarum
exjure collectarum.
1665. Disputatio jurídica de conditionibus.
1666. Publicação clo texto De arte combinatoria. Recebe o
título de Doutor em Direito em Altdorf (nas cercanias

XXIII
G. W. Leibniz

de Nuremberg) com a tese De casibus perplexis injure


e, ao mesmo tempo, o convidam para ser professor
nessa universidade (mas ele não aceita). Filia-se a uma
sociedade secreta de interessados em alquimia, da qual
será secretário por dois anos.
1667. Reencontra o Barão J. C. von Boineburg, protestante
convertido ao catolicismo, ex-ministro chefe do Elei-
tor de Mainz, J. P. von Schõnborn. Leibniz dedica a
Boineburg seu texto Nova Methodus discedae docen-
daeque jurisprudentiae. Por intermédio de Boineburg
consegue a nomeação como assistente legal do con-
selheiro legal do Eleitor.
1668. Publicação, por intermédio do Barão de Boineburg, da
Confessio naturae contra atheistas. Pressionado pela
aliança entre a Holanda, a Inglaterra e a Suécia, Luís
XIV assina a paz de Aix-de-Chapelle. Leibniz escreve
Consilium Aegyptiacum, um projeto de conquista do
Egito para a França (para tirar Luís XIV da Europa e di-
minuir a pressão francesa na fronteira sudoeste do
império alemão), muito parecido com o que Napoleão
executou um século e meio depois. Projeto de Demons-
trationes Catholicae, para a reunião das Igrejas católi-
ca e protestante. Escreve Specimen demonstrationum
politicarum pro eligendo rege Polonorum.
1668-1669. Projeto para uma revista, Semestria Litteraria, equi-
valente ao Journal des Savants. Escreve Réflexions sur
l établissement en Allemagne d une Académie ou So-
ciété des sciences; e Defensio Trinitatis per nova re-
perta logica.
1670. Leibniz é promovido ao cargo de assessor da Corte
de Apelações do eleitorado de Mainz. Escreve Securi-
taspublica interna et externa (um projeto de aliança
dos estados do Império), Dissertatio de stilo philoso-
phico Nizolii, Von der Allmacht. Escreve duas cartas a
Hobbes. Inventa a máquina de calcular aritmética (que

XXIV
Discurso de metafísica e outros textos.

extraía raízes), submarinos, bombas de ar que permi-


tiriam navegar contra o vento etc.
1671. Publicação de Hypothesisphysica nova, composta da
neoria motus abstracti (dedicada à Academia Fran-
cesa de Ciências) e da Tloeoria motus concreti (dedica-
da a Royal Society de Londres).
1672. Em março o Eleitor de Mainz envia Leibniz a Paris em
missão diplomática. Leibniz se encontra com Arnauld e
Malebranche; é iniciado nas matemáticas por Huygens;
e tem a ocasião de consultar os manuscritos matemá-
ticos de Pascal. Em maio Luís XIV declara guerra a Ho-
landa. Em dezembro o Barão de Boineburg morre.
1673- Entre janeiro e março vai a Londres, onde encontra
Oldenburg e Boyle, e é eleito membro da Royal So-
ciety. Em fevereiro morre o Príncipe Eleitor de Mainz,
J. Philipp. Escreve Confessio Philosophi, que entrega
a Arnauld. Apresenta sua máquina de calcular à Acade-
mia de Ciências.
1675-1676. Encontra Malebranche, Cordemoy, Foucher,
Tschirnaus, Van den Ende, Clerselier (que lhe confia
manuscritos de Descartes), Gallois (diretor do Journal
des Savants'), Christian Huygens, entre outros. Traba-
lha no cálculo infinitesimal.
1676. Aceita o posto de Bibliotecário e Conselheiro na Corte
de Hanôver, oferecido pelo Duque Johann Friedrich
von Brunswick-Lüneburg (católico), e deixa, então, Pa-
ris, passando por Londres (onde encontra Collins e
Newton), por Haia (onde conhece Espinosa) e por
Amsterdã (conhece o microscopista Leeuwenhoek). Es-
creve Quod Ens perfectissimum existit; traduz para o
latim o Fédon e o Teeteto de Platão; escreve Pacidius
Philalethi. Em dezembro chega a Hanôver.
1677. Leibniz escreve Caesarini Furstenerii Tractatus; e En-
tretien de Philarète et Eugène. Morte de Espinosa.

XXV
G. W. Leibniz

1678. Leibniz é nomeado Conselheiro Áulico (Hofrat) em


Hanôver. Mantém correspondência com Bossuet et Spi-
nola, sobre a reunião das Igrejas. Escreve Qiiid sit idea
e notas sobre a Ética I de Espinosa.
1679. Paz de Nimègue. Leibniz escreve Dialogue entre un
habile politique et un ecclésiastique d une pieté recon-
nue, e trabalhos sobre a aritmética binária (De pro-
gressioone dyadica). Morte de Hobbes.
1680. Morte do Duque Johann Friedrich; seu irmão Ernst
August o substitui. Até 1684 viaja bastante a Harz, en-
carregado de fazer invenções práticas que auxiliem a
exploração das minas.
1682. Escreve Unicum Optcae, Catoptricae et Dioptricae
Principium. Contribui para a fundação da publicação
Acta Eruditorum de Leipzig.
1683· Europa em guerra; Viena é libertada dos turcos em
12 de setembro.
1684. Trégua de Ratisbonne em 15 de agosto. Leibniz escre-
ve Consultation touchant la guerre ou l accomode-
ment avec la France, e Mars Christianissimus. Publica
Nova methodus pro maximis et minimis (em que ex-
põe o cálculo infinitesimal) e Meditationes de cogni-
tione, veritate et ideis.
1685. Revogação do Edito de Nantes. Leibniz escreve Remar-
ques sur un livre intitulé Nouveaux intérêts des Prin-
ces de l Europe. É nomeado historiógrafo da Casa de
Brunswick.
1686. Publicação de Brevis demonstratio erroris memorabi-
lis Cartesii (no qual opõe sua teoria física à de Descar-
tes). Termina de redigir o Discurso de metafísica e en-
via o sumário para Arnauld. Escreve ainda Systema
theologicum; e Generales Inquisitiones de analysi no-
tionum et veritatum. Os países protestantes revidam a
revogação do Edito de Nantes com a formação da Liga

XXVI
Discurso de metafisica e outros textos.

de Augsburgo, que incluía a Áustria, a Suécia e a maio-


ria dos principados alemães.
1687. Leibniz viaja para a Itália passando por cidades alemãs
e pela Áustria em busca de documentos sobre a his-
tória da Casa de Brunswick e sua ligação com a Casa
Italiana do Leste. Em Frankfurt encontra Job Ludolf,
orientalista e Conselheiro do Imperador. Escreve Ré-
plique à 1 Abbé Catelan (sobre a conservação do movi-
mento) e Lettre sur un Príncipe général (em que ex-
plica as leis da natureza).
1688. Chega a Viena em maio (onde ficará até fevereiro de
1689). Retoma o contato com Spinola, agora bispo de
Neustadt.
1689. Em outubro encontra os matemáticos Nazari e Auzout,
e Padre Grimaldi. Redação de Phoranus e da Dyna-
mica de potentia. Recusa a direção da biblioteca clo
Vaticano.
1689-1690. Viaja a Nápoles, Florença, Bolonha, Modena, Fer-
rara; mantém contato com pensadores. Entre feverei-
ro e março fica em Veneza. Escreve De linea isochrona
e De causa gravitatis et defensio sententiae suae con-
tra Cartesianos.
1690. Retorna a Hanôver depois de um ano e meio de via-
gens (em que, entre outras coisas, estudou geologia, o
pensamento chinês, demonstrou a priori a conservação
de força viva etc.).
1691 · É nomeado Bibliotecário de Wolfenbüttel pelo Duque
Anton Ulrich. Leibniz retoma a correspondência com
Bossuet sobre a reunião das Igrejas. Escreve Consul-
tatio sur les Affaires générales à lafin de la campag-
ne de 1691, De legibus naturae et vera aestimatione
virium motricium contra Cartesianos e Protogaea. Ini-
cia correspondência com jesuítas da China.
1692. Leibniz contribui para tornar Ernst August eleitor de
Hanôver (desde de 1685 procurou conseguir um nono

XXVII
G. W. Leibniz

eleitorado que ficasse nas mãos dos protestantes).


Inicia a amizade com a eleitora Sophie, irmã da prince-
sa Elisabeth. Édito de tolerância de K ang-hi, imperador
da China, em favor da religiosa cristã. Leibniz redige
Animadversiones in partem generalem principium
cartesianorum.
1693· Redação de Codex juris gentium diplomaticus (cujo
prefácio é uma análise das noções de justiça e de di-
reito); de Régle générale de la composition des mou-
vements.
1694. Redação de De primae philosophiae emendatione et
notione substanciae. Leibniz rompe com Bossuet.
1695. Escreve Système nouveau de la nature et de la com-
munication des substances, cuja publicação no Jour-
nal des Savants é seguida de vários Esclarecimentos.
1696. Escreve Projet de 1 education d un Prince.
1697. Publicação de De rerum originatione radicali. Escre-
ve Tentamen Anagogicum.
1698. Publicação do De ipsa natura sive vi insita actioni-
busque creaturarum. Morte de Ernst August, que é
sucedido por seu irmão Georg Ludwig. Retomada das
discussões irênicas entre as Igrejas protestantes e da
correspondência com Bossuet. Inicia correspondência
com De Volder. Inicia amizade com a eleitora Sophie
Charlotte, irmã de Georg Ludwig. Leibniz circula em
Berlim e em Hanôver.
1698-1699. Querelas sobre a invenção do cálculo infinitesimal.
1699· E nomeado membro da Academia de Ciências de Paris.
1700. Fundação da Sociedade de Ciências de Berlim de acor-
do com um projeto de Leibniz. Leibniz funda o Mo-
natlicher Auszug (dirigido por seu secretário Eckart).
Publicação da tradução francesa de Coste do Ensaio
de Locke.
1701. Leibniz inicia a publicação dos documentos que ha-
via recolhido sobre a história da Casa de Brunswick

XXVIII
Discurso de metafísica e outros textos.

e a história da Alemanha. Rompe definitivamente com


Bossuet.
1702. Guerra contra a França e a Espanha (aliança do Impé-
rio Romano-Germânico, da Inglaterra e da Holanda).
Leibniz escreve Considérations sur la doctrine d un
esprit universel unique.
1703. Início da redação dos Nouveaux Essais sur l Entende-
ment Humain (publicado apenas em 1765) em que
critica o Essay concerning human understanding de
Locke.
1704. Morte de Locke.
1705. Leibniz escreve Discours de la conformité de la foi
avec la raison, que será a introdução da Teodicéia. Pu-
blica Considérations sur les principes de vie et sur les
natu res plastiques. Exame da natureza dos caracteres
chineses. Morte de Sophie Charlotte, rainha da Prússia.
1706. Início da correspondência com o jesuíta Des Bosses.
1709· Escreve Causa Dei assertaper justitian ejus.
1710. Publicação dos Essais de Tloeodicée sem o nome do
autor.
1711. Encontro com o Czar Pedro, o Grande, que o nomeia
Conselheiro Privado (Leibniz deveria codificar e moder-
nizar a legislação). Inicia projeto cle uma Academia de
Ciências em São Petersburgo.
1712-1714. Leibniz fica em Viena, onde o imperador o no-
meia seu Conselheiro Particular.
1714. Conhece o príncipe Eugênio de Sabóia, para quem
dedica os Princípios da natureza e da graça. Escreve
a Monadologia. Morte de Anton Ulrich e da eleitora
Sophie. Em 12 de agosto, Georg Ludwig torna-se Geor-
ge I na Inglaterra e se recusa a realizar o pedido de
Leibniz, que queria seguir com ele para a Inglater-
ra. Leibniz se instala, então, novamente em Hanôver.
1715. Correspondência com Clarke.

XXIX
_________________________________ G. W. Leibniz______________________________________

1716. Lettre à M. de Rém.ond sur la théologie naturelle des


Chinois. Leibniz envelhece no isolamento e é vítima
de uma crise de gota. Em 14 de novembro morre em
Hanôver e é enterrado miseravelmente.

XXX
DISCURSO DE METAFÍSICA

Tradução
MARILENA CHAUI

Revisão e notas
TESSA MOURA LACERDA
L Da perfeição divina e de que
Deus faz tudo da maneira mais
desejável ("souhaitable)1.

A noção mais aceita e mais significativa que possuímos


de Deus exprime-se muito bem nestes termos: Deus é um
ser absolutamente perfeito2. Não se tem considerado, po-
rém, devidamente, suas conseqüências e, para aprofundá-
las mais, convém notar que há na natureza várias perfei-
ções muito diferentes, possuindo-as Deus todas reunidas e
que cada uma lhe pertence no grau supremo. É preciso
também conhecer o que é a perfeição. Eis uma marca bem
segura dela, a saber: formas ou naturezas insuscetíveis do
último grau não são perfeições, como, por exemplo, a na-
tureza do número ou da figura; pois o número maior de to-
dos (ou melhor, o número dos números), bem como a maior
de todas as figuras, implicam contradição; mas a máxima
ciência e a onipotência não encerram qualquer impossibili-
dade. Por conseguinte, o poder e a ciência são perfeições 3,
e enquanto pertencem a Deus não têm limites. Donde se
segue que Deus, possuindo suprema e infinita sabedoria,
age da maneira mais perfeita, não só em sentido metafísico,
mas também moralmente falando, podendo, relativamente
a nós, dizer-se que, quanto mais estivermos esclarecidos e
informados sobre as obras de Deus, tanto mais dispostos
estaremos a achá-las excelentes e inteiramente satisfatórias
em tudo o que possamos desejar (souhaiter).

3
II. Contra os que sustentam que não
há bondade nas obras de Deus, ou
então que as regras da bondade e
da beleza são arbitrárias.

Assim, afasto-me muito da opinião dos que sustentam


que não há quaisquer regras de bondade e de perfeição na
natureza das coisas ou nas idéias que Deus tem delas, e que
as obras divinas são boas apenas pela razão formal que
Deus as fez. Se assim fosse, Deus, que bem sabe ser o seu
autor, não precisaria contemplá-las depois e achá-las boas,
como testemunha a Sagrada Escritura 4, que parece ter re-
corrido a esta antropologia apenas para nos mostrar que se
conhece sua excelência olhando-as nelas mesmas, mesmo
quando não se faça reflexão alguma sobre essa pura deno-
minação extrínseca que as refere à sua causa. Isto é tanto
mais verdadeiro quanto é pela consideração das obras que
se pode descobrir o operário. Portanto, é preciso que estas
obras tragam em si o caráter de Deus. Confesso que a opi-
nião contrária me parece extremamente perigosa e bastan-
te semelhante à dos últimos inovadores5, cuja opinião é a
beleza do universo e a bondade atribuída por nós às obras
de Deus não passarem de quimeras dos homens que conce-
bem Deus à sua maneira. Também me parece que afirman-
do que as coisas são boas tão-só por vontade divina e não
por regra de bondade destrói-se, sem pensar, todo o amor
cle Deus e toda a sua glória6. Pois, para que louvá-lo pelo
que fez, se seria igualmente louvável se fizesse precisamen-
te o contrário? Onde, pois, sua justiça e sabedoria, se afinal

4
Discurso de metafísica e outros textos.

apenas restasse determinado poder despótico, se a vontade


substituísse a razão e se, conforme a definição dos tiranos,
o que agrada ao mais forte fosse por isso mesmo justo?
Ademais, parece que toda vontade supõe alguma razão de
querer, razão esta naturalmente anterior à vontade. Eis por
que me parece inteiramente estranha a expressão de alguns
outros filósofos7 que consideram simples efeitos da vonta-
de de Deus as verdades eternas da metafísica e da geome-
tria e, por conseguinte, também as regras da bondade, da jus-
tiça e da perfeição. A mim, pelo contrário, me parece tão-
somente conseqüências de seu entendimento, o qual segu-
ramente em nada depende da sua vontade, assim como a
sua essência também dela não depende.

5
III. Contra os que crêem que
Deus poderia fazer melhor.

De forma alguma poderei também aprovar a opinião


de alguns modernos8 que ousadamente sustentam que aqui-
lo que Deus faz não possui toda perfeição possível e que
Deus poderia ter agido muito melhor. Pois parece-me que
as conseqüências dessa opinião são inteiramente contrárias
à glória de Deus: Uti minus malum habet rationem boni,
ita minus bonum habet rationem malef9. É agir imperfeita-
mente agir com menos perfeição do que se teria podido. É
desdizer a obra de um arquiteto mostrar que poderia fazê-
la melhor. Ataca-se, ainda, a Sagrada Escritura, que nos ga-
rante a bondade das obras de Deus. Porque, se isto fosse su-
ficiente, descendo as imperfeições ao infinito, de qualquer
modo que Deus tivesse feito sua obra, esta teria sido sem-
pre boa, comparada às menos perfeitas. Porém, uma coisa
não é louvável quando o é apenas dessa maneira. Creio,
também, haver uma infinidade de passagens da Sagrada
Escritura e dos Santos Padres favoráveis a minha opinião,
mas não muitas à desses modernos 10, que, no meu enten-
der, é desconhecida de toda a antiguidade e baseada ape-
nas no diminuto conhecimento que temos da harmonia ge-
ral do universo e das razões ocultas na conduta de Deus, fa-
zendo-nos temerariamente julgar que muitíssimas coisas po-
deriam ser melhoradas. Ademais, esses modernos insistem
em algumas sutilezas pouco sólidas, pois imaginam nada

6
Discurso de metafísica e outros textos.

existir tão perfeito que não possa haver algo mais perfeito,
o que é um erro11. Acreditam, também, salvaguardar assim
a liberdade de Deus, como se não constituísse a suprema
liberdade agir com perfeição segundo a razão soberana.
Pois acreditar que Deus age em algo sem haver nenhuma
razão da sua vontade, além de parecer de todo impossível,
é opinião pouco conforme a sua glória. Suponhamos, por
exemplo, que Deus escolha entre A e B e tome A sem razão
alguma de o preferir a B; digo ser esta ação de Deus pelo
menos indigna de louvor, porque todo louvor deve basear-
se em alguma razão não existente aqui ex hipothesi. Susten-
to, pelo contrário, não fazer Deus coisa alguma pela qual
não mereça ser glorificado.

7
IV. O amor de Deus exige completa
satisfação e aquiescência no tocante
ao que ele faz, sem que por isso seja
preciso ser quietista.

O conhecimento geral desta grande verdade, que Deus


age sempre da maneira mais perfeita e mais desejável pos-
sível, no meu entender é o fundamento do amor que deve-
mos a Deus sobre todas as coisas, pois aquele que ama
busca a sua satisfação na felicidade ou perfeição do objeto
amado e das suas ações. Idem velle et idem nolle vera ami-
citia est'2. Penso ser difícil bem-amar a Deus quando não se
está disposto a querer o que ele quer, mesmo quando fos-
se possível modificá-lo. Com efeito, os que não estão satis-
feitos com o que ele faz me parecem semelhantes àqueles
súditos descontentes cuja intenção não difere muito da dos
rebeldes13. Sustento, portanto, que, segundo estes princí-
pios, para agir em conformidade com o amor de Deus não
basta ter paciência à força, mas é preciso estar verdadeira-
mente satisfeito com tudo quanto nos sucedeu, segundo
sua vontade. Entendo esta aquiescência relativamente ao
passado, porque, quanto ao futuro, não é preciso ser quie-
tista, nem esperar, ridiculamente, de braços cruzados, o
que Deus fará, segundo aquele sofisma denominado pelos
antigos lógon áergon14, a razão preguiçosa, mas é mister
agir segundo a vontade presuntiva1' de Deus, tanto quanto
podemos julgá-la, esforçando-nos com todo o nosso poder
por contribuir para o bem geral e particularmente para o
aprimoramento e perfeição do que nos toca ou nos está

8
Discurso de metafísica e outros textos.

próximo e, por assim dizer, ao alcance. Porque, mesmo


quando o acontecimento porventura mostrasse não querer
Deus, presentemente, que a nossa boa vontade tenha o seu
efeito, daqui não se conclui não haver Deus querido que
nós fizéssemos o que fizemos. Pelo contrário, como é o me-
lhor de todos os senhores, nada mais exige além da reta in-
tenção e a ele pertence conhecer a hora e o lugar próprios
para fazer triunfar os bons desígnios.

9
V Em que consistem as regras de
perfeição da conduta divina e como
a simplicidade das vias equilibra-se
com a riqueza de efeitos.

É suficiente, portanto, ter em Deus esta confiança: ele


tudo faz para o melhor e nada poderá prejudicar a quem o
ama. Conhecer, porém, em particular, as razões que pude-
ram movê-lo a escolher esta ordem do universo, permitir
os pecados e dispensar as suas graças salutares de uma de-
terminada maneira, eis o que ultrapassa as forças de um es-
pírito finito, mormente se ele não tiver alcançado, ainda, o
gozo da visão de Deus. Entretanto, podem-se fazer algu-
mas considerações gerais a respeito da conduta da Providên-
cia no governo das coisas. Pode-se dizer que aquele que
age perfeitamente é semelhante a um excelente geômetra,
que sabe encontrar as melhores construções de um proble-
ma; a um bom arquiteto, que arranja o lugar e o alicerce,
destinados ao edifício, da maneira mais vantajosa, nada dei-
xando destoante ou destituído de toda a beleza de que é
suscetível; a um bom pai de família, que emprega os seus
bens de forma a nada ter inculto nem estéril; a um maqui-
nista habilidoso, que atinge seu fim pelo caminho menos
embaraçoso que se podia escolher; a um sábio autor, que
encerra o máximo de realidade no mínimo possível de vo-
lumes16. Ora, os mais perfeitos de todos os seres e os que
ocupam menos volume, isto é, os que menos se estorvam,
são os espíritos17, cujas perfeições são as virtudes. Eis por
que não se deve duvidar de que o principal fim de Deus

10
Discurso de metafísica e outros textos.

seja a felicidade dos espíritos e de que Deus o exercite na


medida em que a harmonia geral o permita. Sobre este pon-
to diremos algo mais, em breve. No que se refere à simpli-
cidade das vias de Deus, esta se realiza propriamente em
relação aos meios, como, pelo contrário, a variedade, rique-
za ou abundância se realizam relativamente aos fins ou efei-
tos18. E ambas as coisas devem equilibrar-se, como os gas-
tos destinados a uma construção com o tamanho e a bele-
za nela requeridos. Verdade é nada custar a Deus, bem me-
nos ainda do que a um filósofo que levanta hipóteses para
a fábrica do seu mundo imaginário, pois para Deus é sufi-
ciente decretar para fazer surgir um mundo real. Em maté-
ria de sabedoria, porém, os decretos ou hipóteses represen-
tam os gastos, ã medida que são mais independentes uns
dos outros, porque manda a razão evitar a multiplicidade
nas hipóteses ou princípios, quase como em astronomia,
onde o sistema mais simples é sempre preferido.

11
VI. Deus nada faz fora da ordem e nem
mesmo é possívelforjar acontecimentos
que não sejam regulares.

As vontades ou ações de Deus dividem-se, comumen-


te, em ordinárias e extraordinárias. Mas é bom considerar-
se que Deus nada faz fora da ordem. Assim, aquilo que é
tido por extraordinário, o é apenas relativamente a alguma
ordem particular estabelecida entre as criaturas, pois quan-
to à ordem universal tudo está em conformidade com ela 19.
E tão verdadeiro isto que, não só nada acontece no mundo
que seja absolutamente irregular, mas nem sequer tal se po-
deria forjar. Suponhamos, por exemplo, que alguém lance
ao acaso muitos pontos sobre o papel, como os que exer-
cem a arte ridícula da geomancia. Digo que é possível en-
contrar uma linha geométrica cuja noção seja constante e
uniforme segundo uma certa regra, de maneira a passar
esta linha por todos estes pontos e na mesma ordem em que
a mão os marcara. E se alguém traçar, de uma só vez, uma
linha ora reta, ora circular, ora de qualquer outra natureza,
é possível encontrar a noção, regra ou equação comum a
todos os pontos desta linha, mercê da qual essas mesmas
mudanças devem acontecer. Não existe, por exemplo, rosto
algum cujo contorno não faça parte de uma linha geomé-
trica e não possa desenhar-se de um só traço por certo mo-
vimento regulado. Mas, quando uma regra é muito comple-
xa, tem-se por irregular o que lhe está conforme. Assim,
pode-se dizer que, de qualquer maneira que Deus criasse o

12
Discurso de metafísica e outros textos.

mundo, este teria sido sempre regular e dentro de certa or-


dem geral. Deus escolheu, porém, o mais perfeito, quer dizer,
ao mesmo tempo o mais simples em hipóteses e o mais rico
em fenômenos, tal como seria o caso de uma linha geométri-
ca de construção fácil e de propriedades e efeitos espantosos
e de grande extensão. Recorro a estas comparações para es-
boçar alguma imperfeita semelhança com a sabedoria divi-
na e dizer algo a fim de poder, pelo menos, elevar o nosso
espírito a conceber de algum modo o que não se saberia bem
exprimir. Mas de maneira alguma pretendo explicar assim o
grande mistério de que depende todo o universo.

13
VII. Que os milagres são conformes
à ordem geral, embora contrários às
máximas subalternas, e do que Deus
quer ou permite por vontade geral
ou particular.

Ora, visto nada se poder fazer fora da ordem, pode-se


dizer que os milagres20 também estão na ordem como as
operações naturais, assim denominadas porque estão em
conformidade com certas máximas subalternas, a que cha-
mamos natureza das coisas; pois se pode dizer que esta na-
tureza é apenas um costume de Deus, do qual pode dis-
pensar-se, por causa de uma razão mais forte do que a que
o moveu a servir-se destas máximas. Quanto às vontades
gerais ou particulares21, conforme as encaremos, pode-se di-
zer que Deus tudo faz segundo a sua vontade mais geral,
conforme à mais perfeita ordem que escolheu; mas pode-
se também dizer que tem vontades particulares, exceções
dessas máximas subalternas sobreditas, porque a mais ge-
ral das leis de Deus, reguladora de toda a série do univer-
so, não tem exceção. Pode-se dizer ainda, também, que
Deus quer tudo o que é objeto de sua vontade particular;
mas quanto aos objetos de sua vontade geral, tais como as
ações das outras criaturas, particularmente das racionais,
com as quais Deus quer concorrer22, é preciso distinguir: se
a ação é boa em si, pode-se dizer que Deus a quer e orde-
na algumas vezes, mesmo que não aconteça; porém, se é
má em si e só por acidente se torna boa, porque a série das
coisas e especialmente o castigo e a reparação corrigem sua
malignidade e recompensam seu mal com juros, de sorte a

14
Discurso de metafísica e outros textos.

existir, finalmente, muito mais perfeição em toda a série do


que se todo o mal não tivesse sucedido, deve-se dizer que
Deus a permite, e não que ele a quer, embora concorra para
ela por causa das leis naturais que estabeleceu e porque
sabe tirar daí um bem maior.

15
VIII. Explica-se em que consiste
a noção de uma substância individual
a fim de se distinguirem as ações
de Deus e as das criaturas.

É muito difícil distinguir as ações de Deus das ações


das criaturas, pois há quem creia que Deus faz tudo, en-
quanto outros imaginam que conserva apenas a força que
deu às criaturas23. A seqüência mostrará como se podem di-
zer ambas as coisas. Ora, visto as ações e paixões pertence-
rem propriamente às substâncias individuais (actiones sunt
suppositorum), torna-se necessário explicar o que é tal
substância. É correto, quando se atribui grande número de
predicados a um mesmo sujeito e este não é atribuído a ne-
nhum outro, chamá-lo substância individual. Isto, porém,
não é suficiente, e tal explicação é apenas nominal 24. É pre-
ciso considerar, portanto, o que é ser atribuído verdadeira-
mente a um certo sujeito. Ora, consta que toda predicação
verdadeira tem algum fundamento na natureza das coisas,
e quando uma proposição não é idêntica, isto é, quando o
predicado não está compreendido expressamente no sujei-
to, é preciso que esteja compreendido nele virtualmente. A
isto chamam os filósofos in-esse, dizendo estar o predicado
no sujeito. É preciso, pois, o termo do sujeito conter sem-
pre o do predicado, de tal forma que quem entender per-
feitamente a noção do sujeito julgue também que o predi-
cado lhe pertence. Isto posto, podemos dizer que a nature-
za de uma substância individual ou de um ser completo
consiste em ter uma noção tão perfeita que seja suficiente

16
Discurso de metafísica e outros textos.

para compreender e fazer deduzir de si todos os predica-


dos do sujeito a que se atribui esta noção 25; ao passo que o
acidente é um ser cuja noção não contém tudo quanto se
pode atribuir ao sujeito a que se atribui esta noção. Assim,
abstraindo do sujeito, a qualidade de rei pertencente a Ale-
xandre Magno não é suficientemente determinada para um
indivíduo, nem contém as outras qualidades do mesmo su-
jeito, nem tudo quanto compreende a noção deste príncipe,
ao passo que Deus, vendo a noção individual ou a ecceidade
de Alexandre, nela vê ao mesmo tempo o fundamento e a ra-
zão de todos os predicados que verdadeiramente dele se po-
dem afirmar, como, por exemplo, que vencerá Dario e Poro,
e até mesmo conhece nela a priori (e não por experiência)
se morreu de morte natural ou envenenado, o que nós só
podemos saber pela história. Igualmente, quando se consi-
dera convenientemente a conexão das coisas, pode-se afir-
mar que há desde toda a eternidade na alma de Alexandre
vestígios de tudo quanto lhe sucedeu, marcas de tudo o que
lhe sucederá e, ainda, rastos de tudo quanto se passa no
universo, embora só a Deus caiba reconhecê-los todos.

17
IX. Cada substância singular exprime
todo o universo à sua maneira; e em
sua noção estão compreendidos todos
os seus acontecimentos com todas
as circunstâncias e toda a série
das coisas exteriores.

Seguem-se daqui vários paradoxos consideráveis, en-


tre outros, por exemplo, não ser verdade duas substâncias
assemelharem-se completamente e diferirem apenas solo
numero; e o que Santo Tomás afirma neste ponto dos an-
jos ou inteligências (quocl ibi omne individuum sit specie
ínfima)26 é verdade de todas as substâncias, desde que se
tome a diferença específica como a tomam os geômetras
relativamente às suas figuras; item, que uma substância só
poderá começar por criação, e só por aniquilamento pere-
cer; não se dividir uma substância em duas, nem de duas
se formar uma, e assim, naturalmente, o número de subs-
tâncias não aumenta nem diminui, embora freqüentemente
elas se transformem. Ademais, toda substância é como um
mundo completo e como um espelho de Deus, ou melhor,
de todo o universo, expresso 27 por cada uma à sua manei-
ra, quase como uma mesma cidade é representada diversa-
mente conforme as diferentes situações daquele que a olha.
Assim, de certo modo, o universo é multiplicado tantas ve-
zes quantas substâncias houver, e a glória de Deus igual-
mente multiplicada por todas essas representações de sua
obra completamente diferentes. Pode-se até dizer que toda
substância traz de certa maneira o caráter da sabedoria in-
finita e da onipotência de Deus e imita-o quanto pode. Pois
exprime, embora confusamente, tudo o que acontece no

18
Discurso de metafísica e outros textos.

universo, passado, presente ou futuro, o que tem certa se-


melhança com uma percepção ou conhecimento infinito; e
como todas as outras substâncias por sua vez exprimem esta
e a ela se acomodam, pode-se dizer que ela estende seu po-
der a todas as outras, à imitação da onipotência do Criador.

19
X. Que há algo sólido na opinião das
formas substanciais, mas que estas
formas não alteram em nada os
fenômenos e não devem de modo
algum ser empregadas para a
explicação dos efeitos particulares.

Parece que tanto os antigos como muitas pessoas há-


beis e acostumadas a meditações profundas, que há sécu-
los ensinaram teologia e filosofia, algumas sendo recomen-
dáveis pela sua santidade, tiveram algum conhecimento do
que acabamos de dizer. Eis por que introduziram e manti-
veram as formas substanciais 28 tão desacreditadas atual-
mente. Porém, não se afastam tanto da verdade nem são tão
ridículos como imagina o comum de nossos novos filóso-
fos. Concordo que a consideração destas formas no porme-
nor da física é inútil e que não se deve empregá-las na ex-
plicação dos fenômenos em particular. Eis onde falharam
os nossos escolásticos e, a exemplo seu, os médicos do pas-
sado, pensando dar a razão das propriedades dos corpos
recorrendo às formas e qualidades, em vez de examinarem
o modo de operação, como quem se contentasse em dizer
que um relógio tem a qualidade horodítica, proveniente de
sua forma, sem considerar em que consiste tudo isto 29. O
que, com efeito, pode bastar ao comprador, desde o mo-
mento em que abandone esse cuidado a outrem. Mas esta
falha e mau uso das formas não devem nos levar a rejeitar
uma coisa cujo conhecimento é tão necessário em metafísi-
ca que, sem ele, creio que não se poderia conhecer bem os
primeiros princípios, nem elevar suficientemente o espírito
ao conhecimento das naturezas incorpóreas e das maravi-

20
Discurso de metafísica e outros textos.

lhas de Deus. No entanto, assim como um geômetra não tem


necessidade de embaraçar o espírito no famoso labirinto da
composição do contínuo, e nenhum filósofo moral, e ainda
menos um jurisconsulto ou político, precisa entrar a fundo
nas grandes dificuldades existentes na conciliação do livre-
arbítrio com a providência de Deus, visto poder o geôme-
tra terminar todas as suas demonstrações e o político todas
as suas deliberações sem nenhum deles entrar nestas dis-
cussões, que, contudo, são necessárias e importantes na fi-
losofia e teologia; do mesmo modo pode um físico explicar
as experiências servindo-se quer das experiências mais
simples já realizadas, quer das demonstrações geométricas
e mecânicas, sem necessidade do recurso a considerações
gerais, que pertencem a uma outra esfera; e se recorre, para
esse fim, ao concurso de Deus, ou então de alguma alma,
arquê ou outra coisa desta natureza, é tão extravagante como
quem numa importante deliberação prática quisesse entrar
em grandes raciocínios sobre a natureza do destino e da
nossa liberdade. Com efeito, os homens cometem com fre-
qüência esta falta, inconsideradamente, quando embaraçam
o espírito na consideração da fatalidade, e mesmo, por ve-
zes, afastam-se por este motivo de alguma boa resolução
ou de algum cuidado necessário 30.

21
XI. Que não são completamente de
desprezar as meditações dos teólogos
e filósofos chamados escolásticos.

Sei afirmar um grande paradoxo ao pretender reabilitar


de certo modo a antiga filosofia, e recordar postliminidS1 as
quase banidas formas substanciais. Porém, talvez não me
condenem levianamente quando souberem que meditei
demoradamente sobre a filosofia moderna; dediquei muito
tempo às experiências da física e demonstrações da geome-
tria, e bastante tempo estive persuadido da vacuidade destes
entes, retomados afinal quase à força e bem contra minha
vontade, depois de eu próprio ter procedido a investigações
que me levaram a reconhecer não fazerem os nossos moder-
nos justiça devida a Santo Tomás e a outros grandes homens
daquele tempo, e haver nas opiniões dos filósofos e teólo-
gos escolásticos bem maior solidez do que se imagina, des-
de que delas nos utilizemos com propriedade e no lugar de-
vido32. Estou mesmo persuadido de que um espírito exato e
meditativo encontraria nelas um tesouro de imensas verdades
muito importantes e absolutamente demonstrativas, desde
que se desse ao trabalho de esclarecer e assimilar os pen-
samentos deles à maneira do geômetras analíticos.

22
XII. Que as noções que consistem na
extensão contêm algo de imaginário
e não poderiam constituir a
substância dos corpos.

Porém, para retomar o fio das nossas considerações,


creio que quem meditar sobre a natureza da substância,
acima explicada, verificará não consistir apenas na exten-
são, isto é, na grandeza, figura e movimento, toda a nature-
za do corpo, mas ser preciso necessariamente reconhecer
nela algo relacionado com as almas e que vulgarmente se
denomina forma substancial, muito embora esta não modi-
fique em nada os fenômenos, tanto como a alma dos irra-
cionais, se a possuem 33. Pode-se até mesmo demonstrar
que a noção da grandeza, da figura e do movimento não
possui a distinção que se imagina e que contém algo ima-
ginário e relativo às nossas percepções, como o são ainda
(embora bastante mais) a cor, o calor e outras qualidades
semelhantes, cuja existência verdadeira na natureza das coi-
sas fora de nós se pode pôr em dúvida. Por isso tais espé-
cies de qualidades não podem constituir qualquer substân-
cia. E se não há nenhum outro princípio de identidade no
corpo, além do que acabamos de dizer, nunca um corpo
subsistirá mais do que um momento. No entanto 34, as almas
e as formas substanciais dos outros corpos são bem dife-
rentes das almas inteligentes, únicas que conhecem as suas
ações e, não só nunca perecem naturalmente, mas também
conservam sempre o fundamento do conhecimento do que
são. Eis o que as torna únicas suscetíveis de castigo e de re-

23
G. W. Leibniz

compensa e cidadãs da república do universo, de que Deus


é monarca. Também se deduz daqui o dever de todas as res-
tantes criaturas as servirem. A este propósito voltaremos a
falar mais amplamente.
XIII. Como a noção individual de cada
pessoa encerra de uma vez por todas
quanto lhe acontecerá, nela se vêem as
provas a priori da verdade de cada
acontecimento ou a razão de ter
ocorrido um de preferência a outro.
Estas verdades, porém, embora
asseguradas, não deixam de ser
contingentes, pois fundamentam-se no
livre-arbítrio de Deus ou das criaturas,
cuja escolha tem sempre suas razões,
inclinando sem necessitar.

Entretanto, antes de prosseguirmos é preciso resolver


uma grande dificuldade, que pode surgir dos fundamentos
acima apresentados35. Dissemos que a noção de uma subs-
tância individual contém, de uma vez por todas, tudo quan-
to lhe pode acontecer, e que, considerando esta noção, nela
se pode ver tudo o que é verdadeiramente possível enun-
ciar dela, como na natureza do círculo podemos ver todas
as propriedades que se podem deduzir dela. Parece, porém,
com isto, destruir-se a diferença entre as verdades contin-
gentes e necessárias, não haver lugar para a liberdade hu-
mana e reinar sobre todas as nossas ações, bem como so-
bre todos os restantes acontecimentos do mundo, uma fa-
talidade absoluta. Contestarei isto afirmando ser preciso
distinguir o que é certo e o que é necessário. Toda a gente
concorda estarem assegurados os futuros contingentes, vis-
to Deus os prever, mas não se reconhece por isto que eles
sejam necessários36. Mas (dir-se-á) se qualquer conclusão se
pode deduzir infalivelmente de uma definição ou noção, ela

25
G. W. Leibniz

será necessária. Ora, sustentamos estar já virtualmente com-


preendido em sua natureza ou noção, como as proprieda-
des na definição do círculo, tudo o que deve acontecer a
qualquer pessoa. Assim, a dificuldade ainda subsiste. Para
resolvê-la solidamente, digo que há duas espécies de cone-
xão ou consecução: é absolutamente necessária aquela cujo
contrário implique contradição (esta dedução dá-se nas ver-
dades eternas, como as da geometria); a outra é só neces-
sária ex bypothesi, e, por assim dizer, por acidente, mas é
contingente em si mesma, quando o contrário não impli-
que contradição. E esta conexão funda-se não sobre as
idéias absolutamente puras e sobre o simples entendimen-
to de Deus, mas sobre os seus decretos livres e sobre a sé-
rie do universo37. Exemplifiquemos38. Visto que Júlio César
haverá de tornar-se ditador perpétuo e senhor da Repúbli-
ca e suprimirá a liberdade dos romanos, esta ação está
compreendida em sua noção, porquanto supomos ser da na-
tureza da noção perfeita de um sujeito compreender tudo
acerca dele, a fim de o predicado aí estar contido, utpossit
inesse subjecto. Poderia dizer-se não ser devido a esta no-
ção ou idéia que César praticará tal ação, pois ela só lhe
convém porque Deus sabe tudo. Insistir-se-á, porém, na
correspondência de sua natureza ou forma a esta noção e,
desde que Deus lhe impôs essa personagem, é-lhe dora-
vante necessário satisfazê-la. Aqui poderia responder recor-
rendo aos futuros contingentes, pois estes não possuem
ainda nada de real, a não ser no entendimento e vontade
de Deus, e, visto que Deus lhe deu de antemão esta forma,
é preciso que correspondam a ela de toda maneira. Mas
prefiro resolver dificuldades a escapar delas pelo exemplo
de outras dificuldades semelhantes, e o que vou dizer servi-
rá para esclarecer tanto uma quanto outra. É agora, portan-
to, que é preciso aplicar a distinção das conexões. Digo que
é seguro mas não necessário o que sucede em conformida-
de a estas antecipações e que, se alguém fizesse o contrá-

26
Discurso de metafísica e outros textos.

rio, não faria coisa em si mesma impossível, embora seja


impossível (ex hypothesi) que tal aconteça. Porque se al-
gum homem fosse capaz de levar a cabo toda a demonstra-
ção, em virtude da qual provaria esta conexão do sujeito,
César, e do predicado, a sua empresa bem-sucedida, mos-
traria, efetivamente, ter a ditadura futura de César seu fun-
damento em sua noção ou natureza, e por ela mostrar-se-ia
a razão pela qual preferiu atravessar o Rubicão a deter-se
nele, e por que ganhou em vez de perder a batalha de Far-
sália, e ser razoável39 e, por conseqüência, seguro tal acon-
tecer; mas não que é necessário em si, nem que seu contrá-
rio implica contradição. Quase como é razoável e seguro
que Deus fará sempre o melhor, embora o que é menos
perfeito não implique contradição. Ver-se-ia não ser tão ab-
soluta como a dos números ou da geometria a demonstra-
ção deste predicado de César, mas que supõe a série de
coisas livremente escolhidas por Deus, e que está fundada
sobre o primeiro decreto livre divino, que estabelece fazer
sempre o mais perfeito, e sobre o decreto feito por Deus
(depois do primeiro) a propósito da natureza humana, ou
seja: que o homem fará sempre, embora livremente, o que
lhe parece melhor. Ora, toda verdade fundada nesses tipos
de decreto é contingente, apesar de certa; porque esses de-
cretos não mudam a possibilidade das coisas e, como já
disse, ainda que Deus seguramente escolhesse sempre o
melhor, tal não impede o que é menos perfeito de ser e
continuar possível em si, embora não aconteça, porque não
é sua impossibilidade, mas sim sua imperfeição, que o faz
rejeitar. Ora, nada, cujo oposto é possível, é necessário. Fi-
car-se-á, portanto, apto a resolver aqueles tipos de dificul-
dade, por maiores que pareçam (e efetivamente não são
menos prementes, na opinião dos que trataram alguma vez
esta matéria), desde que se considere convenientemente
que todas as proposições contingentes têm razões para ser
antes assim do que de outra maneira, ou então (o que é o

27
G. W. Leibniz

mesmo) possuem provas a priori da sua verdade, tornan-


do-as certas e revelando que a conexão do sujeito e do pre-
dicado destas proposições tem seu fundamento na natureza
de um e de outro. Não possuem, porém, demonstrações de
necessidade, visto tais razões se fundarem apenas no princí-
pio da contingência ou da existência das coisas, quer dizer,
sobre o que é ou parece ser o melhor, entre diversas coisas
igualmente possíveis. Por seu lado, as verdades necessárias
se fundam no princípio de contradição e na possibilidade
ou impossibilidade das próprias essências, sem ter em con-
ta a livre vontade de Deus ou das criaturas.

28
XIV. Deus produz diversas substâncias
conforme as diferentes perspectivas
que tem do universo e, por sua
intervenção, a natureza própria de
cada substância implica que o que
acontece a uma corresponda ao que
acontece a todas as outras, sem
que ajam imediatamente umas
sobre as outras.

Conhecido, de certo modo, em que consiste a nature-


za das substâncias, temos de explicar a dependência que
têm umas das outras e as suas ações e paixões. Ora, em pri-
meiro lugar, é bem manifesto que as substâncias criadas
dependem de Deus, que as conserva e até continuamente
as produz por uma espécie de emanação 40, como produzi-
mos os nossos pensamentos. Pois Deus, virando, por assim
dizer, de todos os lados e maneiras o sistema geral dos fe-
nômenos que considera bom produzir para manifestar a
sua glória, e observando todos os aspectos do mundo de
todas as formas possíveis (porque não existe nenhuma re-
lação que escape à sua onisciência), faz com que o resulta-
do de cada visão do universo, enquanto contemplado de
um certo lugar, seja uma substância expressando o univer-
so conforme a essa perspectiva, desde que Deus ache con-
veniente realizar o seu pensamento e produzir esta subs-
tância41. E como a visão de Deus é sempre verdadeira, as
nossas percepções igualmente o são, mas nossos juízos,
que são apenas nossos, nos enganam. Ora, já dissemos mais
acima, e segue-se do que acabamos de dizer, que cada subs-
tância é como um mundo à parte, independente de qual-
quer outra coisa, excetuando Deus. Assim, todos os nossos

29
G. W. Leibniz

fenômenos, quer dizer, tudo quanto alguma vez pode acon-


tecer-nos, são apenas conseqüências de nosso ser. E como
esses fenômenos conservam uma certa ordem conforme à
nossa natureza ou, por assim dizer, ao mundo existente em
nós, o que nos permite, para regular nossa conduta, a pos-
sibilidade de efetuar observações úteis, justificadas pelo
acontecimento de fenômenos futuros e assim podermos,
muitas vezes, sem engano julgar o futuro pelo passado, isto
seria suficiente para se afirmar que esses fenômenos são
verdadeiros, sem nos afligirmos a investigar se existem fora
de nós e se outros os apercebem também. No entanto, é
bem verdade que as percepções ou expressões de todas as
substâncias se entrecorrespondem de tal sorte que qual-
quer um, seguindo atentamente certas razões ou leis que
observou, se encontra com outro que fez o mesmo, como
quando várias pessoas, tendo combinado encontrar-se reu-
nidas em algum lugar e em um dia prefixado, podem efeti-
vamente fazê-lo, se o desejarem. Ora, se bem que todos ex-
primam os mesmos fenômenos, nem por isso as suas ex-
pressões se identificam; é suficiente que sejam proporcio-
nais42. Do mesmo modo vários espectadores crêem ver a
mesma coisa e efetivamente se entendem entre si, embora
cada um veja e fale na medida da sua perspectiva. Somen-
te Deus, de quem todos os indivíduos emanam continua-
mente, e que vê o universo não só como eles vêem, mas
também de modo inteiramente diverso de todos eles, pode
ser causa desta correspondência dos seus fenômenos e tor-
nar geral para todos o que é particular a cada um. De outra
forma não haveria possibilidade de ligação. De certo modo
e no bom sentido, embora afastado do usual, poder-se-á
dizer que nunca uma substância particular atua sobre uma
outra substância particular, e tampouco padece 43, se os even-
tos de cada uma são considerados apenas como conseqüên-
cia de sua simples idéia ou noção completa; pois esta idéia
contém já todos os predicados ou acontecimentos e expri-

30
Discurso de metafísica e outros textos.

me todo o universo. Com efeito, nada pode acontecer-nos


além de pensamentos e percepções, e todos os nossos futu-
ros pensamentos e percepções não passam de conseqüên-
cias, embora contingentes, dos nossos pensamentos e per-
cepções anteriores, de tal modo que, se eu fosse capaz de
considerar distintamente tudo quanto nesta hora me acon-
tece ou aparece, nessa percepção poderia ver tudo quanto
me acontecerá e aparecerá sempre, o que não falharia e
aconteceria da mesma maneira, embora tudo quanto exis-
tisse fora de mim fosse destruído, desde que restassem Deus
e eu44. Visto, porém, atribuirmos a outras coisas, como às cau-
sas agentes sobre nós, aquilo de que nos apercebemos de
uma certa maneira, é preciso considerar o fundamento deste
juízo e o que há de verdadeiro nele 45.

31
XV A ação de uma substância finita
sobre outra consiste apenas no
acréscimo do grau de sua expressão,
junto à diminuição do da outra, na
medida em que Deus as obriga a se
acomodarem entre si.

A fim de conciliar a linguagem metafísica com a práti-


ca, mas sem entrar em longa discussão, basta notar por ora
que nos atribuímos de preferência e com razão os fenôme-
nos que exprimimos mais perfeitamente, e atribuímos às
outras substâncias o que cada uma exprime melhor. Assim,
uma substância de extensão infinita, enquanto exprime
tudo, torna-se limitada pela maneira da sua expressão mais
ou menos perfeita. É assim, portanto, que se pode conce-
ber que as substâncias se estorvem mutuamente ou se limi-
tem e, por conseguinte, neste sentido pode-se afirmar que
elas agem umas sobre as outras, sendo por assim dizer obri-
gadas a acomodar-se entre si, pois pode suceder que uma
mudança aumente a expressão de uma, diminuindo a de ou-
tra16. Ora, a virtude de uma substância particular é exprimir
bem a glória de Deus, e é por isso que ela é menos limita-
da. E cada coisa, quando exerce sua virtude ou potência,
quer dizer, quando age, muda para melhor e se estende en-
quanto age. Assim, pois, quando se dá uma mudança afe-
tando várias substâncias (como efetivamente qualquer mu-
dança toca a todas), creio poder dizer-se que, devido a isso,
aquela substância que passa imediatamente a um mais alto
grau de perfeição ou a uma expressão mais perfeita exerce
sua potência e age, e a que passa a um menor grau revela
sua fraqueza e padece47. Também sustento que toda ação

32
Discurso de metafísica e outros textos.

de uma substância que tem perfeição implica algum prazer e


toda paixão, alguma dor, e vice-versa. Pode muito bem acon-
tecer, no entanto, uma vantagem presente ser desfeita em se-
guida por um mal muito maior. Donde se conclui a possi-
bilidade de pecar agindo ou exercendo sua potência e en-
contrando prazer nela .

33
XVI. O concurso extraordinário de
Deus está compreendido no que a nossa
essência exprime, pois esta expressão
se estende a tudo, mas ultrapassa as
forças da nossa natureza ou da nossa
expressão distinta, que éfinita e segue
certas máximas subalternas.

Presentemente, só resta explicar a possibilidade de


Deus exercer algumas vezes influência sobre os homens ou
sobre as outras substâncias por um concurso extraordinário
e miraculoso, pois, segundo parece, nada pode suceder-
lhes de extraordinário ou de sobrenatural, já que todos os
seus acontecimentos são apenas conseqüências da sua na-
tureza. Mas é preciso recordar o que dissemos antes relati-
vamente aos milagres do universo, sempre conformes à lei
universal da ordem geral, embora acima das máximas su-
balternas. E, desde que toda pessoa ou substância é como
um pequeno mundo exprimindo o grande, pode-se dizer,
igualmente, que essa ação extraordinária de Deus sobre
essa substância não deixa de ser miraculosa, muito embora
compreendida na ordem geral do universo, enquanto ex-
pressado pela essência ou noção individual dessa substân-
cia49. Por isto, se compreendemos na nossa natureza tudo
que ela expressa, nada é nela sobrenatural, pois se estende
a tudo, já que um efeito exprime sempre a sua causa 50, e
Deus é a verdadeira causa da substância. Porém, como o que
a nossa natureza expressa com maior perfeição lhe perten-
ce de maneira particular (pois nisto consiste a sua potência,
e esta é limitada, como acabo de explicar), há muitas coisas
ultrapassando as forças da nossa natureza e ainda a de to-
das as naturezas limitadas. Por conseguinte, no intuito de

34
Discurso de metafísica e outros textos.

falar mais claramente, digo que os milagres e concursos ex-


traordinários de Deus possuem de característico o não po-
derem ser previstos pelo raciocínio de algum espírito cria-
do, por mais esclarecido que seja, porque a distinta com-
preensão da ordem geral ultrapassa a todos, ao passo que
tudo o que chamamos de natural depende das máximas
menos gerais, que as criaturas podem compreender. Para
as palavras serem tão irrepreensíveis como o sentido, seria
bom unir certas maneiras de falar a certos pensamentos, e
poderia denominar-se nossa essência ou idéia o que com-
preende tudo quanto exprimimos, e, como exprime a nos-
sa união com o próprio Deus, não tem limites e nada a ul-
trapassa. Porém, o que em nós é limitado poderá chamar-
se a nossa natureza ou potência, e, a esse respeito, tudo o
que ultrapassa as naturezas de todas as substâncias criadas
é sobrenatural.

35
XVII. Exemplo de uma máxima
subalterna ou lei da natureza. Contra
os cartesianos e vários outros,
demonstra-se que Deus conserva
sempre a mesma força, mas não a
mesma quantidade de movimento.

Já várias vezes mencionei as máximas subalternas ou


leis da natureza e parece conveniente dar um exemplo de-
las51. Vulgarmente os nossos filósofos modernos se servem
desta famosa regra da conservação por Deus da mesma
quantidade de movimento no mundo 32. Com efeito ela pa-
rece bem plausível, e no passado 53 eu a tinha por indubi-
tável. Porém, reconheci depois onde estava o erro. É que
Descartes, assim como outros hábeis matemáticos, acredita-
ram que a quantidade de movimento, quer dizer, a veloci-
dade multiplicada pela grandeza do móvel, convém inteira-
mente à força motriz, ou, para falar geometricamente, que
as forças estão na razão composta das velocidades e dos
corpos54. Ora, é muito razoável a mesma força conservar-se
sempre no universo55. Igualmente se observa com nitidez,
quando se presta atenção nos fenômenos, a inexistência do
movimento mecânico perpétuo, porque, então, a força de
uma máquina, que sempre diminui um pouco devido à fric-
ção e logo termina, se renovaria e por conseqüência aumen-
taria de per si sem qualquer novo impulso externo. Nota-se
também não haver diminuição na força de um corpo, a não
ser na medida em que ele a transmite a corpos contíguos ou
às suas próprias partes, se possuem movimento indepen-
dente. Acreditaram, assim, que podia também dizer-se da
quantidade de movimento o que pode ser dito da força. No
Discurso de metafísica e outros textos.

entanto, para mostrar a diferença, suponho que um corpo,


caindo de uma certa altura, adquire a força de subir até ela
de novo56, se o leva assim a sua direção, a menos que se en-
contrem alguns obstáculos. Por exemplo, um pêndulo subi-
ria perfeitamente à altura de onde desceu se a resistência do
ar e alguns outros obstáculos pequenos não lhe tivessem di-
minuído um pouco a força adquirida. Suponho, também,
ser necessária tanta força para elevar um corpo A, de uma
libra, à altura CD de quatro toesas, quanta para elevar um
corpo B, de quatro libras, à altura EF de uma toesa. Tudo
isto é admitido pelos nossos filósofos modernos. É, pois,
manifesto que, tendo o corpo A caído da altura CD, adqui-
riu tanta força, precisamente, como o corpo B caído da al-
tura EF; pois, tendo chegado a F o corpo (B) e tendo ali for-
ça para subir novamente até E (pela primeira suposição),
tem por conseguinte a força de levar um corpo de quatro
libras, isto é, o seu próprio corpo, à altura EF de uma toesa,
e da mesma forma, tendo chegado a D o corpo (A) e ten-
do ali força para voltar a subir a C, tem a força de elevar um
corpo de uma libra, isto é, o seu próprio corpo, à altura CD
de quatro toesas. Logo (pela segunda suposição), a força
destes dois corpos é igual. Vejamos agora se a quantidade
de movimento é também a mesma de ambos os lados. Mas
aqui, precisamente, ficar-se-á surpreso por encontrar gran-
díssima diferença, pois já foi demonstrado por Galileu 57 ser
a velocidade adquirida pela queda CD o dobro da veloci-
dade obtida pela queda EF, embora a altura seja quádrupla.
Multiplicando, pois, o corpo A, que é como 1, pela sua ve-
locidade, que é como 2, o produto ou a quantidade de mo-
vimento será como 2; e, por outro lado, multiplicando o
corpo B, que é como 4, pela sua velocidade, que é como 1,
será como 4 o produto ou a quantidade de movimento.
Logo, a quantidade de movimento do corpo (A) no ponto
D é a metade da quantidade de movimento do corpo (B) no
ponto F e, no entanto, são iguais as suas forças. Há, portan-

37
G. W. Leibniz

to, grande diferença entre a quantidade de movimento e a


força, como se queria demonstrar. Por aqui se vê como a
força deve ser avaliada pela quantidade do efeito que pode
produzir58, por exemplo, pela altura a que se pode levantar
um corpo pesado de certo tamanho e espécie, o que é mui-
to diferente da velocidade que se lhe pode imprimir. E para
lhe dar o dobro da velocidade é necessário mais do dobro
da força. Nada mais simples do que esta prova, e se Des-
cartes errou neste ponto foi por demasiada confiança em
seus pensamentos, mesmo quando não estavam suficiente-
mente amadurecidos. Espanta-me, porém, seus sectários não
se haverem depois apercebido deste erro, e receio que eles
comecem pouco a pouco a imitar alguns peripatéticos de
que escarnecem, e, como estes, se acostumem a consultar
os livros do mestre de preferência à razão e à natureza.

38
XVIII. A distinção da força e da
quantidade de movimento é importante,
entre outras razões, para julgar a
necessidade do recurso a considerações
metafísicas independentes da extensão,
afim de explicar os fenômenos
dos corpos.

Esta consideração da força distinguida da quantidade


de movimento é de grande importância, não só na física e
na mecânica, para encontrar as verdadeiras leis da natureza
e regras do movimento e até para corrigir vários erros de
prática que se intrometeram nos escritos de alguns hábeis
matemáticos, como ainda em metafísica, para melhor com-
preensão dos princípios, pois o movimento, se não se lhe
considera o que compreende precisamente e formalmente,
ou seja, uma mudança de lugar, não é coisa inteiramente
real, e, quando vários corpos mudam de situação entre si,
é impossível determinar, pela simples consideração destas
mudanças, a qual dentre eles se deve atribuir o movimento
ou o repouso, como me seria possível mostrar geometrica-
mente se me quisesse deter agora neste assunto. É, porém,
algo mais real a força ou causa próxima destas mudanças e
existe bastante fundamento para atribuí-la a um corpo de
preferência a outro59. Assim, só por este meio se pode co-
nhecer a qual o movimento pertence de preferência. Ora,
esta força é algo diferente da grandeza, da figura e do mo-
vimento, e por aí pode-se julgar não consistir apenas na ex-
tensão e suas modificações tudo o que se concebe no cor-
po, como se persuadem os nossos modernos. Assim, fomos
obrigados a restaurar alguns entes ou formas por eles bani-
dos. E parece cada vez mais (embora possam explicar-se

39
G. W. Leibniz

matemática ou mecanicamente todos os fenômenos parti-


culares da natureza por quem os entenda) que, pelo me-
nos, os princípios gerais da natureza corpórea e da própria
mecânica são muito mais metafísicos do que geométricos e
pertencem, sobretudo, a algumas formas ou naturezas indi-
visíveis, como causas das aparências, mais do que à massa
corpórea ou extensa 1. Esta reflexão é capaz de reconciliar
a filosofia mecânica dos modernos com a circunspecção de
algumas pessoas inteligentes e bem intencionadas, que com
algum fundamento se sentem receosas pelo afastamento
exagerado dos entes imateriais em prejuízo da piedade61.

40
XIX. Utilidade das causas
finais na física.

Como não gosto de julgar ninguém com má intenção,


não acuso os nossos novos filósofos que pretendem banir
da física as causas finais. Sou, todavia, obrigado a reconhe-
cer que me parecem perigosas as conseqüências desta opi-
nião, principalmente quando as associo àquela refutada no
início deste discurso, e que parece pretender suprimi-las em
absoluto, como se Deus não se propusesse fim nem bem
algum ao agir, ou como se o bem não fosse o objeto da sua
vontade62. Pelo contrário, tenho para mim que nelas é que
deve procurar-se o princípio de todas as existências e leis
da natureza, porque Deus se propõe sempre o melhor e o
mais perfeito. Posso bem admitir 63 que estamos sujeitos a
nos excedermos quando pretendemos determinar os fins
ou resoluções de Deus, mas tal apenas acontece quando
pretendemos limitá-los a algum desígnio particular, acredi-
tando que ele só teve em vista uma única coisa, ao passo
que Deus tem em vista tudo, ao mesmo tempo. Assim acon-
tece quando cremos não ter Deus feito o mundo senão para
nós. Grande abuso é este, embora seja muito verdadeiro tê-
lo feito inteiramente para nós, e nada haver no universo
que não nos diga respeito e não se acomode, ainda, às con-
siderações que tem Deus a nosso propósito, segundo os prin-
cípios postos mais acima 64. Assim, quando vemos algum bom
efeito ou perfeição proveniente ou decorrente das obras de

41
G. W. Leibniz

Deus, podemos afirmar com segurança que Deus desse


modo se propôs a fazê-lo, pois Deus nada faz por acaso,
nem se assemelha a nós, a quem por vezes escapa fazer o
bem. É por isso que, muito longe de se poder errar neste
assunto, como sucede aos políticos exagerados que imagi-
nam excessivo refinamento nos desígnios dos príncipes, ou
aos comentadores que procuram demasiada erudição no
seu autor, nunca se poderia atribuir demasiadas reflexões a
esta sabedoria infinita e não há matéria alguma onde me-
nos se possa temer o erro, enquanto apenas se afirme e
desde que aqui se fuja das proposições negativas, que limi-
tam os desígnios de Deus. Todos os que vêem a admirável
estrutura dos animais são obrigados a reconhecer a sabe-
doria do autor das coisas65. Aconselho aos que têm algum
sentimento de piedade e mesmo de verdadeira filosofia a
afastarem-se das frases de alguns espíritos demasiadamen-
te pretensiosos, que dizem que vemos porque temos olhos,
e não dizem que os olhos foram feitos para ver. É difícil
poder-se reconhecer um autor inteligente da natureza, quan-
do se está seriamente baseado nestas opiniões que tudo
atribuem à necessidade da matéria ou a um certo acaso (se
bem que ambas devam parecer ridículas aos que com-
preendem o acima explicado), visto que o efeito deve cor-
responder à sua causa 66, e até se conhece melhor pelo co-
nhecimento da causa, e é desarrazoado introduzir uma in-
teligência soberana ordenadora das coisas, para logo em
seguida, em vez cle recorrer à sua sabedoria, servir-se ex-
clusivamente das propriedades da matéria para explicar os
fenômenos. Tal como se um historiador, querendo explicar
uma conquista realizada por um grande príncipe ao tomar
qualquer praça de importância, em vez de nos mostrar como
a previdência do conquistador lhe fez escolher o tempo e
meios convenientes, e como seu poder removeu todos os
obstáculos, quisesse dizer que assim acontecera porque os
corpúsculos da pólvora, tendo-se libertado em contato com

42
Discurso de metafísica e outros textos.

uma faísca, haviam escapado com velocidade bastante para


atirar um corpo duro e pesado contra as muralhas da pra-
ça, enquanto as ramificações dos corpúsculos componentes
do cobre do canhão estavam muito bem entrelaçadas, de
modo a não se separarem por efeito dessa velocidade.

43
XX.Notável passagem de Sócrates,
no Fédon de Platão, contra os filósofos
demasiado materiais.

Isto faz-me lembrar uma bela passagem de Sócrates,


no Fédon67 de Platão, maravilhosamente de acordo com os
meus sentimentos a este respeito e que parece feita de pro-
pósito contra os nossos filósofos demasiado materiais. Tam-
bém essa relação levou-me a traduzi-la,.conquanto seja um
pouco longa. Talvez esta amostra possa dar azo a alguém
de partilhar conosco muitos outros pensamentos belos e
sólidos, existentes nos escritos deste autor famoso.

Um dia ouvi , diz ele, alguém ler um livro de Anáxa-


goras em que havia estas palavras: um ser inteligente era
causa de todas as coisas, e as tinha disposto e aprimorado.
Isto maravilhou-me em extremo, porque eu acreditava ser
tudo da forma mais perfeita possível, se o mundo fosse
efeito de uma inteligência. Por isso acreditava que quem pre-
tendesse explicar a razão da formação, perecimento ou sub-
sistência das coisas deveria procurar conhecer o que convi-
ria à perfeição de cada coisa. Assim, o homem tão-somente
teria de considerar em si ou em qualquer outra coisa o me-
lhor e o mais perfeito, pois quem conhecesse o mais perfeito
por ele julgaria facilmente do imperfeito, visto existir ape-
nas uma ciência, tanto para um como para outro.
Considerando tudo isto, regozijava-me de ter encon-
trado um mestre que poderia ensinar as razões das coisas,

44
Discurso de metafísica e outros textos.

como, por exemplo, se a Terra era antes redonda do que pla-


na e por que fora melhor ser assim do que de outro modo.
Além disso, esperava que, dizendo-me se a Terra se encon-
tra ou não no centro do universo, me explicaria a conve-
niência de assim acontecer. E o mesmo me diria do Sol, da
Lua, das estrelas e dos seus movimentos... E por fim, depois
de ter mostrado o conveniente a cada coisa em particular,
me mostraria o melhor em geral.
Cheio desta esperança, tomei e percorri com sofregui-
dão os livros de Anaxágoras. Achei-me, porém, bem longe
do que esperava, pois espantou-me observar que não se
utilizava desta inteligência governadora a que dera prima-
zia. Não mais falava do aprimoramento nem da perfeição
das coisas e introduzia certas matérias etéreas pouco veros-
símeis.
Procedia neste ponto como quem, havendo dito que
Sócrates faz as coisas com inteligência, logo em seguida
viesse explicar, em particular, as causas das suas ações, di-
zendo estar aqui sentado por ter um corpo composto de
ossos, carne e nervos, serem sólidos os ossos, mas com in-
tervalos ou articulações, poderem os nervos encolher-se e
distender-se, e por isso o corpo ser flexível e, finalmente,
ser essa a razão de eu estar sentado. Ou se, tentando dar a
razão do presente discurso, recorresse ao ar, aos órgãos da
voz e do ouvido, e coisas parecidas, esquecendo, entretan-
to, as causas verdadeiras, a saber, que os atenienses acredi-
taram ser melhor a minha condenação à minha absolvição
e a mim me pareceu melhor permanecer aqui sentado do
que fugir. Pois, por quem sou, sem esta razão estariam há
muito estes ossos e nervos nas terras dos Beócios e Megá-
rios, se me não tivesse parecido mais justo e honesto su-
portar o castigo que a pátria me quer impor do que viver
vagabundo e exilado. Por isso não é razoável chamar cau-
sas a estes ossos, nervos e seus movimentos.
Em verdade teria razão quem dissesse eu não poder
fazer isto tudo sem ossos e sem nervos, mas uma coisa é a

45
G. W. Leibniz

causa verdadeira... e outra, o que não passa de condições


para a causa poder ser causa...
Os que dizem, por exemplo, que somente o movi-
mento de rotação dos corpos sustenta a Terra ali onde ela
se encontra esquecem ter a potência divina disposto tudo
da mais bela maneira e não compreendem ser o bem e o
belo que unem, formam e mantêm o mundo...

Até aqui Sócrates, porque o que se segue em Platão


acerca das idéias ou das formas não é menos excelente,
mas um pouco mais difícil.

46
XXL Se as regras mecânicas
dependessem unicamente da
geometria sem a metafísica, os

RíRI.ÍOTRfA PPVTDA
fenômenos seriam outros.

Ora, visto que sempre se reconheceu a sabedoria de


Deus no pormenor da estrutura mecânica de alguns corpos
particulares, deve necessariamente ter-se também revelado
na economia geral do mundo e na constituição das leis da
natureza. Tanto é verdade, que nas leis do movimento em
geral se notam os desígnios dessa sabedoria. Pois, se no cor-
po nada houvesse além de massa extensa, e no movimen-
to, senão mudança de lugar, e se tudo devesse e pudesse
deduzir-se exclusivamente destas definições por necessida-
de geométrica, eu concluiria, como já demonstrei algures68,
que o corpo menor daria ao maior, que encontrasse e que
estivesse em repouso, a mesma velocidade que tem, sem
qualquer perda da sua própria. Teriam de admitir-se, ainda,
muitas outras regras como estas, absolutamente contrárias
à formação de um sistema. Porém, o decreto da sabedoria
divina de conservar sempre a mesma força e a mesma dire-
ção no total proveu a isto. Acho mesmo que vários efeitos
da natureza podem demonstrar-se de dupla forma, a saber:
pela consideração da causa eficiente, e ainda, independen-
temente desta, pela consideração da causa final, recorren-
do, por exemplo, ao decreto de Deus produzir sempre o
efeito pelas vias mais simples e determinadas, como mos-
trei em outro lugar, quando expus a razão das regras da ca-
tóptrica e da dióptrica®. Acerca deste assunto voltarei em
breve a falar.

47
XXII. Conciliação das duas vias,
pelas causas finais e pelas causas
eficientes, afim de satisfazer tanto
os que explicam a natureza
mecanicamente como os que
recorrem às naturezas incorpóreas.

Convém fazer esta observação a fim de conciliar os


que esperam explicar mecanicamente a formação da pri-
meira textura de um animal e toda a máquina das suas par-
tes com os que encontram a razão desta mesma estrutura
pelas causas finais. Ambas as explicações são boas, ambas
podem ser úteis, não só para se admirar a habilidade do
grande operário, mas ainda para descobrir algo útil na físi-
ca e na medicina. E os autores que seguem estas vias dife-
rentes não deveriam hostilizar-se. Reparo, no entanto, os
que se afadigam em explicar a beleza da divina estrutura
das substâncias organizadas caçoarem dos que imaginam
poder um movimento aparentemente fortuito de certos flui-
dos provocar tão bela variedade de membros, e acoimam
estes últimos de profanos e temerários. E estes, por sua vez,
cognominam os primeiros de ingênuos e supersticiosos, se-
melhantes àqueles antigos que consideravam ímpios os fí-
sicos, quando defendiam não ser Júpiter quem trovoa, mas
sim alguma matéria existente nas nuvens. O melhor seria
reunir ambas as explicações, pois, se é permitido recorrer a
uma comparação grosseira, reconheço e exalto a habilida-
de de um operário, não só mostrando os fins a que visou
ao fazer as peças da sua máquina, mas ainda explicando os
instrumentos de que se serviu para fazer cada peça, princi-
palmente se esses instrumentos são simples e engenhosa-

48
Discurso de metafísica e outros textos.

mente inventados. E Deus é um artesão bastante hábil para


produzir uma máquina mil vezes mais engenhosa do que a
do nosso corpo, não utilizando senão alguns fluidos bas-
tante simples expressamente formados de maneira a só ne-
cessitarem das leis ordinárias da natureza para os misturar
como requer a produção de um efeito tão admirável. E tam-
bém verdade, no entanto, que isto não aconteceria, se não
fosse Deus o autor da natureza. No entanto, creio que a via
das causas eficientes, sendo, com efeito, a mais profunda e
de certa maneira mais imediata e a priori, é em contrapar-
tida bastante difícil, quando se desce até o pormenor, e
creio que os nossos filósofos, freqüentemente, ainda estão
muito longe disso. A via das causas finais é, porém, mais fá-
cil, e não deixa de servir freqüentemente para a descober-
ta de verdades importantes e úteis, que teriam de ser de-
moradamente procuradas por aquele outro caminho mais
físico, do qual a anatomia pode dar exemplos considerá-
veis. Assim, creio que Snellius 70, o primeiro inventor das re-
gras da refração, demoraria muito mais a encontrá-las se
primeiramente quisesse conhecer a formação da luz, mas
seguiu aparentemente o método usado pelos antigos para
a catóptrica, que vai efetivamente pelas causas finais. Pois,
procurando o caminho mais simples para conduzir um raio
de luz de um ponto dado para um outro dado pela refle-
xão de um plano determinado (supondo ser este o desíg-
nio da natureza), acharam a igualdade dos ângulos de inci-
dência e de reflexão, como pode ver-se num pequeno tra-
tado de Heliodoro de Larissa 71 e em outros vários. Foi que
Snellius, como creio, e depois Fermat72 (embora tudo igno-
rando do primeiro) aplicaram mais engenhosamente à re-
fração. Pois, desde que os raios observem nos mesmos meios
a mesma proporção dos senos, que é também a das resis-
tências dos meios, vê-se que é a via mais simples ou pelo
menos a mais determinada para passar de um ponto dado
num meio a um ponto dado em outro. E falta muito para

49
G. W. Leibniz

que a demonstração deste mesmo teorema, que Descartes


pretendeu fazer pela via das causas eficientes, seja tão boa 73.
Pode-se ao mesmo tempo desconfiar que nada alcançaria
por ela, se na Holanda não tivesse aprendido alguma coisa
da descoberta de Snellius.

50
XXIII. Afim de voltar às substâncias
imateriais, explica-se como Deus age
sobre o entendimento dos espíritos e se
se tem sempre a idéia do que se pensa.

Considerei oportuno insistir um pouco nestas conside-


rações das causas finais, das naturezas incorpóreas e de uma
causa inteligente com relação aos corpos, a fim de mostrar
a sua utilidade, mesmo na física e nas matemáticas, e con-
seguir, por um lado, expurgar a filosofia mecânica da pro-
fanidade que se lhe imputa, e, por outro, elevar o espírito
dos nossos filósofos de considerações simplesmente mate-
riais a mais nobres meditações. Será agora conveniente vol-
tar dos corpos às naturezas imateriais e particularmente aos
espíritos, e dizer algo da maneira usada por Deus para escla-
recê-los e agir sobre eles, no que também há indubitavel-
mente certas leis da natureza, de que poderei noutro lugar
falar com maior desenvolvimento. Por ora, bastará abordar
alguma coisa acerca das idéias, e se vemos todas as coisas
em Deus e como Deus é nossa luz 74. Ora, será oportuno no-
tar que o mau uso75 das idéias ocasiona numerosos erros,
pois, quando se raciocina sobre alguma coisa, imagina-se
ter uma idéia desta coisa, e é o fundamento sobre o qual
alguns filósofos antigos e modernos edificaram determina-
da demonstração de Deus bastante imperfeita. É necessá-
rio, dizem, ter eu uma idéia de Deus ou de um ser perfei-
to, pois nele penso, e não se poderia pensar sem idéia. Ora,
a idéia deste ser contém todas as perfeições e a existência
é uma delas. Por conseguinte, Deus existe. Porém, como

51
G. W. Leibniz

pensamos freqüentemente em quimeras impossíveis - por


exemplo: no último grau da velocidade, no maior de todos
os números, no encontro da concóide com a sua base ou
regra -, este raciocínio não é suficiente 76. É, pois, neste sen-
tido que se pode dizer haver idéias verdadeiras e falsas,
conforme a coisa seja possível ou não 77. E só então poderá
alguém gabar-se de ter uma idéia da coisa, desde que este-
ja seguro de sua possibilidade. Portanto, o sobredito argu-
mento prova, pelo menos, que Deus existe necessariamen-
te, se for possível. O que é, com efeito, um excelente privi-
légio da natureza divina, o de não requerer senão a sua
possibilidade ou essência para existir atualmente. E é, pre-
cisamente, o que se denomina Ens a se.

52
XXIV. O que é conhecimento claro ou
obscuro; distinto ou confuso; adequado
e intuitivo ou supositivo; definição
nominal, real, causal, essencial

É preciso dizer algo acerca da variedade dos conheci-


mentos, a fim de melhor compreender a natureza das
idéias78. Quando posso reconhecer uma coisa entre outras,
sem poder dizer em que consistem suas diferenças ou pro-
priedades, o conhecimento é confuso. Assim conhecemos
algumas vezes claramente, sem de modo algum duvidar, se
um poema ou quadro estão bem ou mal feitos, porque há
um nâo sei quê que nos satisfaz ou nos choca79. Sendo-me,
porém, possível explicar as marcas que tenho, o conheci-
mento chama-se distinto. Tal é o conhecimento do contras-
teador que distingue o verdadeiro do falso ouro, por intermé-
dio de certas provas ou marcas definidoras do ouro. Porém,
o conhecimento distinto tem graus, porque ordinariamente
as noções que entram na definição, elas mesmas precisa-
riam de definição e são conhecidas apenas confusamente 80.
Mas quando tudo o que entra numa definição ou conheci-
mento distinto é distintamente conhecido até as noções pri-
mitivas, denomino este conhecimento adequado. Quando
o meu espírito compreende ao mesmo tempo e distintamen-
te todos os elementos primitivos de uma noção, tem dela um
conhecimento intuitivo, sempre mui raro, pois a maior parte
dos conhecimentos humanos são somente confusos, ou en-
tão supositivos81. Convém ainda distinguir as definições no-
minais e reais. Chamo definição nominal, quando se pode

53
G. W. Leibniz

duvidar da possibilidade da noção definida, como, por exem-


plo, se digo que um parafuso sem fim é uma linha sólida
cujas partes são congruentes ou podem incidir uma sobre a
outra. Todavia, quem desconhecer um parafuso sem fim
pode duvidar da possibilidade de tal linha, embora efetiva-
mente essa seja uma propriedade recíproca 82 do parafuso
sem fim, pois as outras linhas, cujas partes são congruentes
(apenas a circunferência do círculo e a linha reta), são pla-
nas, quer dizer, podem traçar-se in plano. Isto mostra poder
toda propriedade recíproca servir para uma definição nomi-
nal, mas, quando a propriedade revela a possibilidade da
coisa, dá origem à definição real. E enquanto se tem ape-
nas uma definição nominal não se poderá estar seguro das
conseqüências dela obtidas, porque, se escondesse alguma
contradição ou impossibilidade, dela se poderiam tirar con-
clusões opostas. Eis por que as verdades em nada depen-
dem dos nomes, nem são arbitrárias, como julgaram alguns
filósofos modernos83. Finalmente, ainda existe muita dife-
rença entre as espécies das definições reais, pois, quando a
possibilidade é provada apenas por experiência, como na
definição do mercúrio, do qual se conhece a possibilidade
por se saber que um tal corpo, fluido, extremamente pesa-
do e, no entanto, assaz volátil, é encontrado efetivamente,
a definição é somente real e nada mais. Quando, porém, a
prova da possibilidade se faz a priori, a definição é ainda
real e causal, como quando contém a gênese possível da
coisa. E, se esgota a análise, levando-a até as noções pri-
mitivas, sem pressupostos carecidos de prova a priori da
sua possibilidade, a definição é perfeita ou essencial.

54
XXV. Em que caso nosso conhecimento
se une à contemplação da idéia.

Ora, é manifesto não possuirmos qualquer idéia de


uma noção quando esta é impossível84. E, quando o conhe-
cimento é somente supositivo, ao termos a idéia não a con-
templamos, pois tal noção se conhece apenas da mesma
maneira que as noções ocultamente impossíveis, e, se ela é
possível, não é por esta maneira de conhecer que pode ser
apreendida. Por exemplo, quando penso em mil ou num
quiliógono, procedo freqüentemente sem contemplar a idéia
dele, como quando digo que mil é dez vezes cem, não me
preocupando em pensar o que é 10 e 100, porque suponho
sabê-lo e não creio precisar no momento parar para conce-
bê-lo. Assim, poderá muito bem acontecer, como acontece
com efeito muitas vezes, enganar-me acerca de uma noção
que suponho ou creio compreender, se bem que, na verda-
de, ela seja impossível ou, pelo menos, incompatível com
aquelas às quais a junto. E, quer eu me engane ou não,
esta maneira supositiva de conceber permanece a mesma 85.
Só quando o nosso conhecimento é claro nas noções con-
fusas, ou intuitivo nas distintas, é que nele vemos a idéia
inteira86.

55
XXVI. Temos todas as idéias em nós.
Acerca da reminiscência de Platão.

Para conceber bem o que é uma idéia é preciso afastar


um equívoco, pois muitos a tomam pela forma ou diferen-
ça de nossos pensamentos, e deste modo só temos a idéia
no espírito enquanto a pensamos, e temos outras idéias da
mesma coisa, embora semelhantes à primeira, cada vez que
a pensamos. Parece, porém, ser tomada por outros como
um objeto imediato do pensamento ou como alguma for-
ma permanente, que persiste mesmo quando a não con-
templamos. Com efeito, a nossa alma tem sempre nela a
qualidade de se representar qualquer natureza ou forma,
seja qual for, quando surge a ocasião de pensar nela 87. E
desde que expresse qualquer natureza, forma ou essência,
acredito ser esta qualidade da nossa alma propriamente a
idéia da coisa, existente em nós e sempre em nós, quer nela
pensemos ou não. Porque a nossa alma exprime Deus, o
universo e todas as essências, assim como todas as existên-
cias88. Isto concorda com os meus princípios, porque natu-
ralmente nada penetra no nosso espírito vindo do exterior,
e é mau hábito pensarmos como se a nossa alma recebes-
se algumas espécies mensageiras e tivesse portas e janelas.
Temos todas estas formas no espírito, e as temos desde sem-
pre, porque o espírito exprime sempre todos os seus pen-
samentos futuros, e já pensa confusamente em tudo o que
um dia pensará com distinção. E nada nos poderia ser en-

56
Discurso de metafísica e outros textos.

sinado cuja idéia não tenhamos já no espírito, pois essa idéia


é como a matéria de que se forma esse pensamento 89. Eis o
que Platão considerou excelentemente, ao introduzir a sua
teoria da reminiscência, que tem muita solidez, quando de-
vidamente compreendida e expurgada do erro da preexis-
tência, e quando não se imagine que a alma já devia ter sa-
bido e pensado outrora com distinção o que apreende e
pensa agora. Platão confirmou ainda a sua opinião por meio
de uma bela experiência, apresentando um rapazinho que
insensivelmente levou até as mais difíceis verdades da geo-
metria relativas aos incomensuráveis, sem nada lhe ter en-
sinado e apenas fazendo perguntas por ordem e a propósi-
to. O que mostra que a nossa alma sabe virtualmente todas
estas coisas e apenas requer animadversiones para conhe-
cer as verdades, e por conseqüência possui, pelo menos,
as idéias de que dependem estas verdades. Pode até dizer-
se que já possui estas verdades, quando tomadas como as
relações entre as idéias90.

57
XXVII. De que modo pode comparar-se
a nossa alma a tabuinhas vazias,
e como as nossas noções provêm
dos sentidos.

Aristóteles preferiu comparar a nossa alma a pequenas


tábuas ainda vazias, onde há lugar para escrever, e susten-
tou nada existir no nosso entendimento que não venha por
meio dos sentidos. Tem esta afirmação a vantagem de ser
mais conforme às noções populares, como é de uso de
Aristóteles, ao passo que Platão vai mais fundo 91. Entretan-
to, estas espécies de doxologias ou praticologias podem
passar ao uso ordinário, tal como vemos que os que se-
guem Copérnico não deixam de dizer que o sol se levanta
e se põe. Muitas vezes me parece até possível dar-lhes um
sentido, segundo o qual nada têm de falso, e, assim como
já indiquei de que modo se pode verdadeiramente dizer
agirem umas sobre as outras as substâncias particulares, nes-
ta mesma acepção pode também dizer-se que recebemos
de fora conhecimentos através dos sentidos, por algumas
coisas externas conterem ou exprimirem mais particularmen-
te as razões que determinam a nossa alma a certos pensa-
mentos92. Todavia, quando se trata da exatidão das verda-
des metafísicas, importa reconhecer a extensão e indepen-
dência da nossa alma, que alcança infinitamente mais lon-
ge do que supõe o vulgo 93, se bem que no uso ordinário da
vida só lhe seja atribuído aquilo de que se apercebe com
maior evidência e nos pertence de maneira particular, por-
que de nada serve ir mais longe. A fim de evitar equívocos

58
Discurso de metafísica e outros textos.

cumpria, no entanto, escolher termos próprios a um e outro


sentido. Assim, podem denominar-se idéias essas expressões
concebidas ou não, que estão na nossa alma, mas aquelas
que se concebem ou formam podem denominar-se noções,
conceptus. Seja, porém, como for, é sempre falso dizer pro-
virem dos sentidos chamados externos todas as nossas no-
ções, pois as que tenho de mim e dos meus pensamen-
tos, e por conseguinte as do ser, da substância, da ação, da
identidade e de muitas outras, provêm de uma experiência
interna9'*.

59
XXVIII. Deus é o único objeto imediato
das nossas percepções existente fora
de nós, e só ele é a nossa luz.

Ora, no sentido rigoroso da verdade metafísica, não há


causa alguma externa agindo em nós, a não ser Deus, e so-
mente ele se comunica imediatamente a nós, em virtude da
nossa contínua dependência95. Donde se conclui que não
há nenhum outro objeto externo afetando nossa alma e
excitando imediatamente a nossa percepção. Temos assim
em nossa alma as idéias de todas as coisas apenas devido à
contínua ação de Deus sobre nós, quer dizer, pela razão de
todo efeito exprimir sua causa, e por isso a essência da nos-
sa alma é uma certa expressão, imitação ou imagem da es-
sência, pensamento e vontade divina e de todas as idéias aí
compreendidas. Pode, por conseguinte, dizer-se que Deus
é nosso único objeto imediato fora de nós e é por seu in-
termédio que vemos todas as coisas. Por exemplo, quando
vemos o sol e os astros, foi Deus quem nos deu e conserva as
idéias e, pelo seu concurso ordinário, nos determina a pensar
nelas efetivamente, ao mesmo tempo que os nossos sentidos
estão dispostos de uma certa maneira segundo as leis por
ele estabelecidas. Deus é o sol e a luz das almas, lumen illu-
minans omnem hominem venientem in hunc mundurri*, e
esta convicção não data de hoje97. Depois da Sagrada Escritu-
ra e dos Santos Padres (que sempre estiveram mais por Platão
do que por Aristóteles), recordo-me de ter notado outrora
que, no tempo dos escolásticos, muitos acreditaram ser Deus

60
Discurso de metafísica e outros textos.

a luz da alma e, segundo seu modo de dizer, intellectus agens


animae rationalis . Os averroístas adulteraram-lhe o senti-
do, mas outros, entre os quais penso encontrar-se Guilher-
me de Santo-Amor e diversos teólogos místicos, interpreta-
ram-na de maneira digna de Deus e capaz de elevar a alma
até o conhecimento do seu bem.

6l
XXIX. No entanto, pensamos
imediatamente pelas nossas próprias
idéias e não pelas de Deus.

No entanto, não sou da opinião de alguns hábeis filó-


sofos", que parecem sustentar que as nossas próprias idéias
estão em Deus e não em nós. Em minha opinião, isto se
deve ao fato de não terem considerado ainda devidamente
nem o que acerca das substâncias acabamos de considerar
aqui, nem toda a extensão e independência da nossa alma,
que a faz conter tudo quanto lhe acontece e exprimir Deus
e, com ele, todos os seres possíveis e atuais, como um efei-
to exprime a sua causa. Além disso, é inconcebível que eu
pense com as idéias de outrem. É forçoso também que a
alma seja efetivamente afetada de uma certa maneira quan-
do pensa em alguma coisa, e nela tenha de haver de ante-
mão não só a potência passiva de poder ser assim afetada,
a qual se encontra já completamente determinada, mas ain-
da uma potência ativa, em virtude da qual tenham havido
sempre na sua natureza marcas da produção futura deste
pensamento e disposições para produzi-lo em tempo opor-
tuno100. Tudo isto já implica a idéia compreendida neste
pensamento.

62
XXX. Como Deus inclina nossa
alma sem a necessitar. Ninguém tem o
direito de queixar-se, e não se deve
perguntar por que Judas peca, mas sim
por que Judas, o pecador, é admitido à
existência, de preferência a algumas
pessoas possíveis. Da imperfeição
original antes do pecado e dos
graus da graça.

No que concerne à ação de Deus sobre a vontade hu-


mana há numerosas considerações, bastante difíceis, que
seria longo seguir aqui 101. Todavia eis, por alto, o que se
pode dizer. Deus, concorrendo ordinariamente para as nos-
sas ações, apenas segue as leis que estabeleceu, isto é,
conserva e produz continuamente o nosso ser de forma
que nossos pensamentos nos chegam espontânea ou livre-
mente, segundo a ordem implícita na noção da nossa subs-
tância individual, na qual se podiam prever desde toda a
eternidade. Ademais, em virtude do decreto por ele estabe-
lecido da vontade tender sempre para o bem aparente, ex-
primindo ou imitando a vontade de Deus sob certos aspec-
tos particulares, relativamente aos quais esse bem aparente
tem sempre algo de verdadeiro, determina a nossa para a
escolha do que parece melhor, sem contudo a necessitar.
Porque, falando de modo absoluto, a vontade está na indi-
ferença, desde que se oponha à necessidade, e tem o po-
der de proceder diversamente ou ainda de suspender de
todo a sua ação, pois ambos os partidos são e continuam
possíveis102. Depende, portanto, da alma precaver-se contra
as surpresas das aparências por uma firme vontade de re-
fletir, e de nunca agir nem julgar em certas ocasiões, senão

63
G. W. Leibniz

depois de ter deliberado bem maduramente. É, no entanto,


verdadeiro e mesmo certo, desde toda a eternidade, que
nenhuma alma se há de servir deste poder em determinada
circunstância. Mas quem é culpado disso? E pode acaso ela
queixar-se senão de si mesma? Pois todas essas queixas de-
pois do acontecimento são tão injustas quanto o teriam sido
antes dele. Ora, essa alma, um pouco antes de pecar, de
boa vontade se queixaria de Deus como determinando-a
ao pecado? Nestas matérias sendo imprevisíveis as determi-
nações de Deus, como pode ela saber estar determinada ao
pecado, senão depois de efetivamente pecar? Apenas se
trata de não querer, e Deus não poderia propor condição
mais fácil e justa. Assim, todos os juizes, sem cuidarem de
saber as razões que dispuseram um homem a ter uma von-
tade má, só se preocupam em considerar quanto é má essa
vontade. Mas estará talvez desde toda a eternidade assegu-
rado que pecarei? Respondei vós mesmos: talvez não, e,
sem sonhar com o que não podereis conhecer e nenhuma
luz vos pode dar, agi segundo o vosso dever, que conhe-
ceis103. Mas, dirá um outro, donde se segue que este ho-
mem cometerá seguramente este pecado? A resposta é fá-
cil: de outra maneira não seria este homem 104. Pois Deus vê,
desde sempre, que existirá um certo Judas, cuja noção ou
idéia que dele tem contém esta livre ação futura. Resta,
portanto, tão-só a questão de saber por que existe atual-
mente um tal Judas, o traidor, que só é possível na idéia de
Deus. Mas para esta questão não há neste mundo resposta
a esperar, a menos que em geral deva dizer-se que, visto
Deus ter achado bom que ele existisse, não obstante o pe-
cado previsto, é forçoso este mal recompensar-se com ju-
ros no universo, dele tirando Deus um bem maior e, em
suma, essa série de coisas, em que se compreende a exis-
tência desse pecador, mostrar-se a mais perfeita entre todas
as outras maneiras possíveis105. Mas, enquanto somos viajan-
tes deste mundo, é impossível explicar sempre, em tudo, a

64
Discurso de metafísica e outros textos.

admirável economia desta escolha. É bastante sabê-lo, sem


o compreender. É aqui o momento de reconhecer altitudi-
nem divitiamm'06, a profundidade e o abismo da sabedoria
divina, sem buscar um esmiuçamento que envolve consi-
derações infinitas. Entretanto, vê-se claramente não ser Deus
a causa do mal, pois não só o pecado original se apoderou
da alma depois da perda da inocência dos homens, mas
ainda anteriormente havia uma limitação ou imperfeição
conatural a todas as criaturas, tornando-as pecáveis ou sus-
cetíveis de pecar107. Desaparece, assim, a dificuldade, tanto
do ponto de vista dos supralapsários 108 como dos outros.
Eis, no meu entender, ao que se deve reduzir a opinião de
Santo Agostinho e de outros autores, segundo a qual a raiz
do mal está no nada 109, quer dizer, na privação ou limitação
das criaturas, que Deus remedeia, graciosamente, pelo grau
de perfeição que lhe apraz dar a elas. Essa graça de Deus,
seja ordinária ou extraordinária, tem seus graus e medidas,
é sempre eficaz em si mesma para produzir um certo efei-
to proporcionado, e ademais é sempre suficiente não só
para nos preservar do pecado, mas até para produzir a sal-
vação, supondo nela a cooperação do homem na medida
em que compete. No entanto, nem sempre ela é suficiente
para se sobrepor às inclinações do homem, pois de outra
forma não requereria mais nada, e isto está reservado somen-
te à graça absolutamente eficaz, sempre vitoriosa, quer por
si, quer devido à congruência das circunstâncias 110.

65
XXXI. Dos motivos da eleição, da fé
prevista, da ciência média, do decreto
absoluto e de que tudo se reduz à
razão que fez Deus chamar à
existência tal pessoa possível, cuja
noção contém uma certa série de
graças e de ações livres, o que de uma
vez por todas acaba com as
dificuldades.

Enfim, são as graças de Deus graças absolutamente


puras sobre as quais as criaturas nada têm a pretender. No
entanto, como para explicar a escolha feita por Deus ao
dispensar estas graças não é suficiente recorrer à previsão
absoluta ou condicional 111 das ações futuras dos homens, é
também forçoso não se imaginar decretos absolutos, que
não possuam algum motivo razoável 112. No que concerne à
fé ou às boas obras previstas, é certíssimo Deus só ter elei-
to aqueles em que previa a fé e a caridade, quos se fide do-
naturum. praescivitm, mas recomeça de novo a mesma
questão de se saber por que Deus dará a uns, de preferên-
cia a outros, a graça da fé ou das boas obras. E, quanto a
esta ciência de Deus, a previsão114, não da fé e das boas
ações, mas de sua matéria e predisposição, ou daquilo com
que o homem para elas contribuiria por sua parte (já que é
certo haver diversidade do lado dos homens exatamente
onde a há do lado da graça, e que, com efeito, é forçoso o
homem para isso agir também depois, embora precise ser
incitado ao bem e convertido), para muitos parece poder
dizer-se que Deus tendo visto o que o homem faria sem a
graça ou assistência extraordinária ou, pelo menos, o que
fará por sua parte, abstraindo a graça, poderia resolver-se a

66
Discurso de metafísica e outros textos

conceber a graça àqueles cujas disposições naturais fossem


as melhores ou, pelo menos, as menos imperfeitas ou me-
nos más. Mas, quando assim fosse, poder-se-ia dizer que es-
tas disposições naturais, enquanto boas, são ainda o efeito
de uma graça, embora ordinária, tendo Deus beneficiado
uns mais do que outros, e, sabendo Deus muito bem que
estas vantagens naturais dadas por ele servirão de motivo à
graça ou assistência extraordinária, não é, afinal, verdadei-
ro segundo esta doutrina tudo reduzir-se inteiramente à sua
misericórdia? Portanto, visto ignorarmos quanto ou como
Deus considera as disposições naturais na dispensa da gra-
ça, creio mais exato e seguro dizer, segundo os nossos prin-
cípios e como já notei, ser forçoso haver entre os entes pos-
síveis a pessoa de Pedro ou de João, cuja noção ou idéia
contém toda esta série de graças ordinárias e extraordiná-
rias e todo o resto destes acontecimentos com suas circuns-
tâncias e que, entre uma infinidade de outras pessoas igual-
mente possíveis, agradou a Deus escolhê-la para existir
atualmente. Dito isto, parece nada mais haver a perguntar e
desvanecerem-se todas as dificuldades, pois, relativamente
a esta única e grande questão de saber por que agradou a
Deus escolhê-la entre tantas outras pessoas possíveis, é pre-
ciso ser muito pouco razoável para se não contentar com
as razões gerais que demos, cujo pormenor nos ultrapassa.
Assim, em vez de recorrer a um decreto absoluto que, não
tendo razão, é irrazoável, ou a razões que nunca conse-
guem resolver a dificuldade e carecem de outras razões, o
melhor será dizer, de acordo com São Paulo, que para isso
há certas e grandes razões de sabedoria ou de congruência,
desconhecidas dos mortais mas fundadas na ordem geral,
cujo fim é a maior perfeição do universo, e observadas por
Deus115. Aqui vêm dar os motivos da glória de Deus e da ma-
nifestação da sua justiça, assim como da sua misericórdia, e
em geral das suas perfeições e, finalmente, essa imensa pro-
fundidade de riquezas de que o próprio São Paulo tinha a
alma extasiada.

67
XXXII. Utilidade destes princípios
em matéria de piedade e religião.

Ademais, parece que os pensamentos por nós ora ex-


plicados e, em particular, o grande princípio da perfeição
das operações de Deus e o da noção da substância que en-
cerra todos os seus acontecimentos com todas as suas cir-
cunstâncias, bem longe de prejudicar, servem para confir-
mar a religião, para dissipar enormes dificuldades, inflamar
as almas de um amor divino e elevar os espíritos ao conhe-
cimento das substâncias incorpóreas, bem mais do que as
hipóteses vistas até aqui116. Pois, clarissimamente se vê de-
penderem de Deus todas as outras substâncias, como os
pensamentos emanam da nossa; ser Deus tudo em todos e
intimamente unido a todas as criaturas, embora na medida
das suas perfeições; ser ele a determiná-las externamente
pela sua influência, e, se agir é determinar imediatamen-
te, pode neste sentido dizer-se, em linguagem metafísica, que
só Deus opera sobre mim, e só ele pode fazer-me bem ou
mal, em nada contribuindo as outras substâncias, a não ser
na razão destas determinações, porque Deus, consideran-
do-as a todas, reparte suas bondades e obriga-as a acomo-
darem-se entre si. Igualmente, só Deus estabelece a ligação
e a comunicação das substâncias e por seu intermédio os
fenômenos de umas se encontram e harmonizam com os
de outras, havendo, por conseqüência, realidade nas nos-
sas percepções. Mas na prática atribui-se a ação às razões

68
Discurso de metafísica e outros textos.

particulares, no sentido por mim explicado acima, por ser


desnecessário mencionar constantemente a causa universal
nos casos particulares117. Vê-se também que toda substância
tem perfeita espontaneidade (tornada liberdade nas subs-
tâncias inteligentes), tudo o que lhe sucede é conseqüência
da sua idéia ou do seu ser, e nada, a não ser Deus, a deter-
mina. E por isso uma pessoa de elevado espírito e de res-
peitadíssima santidade costumava dizer que a alma deve
freqüentemente pensar como se mais nada, a não ser ela
e Deus, houvesse no mundo 118. Ora, nada torna mais com-
preensível a imortalidade119 do que essa independência e
essa extensão da alma, que a defende completamente de
todas as coisas exteriores, pois ela sozinha constitui todo o
seu mundo e com Deus se basta, e é tão impossível pere-
cer sem aniquilamento, quão impossível o mundo (de que
é expressão viva e perene) destruir-se a si mesmo. Também
não é possível que façam algo sobre nossa alma as mudan-
ças dessa massa extensa chamada nosso corpo, nem a dis-
sipação deste destrua o que é indivisível.

69
XXXIII. Explicação da união da alma
e do corpo, tida por inexplicável ou
miraculosa, e da origem das
percepções confusas.

Compreende-se também o inopinado esclarecimento


deste grande mistério da união da alma e do corpo 120, isto
é, como acontece que as paixões e as ações de um deles se
acompanhem das ações e paixões do outro, ou melhor, dos
fenômenos convenientes do outro, porquanto não há meio
de se conceber que um tenha influência sobre o outro,
nem é razoável recorrer simplesmente à operação extraor-
dinária da causa universal em coisa ordinária e particular.
Eis, no entanto, a verdadeira razão 121: dissemos que tudo
quanto acontece à alma e a cada substância é conseqüên-
cia de sua noção, logo a própria idéia ou essência da alma
implica também que todas as suas aparências ou percep-
ções devam nascer-lhe (sponte) da sua própria natureza e
precisamente de sorte a responderem por si mesmas ao que
se passa em todo o universo, mais particular e mais perfei-
tamente, porém, ao que se passa no corpo que lhe está afe-
to, pois é, de algum modo e por certo tempo, segundo a
relação dos outros corpos com o seu, que a alma exprime
o estado do universo. Isto mostra, ainda, como o nosso cor-
po nos pertence sem estar contudo preso à nossa essên-
cia122. E as pessoas que sabem meditar, por poderem ver
em que consiste a conexão da alma e do corpo, que pare-
ce inexplicável por qualquer outra via, creio que julgarão
vantajosamente os nossos princípios. Vê-se também que as

70
Discurso de metafísica e outros textos.

percepções dos nossos sentidos, mesmo quando sejam cla-


ras, devem conter necessariamente algum sentimento con-
fuso, pois, simpatizando todos os corpos do universo, o
nosso recebe a impressão de todos os outros e, embora os
nossos sentidos se refiram a tudo, é impossível nossa alma
a tudo poder atender em particular. Por isso são os nossos
sentimentos confusos o resultado de uma variedade comple-
tamente infinita de percepções. E é quase como o murmú-
rio confuso ouvido por quem se aproxima da beira do mar
e proveniente da reunião das repercussões de vagas inume-
ráveis123. Ora, se de diversas percepções (que não concor-
dam para fazerem uma) nenhuma há que exceda as outras,
e se provocam mais ou menos impressões igualmente for-
tes ou igualmente capazes de determinar a atenção da alma,
esta só pode aperceber-se delas confusamente.

71
XXXIV. Da diferença entre espíritos e
demais substâncias, almas ou formas
substanciais, e de que a imortalidade
requerida implica recordação.

Supondo124 que os corpos constituindo unum per sem,


como o homem, são substâncias, e têm formas substanciais,
e que os irracionais têm almas, é-se obrigado a reconhecer
que essas almas e essas formas substanciais não poderiam
perecer inteiramente, assim como os átomos, ou elementos
últimos da matéria, na opinião de outros filósofos, pois
substância alguma perece, embora possa transformar-se
noutra qualquer. Exprimem também todo o universo, se
bem que mais imperfeitamente do que os espíritos. Mas a
principal diferença é que desconhecem o que são ou fa-
zem, e, por conseqüência, são incapazes de reflexão e não
poderiam descobrir verdades necessárias e universais 126. Tam-
bém por falta de reflexão sobre si mesmas não têm quali-
dade moral, donde se segue que, atravessando mil transfor-
mações (pouco mais ou menos como vemos uma lagarta
transformar-se em borboleta), relativamente à moral e à
prática é como se se dissesse que perecem, e o mesmo se
pode dizer fisicamente, como dizemos que os corpos pere-
cem por sua corrupção. Mas a alma inteligente, conhecedo-
ra do que é, e podendo dizer este eu (moi), que diz muito,
não só permanece e metafisicamente subsiste bem mais
que as outras, como ainda permanece moralmente a mes-
ma e constitui a mesma personagem 127. Pois é a recordação
ou o conhecimento deste eu (moi) que a torna suscetível

72
Discurso de metafísica e outros textos.

de castigo ou de recompensa. Também a imortalidade exi-


gida na moral e na religião não consiste exclusivamente
nesta subsistência perpétua, que convém a todas as subs-
tâncias, pois nada teria de desejável sem a recordação do
passado128. Suponhamos que algum particular deva tornar-
se rei da China de um momento para o outro, mas com a
condição de esquecer o que foi, como se acabasse de nas-
cer inteiramente de novo. Na prática, ou quanto aos efeitos
de que é possível aperceber-se, isto não seria o mesmo que
se devesse ser aniquilado e que em seu lugar fosse criado
no mesmo momento um rei da China? Este particular não
tem qualquer razão para desejar isto.

73
XXXV. Excelência dos espíritos e que
Deus os considera de preferência
às outras criaturas. Os espíritos
exprimem Deus melhor do que o
mundo, mas as outras substâncias
exprimem melhor o mundo do que
Deus.

Porém, para fazer julgar por razões naturais que Deus


conservará sempre, não só a nossa substância, mas tam-
bém a nossa pessoa, isto é, a lembrança e o conhecimento
do que somos (embora o conhecimento distinto algumas
vezes se interrompa no sono e nos desmaios), é preciso
aliar-se a moral à metafísica. Isto significa que não é sufi-
ciente a consideração de Deus como princípio e causa de
todas as substâncias e de todos os seres, mas também é ne-
cessário ainda considerá-lo como chefe de todas as pessoas
ou substâncias inteligentes, e como monarca absoluto da
mais perfeita cidade ou república 129, tal como a do universo
composto do conjunto de todos os espíritos, sendo o pró-
prio Deus tanto o mais acabado de todos os espíritos, quan-
to é o maior de todos os seres. Pois, sem dúvida, são os es-
píritos os mais perfeitos e que melhor exprimem a divinda-
de. E, consistindo toda a natureza fim, virtude e função das
substâncias apenas em exprimir Deus e o universo, como
foi já devidamente explicado, não cabe duvidar de que as
substâncias que o exprimem com o conhecimento daquilo
que fazem e que são capazes de conhecer grandes verda-
des acerca de Deus e do universo, o exprimam incompara-
velmente melhor do que essas naturezas, que são ou brutas
e incapazes de conhecer verdades, ou completamente des-
tituídas de sentimento e de conhecimento. A diferença en-

74
Discurso de metafísica e outros textos.

tre as substâncias inteligentes e as que não o são é tão gran-


de como a que há entre o espelho e aquele que vê130. E
como o próprio Deus é o maior e mais sábio dos espíritos,
fácil é julgar que lhe devem estar infinitamente mais próxi-
mos os seres com os quais pode, por assim dizer, entrar em
conversação e mesmo em sociedade, comunicando-lhes os
seus sentimentos e vontades de maneira particular e de tal
sorte que possam conhecer e amar o seu benfeitor, do que
as restantes coisas que apenas podem tomar-se por instru-
mentos dos espíritos; assim como vemos todas as pessoas
sábias darem infinitamente mais importância a um homem
que a qualquer outra coisa, por mais preciosa que seja, e
parece ser a maior satisfação que pode ter uma alma, aliás
contente, ver-se amada pelas outras, embora pelo que se
refere a Deus, haja esta diferença: a sua glória e o nosso
culto nada podem acrescentar à sua satisfação, pois, sendo
o conhecimento das criaturas tão-só uma conseqüência da
sua soberana e perfeita felicidade, está bem longe de con-
tribuir para ela ou de ser em parte a sua causa. No entanto,
o que é bom e razoável nos espíritos finitos acha-se emi-
nentemente nele, e, como louvaríamos um rei que antes
preferisse conservar a vida de um homem do que a do
mais precioso e raro dos seus animais 131, não devemos nun-
ca duvidar de que não seja da mesma opinião o mais escla-
recido e justo dos monarcas 132.

75
XXXVI. Deus é o monarca da mais
perfeita república composta de todos
os espíritos, e a felicidade desta cidade
de Deus é o seu principal desígnio133.

Com efeito, os espíritos são as substâncias mais susce-


tíveis de aperfeiçoamento e suas perfeições caracterizam-se
por se estorvarem reciprocamente o mínimo 134, ou sobretu-
do por se ajudarem mutuamente, pois só os mais virtuosos
poderão ser os mais perfeitos amigos135. Donde claramente
se conclui que Deus, procurando sempre a máxima perfei-
ção em geral, terá o maior desvelo com os espíritos, e lhes
dará, não só em geral, mas até a cada um em particular, o
máximo de perfeição permitido pela harmonia universal.
Pode-se até dizer que Deus, enquanto espírito, é a origem
das existências; de outro modo, se carecesse de vontade para
escolher o melhor, não haveria razão alguma para um pos-
sível existir de preferência a outros. Assim, a qualidade de
Deus, de ser ele próprio espírito, supera todas as outras con-
siderações que pode ter quanto às criaturas 136. Apenas os
espíritos são feitos à sua imagem 137, e quase da sua raça ou
como filhos da casa 138, pois só eles podem servir livremen-
te e agir com conhecimento à imitação da natureza divina;
um único espírito vale um mundo inteiro, pois não só o ex-
prime, mas também o conhece e aí se governa à maneira
de Deus, de tal forma que, embora toda substância expri-
ma o universo, parece no entanto que as outras substâncias
exprimem melhor o mundo que Deus, mas os espíritos ex-
primem melhor Deus do que o mundo. E esta natureza tão

76
Discurso de metafísica e outros textos

nobre dos espíritos, que os aproxima da divindade tanto


quanto podem simples criaturas, faz com que Deus tire de-
les infinitamente mais glória que do resto dos seres, ou me-
lhor, que os outros seres apenas dêem aos espíritos a maté-
ria para glorificá-lo139. Eis por que esta qualidade moral de
Deus, que o torna o senhor ou monarca dos espíritos, lhe
diz respeito por assim dizer pessoalmente de maneira mui-
to singular. É nisto que se humaniza, que se presta a antro-
pologias, e entra em sociedade conosco, como um príncipe
com seus súditos, e, sendo-lhe tão querida esta considera-
ção, torna-se a sua lei suprema o feliz e florescente estado
do seu império, que consiste na maior felicidade possível
aos habitantes. Porque a felicidade está para as pessoas
como a perfeição para os seres. E, se o primeiro princípio
da existência do mundo físico é o decreto de lhe dar a má-
xima perfeição possível, o primeiro desígnio do mundo
moral, ou da cidade de Deus, a mais nobre parte do uni-
verso, deve ser espalhar quanta felicidade for possível 140.
Não se deve duvidar, portanto, de Deus ter ordenado tudo
de molde a não só os espíritos poderem viver perenemen-
te, o que é infalível, mas ainda conservarem sempre a sua
qualidade moral, a fim de que a sua cidade não perca pes-
soa alguma, como o mundo não perde qualquer substân-
cia. E por conseguinte saberão sempre o que são; de outro
modo não seriam suscetíveis nem de recompensa, nem de
castigo, o que é todavia da essência de uma república, mor-
mente da mais perfeita, onde coisa alguma poderia ter sido
negligenciada. Finalmente, sendo Deus ao mesmo tempo o
mais justo e clemente dos monarcas e nada mais pedindo
além da boa vontade, desde que sincera e séria, os seus sú-
ditos não poderiam desejar melhor condição, e, para os tor-
nar perfeitamente felizes, somente quer ser amado.

77
XXXVII. Jesus Cristo descobriu para
os homens os mistérios e as leis
admiráveis do reino dos céus e a
grandeza da suprema felicidade que
Deus reserva a quem o ama.

Os filósofos antigos conheceram muito pouco estas ver-


dades. Só Jesus as exprimiu divinamente bem e de maneira
tão clara e familiar, que os mais grosseiros espíritos as com-
preenderam141. Por isso, o seu Evangelho mudou inteiramen-
te a face das coisas humanas, deu-nos a. conhecer o reino
dos céus ou esta república perfeita dos espíritos, merece-
dora do título de cidade de Deus, cujas leis admiráveis des-
cobriu para nós. Só ele mostrou quanto Deus nos ama 142 e
com que cuidado tratou de tudo o que nos toca; que, cui-
dando dos passarinhos, não negligenciará as criaturas ra-
cionais, para ele infinitamente mais queridas143; que estão
contados todos os cabelos da nossa cabeça 144; que céu e
terra perecerão antes que se mude a palavra de Deus 145 e o
que pertence à economia da nossa salvação; que Deus tem
maior cuidado com a mais ínfima das almas inteligentes do
que com toda a máquina do mundo; que não devemos re-
cear quem possa destruir os corpos, mas não pode prejudi-
car as almas146, porque só Deus as pode fazer felizes ou des-
graçadas, e que as dos justos estão em sua mão, defendidas
de todas as revoluções do universo, nada podendo agir so-
bre elas, senão Deus; que nenhuma das nossas ações é es-
quecida e tudo é levado em conta, até as palavras ociosas
ou uma colherada de água bem empregada 147; enfim, que

78
_________________________________ Discurso de metafísica e outros textos ____________________________________________________

tudo deve redundar no maior bem dos bons; que os justos


serão como sóis148, e nunca os nossos sentidos nem o nosso
espírito gozaram algo parecido com a felicidade que Deus
prepara a quem o ama149.

79
Notas

1. Até a edição de Henri Lestienne (1907), as edições do Dis-


curso seguiam o texto da cópia corrigida por Leibniz e publicada
pela primeira vez em 1846 por Grotefend. Lestienne segue a cópia
completa comparando-a com o manuscrito. A presente tradução
foi feita a partir da edição revista por Lestienne (Paris: Vrin, 1952).
O manuscrito e a cópia corrigida por Leibniz não apresentam
este título, mas ele foi adotado desde a primeira edição reprodu-
zindo a expressão usada pelo filósofo para se referir ao texto em
uma carta ao Landgrave Ernst de Hesse-Rheinfelds, de 1/11 de fe-
vereiro de 1686: Recentemente (estando em um lugar no qual,
durante alguns dias, não tinha nada a fazer) fiz um pequeno dis-
curso de metafísica, sobre o qual ficaria bastante feliz de saber a
opinião do senhor Arnauld (ed. Le Roy, Paris: Vrin, 1966, p. 79)·
Os títulos dos artigos, por sua vez, correspondem ao sumário en-
viado a Arnauld em fevereiro de 1686 e presentes no manuscrito.
Sabemos, então, de acordo com essas informações, que o
Discurso foi escrito no fim de 1685 ou janeiro de 1686. Burgelin
(Commentaire du Discours de Métaphysique de Leibniz, Paris:
PUF, 1959) nota que, durante os anos de 1684-85, Leibniz esclare-
ce sua filosofia em vários textos que publica nos Acta Eruditorum
de Leipzig (Nova methodus, em outubro de 1684, Meditatione de
cognitione, em novembro, entre outros); 1685 é, por sua vez, um
ano dedicado à leitura de Malebranche (sobretudo o Traité de la
Nature et de la Grâcé) e das controvérsias entre Arnauld e Male-
branche. Essa leitura seria, segundo uma hipótese de Robinet,
fundamental para a composição do Discurso de metafísica, cujo

80
Discurso de metafísica e outros textos.

percurso argumentativo reproduziria o do Tratado de Malebran-


che (cf. Robinet, Malebranche et Leibniz, Paris: Vrin, 1955).
2. Leibniz inicia o Discurso se referindo à noção mais acei-
ta que possuímos de Deus, sem se preocupar em provar a exis-
tência divina. Posteriormente, no § 23, evocará a clássica prova
ontológica de Santo Anselmo, retomada por Descartes, para mos-
trar a necessidade de análise de todas as noções, inclusive da
idéia de Deus, a fim de evitar as noções contraditórias como a de
número dos números ou a de maior de todas as figuras. Aqui
Leibniz não procede a essa análise, recorre à tradição para definir
Deus como um ser absolutamente perfeito . Ora, dessa maneira
o filósofo não atentaria contra o rigor metafísico? Certamente, es-
crevendo para Arnauld e o Landgrave, Leibniz não via necessida-
de de explicitar a prova da existência de Deus; além disso, se pen-
sarmos que se trata de uma definição apoiada na teologia natural
(e não na revelação), podemos entender o porquê da ausência
da prova: Leibniz acreditava que a existência de Deus é uma ver-
dade que pode ser demonstrada racional e universalmente e, por-
tanto, é uma idéia inata em que todos os homens podem pensar
(embora nem sempre o façam).
Além de ser a mais aceita, essa noção de Deus é a mais sig-
nificativa : embora, logo em seguida, Leibniz dê da perfeição ape-
nas uma marca negativa (não é perfeição o que não é suscetível
do último grau), o filósofo define Deus por sua absoluta perfeição
e, portanto, positivamente.
Essa definição é próxima daquela que Malebranche dera em
seu Tratado da natureza e da graça (Disc., I, 11-3) e aparece tam-
bém na Monadologia (§§ 40-41) e nos Princípios da natureza e
da graça (§ 9)·
3. Entre as perfeições de Deus, Leibniz menciona apenas a
ciência e a potência (como, aliás, Malebranche no Tratado da
natureza e da graça, Disc., I, 12). Posteriormente, e de modo
mais sistemático, distinguirá, na Teodicéia (§ 7), três perfeições:
a sabedoria do entendimento, relacionada à verdade, a potên-
cia, que se dirige ao ser, e a bondade da vontade, dirigida ao
bem; e, na Causa Dei (§§ 3-28), Leibniz distingue entre a gran-
deza, composta pela onipotência e pela onisciência, e a bonda-
de da vontade.

81
G. W. Leibniz

4. Leibniz apresenta duas razões contra a opinião de que as


coisas criadas não são intrinsecamente boas. A primeira razão
consiste em mostrar que essa opinião é contrária à Sagrada Escri-
tura (Gênesis, I, 10-31). Trata-se, como ele diz, de uma antropo-
logia ; não se deve, pois, concluir, a partir dessa alusão, que o
conhecimento divino é experimental (Leibniz sempre se preocu-
pou em preservar o conhecimento de Deus de qualquer espécie
de empirismo, o conhecimento divino é sempre um conhecimen-
to apriori, daí que a ciência divina da visão, que se refere às coi-
sas criadas, não seja diferente da ciência da simples inteligência
do mundo considerado como possível senão pelo fato de con-
ter o conhecimento reflexivo do decreto de criação. Cf. Causa
Dei, § 16).
Poder-se-ia perguntar sobre a legitimidade de apoiar a filo-
sofia na revelação: o Discurso que abre a Teodicéia é inteira-
mente dedicado à questão da conformidade entre a fé ou a reve-
lação e a razão (a revelação prolonga a razão, de modo que não
há nenhuma verdade que seja contra a razão, embora possa ha-
ver verdades acima ou além da razão). Mas, além disso, se Leibniz
escreveu o Discurso de metafísica pensando em um leitor como o
teólogo Arnauld, a referência à Sagrada Escritura era um argumen-
to forte para justificar sua opinião e, como já dissemos, não era o
único. O segundo argumento apresentado por Leibniz mostra que
a negação da bondade intrínseca do mundo é contrária à razão:
as obras trazem a marca do operário.
5. Leibniz havia inicialmente escrito bastante semelhante à
[opinião] dos espinosistas ; alude, portanto, à tese espinosana se-
gundo a qual não há criação, mas a natureza é o efeito necessá-
rio do poder e da essência de Deus; logo, a beleza e a bondade
não estão no mundo, mas na maneira como os homens, que for-
jam Deus à sua imagem, vêem esse mundo. Cf. Espinosa, Ética, I,
proposições 32-33 e Apêndice.
6. Leibniz introduz aqui duas noções novas para fundamen-
tar a crítica que fez a Espinosa e a que fará, logo em seguida, a
Descartes: o amor de Deus (que explicará no artigo 5) e a glória.
Na Teodicéia (§ 109) Leibniz apresenta dois sentidos para a glória
divina: a satisfação no conhecimento das próprias perfeições e o
conhecimento que os outros têm dessas perfeições. Em ambos os

82
Discurso de metafísica e outros textos.

sentidos a glória pressupõe a harmonia e o equilíbrio entre os atri-


butos divinos: Deus é louvável porque, sabiamente, articula seu
entendimento, que pensa os mundos possíveis, sua bondade, que
escolhe dentre os mundos possíveis o melhor, e sua potência, que
põe o melhor dos mundos na existência. Assim, o mundo não é
o efeito necessário de Deus, é escolhido por sua bondade; mas,
por outro lado, a vontade não age independente das razões con-
cebidas pelo entendimento. Eis por que, para Leibniz, a opinião
de Descartes, que concebe a vontade absolutamente indepen-
dente de regras da razão, é tão perigosa quanto a de Espinosa,
para quem a vontade não tem lugar. Eis por que, também, dedica-
rá uma obra inteira, a Teodicéia, à refutação das falsas razões dos
homens que concebem o Criador como um déspota (privilegian-
do a grandeza divina em detrimento de sua bondade) ou daque-
les que o concebem através de antropomorfismos (tendendo a
balança para o lado da bondade da vontade sem consideração da
grandeza).
Vale notar ainda que, não tendo introduzido a bondade da
vontade entre as perfeições divinas no artigo 1, Leibniz precisa
apresentá-la aqui para refutar Espinosa e Descartes.
7. Leibniz havia escrito antes a expressão do senhor Descar-
tes : trata-se da teoria da livre criação das verdades eternas (cf.
Descartes, Cartas a Mersenne, 15 de abril, 6 de maio e Tl de maio
de 1630; Respostas ãs quintas objeções; Respostas às sextas obje-
ções; Carta a P. Mesland, 2 de maio de 1644; Carta a Arnauld, 29
de julho de 1648. Sobre a crítica de Leibniz: Monadologia, § 46).
Para Leibniz, Deus cria as existências, não as essências, embora
estas últimas tenham sua realidade no entendimento divino. As-
sim, as verdades eternas não dizem respeito à vontade divina e
não podem ser alteradas arbitrariamente. É por isso que, ao agir,
Deus segue as regras de seu entendimento, toda vontade supõe
alguma razão de querer, razão esta naturalmente anterior à vonta-
de : Leibniz destaca, assim, a impossibilidade de uma vontade
pura que poderia transformar-se em seu contrário.
Ora, mas isso não significaria limitar a grandeza divina ou a
sua liberdade? Contra essas acusações, Leibniz insiste, por um
lado, na dependência recíproca dos atributos de Deus (Teodicéia,
§§7-8, 116 e 177); e, por outro, na idéia de que o mundo é criado

83
G. W. Leibniz

através de um ato único de vontade e não por infinitas vontades


independentes (Correspondência entre Leibniz e Arnauld, carta
de 13 de maio de 1686).
O mundo criado de acordo com a sabedoria divina é o me-
lhor dos mundos e intrinsecamente bom, não pela razão formal de
ter sido criado por Deus, mas porque sua natureza corresponde a
uma ordem universal de perfeição que Deus realiza em sua ação.
8. Leibniz havia escrito escolásticos modernos e se referia
àqueles que, como Afonso, rei da Castilha (cf. Teodicéia, § 193),
viam o mal como um fato incontestável no mundo e, por isso,
acreditavam que o mundo em si mesmo não era tão perfeito quan-
to poderia ser. Leibniz aludia, certamente, a Malebranche (Trata-
do da natureza e da graça, Disc., I, § 14).
9· Assim como um mal menor tem uma proporção de bem,
assim também um bem menor tem uma proporção de mal. Leib-
niz repete os argumentos apresentados no § 2.
10. Leibniz havia escrito: novos escolásticos (o fim da frase
foi acrescido à redação primitiva).
11. 0 erro consiste em: (1) considerar cada coisa isoladamen-
te e não o mundo como um todo, isto é, a harmonia geral do
universo , e afirmar, a partir de nossa limitada experiência, que
este não é o melhor dos mundos. Cf. Teodicéia, §§ 9 e 193-240.
(2) Não conceber um grau supremo de perfeição, confundindo o
maximum com o optimum (que convém à perfeição), o que con-
tradiria a definição de perfeição dada no § 1 (enquanto as imper-
feições descem ao infinito, a perfeição possui um grau supremo).
Cf. Teodicéia, § 8. (3) Imaginar que se Deus cria somente o me-
lhor, então não pode ser livre. O princípio de razão é universal,
se aplica também à ação de Deus, assim criar um mundo que não
é o melhor seria agir sem razão, uma tal liberdade não pode ser
uma liberdade verdadeira. Assim, embora Deus não seja necessi-
tado (não é contraditória a criação de um outro mundo), é deter-
minado a criar o melhor (seria um absurdo moral a criação de um
nuindo menos perfeito), o fim e a razão de sua vontade é o me-
lhor. Todos os possíveis têm direito de existir na medida de suas
perfeições (Monadologia, § 54), mas nem todos são possíveis em
conjunto, eis por que Deus precisa escolher, e escolhe, segundo
razões, o melhor.

84
Discurso de metafísica e outros textos.

12. Querer o mesmo e não querer o mesmo, eis a verdadei-


ra amizade. Essa frase, trazida de Cícero, De Amicitia, foi acres-
cida posteriormente à redação primitiva.
13. O texto Confessio philosophi (1673) estabelece um para-
lelo entre a república universal dos espíritos e as repúblicas hu-

T5TTD1 lATrP A nV KST Uil


manas. A imagem política, que caracteriza Deus como o monarca
de uma república universal cujo fim é a felicidade dos espíritos, é
utilizada em muitos textos de Leibniz para introduzir o aspecto
moral da criação (cf. nota 133). Cf. Discurso de metafísica, § 36,
Monadologia, §§ 84-90, Princípios da natureza e da graça, § 15.
14. Cícero, De fato, IX, 17, XII, 27a XIII, 30. A crítica ao so-
fisma da razão preguiçosa aparece também na Teodicéia, Prefá-
cio e §§ 55-58.
15. Não podemos conhecer os desígnios particulares de Deus,
mas, em nosso limite de criaturas finitas, podemos presumir o
que Deus quer e agir imitando o Criador: buscando o melhor (no
caso dos homens será o aparentemente melhor, já que temos
uma perspectiva limitada do todo).
16. Todas essas imagens (cinco exemplos tirados de obras
humanas) visam esclarecer, a partir da noção de ser absolutamen-
te perfeito dada no § 1, o princípio geral da conduta divina, a sa-
ber: a busca da obra mais rica pelos meios mais simples. Em De
rerum originatione radicali, Leibniz denomina esse princípio de
conduta divina matemática divina ou mecanismo metafísico , do
qual se segue a perfeição metafísica do mundo criado, ou o má-
ximo de realidade possível, perfeição esta que deve estar conju-
gada com sua perfeição moral (derivada da bondade da escolha
divina), ou a máxima felicidade possível para os espíritos.
Leibniz descreve de maneira mais geral o princípio que leva
à escolha do melhor na Teodicéia, §§ 8-9; na Monadologia, §§ 53-
55; nos Princípios da natureza e da graça, §§ 9-12.
17. Todas as criaturas possuem um elemento de passividade,
fonte de sua limitação, que se exprime pelo volume, e um ele-
mento de atividade. Nos espíritos, a atividade é preponderante,
por isso são as criaturas mais perfeitas. A atividade se exprime
nas percepções claras; mas como as percepções claras de umas
substâncias correspondem às percepções confusas de outras, to-
das se impedem mutuamente ou se estorvam. O impedimento

85
G. W. Leibniz

mútuo é correlato à entreexpressão das substâncias, a essência de


cada uma é uma expressão do todo, mas sua natureza é limitada,
nenhuma substância pode ter uma percepção clara da totalidade
do universo.
18. Essa formulação levou muitos comentadores a pensarem
a simplicidade das vias e a riqueza dos efeitos como um par em
tensão na fábrica do melhor dos mundos possíveis. Na Teodicéia
fica claro, porém, que há uma interação, e não uma oposição, en-
tre a ordem ou a simplicidade das leis da natureza e a variedade
dos efeitos. Em outras palavras, uma enorme- variedade de fenô-
menos não implica um mundo cujas leis, que compõem a ordem,
sejam complexas e menos perfeitas que leis mais simples. Um
mundo mais perfeitamente variado não é necessariamente um
mundo imperfeitamente ordenado.
O princípio de simplicidade das vias e da riqueza de efeitos
nos remete a Malebranche (cf. Tratado da natureza e da graça,
Disc., I, 17-19), mas, para Leibniz, as vias também fazem parte do
desígnio divino, assim, os meios são fins: as regras que Deus se-
gue para a criação do mundo, e que geram as leis desse mundo,
são desejadas não apenas pelo que fazem, mas também pelo que
são ( Teodicéia, § 208).
19- Existir é ser ordenado. Todos os acontecimentos do mun-
do estão no interior da ordem universal criada pela ação de um
Deus que não poderia agir sem seguir regras. Assim, o extraordiná-
rio é aquilo que ultrapassa a compreensão humana. Pode-se di-
zer que há uma diferença de grau, mas jamais uma diferença de
natureza, entre o que chamamos de ordinário e o que denomina-
mos extraordinário.
Leibniz estabelece uma espécie de hierarquia entre as leis do
mundo a que correspondem ordens de perfeição: num primeiro
plano, temos leis que guardam alguma universalidade, mas que
compõem a ordem mais grosseira do sensível. Os animais estão
restritos a essas leis e nós mesmos, em três quartas partes de nos-
sas ações, nos reduzimos a elas quando julgamos as coisas se-
guindo o princípio da memória que se fundamenta em impres-
sões deixadas por fatos, de acordo com a intensidade ou freqüên-
cia das percepções anteriores, e não em um conhecimento das
causas dos fenômenos. Acima dessas, temos as chamadas leis su-

86
Discurso de metafísica e outros textos.

balternas da natureza, com uma universalidade mais abrangente


que as primeiras, porém ainda compreensíveis por nosso enten-
dimento finito. Essas leis fundamentam a nossa ciência assegu-
rando-lhe certeza moral; podemos prever os fenômenos futuros a
partir dos fenômenos passados (seja por causa de uma hipótese
que tenha obtido êxito até o presente, seja por uma relação habi-
tual observada entre certos fenômenos) e, assim, regular a nossa
conduta. Finalmente, temos as leis universalíssimas que com-
põem a ordem metafísica de todos os fenômenos: são as leis es-
senciais da série de coisas que constitui o mundo - nelas estão
compreendidos inclusive os milagres e as ações livres - que asse-
guram, por meio de uma infinidade de relações causais, a ocor-
rência de cada fato singular. Cf. Verdades necesarias y contin-
gentes , in Escritos Filosoficos. Ed. Olaso. Buenos Aires: Char-
cas, 1982 (pp. 328-38); Edição original: Couturat, L. Opuscules
et fragments inédits de Leibniz, Paris: 1903; Hildesheim: Olms,
1961 (pp. 16-24).
20. Desde 1680, com a publicação do Tratado da natureza e
da graça de Malebranche, o tema do milagre era objeto de uma
polêmica entre Malebranche e Arnauld. Para o primeiro (cf. Tra-
tado da natureza..., Disc., I, 18), as leis da natureza são constan-
tes e imutáveis, valem para qualquer tempo ou lugar; Arnauld
opunha a ele, então, a possibilidade dos milagres. Leibniz acen-
tua a posição de Malebranche, afirmando que todos os aconteci-
mentos do mundo são conformes à ordem universal, mas preten-
de ultrapassar as colocações de Malebranche por considerar seu
sistema das causas ocasionais um milagre perpétuo (Cf. adiante
Discurso de metafísica, §§ 16 e 29).
Para Leibniz, o milagre não é explicado nem por sua rarida-
de nem como expressão de nossa ignorância ou incapacidade de
conhecer as leis universalíssimas do mundo. O que diferencia um
milagre e um evento natural é o fato daquele não encontrar sua
razão suficiente nas leis da natureza, é um evento que ultrapassa
as forças de qualquer criatura, sua razão suficiente é Deus.
21. A distinção entre vontades gerais e particulares é resolvi-
da, pelo filósofo, como as distinções apresentadas anteriormente:
não há uma oposição absoluta e as vontades divinas são sempre
conformes à ordem. Na Teodicéia, Leibniz desenvolverá esse te-

87
G. W. Leibniz

ma da vontade divina utilizando-se de outra terminologia. A von-


tade divina sofre uma dupla distinção: divide-se em vontade an-
tecedente e conseqüente e em vontade permissiva e produtiva. É
produtiva com respeito aos próprios atos e permissiva em relação
aos atos alheios (pode ser lícito não impedir o que é ilícito pro-
duzir, se o objeto da permissão for o ato e não o produto da ação
em questão). A faculdade da vontade é antecedente quando é pré-
via ou incünante e, nesse caso, é incompleta ou relativa, visto
que se dirige a algum bem em si de modo particular ou de acor-
do com o grau de bondade do objeto. E conseqüente quando é
plena e absoluta, quando contempla a totalidade (e não um bem
particular) e contém a determinação final, sendo, por isso, decre-
tória; isto é, porque resulta de todas as vontades inclinantes, sem-
pre produz seu efeito pleno. Podemos dizer que Deus quer an-
tecedentemente o bem e conseqüentemente o melhor ( Teodicéia,
§ 23), já que a vontade antecedente é uma vontade isolada de um
bem, que seria eficaz per se se não houvesse uma razão mais for-
te que a impedisse, e a vontade conseqüente é o resultado do con-
flito de todas as vontades antecedentes e é o equilíbrio do concur-
so de todas elas, de modo que as vontades antecedentes têm al-
guma eficácia. Mas, no limite, Deus não tem nenhuma vontade
particular primitiva. Ele não faz nada sem razão, ele não tem ne-
nhuma vontade em relação a acontecimentos individuais que não
seja uma conseqüência de uma verdade ou de uma vontade ge-
ral (Teodicéia, § 206). Assim, de acordo com seu primeiro decre-
to escolher o melhor mundo possível para a glória divina , a
vontade produz, em um único decreto (conseqüentemente, por-
tanto), após reflexão, o conjunto optimum do universo. Cf. Cau-
sa Dei, §§ 18-28.
22. Esta frase, como o restante do artigo, acrescentada poste-
riormente, traz dois problemas de redação: as ações das outras
criaturas (certamente um erro); e com as quais Deus quer con-
correr : Deus concorre para as ações das criaturas racionais, no
sentido ordinário através da conservação delas, em sentido ex-
traordinário através da distribuição de graças; mas Deus não po-
deria concorrer para as ações más, apenas permiti-las; a causa
das más ações é a liberdade da criatura, não Deus.
23. Alusão a Malebranche, para quem somente Deus é causa
eficiente e as criaturas constituem apenas ocasiões para a mani-

88
Discurso de metafísica e outros textos.

festação da causalidade divina (La Recherche de la verité, livro


VI, parte I, cap. III); e a Descartes, que afirma que Deus assegu-
ra a mesma quantidade de movimento (força, na leitura leibni-
ziana) no mundo, mas que cabe às criaturas modificar a direção
desse movimento imprimindo-lhe uma determinação particular
(Príncipes, II, §§ 36-44). Para Leibniz, ambas as teses podem ser
admitidas, mas, para mostrar isso e distinguir as ações de Deus e
as das criaturas, é preciso, antes, explicar o que é uma substân-
cia individual.
A teoria leibniziana da substância individual é constituída a
partir de reflexões trazidas da lógica (a partir da análise de no-
ções e proposições, a substância é pensada como o sujeito de
uma série de predicados), da matemática (a idéia de uma soma fi-
nita de infinitos termos que se encadeiam segundo uma lei deter-
minada leva a pensar a substância como dotada de infinitos pre-
dicados), da física (a partir do estudo do movimento e da maté-
ria, a substância é pensada como a unidade real de ser e de ação)
e, finalmente, da teologia (a substância individual é uma alma e,
no caso dos seres racionais, espírito, que participa de um reino
moral cujo monarca é Deus). Essas perspectivas da teoria da
substância individual são interdependentes umas das outras.
No Discurso de metafísica o filósofo privilegia o aspecto ló-
gico da teoria da substância individual, mas antes de fornecer a
definição propriamente lógica da substância, ao apresentar a ques-
tão a partir do desacordo entre Malebranche e Descartes, afirma
que as ações e paixões pertencem propriamente às substâncias
individuais. O problema que pretende enfrentar com essa afirma-
ção diz respeito ao estatuto ontológico das criaturas; com efeito,
a definição moderna de substância como um ser que existe em si
e por si é concebido corre o risco de levar à afirmação de que
Deus é a única substância. E para evitar o espinosismo que Leib-
niz inicia o artigo dizendo que as ações e paixões pertencem pro-
priamente às substâncias individuais. Não por acaso, textos pos-
teriores como os Princípios da natureza e da graça, em que Leib-
niz abandona o ritmo binário que caracteriza o Discurso de meta-
física (de Deus às substâncias individuais e do mundo à união
dos homens com Deus), se iniciam com a afirmação de que a
substância é um ser capaz de ação.

89
G. W. Leibniz

Este artigo do Discurso de metafísica apresenta, portanto, as


duas marcas fundamentais da definição de substância que leva-
riam, posteriormente, o filósofo ao conceito de mônada: pensada,
na linha da ousia aristotélica, como suporte de ações, a substân-
cia é um ser capaz de ação; como sujeito de predicados, é a uni-
dade de uma multiplicidade (cf. Monadologia, § 14: O estado
passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na uni-
dade ou na substância simples não é outra coisa senão aquilo
que se chama de Percepção"·, § 15: a Ação do princípio interno
que faz a mudança ou a passagem de uma percepção a outra
pode ser chamada Apetiçâo").
24. A definição de substância como sujeito último de predi-
cados (Aristóteles, Categorias, V) é correta, mas, porque não for-
nece a razão de possibilidade da noção, é apenas nominal (cf. Dis-
curso de metafísica, § 24). Vale notar que, como ao tratar de Deus
(§ 1), Leibniz parte aqui da noção mais aceita de substância in-
dividual.
25. Tendo passado à realidade efetiva ( toda predicação ver-
dadeira tem algum fundamento na natureza das coisas ), Leibniz
pode estabelecer uma relação entre as leis lógicas e a estrutura do
real e passar de uma definição nominal para uma definição real.
A inclusão do predicado no sujeito, que define a verdade, não é
uma simples atribuição: a natureza das coisas é essa identidade, o
sujeito é a razão de seus predicados.
26. ... que nesse caso todo indivíduo é uma espécie ínfima
(Suma Teológica, I, 50, art. 4). Esta frase sobre São Tomás foi
acrescentada posteriormente à redação primitiva. (N. da R.)
Trata-se do princípio dos indiscerníveis para o qual a dife-
rença numérica é inútil. A diferença deve ser intrínseca se se quer
alcançar o singular (N. da T.). Cf. Carta a Arnauld, 4/14 de julho
de 1686; Monadologia, §§ 8-9; Princípios da natureza e da graça,
§ 2. (N. da R.)
27. Sobre a teoria da expressão: Carta a Arnauld, 9 de outu-
bro de 1687; e Quid sit idea.
28. A concepção leibniziana de substância, tal como foi defi-
nida nos artigos 8 e 9, reintroduz a noção escolástica de forma
substancial. Segundo a tradição aristotélico-tomista, os seres são
compostos de matéria e forma: a forma, princípio ativo do com-

90
Discurso de metafísica e outros textos.

posto substancial, é uma natureza comum aos indivíduos de uma


mesma espécie (é a matéria que distingue os indivíduos de mes-
ma forma). Para Leibniz, diferentemente, a forma substancial é
em si mesma individual. Com a noção de forma substancial, Leib-
niz pode pensar a substância não apenas como unidade (§ 8), mas
também como unidade de ação.
Ao retomar as formas substanciais tão desacreditadas , Leib-
niz sublinha seu respeito pela tradição ( pessoas hábeis , reco-
mendáveis pela sua santidade ) e, ao mesmo tempo, marca a di-
ferença entre sua própria filosofia e a tradição ( não se afastam
tanto da verdade ). Sobre o tema das formas substanciais: Correspon-
dência entre Leibniz e Arnauld, cartas de 4/14 de julho de 1686,
28 de novembro/8 de dezembro de 1686, 30 de abril de 1687, 9 de
outubro de 1687; De primae philosophiae emendatione, Sistema
novo da natureza, §§ 2-11, entre outros.
29- Leibniz se filia aqui aos partidários do mecanicismo, a
Galileu e Descartes. Leibniz não pode recusar a inteligibilidade
da física cartesiana, mas, ao mesmo tempo, considera que o fun-
damento dos fenômenos físicos deve ser remetido às formas, à
unidade substancial ativa. Assim, não dá autonomia à ciência (seu
fundamento é metafísico), mas critica o abuso de escolásticos e
médicos do passado , tais como Avicena, Paracelso, Van Hel-
mont (a quem se refere quando fala mais abaixo de arquê), entre
outros, que atribuíam uma forma substancial distinta a cada fun-
ção corporal, querendo explicar através delas os fenômenos em
particular.
30. Os dois exemplos utilizados por Leibniz se referem aos
dois labirintos da razão humana: o labirinto da composição do
contínuo, no plano matemático, e o labirinto da liberdade e da ne-
cessidade, no plano moral. O primeiro (a dificuldade de se conce-
ber a divisibilidade ao infinito de uma grandeza finita), diz Leib-
niz, interessa apenas aos filósofos; o segundo (a dificuldade de
conciliar a liberdade humana com a presciência e a providência
divinas), a todo o gênero humano, mas ambos se referem ao pro-
blema do infinito e são resolvidos através da idéia de infinito atual.
De qualquer modo, os exemplos são evocados para mostrar que
mesmo as questões cujo fundamento se encontra na metafísica
podem ser resolvidas na prática ou através da experiência sem o

91
G. W. Leibniz

recurso a esse fundamento. Daí a necessidade de dissociar os pla-


nos da prática e da ciência (que lidam com fenômenos) do plano
metafísico (embora este dê a razão daqueles).
31. Termo jurídico que indica o direito de um cidadão bani-
do de voltar a seu país.
32. A reabilitação das formas substanciais, vimos, não se dá
sem o reconhecimento de que elas são conceitos metafísicos que
não devem ser empregados na explicação dos fenômenos parti-
culares. Além disso, Leibniz modifica a doutrina tradicional: a for-
ma substancial é uma essência individual e não algo comum aos
indivíduos de uma mesma espécie; e é uma força ativa e não uma
potência.
33· Para mostrar a necessidade de se manterem as formas
substanciais, Leibniz faz uma crítica à noção cartesiana de exten-
são, insuficiente para explicar a natureza do corpo. Certamente a
extensão faz parte da natureza do corpo, mas, em primeiro lugar,
não pode constituir a essência do corpo: Leibniz não desenvolve
aqui, mas considera que a extensão não explica a inércia, nem o
movimento dos corpos, e não pode constituir a unidade que de-
fine a realidade dos seres. Em segundo lugar, a extensão não pode
ser considerada uma substância, já que não é uma noção distinta
que possa ser conhecida através de seus elementos e, graças ao
quê, se poderia atribuir uma independência a ela; daí Leibniz des-
prezar a diferença que Descartes estabelecia entre qualidades tais
como cor, calor etc. e a extensão. Todas essas qualidades são, para
Leibniz, qualidades sensíveis e, portanto, relacionadas ao mo-
mentâneo que caracteriza a percepção; ao passo que a substância
é da ordem do inteligível e deve garantir a unidade e a identida-
de através do tempo. Eis por que, para explicar a natureza dos cor-
pos, é preciso reconhecer algo relacionado com as almas e que
vulgarmente se denomina forma substancial . Cf. Sistema novo da
natureza, § 3.
34. Todo o fim do artigo foi acrescentado posteriormente. So-
bre a tema da hierarquia do seres: Discurso de metafísica, §§ 34-36;
Correspondência entre Leibniz e Arnauld, cartas de 30 de abril de
1687, de 9 de outubro de 1687, de 23 de março de 1690; Sistema
novo da natureza, §§ 5 e 8; Monadologia, §§ 18-30 e §§ 82-85;
Princípios da natureza e da graça, §§ 4-5 e §§ 14-15.

92
_________________________________ Discurso de metafísica e outros textos ____________________________________________________

35. É precisamente o enunciado deste artigo 13 que gera a


polêmica entre Arnauld e Leibniz: [...] encontro nestes pensa-
mentos tantas coisas que me assustam e que, se não estou enga-
nado, quase todos os homens acharão tão chocantes [...]. Darei
como exemplo apenas o que é dito no artigo 13 [...] (Carta de
Arnauld ao Landgrave, 13 de março de 1686).
36. Retomando a definição de substância do § 8, Leibniz enun-
cia o problema, a que Arnauld se referiu na Correspondência,
aparentemente gerado por sua teoria da substância. Resumidamen-
te, trata-se da exclusão das idéias de liberdade e contingência em
favor do fatalismo. A primeira, e insuficiente, resposta oferecida
por Leibniz está na distinção entre o certo e o necessário, ou en-
tre a presciência divina e a determinação dos acontecimentos. A
previsão dos futuros contingentes não os torna necessários: Deus
prevê, desde toda a eternidade, as existências possíveis como con-
tingentes.
Sobre o tema dos futuros contingentes e a reconstrução feita
por Leibniz do problema clássico e sua resposta a ele: Teodicéia,
§§ 34-53.
37. Leibniz recoloca o problema, já que a solução oferecida
anteriormente era apenas provisória: a previsão divina não torna
necessários os futuros contingentes, mas a causa dessa presciên-
cia é a noção completa de cada substância individual. O fato de o
sujeito conter todos os seus predicados parece indicar uma deter-
minação absolutamente necessária. A resposta está na distinção
entre uma conexão necessária e uma conexão necessária ex hipo-
tbesi: se qualquer sujeito contém todos os seus predicados, isto é,
se toda proposição verdadeira é analítica, essa relação entre o su-
jeito e o predicado é necessária quando uma afirmação contrária
implica contradição, mas será contingente se outros predicados
forem igualmente possíveis. Assim, definido o círculo, é necessá-
rio que seus raios sejam todos iguais, é impossível que assim não
seja sem destruir a noção mesma de círculo. Eis por que essa é
uma verdade eterna (ou uma verdade de razão). Mas não é neces-
sário que um fato contingente tenha lugar no mundo, a determi-
nação dos futuros contingentes é condicional e envolve a hipóte-
se de uma série de causas que precisam existir para que o fato se
efetive.

93
G. W. Leibniz

A origem das conexões necessárias é o entendimento divino


(que concebe essências ou idéias absolutamente puras ), a ori-
gem das conexões contingentes é a vontade de Deus (que põe
existências livremente inspiradas pelo princípio do melhor). Uma
proposição necessária pode ser conhecida pela análise de uma
possibilidade lógica, enquanto uma proposição contingente é in-
demonstrável, pois exigiria uma análise infinita, já que pressupõe
a totalidade do mundo criado, e o conhecimento dos mundos
possíveis não realizados pressupõe, em última instância, um co-
nhecimento pleno de Deus e do ato de criação.
38. Leibniz ilustra, através deste exemplo histórico, a argu-
mentação que oferecera anteriormente: o filósofo enuncia primei-
ramente o problema (a noção de substância individual e a afirma-
ção de liberdade parecem incompatíveis), dá uma resposta insu-
ficiente (recorrendo aos futuros contingentes e mostrando que a
presciência divina não torna a ação de César necessária), recolo-
ca o problema ( prefiro resolver as dificuldades a escapar de-
las... ), e responde aplicando ao caso de César a distinção das co-
nexões. Mostra, assim, como a vida de César corresponde a uma
conexão contingente ou necessária ex hypothesi que depende de
um ato de vontade divina, inspirado pela consideração do melhor
(e não por necessidade lógica), e da vontade de César que, como
todos os homens, age de acordo com o que lhe parece melhor.
39· Uma proposição contingente não pode ser demonstrada
através da análise, demonstrá-la seria mostrar a razão suficiente
de ter ocorrido um fato em lugar de outro. Por isso, Leibniz pre-
fere usar mostrar a razão ( voir la raison ) quando se refere às
verdades de fato. Razoável aqui se opõe, portanto, a necessário.
Embora escreva a demonstração deste predicado de César , para
estabelecer a diferença entre as verdades da geometria (em que a
relação entre sujeito e predicado é absolutamente necessária) e
as verdades contingentes, e, assim, matizar a comparação que fi-
zera no início do artigo entre uma noção individual e a natureza
do círculo, Leibniz recorre à demonstração de necessidade para
se referir às verdades de razão e prova a priori para falar das
verdades de fato.
40. A criação por si só não implicaria a dependência cons-
tante das criaturas em relação a Deus, mas, uma vez que a cria-

94
Discurso de metafísica e outros textos.

ção é contínua, isto é, Deus cria e conserva as criaturas no ser,


essa dependência é manifesta. Daí Leibniz falar em emanação ,
embora o termo tradicionalmente se oponha à criação (na Mona-
dologia o filósofo fala em fulgurações contínuas ). O termo ema-
nação, em sentido leibniziano, visa indicar que a diferença entre
criação e conservação é apenas extrínseca (cf. Teodicéia, § 385) e,
assim, marcar a continuidade da ação de Deus.
41. O ato original da criação pode ser apresentado em forma
matemática. As figuras geométricas são engendradas em número
infinito por deslocamentos insensíveis que seguem uma lei de
continuidade. Assim, a secção de um cone por um plano que se
desloque continuamente e de modo insensível, por exemplo, gera
uma infinidade de círculos, elipses e parábolas. Do mesmo modo,
Deus, observando o sistema geral dos fenômenos que decide
criar a partir de todos os infinitos pontos de vista possíveis atra-
vés de transições insensíveis, faz corresponder, a cada uma des-
sas perspectivas, uma substância individual. Cada substância é,
pois, uma visão divina sobre a totalidade do universo; eis, a um
só tempo, a semelhança da criatura (perspectiva divina) com
Deus, e, logo, o valor absoluto da percepção, e sua limitação (uma
entre as infinitas perspectivas).
42. Pelo princípio dos indiscerníveis não pode haver identi-
dade de percepções: cada um vê (e age) à sua maneira, embora
todos vejam o mesmo mundo. A diversidade de pontos de vista
não impede, todavia, a comunicação (em linguagem prática), já
que todas as substâncias exprimem todas as outras (em linguagem
metafísica). A entrecorrespondência dos fenômenos ou a entreex-
pressão é, pois, a outra face do impedimento mútuo entre as subs-
tâncias (cf. Discurso, § 5, nota 17): há um acomodamento entre to-
das as substâncias, ou uma harmonia universal, donde a extensão
de cada substância (que percebe o infinito) e sua limitação (só co-
nhece a totalidade do mundo confusamente), cf. Princípios da na-
tureza e da graça, § 13: cada alma conhece o infinito, conhece
tudo, mas confusamente . Sobre a teoria leibniziana da expressão:
Carta a Arnauld, 9 de outubro de 1687; e Quid sit idea.
43. Em sentido estrito, ou em linguagem metafísica, não há
paixão entendida como ação de uma substância sofrida por ou-
tra. O vocabulário que opõe paixão e ação corresponde ao nível

95
G. W. Leibniz

fenomenal ou à linguagem prática, porque no plano substancial


a paixão deve ser entendida como um grau menor de distinção
da percepção, ou como uma percepção confusa. Ação e paixão são
limites de uma variação nos graus de percepção (assim como
são limites a distinção e a confusão das percepções, cf. Discurso,
§§ 24-25).
44. Cf. Discurso de metafísica, § 32.
45. O manuscrito continha uma longa passagem em que
Leibniz procurava conciliar a linguagem metafísica com a lingua-
gem prática a respeito das paixões. O trecho foi suprimido certa-
mente porque o tema reaparece no artigo seguinte.
46. Cf. nota 42. As substâncias se limitam reciprocamente,
porque cada uma é um ponto de vista particular que pressupõe
todos os outros para se definir; assim, pode-se dizer que uma per-
cepção clara para uma substância será mais ou menos obscura
para todas as outras e vice-versa. Entre as percepções das subs-
tâncias há uma diferença de expressão. Em linguagem prática,
uma ação, ou percepção clara de uma substância, corresponde a
uma paixão de outra, de modo que tudo é harmônico no mundo.
47. Cf. nota 43.
48. O prazer, que em si mesmo é signo de perfeição, pode
se revelar, no correr do tempo e de acordo com a ordem geral
que governa o mundo, como um mal. Cf. Teodicéia, § 33.
49. Leibniz retoma a discussão sobre o milagre, apresentada
no § 7, mas agora de um ponto de vista restrito: o da teoria da
substância individual. Trata-se, pois, de entender a relação entre
o milagre e a lei de desenvolvimento que caracteriza uma subs-
tância individual e não entre o milagre e as leis gerais do univer-
so. Mas, como a substância individual exprime a ordem universal,
a solução não difere daquela do § 7: como toda intervenção so-
brenatural de Deus está em conformidade com a ordem geral do
universo, essa ação extraordinária está compreendida na substân-
cia individual. Ora, então o risco é reduzir o sobrenatural ao na-
tural. Embora o universo leibniziano seja criado segundo uma ra-
cionalidade abrangente e nada aconteça fora da ordem universal,
o que indica uma inteligibilidade plena do mundo (ainda que
para o homem essa inteligibilidade não se dê de fato, ela é pen-
sada de direito), Leibniz não abre mão da distinção entre o natu-
Discurso de metafísica e outros textos.

ral e o sobrenatural (mesmo que essa distinção seja apenas uma


diferença de grau). Por isso distinguirá, no fim do artigo, a essên-
cia ou idéia e a natureza ou potência da substância individual.
50. A relação causa-efeito é entendida aqui no interior da re-
lação de expressão. Fisicamente deve-se dizer que há uma equi-
valência entre a causa plena e o efeito inteiro. Assim, porque a
substância exprime Deus como o efeito exprime a causa, exprime
também os milagres ou atos livres divinos que estão acima das
leis subalternas que o homem é capaz de compreender. O mila-
gre não pode ser relacionado à substância individual como causa,
embora esteja compreendido na expressão individual de cada
substância, porque a potência da substância individual, que se ex-
prime como força, é limitada: na ordem das máximas subalternas
o milagre é um efeito que ultrapassa as forças de qualquer subs-
tância criada e, dessa maneira, derroga o princípio físico de equi-
valência entre causa e efeito.
51. O exemplo de máxima subalterna escolhido por Leibniz
não é um exemplo qualquer, mas aquele que o opõe ao cartesia-
nismo. Este § 17 reproduz, em certa medida, um texto publicado
por Leibniz no Acta eroditorum em 1686: Brevis Demonstratio er-
roris memorabilis Cartesii. Traduzido, ainda em 1686, para o fran-
cês, pelo abade Catelan e publicado em Nouvelles de la Republi-
ques des Lettres, o texto foi objeto de uma pequena polêmica en-
volvendo também Malebranche. Leibniz reproduz sua argumenta-
ção em uma carta a Arnauld de 14 de julho de 1686.
Entre os estudos críticos sobre a noção de força em Leibniz:
Guéroult, Dynamique et Métaphysique leibniziennes, Paris: Les
Belles Lettres, 1934; e Belaval, Leibniz critique de Descartes (cap. 7),
Paris: Gallimard, 1960.
52. Alusão a Descartes e à teoria que desenvolve na segun-
da parte dos Princípios·, essa famosa regra é o fundamento do
mecanicismo cartesiano, é a primeira lei da natureza (cf. Princí-
pios, II, 36-37).
53· Embora Leibniz considerasse, desde os seus trabalhos so-
bre o assunto, como Theoria motus concreti e Theoria motus abs-
tracti, ambos de 1671, que a extensão não podia dar conta da in-
dividualidade de cada corpo e de certas qualidades dos corpos,
como a impenetrabilidade, e por isso não podia ser a essência do

97
G. W. Leibniz

corpo nem substância, ele aceitava no conjunto os princípios ge-


rais do mecanicismo de Descartes e Gassendi. O princípio de
conservação do movimento era, então, plausível para o filósofo,
porque podia ser exprimido matematicamente, de acordo com a
nova ciência.
54. Cf. Descartes, Princípios, II, 43. A razão composta é o
produto da massa pela velocidade (mv).
55. Leibniz considera que Descartes identifica falsamente
força e quantidade de movimento e, assim, opõe sua tese sobre a
conservação da força à tese cartesiana. A força é de uma nature-
za diferente da quantidade de movimento, ela é uma noção me-
tafísica. Leibniz não pode abdicar, porém, da aquisição da ciência
moderna, o mecanicismo garante a expressão matemática dos fe-
nômenos. A força viva, aquela que supõe o movimento, pode ser
exprimida matematicamente como o produto da massa do corpo
pelo quadrado da velocidade (mv2), de acordo com o efeito que
ela pode produzir, tal como fica claro no fim deste artigo.
Leibniz oferece aqui duas razões que justificam o princípio
de conservação da força, e não da quantidade de movimento, no
mundo. Em primeiro lugar, é razoável , ou seja, não é matemati-
camente necessário, mas é conforme à necessidade moral da or-
dem do melhor. Em segundo lugar, quando se presta atenção
nos fenômenos se constata pelos fatos e a posteriori o erro de
Descartes, porque a experiência mostra que não há movimento
perpétuo, tal como supunha o princípio cartesiano, enquanto, de
sua parte, a força é conservada quando um corpo a transmite a
outros corpos contíguos ou a suas partes móveis. Assim, Leibniz
entende que a força, e não o movimento, se conserva e, por isso,
corresponde a algo de real.
56. Para demonstrar sua tese, Leibniz utiliza dois axiomas co-
mumente admitidos. O primeiro - um corpo, caindo de uma certa
altura, adquire a força para subir novamente, se não houver impe-
dimentos externos - foi explicitamente formulado por Christian
Huygens em um texto, Règles du mouvement dans la rencontre
des corps, publicado no Journal des savants, em 18 de março de
1669, e no Horologium oscillatorium, de 1673· O segundo - é ne-
cessária tanta força para elevar um corpo de 1 libra à altura de 4
toesas, quanta para elevar um corpo de 4 libras à altura de 1 toe-
Discurso de metafísica e outros textos.

sa foi formulado por Descartes em um pequeno tratado de me-


cânica que enviou como apêndice de uma carta a Constantin Huy-
gens, em 5 de outubro de 1637: Explication des enginspar 1 aide
desquels on peut avec unepetiteforce lever un fardeau fortpesant.
57. Segundo o princípio de Galileu (Discorsi e demonstrazio-
ni matematiche, de 1638), a velocidade é igual à raiz quadrada
da altura, portanto, para o corpo A, cuja altura é 4, a velocidade
é 2; para o corpo B, cuja altura é 1, a velocidade é 1.
58. Leibniz conclui não apenas afirmando a distinção entre
força e quantidade de movimento, mas atribuindo ã força uma ex-
pressão matemática (cf. nota 55).
A partir dessa demonstração Leibniz mostra, também, que,
além das propriedades mecânicas, os corpos têm uma realidade
metafísica, a força. Diferentemente da extensão, que exprime ape-
nas um estado presente, a força pode durar. Eis os fundamentos
para a formulação futura do conceito de mônada: o mundo é
constituído por unidades de força.
59- Leibniz define agora a natureza da noção de força, intro-
duzida no § 17, cuja importância abrange a física (estabelecendo a
verdadeira lei dos fenômenos, que não pode ser o movimento), a
mecânica (esclarecendo as verdadeiras leis do movimento, sobre-
tudo a lei do choque, contra Descartes e Malebranche) e a meta-
física (o fundamento do mecanicismo e das leis do movimento é
a doutrina da substância e não a extensão). Para caracterizar a for-
ça, Leibniz afirma primeiramente que, enquanto o movimento,
considerado formalmente como mudança de lugar (cf. Descartes,
Princípios, II, 25-30), é apenas relativo, isto é, não pode ser atri-
buído a um corpo de preferência a outro, a força possui um cará-
ter absoluto, porque é o fundamento do movimento. O movimen-
to é uma relação variável de distância e, portanto, extrínseca ao
corpo que se move. Mas, enquanto mudança de lugar, o movi-
mento indica uma mudança interna e, portanto, um princípio in-
terno de espontaneidade, de modo que um corpo que se move
não apenas muda de lugar mas tem uma tendência a se mover.
(Cf. tb. Objeção de Morus a Descartes: Cartas deMorus a Descar-
tes, 5 de março de 1649, 23 de julho de 1649.)
60. Leibniz indica, em segundo lugar, que a natureza da for-
ça não pode ser definida pela extensão e suas modificações e que

99
G. W. Leibniz

a força corresponde, pois, a um princípio de ordem metafísica. Se


o movimento é em seu fundamento mudança e não simples des-
locamento, isto é, se a força é a causa próxima do movimento,
então é preciso pensar uma causa capaz de produzir o efeito mo-
vimento: a noção de força se aproxima da noção de forma subs-
tancial, mas não deve ser pensada como simples potência, e sim
como enteléquia, que envolve a espontaneidade de uma tendên-
cia, de sorte que a ação tem lugar se nada impedir (cf. Monado-
logia, §§ 10 e 18).
61. Assim, Leibniz pretende conciliar a explicação mecânica
do mundo, isto é, a ciência dos modernos, com a metafísica dos
antigos: há dois planos harmônicos ou duas ordens, ou seja, to-
dos os fenômenos da natureza podem ser explicados matematica-
mente ou geometricamente pela ciência, mas seu fundamento é
metafísico, o que satisfaz as pessoas inteligentes e bem intencio-
nadas , tais como Arnauld, para as quais a explicação puramente
mecânica do mundo poderia significar explicar tudo pela matéria
sem consideração da piedade.
62. Após recorrer à noção de força como fundamento dos fe-
nômenos, Leibniz trata da finalidade como princípio de explica-
ção deles. Introduz a necessidade do recurso às causas finais na
explicação do mundo por oposição aos partidários do mecanicis-
mo, cujas perigosas conseqüências se remetem a uma concepção
da criação que, ao negar a finalidade, vê uma necessidade abso-
luta ou uma vontade arbitrária na origem do mundo e, portanto,
como mostrara no § 2 do Discurso, nega a bondade e a glória de
Deus. Leibniz alude, pois, a Descartes (para quem Deus não se-
gue nenhuma regra de bondade na criação do mundo) e a Espi-
nosa (para quem não há criação, já que o mundo é o efeito ne-
cessário da causalidade divina). Cf. notas 4, 5 e 6.
63. Depois de justificar sua tese por uma razão a priori de
ordem teológica (Deus age sempre conforme o melhor e o mais
perfeito, então o mundo deve manifestar em sua ordem a finali-
dade da ação divina), Leibniz responde a uma possível objeção, a
saber, é impossível determinar os fins de Deus e portanto recor-
rer a eles na explicação dos fenômenos. A objeção perde seu
sentido se não se pretende explicar um fenômeno particular pelo
recurso à finalidade, nem se imagina que Deus se propôs fins

100
Discurso de metafísica e outros textos.

particulares: Deus se propôs um único fim, o melhor dos mundos


possíveis, e não age de acordo com vontades isoladas, assim,
deve-se explicar pela finalidade a ordem geral do mundo e não
os fenômenos particulares.
64. Deus cria o mundo para sua glória e não para nós, por
isso cria um mundo harmônico, isto é, uma variedade de seres
unidos em uma ordem (um mundo composto apenas por espíri-
tos seria um mundo pobre). Todavia, em certo sentido, podemos
nos considerar como fins da criação, já que o universo inteiro diz
respeito a nós na medida em que o exprimimos; isso decorre do
§ 14, que afirma a entreexpressão das substâncias, da teoria leib-
niziana da substância, que a faz um centro de perspectiva do uni-
verso inteiro, e, principalmente, do fato de os espíritos exprimi-
rem melhor Deus que as demais criaturas (cf. §§ 15 e 36).
65. A segunda razão que Leibniz oferece para justificar sua
tese é uma razão a posteriori, a admirável estrutura dos animais
exemplifica a finalidade da sabedoria divina, porque ilustra a har-
monia, a conformidade das partes e do todo etc. Por isso, Leibniz
se opõe, em seguida, aos partidários de um puro mecanicismo,
como Hobbes e Gassendi. O absurdo de uma concepção estrita-
mente mecanicista se mostra, para Leibniz, nas suas conseqüên-
cias (a pura necessidade da matéria ou o simples acaso), que são
inconciliáveis com a afirmação metafísica da existência de Deus.
66. O princípio físico da equivalência entre a causa plena e
o efeito inteiro deve ser, pois, entendido universalmente. Os dois
exemplos, o do olho e o da conquista de uma praça, visam mos-
trar o absurdo de uma explicação estritamente mecânica. A ciên-
cia deve interpretar os fenômenos mecanicamente, mas não pode
deixar de se referir à metafísica como seu fundamento e, portan-
to, à inteligência ordenadora divina. Conhecer a causa ou dar a
razão de algum fenômeno, para Leibniz, é introduzir finalidade e
inteligência.
67. Leibniz cita esta passagem do Fédon (97b-99c) em vários
escritos: Resumo do Fédon, cle 1676; Carta sobre a utilidade de
um princípio geral na explicação das leis da natureza, de 1687;
Resposta às reflexões de Régis, 1697; Há duas seitas de naturalis-
tas. A passagem aqui citada é tirada deste último texto. Leibniz faz
uma tradução livre e com lacunas.

101
G. W. Leibniz

68. Para reafirmar a importância da consideração das causas


finais em física, Leibniz desenvolve dois exemplos, um sobre as leis
do movimento e outro sobre fenômenos ópticos, que se apóiam
em textos já publicados. No primeiro exemplo, que se remete ao
texto Theoria motus abstracti, de 1671, e à polêmica dos anos de
1686 e 1687 em torno do texto Brevis demonstratio erroris memo-
rabilis Cartesii, Leibniz critica a definição das leis do movimento
com base exclusivamente nas noções geométricas de extensão e
deslocamento, tal como faz Descartes (Princípios, II, §§ 23-53)·
Para Leibniz, o mecanicismo cartesiano leva a supor que, no cho-
que, um corpo pode comunicar velocidade a outro sem perder a
sua própria; além disso, leva à suposição de que nem sempre há
um sistema equilibrado na natureza, de maneira que o princípio
da equivalência entre a causa plena e o efeito inteiro não seria
sempre respeitado. Assim se mostra imprescindível, para explicar
essas regras fundamentais da mecânica que são as leis do choque
e a formação de um sistema equilibrado, o recurso a um princí-
pio de ordem metafísica, a saber, o decretó da sabedoria divina
de conservar sempre a mesma força e mesma direção no total . A
força é a capacidade de passar à ação e produzir um efeito futu-
ro, a direção é a determinação do movimento (cf. Carta a Ar-
nauld, 30 de abril de 1687). A conservação da força (cf. Discurso,
§ 17) e da direção mostram que Deus se preocupa com a totalida-
de das coisas e que estas correspondem, portanto, a um fim.
69· Ensaio de Dinâmica sobre as leis do movimento , Cor-
respondência com Clarke. Para compreensão maior, consultem-se
os Escritos matemáticos, nas obras completas, edição Cari Ger-
hardt. (N. da T.) Leibniz considera que, também na catóptrica e
na dióptrica, as leis da óptica podem ser deduzidas de um princí-
pio metafísico, a saber, o decreto de Deus produzir sempre o
efeito pelas vias mais simples e determinadas , do que falará no
artigo seguinte.
70. Leibniz justifica a preferência pela via das causas finais
( mais fácil ) com o exemplo das leis de óptica, já citado no arti-
go anterior: a lei da refração descoberta por Snellius.
Snellius (1591-1626) era professor de matemática na Univer-
sidade de Leyden e deixou um manuscrito, encontrado após sua
morte, que continha o enunciado e a demonstração das leis da

102
Discurso de metafísica e outros textos.

refração. Leibniz considera que Snellius aplicava ao estudo da re-


fração (dióptrica) o que os antigos usaram no estudo da reflexão
(catóptrica), a saber, o princípio da simplicidade, segundo o qual
a luz procura o caminho mais simples, o que, na catóptrica, leva à
igualdade dos ângulos de incidência e reflexão, e, na dióptrica,
à constância da relação entre os senos dos ângulos de incidência
e refração (se a luz muda de meio e encontra uma resistência maior
ou menor, a lei dos senos é a mais determinada ou a mais sim-
ples porque a proporção dos senos é a proporção da resistência
dos meios). Para Leibniz, a descoberta de Snellius confirma a im-
portância da consideração das causas finais. ·
71. Heliodoro de Larissa era um matemático grego que, apro-
ximadamente entre os séculos III e IV a.C., compôs um tratado
de óptica, depois (em 1657) editado em Paris (Opticorum Libri II).
72. Fermat conhecia, através de Mersenne, a Dióptrica de
Descartes antes de sua publicação em 1637, e escreveu uma críti-
ca da demonstração cartesiana a Mersenne, que comunicou a Des-
cartes, tendo se iniciado, a partir de então, uma troca de cartas.
Sobre o método de Fermat: Leibniz, Tentamen Anagogicum.
73. Cf. Descartes, Dióptrica, Discurso, II. Leibniz questionou
a demonstração de Descartes pela primeira vez em 1679, em
uma carta a Malebranche (Die philosophischen Schrifften, he-
rausgegeben von V. Gerhardt, Berlim, 1875-1890; Olms, 1978 -
volume IV, 302).
74. Alusão a Malebranche, cf. Discurso de metafísica, §§ 26,
28 e 29.
75. Depois de retomar brevemente os temas tratados nos §§
17-
22, justificando seu percurso argumentativo, Leibniz volta dos
corpos às naturezas imateriais e particularmente aos espíritos e
acentua, primeiramente (§ 23), a necessidade de examinar a natu-
reza das idéias a fim de distinguir o bom e o mau uso que se faz
delas; para isso, é preciso distinguir os raciocínios sobre alguma
coisa e a idéia dessa coisa, ou, em outros termos, é preciso distin-
guir o discurso e o pensamento, a palavra e a idéia (cf. Medita-
ções sobre o conhecimento, a verdade e as idéias , in Escritos Fi-
losoficos. Ed. Olaso. Buenos Aires: Charcas, 1982 (pp. 271-8); Edi-
ção original: Die philosophischen Schriften, Gerhardt, Berlin:
1875-90; Hildesheim: 1960-1 - IV (pp. 422-6). Pode-se falar so-

103
G. W. Leibniz

bre coisas impossíveis, pode-se imaginar que temos idéias claras


quando falamos de contradições, é preciso, pois, analisar sem-
pre a suposta idéia a fim de não deduzir falsidades a partir de ilu-
sões. Antes de definir propriamente o que é a idéia (o que só fará
explicitamente no § 26), Leibniz mostra a necessidade de não se
fiar em uma evidência aparente e de se verificar a possibilidade
da coisa que a pretensa idéia exprime. E essa possibilidade é co-
nhecida pelo recurso formal à análise (cf. Carta a Arnaiild, 4/14
de julho de 1686). Assim, contra um critério subjetivo de verda-
de - que fundamenta a inteligibilidade em uma impressão subje-
tiva produzida pela idéia - Leibniz recorre à estrutura objetiva da
idéia para buscar a inteligibilidade perfeita, a realidade da idéia
será, desse modo, sua coerência lógica. O que Leibniz critica aqui
(nas entrelinhas) é o critério cartesiano de clareza e distinção (em-
bora ele mesmo o tome como ponto de partida para classificar as
idéias, mas veremos em que sentido no § 24); segundo o filósofo,
as coisas que são obscuras e confusas parecem claras e distintas
para quem julga sem profundidade. Daí ser um axioma inútil, a
menos que se acrescentem critérios do claro e do distinto que
propomos {Meditações sobre o conhecimento..., p. 276).
76. Leibniz não se atém ao conteúdo da prova, mas a sua
forma lógica: a prova da existência de Deus é um exemplo da di-
ficuldade de se reconhecer uma idéia verdadeira e um exemplo
de evidência não fundada em uma análise. Trata-se, pois, de uma
demonstração incompleta, é preciso antes demonstrar a possibili-
dade do ser perfeito ou de Deus. Se Leibniz estivesse interessado
no conteúdo da prova ontológica, afirmaria que todas as perfei-
ções são qualidades simples, logo compatíveis entre si, logo a idéia
de um ser com todas as perfeições e, entre elas, a existência, é
possível, logo esse ser existe. Mas aqui, como no § 1, em que par-
tiu dessa mesma definição de Deus (mas como um postulado,
não como uma prova), Leibniz não considera a prova nela mes-
ma: está interessado em mostrar que a argumentação de Santo
Anselmo (Proslogion, II-IV) e Descartes (Discurso do método,
IV; Meditações, V; Princípios, I, 14) é válida, mas é insuficiente, por-
que freqüentemente pensamos em quimeras, como o último grau
de velocidade, o maior de todos os números etc. Eis o segundo
exemplo de dificuldade de reconhecimento de uma idéia: idéias

104
Discurso de metafísica e outros textos.

matemáticas admitidas pelo vulgo e aparentemente claras que en-


cerram uma contradição. Os exemplos matemáticos são conside-
rados aqui no interior do exemplo da idéia de Deus para mostrar
a necessidade da análise no reconhecimento de idéias falsas, en-
quanto essa última, a idéia de Deus mostra a necessidade do es-
tabelecimento rigoroso, pela via da análise, de uma idéia verda-
deira, e a importância, mesmo em metafísica, da análise lógica.
77. A idéia, como objeto do pensamento, não é falsa ou ver-
dadeira em si. Cf. Novos ensaios, Leibniz: é verdade que atribuí a
verdade também às idéias afirmando que as idéias são verdadei-
ras ou falsas; mas, nesse caso, o penso de fato das proposições
que afirmam a possibilidade do objeto da idéia. E nesse mesmo
sentido pode-se dizer ainda que um ser é verdadeiro, isto é, a pro-
posição que afirma sua existência atual ou pelo menos possível é
verdadeira {Novos ensaios, V, iv, § 11). Propriamente falando, en-
tão, a verdade ou falsidade está numa proposição, num juízo so-
bre a possibilidade do objeto da idéia.
78. O tema deste artigo, que resume a exposição feita dois
anos antes nas Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as
idéias e retomada, em 1704, nos Novos ensaios (II, xxix-xxxi), de-
corre naturalmente do tema da análise apontado no § 23, já que a
classificação das idéias que Leibniz apresenta no § 24 parece cor-
responder aos diferentes graus de uma análise que pretende en-
contrar os elementos primeiros do pensamento. O tema da análi-
se lógica se opõe diretamente aos critérios de verdade de Descar-
tes. Descartes (Regras, I-XII; Discurso do método, II) relaciona o
conhecimento à evidência imediata das idéias claras e distintas
quando estão presentes ao entendimento. A clareza, por oposi-
ção à obscuridade, resultaria da presença imediata da idéia; a dis-
tinção, por oposição à confusão, seria uma clareza que permitiria
separar uma idéia das outras. Mas trata-se sempre, para Leibniz,
de um critério baseado na impressão subjetiva produzida pela
idéia. Além disso, Leibniz concebe uma variedade de conheci-
mentos que não se deixam resumir pelo critério de clareza e dis-
tinção. A ele interessa considerar a estrutura objetiva da idéia nela
mesma com certa independência em relação ao pensamento que
a concebe ou a que se apresenta a idéia (embora, como veremos,
a classificação dos tipos de idéia inevitavelmente mantenha rela-

105
G. W. Leibniz

çâo com o entendimento humano, mas não se tratará, então, de


uma impressão produzida pela idéia, mas da possibilidade de
proceder ou não a uma análise lógica dos elementos que com-
põem cada idéia). O critério de verdade deverá ser, então, uma
demonstração sólida que a forma lógica garante: toda idéia pode
ser decomposta em elementos mais simples, e estes, em outros
mais simples, até se chegar a elementos indecomponíveis.
79. Nas Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as
idéias e nos Novos ensaios (II, xxix-xxxi), Leibniz afirma que o co-
nhecimento de uma idéia é dito claro, por oposição ao obscuro,
quando permite o reconhecimento da coisa que exprime e sua
diferenciação em relação a coisas parecidas. O conhecimento cla-
ro é confuso quando, embora possamos reconhecer o que a idéia
exprime, não conhecemos um número suficiente de elementos
constitutivos, nem podemos enumerar separadamente essas no-
tas que distinguem uma coisa das demais. Só podemos designar
uma idéia clara e confusa por exemplos, assim não é possível fun-
damentar nenhum conhecimento racional sóbre a clareza - à ex-
periência, à imaginação e aos sentidos bastam essa mesma expe-
riência, essa mesma imaginação e esses sentidos para que esteja-
mos certos de que experimentamos, imaginamos e sentimos, aqui
a clareza basta para nos persuadir; mas, quando se trata da razão,
é preciso proceder à análise da idéia a fim de nos convencermos
sobre a possibilidade do que ela exprime.
80. O conhecimento distinto possui graus: é inadequado
quando não conhecemos cada um dos elementos que compõem
a idéia distintamente, assim como no caso do ouro, em que o
contrasteador conhece confusamente algumas propriedades. En-
tre o distinto e o confuso não há um abismo, mas uma gradação
que depende da análise da idéia; há, em última instância, idéias
mais ou menos confusas. Leibniz afirma nos Novos ensaios (III,
iv, 16) que: [as idéias simples] são simples apenas em aparência,
são acompanhadas de circunstâncias que têm ligação com elas,
ainda que essa ligação não seja entendida por nós, e essas circuns-
tâncias oferecem alguma coisa explicável e suscetível de análise .
Ora, então uma idéia verdadeiramente distinta, que Leibniz desig-
na, se apropriando do termo espinosano, como idéia adequada,
em que seria possível conhecer distintamente cada um dos ele-

106
Discurso de metafísica e outros textos.

mentos que a compõem, é apenas um limite. A idéia distinta e


adequada é aquela em que, conhecendo todas as suas marcas ou
elementos constitutivos, podemos definir por meio desses elemen-
tos, mas, se as idéias simples são simples apenas aparentemente,
seria preciso analisar cada um desses elementos e conhecê-los
também distintamente e assim ao infinito.
De fato, porque nossos pensamentos nascem da relação de
todas as coisas entre si de acordo com a duração e a extensão
(Teodicéia, § 124), isto é, nascem da entre-expressão de todas as
coisas, tudo que pensamos envolve o universo inteiro e, se pen-
samos distintamente uma idéia, não podemos pensar distinta-
mente a totalidade do universo que essa mesma idéia envolve
(ou de algum modo traz consigo). Nosso ponto de vista para per-
ceber a totalidade do mundo é nosso corpo: na minha filosofia
não há criatura racional sem algum corpo orgânico e não há es-
pírito criado que seja inteiramente separado da matéria (Teodi-
céia, § 124); e onde houver corpo e sentidos há confusão. Pode-
mos dizer que nossos pensamentos nascem em nós uns dos ou-
tros, mas pela relação que nosso corpo mantém com os outros
corpos; assim, as idéias que pensamos, pensamos de acordo
com a duração e a extensão, a série de nossos pensamentos cor-
responde à série de nossas sensações. Assim, temos idéias distin-
tas, mas não podemos ter nenhum pensamento distinto que não
tenha por companheira a confusão. Dessa mesma perspectiva,
pensarmos em uma idéia realmente adequada seria, no mínimo,
improvável (cf. Belaval, Études leibniziennes, Paris: Gallimard,
1976, pp. 114-20).
81. O conhecimento simbólico ou supositivo é aquele em que
os elementos constitutivos da idéia não podem ser apreendidos
de uma só vez pelo pensamento e são, por isso, substituídos por
símbolos que, supomos, resumem um conjunto de noções nos
desobrigando de explicá-las - a esse tipo de pensamento Leibniz
dará o nome de pensamentos cegos (cf. Meditações sobre o co-
nhecimento, a verdade e as idéias).
82. Pode-se permutar o sujeito parafuso sem fim e o predi-
cado uma linha sólida cujas partes são congruentes , já que as ou-
tras linhas cujas partes são congruentes, a linha reta e a circunfe-
rência do círculo, não são sólidas, mas traçadas in plano.

107
G. W. Leibniz

83. A definição nominal não dá a possibilidade da coisa. É


por isso que, contra Hobbes, Leibniz afirma que as verdades não
dependem dos nomes. Para Hobbes, a verdade está nas palavras
e não nas coisas (De corpore, III, 7), e as primeiras verdades nas-
cem da vontade daqueles que primeiro impõem nomes às coisas
e daqueles que aceitam esses nomes estabelecidos por outros (De
corpore, III, 8); a ciência consiste, portanto, nas palavras e o sen-
tido das palavras é fixado por definições nominais e é, em última
instância, arbitrário. Ora, dirá Leibniz, se as palavras são arbitrá-
rias, as noções que elas conotam não podem ser.
Podemos dizer que Leibniz adota com ressalvas uma doutri-
na convencionalista da linguagem. Mas o filósofo evita reduzir a
verdade mesma a um fato subjetivo e contingente: o arbitrário se
encontra somente nas palavras, jamais nas idéias. Porque estas
exprimem possibilidades (Novos ensaios, III, iv, § 17). Embora o
nome sirva para apontar uma coisa e conservar a memória e o
conhecimento atual dessa coisa, a idéia dessa coisa não é uma
essência nominal , as essências não dependem da escolha dos
nomes.
84. Leibniz adianta aqui uma distinção que fará apenas no §
27 entre as idéias e as noções: as expressões que estão em nossa
alma, quer concebamos ou não, são idéias; aquelas que forma-
mos ou concebemos são noções ou conceitos. Podemos imaginar
que estamos formando uma noção, quando na verdade estamos
usando palavras vãs ou falando de quimeras. Trata-se das idéias
falsas do § 23, que sugerem uma crítica da linguagem.
85. Leibniz analisa o conhecimento supositivo ou simbólico,
no qual não contemplamos a idéia porque a substituímos por sím-
bolos e, sem remeter a definição ao definido, supomos que a noção
que cada signo resume é possível. Ora, como nosso pensamento
se fundamenta na memória (Novos ensaios, IV, i, 8), sobretudo em
raciocínios longos, e utilizamos idéias que supõem a fidelidade
de nossa lembrança (Novos ensaios, IV, i, 9), não podemos nos
impedir de recorrer a esses pensamentos cegos, e estamos sempre
sujeitos ao erro, mesmo em relação a noções familiares como o
número 1.000, porque usamos o símbolo e o definimos como 10 ve-
zes 100 sem pensar o que é 10 e o que é 100, sem contemplar o
conteúdo da noção. Pode, pois, haver algo de vazio (Novos en-

108
Discurso de metafísica e outros textos.

saios, II, xxix, 10) no pensamento, por isso esse conhecimento


cego se aproxima do conhecimento de noções impossíveis.
Além do exemplo do número 1.000, Leibniz retoma o exem-
plo do quiliógono que aparecia na Sexta Meditação (§ 2). Ali Des-
cartes diferenciava a pura intelecçâo, pela qual concebemos facil-
mente, como no caso de um triângulo, o quiliógono como uma
figura de mil lados, e a imaginação, pela qual representamos con-
fusamente alguma figura que não é um quiliógono. Para Leibniz
(Novos ensaios, II, xxix, 13), esse exemplo indica a confusão en-
tre imagem e idéia. Temos uma idéia confusa tanto da figura
como de seu número (mil lados) até que possamos distinguir
esse número contando ou enumerando, feito isso, temos a idéia
de um quiliógono e podemos, pois, conhecer sua natureza e suas
propriedades, embora não possamos formar uma imagem deste
polígono. Eis por que a contemplação da idéia não se identifica
com a contemplação de uma imagem - mesmo que fosse uma
imagem clara como a de um triângulo, ainda assim teríamos do
triângulo apenas uma idéia confusa se não distinguíssemos os
elementos da noção.
86. No caso do conhecimento confuso, embora possamos re-
conhecer o que a idéia exprime, não conhecemos suficientemen-
te os elementos constitutivos da idéia e não podemos enumerar
separadamente essas notas que distinguem uma coisa das demais,
não podemos, enfim, analisar a idéia. É por isso que recorremos
a exemplos para designá-la. E por isso também que não construí-
mos um conhecimento racional unicamente com base nessa cla-
reza, porque não podemos nos assegurar da possibilidade do que
a idéia exprime. Trata-se, pois, de um conhecimento ligado à
experiência, à imaginação e aos sentidos, que não exigem provas
para que estejamos certos de que experimentamos, imaginamos
ou sentimos.
No caso do conhecimento intuitivo, meu espírito compreen-
de ao mesmo tempo e distintamente todos os elementos primiti-
vos de uma noção (Discurso, § 24). Ora, se compreendo simul-
taneamente todos os elementos da idéia, não preciso analisá-la. E
é apenas isso que aproxima o conhecimento claro e confuso e o
conhecimento intuitivo: em ambos não procedemos a uma análi-
se para definir a idéia, seja porque não podemos (conhecimento

109
G. W. Leibniz

confuso), seja porque não precisamos (conhecimento intuitivo):


o conhecimento é intuitivo quando o espírito percebe a conve-
niência de duas idéias imediatamente por elas mesmas sem in-
tervenção de qualquer outra. Nesse caso o espírito não precisa
se ocupar em provar ou examinar a verdade [...] (Novos ensaios,
IV, ii, 1).
87. Leibniz considera inicialmente duas concepções sobre as
idéias: muitos consideram que as idéias são a forma ou diferença
de nossos pensamentos; nesse caso, uma idéia é um modo do
pensamento ou do espírito, do qual recebe ou toma de emprésti-
mo sua realidade formal (Descartes, Meditações, III, 17, p. 112).
Ora, para Leibniz, afirmar isso seria também dizer que uma idéia
é um pensamento atual, e nada mais.
Outros consideram que a idéia é um objeto imediato do pen-
samento ou uma forma permanente - neste caso, Descartes diria
que a idéia possui realidade objetiva ( a entidade ou o ser da coi-
sa representada pela idéia, na medida em que tal entidade está
na idéia . Objeções e respostas, Razões dispostas de uma forma
geométrica , Def. III). A distinção apresentada por Leibniz aqui é,
pois, um aprofundamento de uma distinção estabelecida por
Descartes.
Leibniz se filia a esta última interpretação: a idéia é um obje-
to imediato do pensamento. Afirmar a idéia como objeto, como
realidade inata ao espírito, é afirmar a permanência e a realidade
da idéia independente de nosso pensamento atual. E a prova des-
sa objetividade é que a nossa alma tem sempre nela a qualidade
de representar qualquer natureza ou forma, seja qual for, quando
surge a ocasião de pensar nela : nossa alma tem a qualidade de
tornar presente à consciência as idéias que existem virtualmente
em nosso pensamento, e a experiência sensível é apenas a ocasião
para que as idéias ressurjam em nossa consciência. Mas se a ex-
periência é uma ocasião, é porque as idéias existem em nós e
sempre em nós, quer nela pensemos ou não (§ 26).
88. A idéia é tanto um objeto de pensamento que correspon-
de à coisa de alguma maneira, como uma faculdade ou qualida-
de da alma de exprimir essa coisa, assim Leibniz parece conciliar
uma certa passividade da alma de perceber um objeto de pensa-
mento, com uma faculdade ativa da alma de exprimir uma essên-

110
Discurso de metafísica e outros textos.

cia ou uma existência, Deus e o mundo, quando a ocasião para


isso se apresenta. Não seria possível tornar presente esse objeto
da alma se ela não fosse expressiva. Leibniz afirma que Uma coi-
sa exprime uma outra [...] quando há uma relação constante e re-
grada entre o que se pode dizer de uma coisa e o que se pode dizer
de outra (Carta a Arnauld, 9 de outubro de 1687). A expressão,
prossegue Leibniz nessa carta, é um gênero do qual a percepção
natural, o sentimento animal e o conhecimento intelectual são es-
pécies. Todas as criaturas expressam o todo, mas na alma racio-
nal essa expressão é acompanhada de consciência, e, nesse caso,
é pensamento. Assim, a expressão na alma racional é sua faculda-
de de se representar qualquer coisa, ou qualidade de pensar em
tudo: em Deus (quando tem idéias distintas, Novos ensaios, II, i, 1),
no universo (através das idéias confusas, Novos ensaios, II, i, 1), nas
essências ou formas (isto é, no possível, submetido apenas ao prin-
cípio de não contradição), nas existências ou naturezas (uma li-
mitação da essência, cf. Discurso de metafísica, § 16).
89. A alma é um pequeno mundo (Novos ensaios, II, i, 1),
nada nos é estranho, mesmo que não tenhamos consciência atual
dessa totalidade. Assim, recordando sua doutrina da substância
individual já apresentada, e contra a doutrina escolástica das es-
pécies, Leibniz afirma que é mau hábito pensarmos como se a
nossa alma recebesse algumas espécies mensageiras e tivesse
portas e janelas através das quais essas intermediárias entre os
objetos e a alma pudessem passar dos objetos às almas para tor-
nar os objetos inteligíveis. A alma é seu próprio objeto imediato,
interno; temos todas as idéias no espírito e desde sempre, porque
cada substância está prenhe de seu futuro (Monadologia, § 22) e
pensa confusamente naquilo que, no futuro, através da apercep-
ção ou consciência, poderá pensar racionalmente e com distinção.
As idéias que temos no espírito são, pois, diz Leibniz, a matéria
de que se forma esse pensamento - o uso curioso que Leibniz
faz aqui do termo matéria fica mais claro se pensarmos a maté-
ria como o que ainda não é apercebido ou pensado com cons-
ciência pelo espírito, matéria seria então essa confusão a que, no
futuro, o pensamento dará uma forma e tornará distinto; ou, para
mais uma vez adiantar a distinção do § 27, a idéia é dita matéria

111
G. W. Leibniz

porque ainda não foi formulada pelo pensamento, ainda não é


uma noção ou conceito, mas existe no espírito.
90. O que Platão considerou excelentemente pela teoria da
reminiscência (e provou, no Mênon, 80d-86c, com o exemplo do
rapazinho conduzido às mais difíceis verdades da geometria
através de perguntas feitas com ordem e propósito) foi o caráter
virtual das idéias inatas e das verdades que delas dependem, de
modo que a alma só precisa de animadversiones para conhecer as
idéias e as verdades. Em outras palavras, as idéias existem virtual-
mente no espírito e esperam a ocasião de se atualizar; mas para tra-
zê-las à consciência, justamente porque a alma não é passiva, é
preciso um esforço, uma aplicação da alma ao objeto considera-
do, é preciso atenção e um pensamento reflexivo.
91. Aristóteles é apresentado no § 27 em oposição a Platão,
que vai aos fundamentos das coisas, como um filósofo que esco-
lheu o ponto de vista da prática ou do discurso conforme à práti-
ca (praticologia) ou conforme a opinião (doxologia).
92. Como os pensamentos nascem em nós uns dos outros
pela relação de todas as coisas entre si de acordo com a duração
e a extensão, a ocasião pode ser pensada, em linguagem prática,
como a experiência. Assim, a experiência seria um tipo de ajucla
(certamente não a única) à atualização das idéias que estão vir-
tualmente em nossa alma. E verdade que se pode ir longe sem
nenhuma ajuda , que se pode fabricar as ciências em um gabi-
nete e mesmo de olhos fechados sem apreender pela vista, nem
pelo toque as verdades de que se precisa para tanto (Novos en-
saios, I, i, § 5). Isso só prova, todavia, que há graus na dificulda-
de de nos apercebermos do que está em nós : o espírito pode ti-
rar os [conhecimentos inatos] de seu próprio fundo, embora fre-
qüentemente isso não seja uma coisa fácil (Novos ensaios, I, i,
§ 5). Por isso, Leibniz confessa que a experiência é necessária
[...] para que a alma seja determinada a tais ou tais pensamentos,
e para que ela preste atenção às idéias (Novos ensaios, II, i, § 2).
E somente nesse sentido, porque a experiência pode funcionar
como a ocasião para as idéias, que Leibniz, conciliador por exce-
lência, admite pensar com Aristóteles e o vulgo que nossas no-
ções provêm dos sentidos. Há, pois, uma influência ideal, não
real, das coisas sobre nós. É isso que justifica a maneira aristoté-

112
Discurso de metafísica e outros textos.

lica de falar: a experiência vital basta - e é útil, de nada serve ir


mais longe - quando a decifração intelectual do mundo não al-
cançou a distinção.
93. Já sabemos (pelos §§ 8-9 e 13-16) que nossa alma expri-
me Deus e o mundo, que depende apenas de Deus para existir, e
que cada alma conhece o infinito, conhece tudo, mas confusamen-
te (Princípios da natureza e da graça, § 13), porque cada percepção
distinta compreende uma infinidade de percepções confusas que
envolvem todo o universo , a alma possui muitas percepções sem
apercepção, que Leibniz denomina pequenas percepções , claras
no conjunto, mas confusas em suas partes ou elementos (Novos
ensaios, prefácio ), percepções que não são distintas, porque
não poderíamos pensar distintamente no todo do universo que é
nossa alma.
É por isso que Leibniz não pode aceitar a comparação de nos-
sa alma a pequenas tábuas ainda vazias, senão em sentido práti-
co, e corrige o dito de Aristóteles (De anima, III, iv, 430a, 432a)
afirmando que não há nada no intelecto que não tenha estado
antes, ou que não provenha dos sentidos, a não ser o próprio in-
telecto (cf. Novos ensaios, II, i, § 2).
94. A distinção no vocabulário e a tentativa de conciliação
entre a linguagem prática e a metafísica levam a considerar o ina-
tismo e a abrangência de nossa alma, quando se fala das idéias, e,
quando se fala de noções, a nossa finitude diante da apreensão de
certas idéias inatas (que atualizamos ou pensamos distintamente)
e da fabricação ou produção de conceitos práticos que servem em
nossa vida diária ou em três quartas partes de nossas ações.
Seja como for , diz Leibniz, por mais que possamos dizer,
em linguagem prática, que todas as nossas idéias provêm da ex-
periência, essa afirmação será falsa, se identificarmos experiência
com sentidos, pois há idéias que provêm da experiência interna
que o eu, por meio da reflexão, tem de si mesmo. Essas são ver-
dades primitivas de fato, isto é, conhecimentos intuitivos como
aquele que se tem das noções primeiras e indefiníveis, mas, dife-
rentemente dessas, são verdades contingentes, não necessárias
(cf. Novos ensaios, IV, ii, § 1). Trata-se de um sentimento imediato
como é o cogito cartesiano, que não necessita de uma prova ou
de uma análise demonstrativa para ser aceita (é por isso que as

113
G. W. Leibniz

idéias claras e confusas são acompanhadas da contemplação da


idéia). Mas trata-se também do primeiro princípio geral: ao dizer
que uma coisa é o que ela é (ou que sou uma coisa que pensa),
digo ao mesmo tempo que A é A (cf. Novos ensaios, IV, ii, § 1).
Trata-se, pois, do princípio de identidade: ao pensar no eu, con-
siderando o que está em nós, pensamos no Ser, na Substância,
no simples e no composto, no imaterial e, até mesmo, em Deus
(Monadologia, § 30; cf. tb. NE, II, i, § 2), em outras palavras, ultra-
passamos a imediatez do cogito cartesiano.
95· Somente depois de esclarecer a natureza das idéias (§§ 23-
27) e especificar, no interior dessa questão, a origem das idéias
(§§ 26-27), Leibniz retoma a questão proposta no início do § 23, a
saber, como Deus age sobre o entendimento dos espírito (§ 23). O
§ 28 decorre diretamente das considerações dos §§ 26 e 27: uma vez
que todas as idéias são inatas ao espírito, embora pareçam provir
da experiência, ainda que possamos dizer em linguagem prática
que os objetos exteriores agem sobre a alma, é preciso reconhe-
cer a verdade metafísica do inatismo e da independência da alma
(cf. § 8) e, assim, reconhecer que, se a alma é seu único objeto ime-
diato interno, é porque depende apenas de Deus para existir, daí
Deus ser seu único objeto imediato externo.
96. O Verbo era luz verdadeira / que ilumina todo homem; /
ele vinha ao mundo ; ou A luz verdadeira, que ilumina todo ho-
mem, vinha ao mundo ; ou Ele (o Verbo) era a luz verdadeira
que ilumina todo homem vindo a este mundo . (Jo, 1, 9).
97. Leibniz precisa, por um lado, da transcendência divina e
precisa, portanto, afirmar que Deus está fora de nós, sob o risco
de cair na causa imanente espinosana. Por outro, precisa subli-
nhar, diante da abrangência ou extensão que atribuiu às substân-
cias individuais, nossa dependência em relação a Deus, já que so-
mos seres possíveis e não seríamos postos na existência, nem
continuaríamos existindo, se não fosse por um ato de escolha da
vontade livre de um Deus sábio e bom. A solução parece ser a fór-
mula objeto imediato externo , que, veremos no § 29, traz o ris-
co do ocasionalismo e leva Leibniz a formular a tese da harmonia
preestabelecida.
É para evitar desde já, no § 28, o risco de cair no ocasionalis-
mo de Malebranche que Leibniz explica objeto imediato exter-

114
Discurso de metafísica e outros textos

no por fórmulas como pelo seu concurso ordinário, [Deus] nos


determina a pensar [nas idéias] efetivamente no momento em que
nossos sentidos estão dispostos de uma certa maneira segundo as
leis por Ele estabelecidas . Pela harmonia preestabelecida, Leib-
niz evita a influência direta de uma substância sobre outra e o mi-
lagre perpétuo de um Deus ex machina que restitui o mundo à
existência em cada momento de um tempo descontínuo. O mun-
do é como um relógio, regulado desde o começo: não precisa da
ação de Deus intervindo a todo tempo, cada estado nasce do es-
tado passado e gera de si o estado futuro. Não há influência de
uma substância sobre outra, nem do corpo sobre a alma ou vice-
versa, mas tudo concorda pelas leis ordinárias do mundo estabe-
lecidas por Deus (cf. Carta a Arnauld, 30 de abril de 1687).
É assim que a série de nossas idéias se harmoniza com as
disposições de nossos sentidos e estes com o estado do mundo a
cada momento: o que a alma percebe são suas mudanças inter-
nas, ou idéias, cuja causa é Deus. Daí Leibniz afirmar que Deus é
a luz que ilumina todo homem, confirmando sua tese pela refe-
rência à Escritura, e se remetendo, como a Sagrada Escritura e os
Santos Padres, a Platão: trata-se de uma interiorização da luz do
Sol platônico e, nesse sentido, a luz que Deus concede aos espí-
ritos para esclarecer seu entendimento permite uma atualização
de idéias virtuais. Então, Deus está fora de nós, mas a ação que
exerce sobre o entendimento é interna, porque permite que a alma
conheça e torne presente as idéias que existem nela; a alma hu-
mana conhece a si mesma graças à ação de Deus sobre ela.
98. Aristóteles (De Anima, III, 5, 430a, 15) distingue o intelec-
to paciente, receptivo, e o intelecto agente, que exerce a ação de
dar forma ao intelecto paciente para esclarecê-lo. Averrois consi-
dera os dois rigorosamente distintos e o intelecto agente, comum
a todos os homens, seria uma parte destacada do intelecto divino.
Na Teodicéia ( Discurso da conformidade entre a fé e a razão ,
§§ 7-8), Leibniz critica a mortalidade da alma ou do intelecto pa-
ciente próprio a cada homem, aliada à imortalidade do intelecto
agente que seria uma certa inteligência sublunar da qual partici-
paríamos e, pela participação, teríamos um entendimento ativo.
Opinião que, para Leibniz, se aproxima perigosamente da afirma-
ção de uma alma universal do mundo, que subsistiria enquanto

115
G. W. Leibniz

as almas particulares nasceriam e pereceriam. A interpretação le-


gítima de Aristóteles, segundo Leibniz, seria a de Guilherme de
Santo-Amor, segundo a qual os dois intelectos não seriam absolu-
tamente separados e o intelecto agente, próprio a cada indivíduo,
corresponderia a uma luz recebida de Deus que iluminaria os da-
dos sensíveis para torná-los inteligíveis; mas as idéias teriam ori-
gem externa ao nosso pensamento, com o que, sabemos, Leibniz
não poderia concordar.
99. Alusão a Malebranche e à teoria da visão em Deus (cf. La
Recherche de la vérité, livro III, parte II, cap. I-VII e Esclarecimen-
to X; Conversations chrétiennes, Entretiens I-III; Méditations chré-
tiennes, I-IV).
100. Para se contrapor a Malebranche, Leibniz afirma que
pensamos pelas nossas próprias idéias e não pelas de Deus: ve-
mos as coisas por Deus, mas em nós. Essa oposição em relação a
Malebranche é feita em dois momentos: num primeiro, Leibniz
retoma sua explicação da natureza da substância individual, toda
a extensão e a independência de nossa alma, que a faz conter
tudo o que lhe acontece e exprimir Deus e, com ele, todos os se-
res possíveis e atuais, como um efeito exprime a sua causa . Pensar
pelas idéias de outrem, diz Leibniz, é inconcebível, é não consi-
derar a verdadeira natureza cla substância individual e, em últi-
ma instância, negar a existência de substâncias individuais ao ne-
gar às almas a ação de pensar, é tornar a alma puramente passi-
va. Eis por que, num segundo momento, Leibniz afirma que a
substância tem não apenas a potência passiva de ser afetada de
uma certa maneira - lembremos da definição da idéia como obje-
to de pensamento (§ 26) -, mas tem também uma potência ativa
de suscitar em si mesma essas afecções, de tornar presente uma
idéia inata virtual, de esforçar-se e dedicar atenção a si mesma
para pensar distintamente uma idéia - trata-se da faculdade ou
qualidade da alma de expressar uma essência, forma ou natureza
(§ 26). A natureza da alma é tal que ela possui marcas ou sinais
de seus pensamentos futuros, que se tornarão distintos, ou serão
pensados com consciência, no momento devido de acordo com a
harmonia preestabelecida.
101. Com efeito, essas questões são tão complexas que Leib-
niz dedicará a elas grande parte dos Ensaios de Teodicéia (cf., por
exemplo, §§ 34-55).

116
Discurso de metafísica e outros textos.

102. Depois de tratar da relação entre Deus e os espíritos do


ponto de vista do entendimento dos espíritos (§§ 23-29), Leibniz
passa a tratar essa questão do ponto de vista da vontade das cria-
turas inteligentes. Para tanto, caracteriza a vontade humana, pri-
meiro, a partir de sua espontaneidade, recordando o que já disse-
ra acerca da substância individual (cf. § 8) e da criação contínua
ou concurso ordinário de Deus (cf. § 14). Deus concorre fisica-
mente para as ações das criaturas racionais na medida em que as
produz e conserva continuamente, mas tudo o que acontece a
cada indivíduo está contido em sua noção. Em segundo lugar,
Leibniz caracteriza a vontade das criaturas através da tendência
espontânea para o bem aparente. Deus age sobre os espíritos
também através de um concurso moral, por meio do decreto ge-
ral que faz com que a vontade tenda para o aparentemente me-
lhor. As criaturas não podem conhecer o absolutamente melhor,
mas, através dessa tendência, exprimem ou imitam a vontade di-
vina (cf. § 3)· E, finalmente, a vontade é definida a partir da liber-
dade ou indiferença, se oposta à necessidade absoluta (já que,
pelo princípio de razão, não pode haver uma indiferença de equi-
líbrio). Deus determina nossa vontade pela tendência ao bem,
mas as escolhas não são necessárias. Assim, embora determina-
das por essa tendência e, portanto, pela nossa condição presente,
isto é, pela compreensão limitada do melhor, somos responsáveis
por nossas ações.
103- Leibniz introduz a questão da predestinação: agimos se-
gundo nossa vontade livre e temos o poder de agir diversamente
ou suspender a ação, mas é verdadeiro e mesmo certo, desde
toda a eternidade, que nenhuma alma se há de servir deste poder
em determinada circunstância . Em outras palavras, se todos os
pecados estão determinados, como os homens podem ser res-
ponsáveis por suas ações? Trata-se do labirinto da liberdade e da
necessidade. Leibniz não identifica necessidade e determinação,
assim, embora as ações sejam determinadas, elas são contingen-
tes (cf. § 13). A queixa do pecador é injusta porque Deus não é
causa de suas ações, embora concorra ordinariamente para elas;
a causa é a criatura e sua vontade. De um ponto de vista prático,
antes de escolher, a ação e seu contrário são possíveis, logo, de-
pois da ação, sabemos apenas que Deus a previu, e essa previsão

117
G. W. Leibniz

não torna a ação necessária, nem atribui a Deus a responsabilida-


de por ela.
104. Leibniz reintroduz a questão tratada no § 13; aqui, po-
rém, não mais como um problema, mas como um fato: a causa
da previsão divina é a noção completa da sustância individual, o
homem contém todas as suas determinações futuras, que são pre-
vistas como determinações de uma vontade livre.
105. Leibniz imagina uma objeção relacionada ao mal. Se a
noção individual de cada pessoa envolve todas as suas ações e,
portanto, também os pecados, e Deus escolhe, Judas por exem-
plo, sabendo de seu pecado, então não seria Deus o responsável
pelo pecado? Como conciliar a sabedoria divina e o mal que per-
cebemos no mundo? Em nossa condição de criaturas finitas não
podemos compreender como cada pecado contribui para o me-
lhor dos mundos possíveis, não compreendemos as razões parti-
culares das escolhas divinas, somente os princípios ou regras ge-
rais de sua ação. Assim, devemos invocar o melhor e dizer que,
embora Deus queira sempre o bem, ele permite o mal como con-
dição do melhor (cf. § 7). Eis o fundamento do otimismo leib-
niziano.
106. São Paulo, Epístola aos Romanos, 11, 33 (cf. Teodicéia,
§ 134).
107. Posteriormente, na Teodicéia (§§ 29-33 e 153) e no texto
Causa Dei (§§ 29-39 e 69-73), Leibniz oferecerá uma sistematiza-
ção acerca do mal, a fim de mostrar como a causa do mal são as
criaturas e não Deus. Leibniz adota duas proposições tradicionais
que ele amarra ao seu próprio sistema: Deus permite o mal com-
preendido no melhor plano, mas não é sua causa, a fonte do mal
é uma imperfeição original da criatura ou uma privação. O mal
pode ser tomado metafisicamente, fisicamente e moralmente. O
mal moral, restrito às criaturas racionais, é o pecado ou o mal da
culpa, isto é, as ações viciosas dos seres dotados de razão. Dessas
ações resulta o mal físico ou mal da pena, ou seja, os sofrimentos
desses seres racionais. Ambos, mal moral e mal físico, são males
possíveis, mas derivam de um mal necessário, o mal metafísico:
todas as criaturas são essencialmente limitadas. Em outras pala-
vras, a fonte ou a causa ideal do mal são as verdades eternas, as
criaturas são marcadas por essa imperfeição ou limitação já no es-

118
Discurso de metafísica e outros textos.

tado de pura possibilidade, pois, diz Leibniz, o que não possui


limites em seu poder, em sua sabedoria e em toda perfeição que
pode ter, não é uma criatura, mas Deus. O fundamento do mal é,
por isso, necessário: o mal consiste formalmente na privação.
Todavia, a limitação natural de toda criatura é a causa ideal, não
eficiente do mal; assim, mesmo que sua possibilidade seja neces-
sária, a atualização do mal permanece contingente - em última
instância, porque o ato mau faz parte de um universo contingen-
te - e os males só passam da potência ao ato em função da har-
monia das coisas ou de sua conveniência com a melhor série de
coisas.
108. Os supralapsários são aqueles que, com Calvino e Zwin-
gle, afirmam que Deus escolheu os eleitos que serão salvos antes
mesmo da previsão do pecado, e se opõem, assim, àqueles que,
como Lutero, afirmam que essa escolha só se dá depois da queda
de Adão. Cf. Teodicéia, §§ 77-84.
109. Cf. Santo Agostinho, Confissões, III, VII (12); VII, XVI (22).
110. Leibniz utiliza o vocabulário tradicional para afirmar
que Deus é princípio da graça e, através dela, remedeia a limita-
ção natural das criaturas. Ordinária ou extraordinária, a graça não
é arbitrária, está no interior da ordem; mesmo a graça extraordi-
nária, o milagre, que está acima da ordem física ou das leis subal-
ternas da natureza, é conforme a ordem universal. O vocabulário
teológico distingue entre a graça suficiente, que, sob a condição
de que a vontade humana coopere, é suficiente para produzir a
salvação; e a graça eficaz que, produzindo seu efeito, leva à sal-
vação. Cf. Teodicéia, §§ 99-106 e 134. Cf. também Malebranche,
Tratado da natureza e da graça, Disc., III, §§ 20-21.
111. A onisciência divina se divide em três ciências (embora,
rigorosamente, só existam duas), de acordo com o objeto de que
trata. A ciência da pura inteligência ou dos seres possíveis, que
podem ser considerados separadamente ou em relação com a in-
finidade de mundos completos possíveis. A ciência da visão ou
das coisas efetivamente existentes, que difere da primeira apenas
pela consciência reflexiva de Deus acerca do decreto que condu-
ziu o mundo à existência. É ela o fundamento da presciência di-
vina, uma vez que engloba a visão do passado, do presente e do
futuro. E, finalmente, a ciência dita média.

119
G. W. Leibniz

112. Leibniz introduz a problemática da graça pela posição


que defende a gratuidade do dom da graça. Mas, assim como não
se pode explicar o dom da graça pela previsão das ações dos ho-
mens (ou seja, por seu mérito), também não se deve pensar essa
gratuidade como ausência de razões, embora aos homens não
seja possível compreender essas razões particulares, como mos-
trará no fim do artigo.
113. Tradução: aos que previu dar o dom da fé . Trata-se de
uma doutrina de inspiração pelagiana, segundo a qual Deus dá a
graça (e a salvação) àqueles dos quais previu a fé e caridade. Para
Pelagio (contemporâneo a Santo Agostinho), a vontade humana é
capaz de agir bem sem a graça, merecendo, assim, a graça. Ora,
para Leibniz, a fé e a boa vontade são espécies de graças, assim,
não pode ser essa a justificação da distribuição das graças.
114. Trata-se da ciência média dos molinistas. Segundo Moli-
na (1536-1600), Deus conhece três tipos de acontecimento: os
possíveis e impossíveis, objeto de uma ciência da simples inteli-
gência; os atuais, objeto de uma ciência da visão; e os condicio-
nais, objeto da ciência média. Essa última envolve, então, os acon-
tecimentos que se atualizariam caso as condições para isso se efe-
tivassem. Logo, no juízo de Leibniz, ela está contida na ciência da
simples inteligência, de outra forma negaríamos a possibilidade
de um saber a priori dos fatos condicionais na exata medida em
que desconsideraríamos a existência de uma razão a priori para a
ocorrência do fato. Embora pense na igualdade das ciências da
simples visão e média, Leibniz sugere uma forma de entender a
onisciência divina de modo que se mantenha a tripartição originá-
ria da concepção escolástica: a ciência média estudaria as verda-
des possíveis (como a ciência da inteligência, cujo objeto, mais res-
trito do que anteriormente, seriam as verdades possíveis e neces-
sárias, isto é, verdades eternas que são válidas em todos os mun-
dos possíveis) e, ao mesmo tempo, contingentes (como a ciência
da visão, que versaria sobre as verdades contingentes e atuais), ou
seja, as verdades que distinguem cada mundo possível ou as cir-
cunstâncias variáveis da existência (cf. Causa Dei, §§ 13-17).
Molina considerava que Deus dá a graça a todos aqueles
que a merecem não por sua fé, mas por suas predisposições na-
turais, anteriores à fé, porque Deus conhece, pela ciência média,

120
Discurso de metafísica e outros textos.

tudo que o livre-arbítrio fana em cada circunstância possível. Ora,


dirá Leibniz, assim como respondia à doutrina de inspiração pe-
lagiana afirmando que a fé é uma graça, neste caso também essas
disposições naturais são graças. Assim, não se pode conceber a
razão da distribuição das graças a partir da ciência média.
115. A solução leibniziana para a questão da graça está em
sua doutrina da substância individual e da criação do melhor dos
mundos: todas as graças, ordinárias e extraordinárias, estão conti-
das na noção de cada indivíduo, assim como tudo o mais que
acontece a essa pessoa. E a razão para a existência desta pessoa
é a criação do melhor plano possível no qual esta pessoa está en-
volvida. Assim, Leibniz considera que a graça é gratuita e que
não se pode dar nenhuma razão particular para justificá-la, nem o
mérito pessoal, nem as disposições naturais. O que jamais pode
significar que a graça seja um decreto absoluto, isto é, um ato iso-
lado de todas as outras vontades divinas e sem razões. Não conhe-
cemos as razões (São Paulo, Epístola aos Romanos, XI, 33), mas
elas existem.
116. Leibniz considera que um domínio de conhecimento
deve enviar àquele que lhe é superior e mais abrangente: dessa
forma, assim como a física deve enviar à metafísica, como seu
fundamento, a metafísica nos remete à piedade. Mostrando como
suas considerações metafísicas, sobretudo aquelas sobre a perfei-
ção das operações de Deus (cf. Discurso, §§ 1-7) e sobre a subs-
tância individual (cf. §§ 8-9 e 13-16), confirmam a religião, Leibniz
está, ao mesmo tempo, fazendo um elogio à sua própria filosofia
e uma crítica a outras filosofias que também tinham pretensões
no terreno da piedade e da religião.
117. Leibniz introduz neste artigo o tema da união com Deus
a que se dedicará no final do texto. Para tanto, analisando as con-
seqüências do princípio da perfeição das ações de Deus, afirma,
primeiramente, a dependência de toda criatura em relação a Deus,
considerando como cada substância individualmente depende de
Deus na origem de sua existência, em sua existência atual e em
seu desenvolvimento; e como todas dependem de Deus nas rela-
ções que mantêm com todas as outras substâncias individuais (só
Deus estabelece a comunicação entre as criaturas). Essa depen-
dência implica a união com Deus, por isso Leibniz evoca São Pau-
lo (Coríntios I, 15, 28) para dizer ser Deus tudo em todos.

121
G. W. Leibniz

118. Trata-se de Santa Teresa d Ávila (seu Libro de la vida foi


traduzido para o francês em 1670 por Arnauld d Andilly, do qual
Leibniz cita provavelmente o capítulo XIII. Cf. também Leibniz,
Sistema novo da natureza, § 14).
Leibniz evoca Santa Teresa a fim de, considerando as conse-
qüências de sua doutrina da substância individual, acentuar a in-
dependência das criaturas em relação às coisas exteriores e, ao
mesmo tempo, a total dependência de cada criatura em relação a
Deus. Essa dependência, que é o fundamento da união com Deus,
é vista agora sob o aspecto da espontaneidade de cada substân-
cia, também determinada pelo Criador.
119. A última conseqüência dos princípios metafísicos reto-
mados por Leibniz no início do artigo é a imortalidade da alma.
Com efeito, afirmada a íntima união de cada substância com Deus
e a independência em relação ao mundo, uma substância só pode
perecer por uma decisão de Deus de a aniquilar. A alma é em si
mesma imperecível, daí a dissolução do corpo não a destruir. A
imortalidade se relaciona à simplicidade da substância (cf. Dis-
curso, § 9), o que, mais tarde, levará Leibniz a afirmar que, quando
o corpo se dissipa, a alma não permanece no caos de matéria con-
fusa, mas permanece ligada a um corpo orgânico imperceptível
(cf. Sistema novo da natureza, § 7).
120. Esse mistério seria inexplicável para Descartes e mi-
raculoso para Malebranche. Com efeito, de acordo com o primei-
ro (cf. Discurso do método, V; Meditações, VI; Cartas a Elisabeth,
21 de maio de 1643 e 28 de junho de 1643; As paixões da alma,
I, §§ 30-50), há ação real da alma sobre o corpo e vice-versa, mas,
segundo os princípios do próprio Descartes, a relação de causa e
efeito deve se dar entre homogêneos, o que torna a influência da
substância pensante sobre a substância extensa e vice-versa inin-
teligível. A crítica de Leibniz a Descartes não se limita, todavia, aos
problemas que o próprio Descartes mesmo havia percebido. Para
Leibniz, a substância individual não tem portas nem janelas, não
há ação direta de uma substância sobre outra, mas, além disso, a
extensão não é uma substância e não tem atividade.
Malebranche (cf., por exemplo, Méditations chrétiennes, V, VI,
IX, XII), por sua vez, afirmava que não há ação real de um ser so-
bre outro e só Deus é causa eficiente. Leibniz considera a teoria

122
Discurso de metafísica e outros textos.

das causas ocasionais a afirmação de um milagre perpétuo, já que


supõe a intervenção direta de Deus, e, assim, contrária ao princí-
pio da simplicidade das vias (cf. Carta a Arnauld, 30 de abril de
1687).
121. A verdadeira razão, a que Leibniz chega a partir de sua
concepção de substância individual que é espontânea e espelho
de tudo o que se passa no universo, é a harmonia preestabeleci-
da. A espontaneidade própria da substância evita o recurso ao
milagre perpétuo de Malebranche. É verdade que é Deus quem
estabelece a comunicação ou o acordo entre as substâncias, mas
isso se dá segundo leis ordinárias, pois Deus criou o mundo de
maneira a que houvesse essa correspondência independente-
mente de sua intervenção. A relação entre a alma e o corpo é um
caso particular da relação entre as substâncias, considerando o
corpo como agregado de substâncias simples, como algo subs-
tancial, embora não substância.
Ora, cada alma tem um ponto de vista próprio a partir do
qual exprime a totalidade do universo. O corpo é este ponto de
vista, é o centro de perspectiva da alma, cujas ações, por sua vez,
correspondem ao que se passa no corpo, que se reflete nos ou-
tros corpos. Embora obedeçam a diferentes legislações", a alma
às causas finais e ao princípio do melhor, e o corpo às leis da
causalidade e do movimento, há uma harmonia entre eles e se
completam como princípio de atividade (a alma) e princípio de
passividade (o corpo) (cf., por exemplo, Cartas a Arnauld, 4/14
de julho de 1686, 30 de abril e 9 de outubro de 1687; Sistema
novo da natureza, §§ 12-18).
122. Nosso corpo nos pertence na medida em que determi-
na nosso ponto de vista sobre o universo, no tempo e no espaço,
e a relação que ele mantém com os demais determina nossa ma-
neira de perceber de algum modo e por certo tempo . Mas o cor-
po enquanto matéria segunda, agregado de substâncias simples,
pode se dissipar. Toda alma deve, porém, estar sempre ligada a
uma matéria primeira que sobrevive à destruição do corpo orga-
nizado (cf. Teodicéia, § 124; Carta a Arnauld, 9 de outubro de
1687; Sistema novo da natureza, § 7).
123. A explicação da percepção sensível se relaciona direta-
mente à questão da comunicação entre a alma e o corpo. A alma

123
G. W. Leibniz

exprime a totalidade do mundo, mas mais particularmente seu


corpo, que é seu ponto de vista. A percepção corresponde, no
corpo, a certos movimentos, que se exprimem na alma pela har-
monia preestabelecida, e como todos os corpos simpatizam , é
impossível nossa alma atender a tudo em particular . Assim, a per-
cepção resulta de pequenas percepções como uma percepção
dominante. Mas há casos em que não há uma percepção domi-
nante e a alma só pode aperceber-se das pequenas percepções
confusamente (cf. Cartas a Arnauld, 30 de abril e 9 de outubro
de 1687).
124. Na redação primitiva do texto, Leibniz iniciava este arti-
go pela seguinte frase: Uma coisa que não tento determinar é se
os corpos são substâncias, falando no rigor metafísico, ou se são
apenas fenômenos verdadeiros como o arco-íris, nem, por conse-
qüência, se há substâncias, almas ou formas substanciais que não
são inteligentes. Mas supondo que os corpos... A questão da
substancialidade do corpo é, de fato, um problema para Leibniz.
Em textos e cartas posteriores ao Discurso, Leibniz passará a afir-
mar que o corpo orgânico, ou matéria segunda, é um agregado
de substâncias simples que recebe sua unidade da alma ou forma
dominante, e é essa alma que o torna unum per se (um por si) e
não um simples amontoado de substâncias. Mas como conceber
a dominação de uma alma sobre todas as outras, se a substância
se define por sua atividade espontânea e autônoma? Na Corres-
pondência com Des Bosses, na qual Leibniz discute essas ques-
tões, a dominação é interpretada como graus de perfeição e Leib-
niz considera que o agregado de substâncias que faz o corpo não
é uma substância em si mesmo, mas um fenômeno. Na Corres-
pondência com Arnauld, afirmará que é um abuso de linguagem
chamar o corpo, independente da alma, substância. Cf. Cartas a
Arnauld, 28 de novembro/6 de dezembro de 1686, 23 de março
de 1690. No entanto, em textos posteriores, como os Princípios
da natureza e da graça, de 1714, Leibniz continua denominando
substância os corpos (cf. §§ 1, 3 e 4).
125. Os corpos que são unum per se se opõem aos que são
unum per accidens, como um rebanho de carneiros, porque pos-
suem um princípio de unidade, a alma. Cf. Carta a Arnauld, 28
de novembro/6 de dezembro de 1686.

124
Discurso de metafísica e outros textos.

126. A principal diferença entre os átomos materiais e as mô-


nadas espirituais reside no fato de que estas últimas são dotadas
de reflexão, isto é, de consciência. (N. do T.)
127. Desde de 1677 Leibniz define a noção de pessoa a par-
tir de sua qualidade moral (cf. Nova methodus discendae docen-
daeque jurisprudentiaé).
128. Leibniz não se atém aqui, como fará em textos posterio-
res, como a Monadologia (§§ 18-36), a descrever minuciosamente
a hierarquia dos seres. Preocupa-se apenas em distinguir os espí-
ritos entre as demais substâncias depois de apontar o que há de
comum entre as formas substanciais, almas e espíritos, a saber:
(1) são imperecíveis (pois dependem apenas de Deus e são sim-
ples de maneira que não há dissolução, cf. Discurso, §§ 9 e 32), eis
por que são comparados aos átomos de Demócrito, Gassendi e
Cordemoy, embora as substâncias leibnizianas não sejam mate-
riais, e (2) caracterizam-se por exprimir a totalidade do universo
(cada uma corresponde a um ponto de vista do universo inteiro,
cf. Discurso, §§ 9, 14-15, 26 e 33). Os espíritos, ou almas racionais,
distinguem-se pela capacidade de reflexão, o que, no plano do
conhecimento, significa que podem conhecer as verdades neces-
sárias, e, no plano moral, os faz pessoas, porque possuem identi-
dade e uma certa noção do bem e buscam livremente realizá-lo.
É também pela reflexão que a imortalidade dos espíritos envolve
a recordação de si mesmo.
129. A cidade de Deus, objeto do próximo artigo, é um mun-
do moral no interior do mundo natural. O mundo não é apenas
uma máquina sumamente admirável, mas é dotado de perfeição
moral. Essa a razão moral para que a imortalidade dos espíritos
seja diferente da simples permanência das outras substâncias.
130. A união dos espíritos com Deus se justifica, do lado dos
espíritos, pela diferença de natureza que guardam em relação às
outras substâncias: os espíritos exprimem o Criador diretamente e
não através da expressão do universo, têm consciência do que são
e fazem e compreendem alguma coisa dos desígnios de Deus gra-
ças ao conhecimento de verdades universais.
131 · Todavia, se Deus se importa mais com um homem do
que com um leão, não se pode assegurar que prefira um homem
a toda a espécie de leões. Cf. Teodicéia, § 118.

125
G. W. Leibniz

132. Em relação a Deus, a união do Criador com os espíritos


se justifica porque o próprio Deus é o maior e mais sábio dos es-
píritos , porque pode comunicar aos outros espíritos seus senti-
mentos e vontades de maneira particular , e porque, como a sa-
bedoria prefere sempre o mais perfeito, assim Deus prefere as
mais perfeitas dentre as criaturas, assim como nós devemos nos
voltar a ele. Mas diferente de nós, cuja sociedade com Deus signi-
fica o amor que Deus tem em relação a nós e, portanto, a maior
satisfação que pode ter uma alma , nosso amor em relação a Deus
não acrescenta nada à sua satisfação.
133. Importantes textos de Leibniz como o Discurso de meta-
física (1686), a Monadologia e os Princípios da natureza e da
graça (ambos de 1714), em que o autor sintetiza as grandes teses
de sua filosofia, apresentam em seus últimos parágrafos e, então,
como acabamento essencial de sua metafísica, uma imagem polí-
tica. Mesmo diante da transformação na forma de tratamento e na
abordagem dos temas ocorrida nos quase trinta anos que sepa-
ram a Monadologia e os Princípios da natureza e da graça do
Discurso, a parte final dos textos e coroação das teses é sempre
um convite aos homens para se elevarem a Deus através de uma
apologia da república universal dos espíritos. Deus é o monarca
da mais perfeita república composta por todos os espíritos (Dis-
curso, § 36). Os espíritos ou criaturas racionais entram em socie-
dade com Deus e constituem o mais perfeito estado, a cidade de
Deus, sob o mais perfeito dos monarcas (Monadologia, § 85). Em
virtude da razão e do conhecimento das verdades eternas, todos
os espíritos são membros da cidade de Deus, isto é, do mais per-
feito estado, formado e governado pelo maior e melhor dos mo-
narcas (Princípios da natureza e da graça, § 15).
A imagem e a idéia da instauração de um reino moral da gra-
ça no seio do mundo natural, que funda uma sociedade dos ho-
mens com Deus, percorrem as três décadas de desenvolvimento
da singularidade do pensamento leibniziano sem sofrer alteração
e sem perder a força. É através dessa metáfora política que Leib-
niz concilia dois aspectos fundamentais de sua metafísica e de
sua teologia: Deus não é apenas o artífice da máquina do mundo,
é o príncipe supremo dos cidadãos de sua república. Ele não é
apenas arquiteto e geômetra, é também legislador, monarca e se-

126
Discurso de metafísica e outros textos.

nhor. O universo, além da perfeição metafísica, é dotado de per-


feição moral. O aspecto lógico (quantitativo) da criação do mun-
do por um Deus que produz o máximo de efeitos com um míni-
mo de gastos conduz ao aspecto moral (qualitativo) da fundação
de uma cidade governada por um Senhor cujo principal desígnio
é a felicidade dos cidadãos, mostrando a inseparabilidade e a har-
monia dessas duas perspectivas.
134. Cf. Discurso de metafísica, § 5.
135. A formação da cidade de Deus se explica, em primeiro
lugar, pela perfeição intrínseca dos espíritos e pela possibilidade
que eles têm de aperfeiçoar-se através do conhecimento. Em ter-
mos morais, isso significa que eles podem ser amigos , ou seja,
podem querer todos a mesma coisa, a saber, o bem universal ou
a justiça, que conhecem graças à razão. Sobre este assunto, Grua,
La justice humaine selon Leibniz, Paris: PUF, 1956; e Jurispruden-
ce universelle et théodicée selon Leibniz, Paris: PUF, 1953.
136. A preferência de Deus pelos espíritos se fundamenta no
fato de ele mesmo ser um espírito, e, como espírito, dotado de von-
tade, que escolhe livremente o melhor.
137. Gênesis, 1, 27.
138. Atos, 17, 28.
139. O segundo aspecto que explica a existência da cidade de
Deus, ou desta união que Deus mantém com as criaturas racio-
nais, é o fato de poder tirar delas mais glória do que dos outros
seres, já que os espíritos agem com conhecimento à imitação da
natureza divina . Ora, o fim da criação é a glória, ou a manifestação
por Deus e a comunicação de suas perfeições, por isso a criatura
que tem a possibilidade de conhecer alguma coisa das perfeições
divinas e, então, agir livremente como um colaborador exprime a
glória de Deus muito melhor que as demais criaturas.
140. Depois de descrever a cidade de Deus a partir de analo-
gias com o mundo humano, como uma sociedade entre um prín-
cipe e seus súditos, porque Deus se humaniza , se presta a an-
tropologias , Leibniz define a lei desta sociedade: a felicidade. A
condição dessa felicidade será a imortalidade dos espíritos, como
afirma em seguida.
141. A conclusão do Discurso é cristã. As importantes verda-
des que os filósofos antigos conheceram pouco (mas podem ter

127
G. W. Leibniz

conhecido uma parte delas, porque as verdades reveladas estão


de acordo com a razão, embora possam estar acima dela) são as
verdades acerca do reino dos céus e do amor que Deus tem pelo
homem, verdades reveladas por Cristo.
142. João, 17, 23 (cf. Discurso de metafísica, § 4).
143. Lucas, 12, 6-7.
144. Mateus, 10, 30; Lucas, 12, 7.
145. Mateus, 24, 35.
146. Lucas, 12, 4 (cf. Discurso de metafísica, § 28).
147. Mateus, 12, 36 e 10, 42.
148. Mateus, 13, 43.
149. Romanos, 8, 28; Coríntios I, 2, 9 (cf. Discurso de meta-
física, § 36). Mas, porque a inquietude é essencial à felicidade das
criaturas (cf. Novos ensaios, II, xxi, 32), nossa felicidade nunca
consistirá, e não deve consistir, em um gozo pleno no qual nada
mais haveria a desejar e que tornaria estúpido nosso espírito, mas
sim em um progresso perpétuo em direção a novos prazeres e
novas perfeições (Princípios da natureza e da graça, § 18).

128
OS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA
OU A MONADOLOGIA

Tradução
ALEXANDRE DA CRUZ BONILHA

Revisão
MÁRCIA VALÉRIA MARTINEZ DE AGUIAR
1. A Mônada de que aqui falaremos não é outra coisa
senão uma substância simples, que entra nos compostos;
simples quer dizer sem partes. Teodicéia, § 10.
2. E tem de haver substâncias simples, uma vez que
existem compostos, pois o composto nada mais é do que
uma reunião ou aggregatum dos simples.
3. Ora, onde não há partes não há extensão, nem figu-
ra, nem divisibilidade possível. E estas Mônadas são os ver-
dadeiros Átomos da Natureza e, em suma, os Elementos das
coisas.
4. Tampouco há dissolução a temer, e não há maneira
concebível pela qual uma substância simples possa perecer
naturalmente. Teodicéia, § 89.
5. Pela mesma razão, não há maneira concebível pela
qual uma substância simples possa começar naturalmente,
posto que não poderia ser formada por composição.
6. Assim, pode-se dizer que as Mônadas só poderiam
começar ou terminar de uma só vez, ou seja, só poderiam co-
meçar por criação e terminar por aniquilação, ao passo que
o que é composto começa e termina por partes.
7. Tampouco há meio de explicar como uma Mônada
poderia ser alterada ou transformada em seu interior por al-
guma outra criatura, pois nela nada se poderia introduzir,
nem se poderia conceber nela nenhum movimento interno

131
G. W. Leibniz

que pudesse ser excitado, dirigido, aumentado ou diminuí-


do em seu interior, como é possível nos compostos, em que
há mudanças entre as partes. As Mônadas não têm janelas
pelas quais algo possa entrar ou sair. Os acidentes não po-
deriam separar-se nem se pôr a vaguear fora das substân-
cias, como faziam outrora as espécies sensíveis dos escolás-
ticos. Assim, nem substância nem acidente podem, de fora,
entrar em uma Mônada.
8. Entretanto, é preciso que as Mônadas tenham algu-
mas qualidades, caso contrário nem sequer seriam Seres. E,
se as substâncias simples não diferissem por suas qualida-
des, não haveria meio de perceber qualquer mudança nas
coisas, já que o que está no composto só pode provir dos
ingredientes simples; e fossem as Mônadas sem qualidades,
seriam indiscerníveis umas das outras, posto que também
não diferem em quantidade. E, por conseguinte, o pleno
sendo suposto, cada lugar só continuaria a receber no mo-
vimento o Equivalente do que tivera, e um estado de coisas
seria indiscernível do outro.
9. E preciso mesmo que cada Mônada seja diferente de
cada uma das outras. Pois nunca há na natureza dois Seres
que sejam perfeitamente iguais um ao outro e nos quais
não seja possível encontrar uma diferença interna ou fun-
dada em uma denominação intrínseca.
10. Dou também por aceito que todo ser criado está su-
jeito à mudança, e por conseguinte a Mônada criada também,
e mesmo que esta mudança seja contínua em cada uma.
11. Do que acabamos de dizer segue-se que as mudan-
ças naturais das Mônadas provêm de um princípio interno,
já que uma causa externa nâo poderia influir em seu inte-
rior. Teodicéia, §§ 396 e 400.
12. Mas também é preciso que, além do princípio da
mudança, haja um pormenor do que muda, que faça, por
assim dizer, a especificação e variedade das substâncias
simples.

132
Discurso de metafísica e outros textos.

13. Esse detalhe deve envolver uma multiplicidade na


unidade ou no simples, pois, como toda mudança natural se
faz gradualmente, algo muda e algo permanece. E, por conse-
guinte, é necessário que na substância simples haja uma
pluralidade de afecções e de relações, ainda que nela não
haja partes.
14. O estado passageiro que envolve e representa uma
multiplicidade na unidade ou na substância simples não é
outra coisa senão aquilo que se chama de Percepção, que
deve ser bem distinguida da apercepção ou da consciência,
como se verá adiante. E nisto os cartesianos equivocaram-
se muito, ao desconsiderarem as percepções de que não nos
apercebemos. Foi isso também que os fez acreditar que só
os espíritos eram Mônadas e que não havia Almas dos ani-
mais nem outras enteléquias; e confundiram, com o vulgo,
um longo atordoamento com morte no sentido rigoroso, o
que os fez ainda cair no preconceito escolástico das almas
inteiramente separadas, havendo mesmo reforçado nos es-
píritos mal formados a opinião da mortalidade das almas.
15. A Ação do princípio interno que faz a mudança ou
a passagem de uma percepção a outra pode ser chamada
Apetição-, é verdade que o apetite nem sempre pode alcan-
çar inteiramente toda a percepção a que tende, mas sem-
pre obtém algo dela e chega a percepções novas.
16. Nós mesmos experimentamos uma multiplicidade
na substância simples quando descobrimos que o menor
pensamento de que nos apercebemos envolve uma varie-
dade no objeto. Assim, todos os que reconhecem que a Al-
ma é uma substância simples devem reconhecer esta multi-
plicidade na Mônada; e o senhor Bayle não devia encontrar
dificuldade nisso, como fez no artigo Rorarius de seu Di-
cionário.
17. Por outro lado, vemo-nos obrigados a confessar que
a percepção e o que depende dela é inexplicável por razões
mecânicas, isto é, por figuras e por movimentos. E, supon-

133
G. W. Leibniz

do que haja uma Máquina cuja estrutura faça pensar, sentir,


ter percepção, pode-se concebê-la ampliada e conservando
as mesmas proporções, de maneira que se possa entrar
nela como em um moinho. Feito isso, ao visitá-la por den-
tro só encontraremos peças que se põem reciprocamente
em movimento e nunca algo que explique uma percepção.
Portanto, tem de se buscá-la na substância simples e não
no composto ou na máquina. E é só isso que podemos en-
contrar na substância simples, ou seja, as percepções e
suas mudanças. E é também apenas nisso que podem con-
sistir todas as ações internas das substâncias simples. Pre-
fácio Teodicéia.
18. Poder-se-iam chamar Enteléquias todas as substân-
cias simples ou Mônadas criadas, pois contêm uma certa
perfeição (exo-uai iò èvreXéç) e uma suficiência (duxápKeia)
que as torna fontes de suas ações internas e, por assim di-
zer, Autômatos incorpóreos.
19· Se quisermos chamar de Alma tudo o que tem per-
cepções e apetites no sentido geral que acabo de explicar,
todas as substâncias simples ou Mônadas criadas poderiam
ser chamadas de Almas; mas, como o sentimento é algo mais
que uma simples percepção, admito que o nome geral de
Mônadas e de Enteléquias baste para as substâncias sim-
ples que só tenham percepção; e que se chame de almas
só aquelas cuja percepção é mais distinta e acompanhada
de memória.
20. Pois experimentamos em nós mesmos um Estado
no qual nâo nos lembramos de nada, nem temos nenhuma
percepção distinta, como quando sofremos um desmaio ou
somos vencidos por um profundo sono sem sonhos. Neste
estado, a alma não difere sensivelmente de uma simples
Mônada; mas, como este estado não é duradouro e a alma
subtrai-se dele, ela é algo mais.
21. Não se segue daí que a substância simples não te-
nha nenhuma percepção. Isto não pode ocorrer precisa-

134
Discurso de metafísica e outros textos.

mente pelas razões já mencionadas; pois ela não poderia


perecer nem tampouco subsistir sem alguma afecção, que
outra coisa não é senão sua percepção. Mas, quando há
uma grande multiplicidade de pequenas percepções, em que
nada é distinto, ficamos aturdidos, como quando se gira
continuamente em um mesmo sentido várias vezes segui-
das e sobrevem uma vertigem que pode fazer-nos desmaiar
e que não nos permite distinguir nada. E a morte pode pro-
duzir este estado nos animais por um tempo.
22. E, assim como todo estado presente de uma subs-
tância simples é naturalmente uma conseqüência de seu es-
tado precedente, o presente também está prenhe do futu-
ro. Teodicéia, § 360.
23. Assim, quando, voltando do aturdimento, apercebe-
mo-nos de nossas percepções, é preciso que as tenhamos
tido imediatamente antes, embora sem apercebermo-nos
delas, pois uma percepção só pode provir naturalmente de
outra percepção, como um movimento só pode provir na-
turalmente de um movimento. Teodicéia, §§ 401-403·
24. Com isso, vê-se que se em nossas percepções não ti-
véssemos nada de distinto e, por assim dizer, de elevado e
de um gosto mais aprimorado, só conheceríamos o atordoa-
mento. É este o estado das Mônadas simplesmente nuas.
25. Também vemos que a natureza deu percepções apri-
moradas aos animais, pelo cuidado que teve em fornecer-
lhes órgãos que reúnam vários raios de luz ou várias ondu-
lações do ar, para que pela sua união tivessem mais eficá-
cia. Algo semelhante ocorre com o odor, com o gosto e com
o tato e talvez com muitos outros sentidos que nos são des-
conhecidos. E logo explicarei como o que se passa na Al-
ma representa o que ocorre nos órgãos.
26. A memória fornece às almas uma espécie de conse-
cução que imita a razão, mas que deve ser distinguida dela.
É o que observamos nos animais que, tendo a percepção de
algo que os incomoda e de que já tiveram antes uma percep-

135
_________________________ ____________________________ G. W. Leibniz______________ _______________________________________________

ção semelhante, associam-no, pela representação de sua me-


mória, àquilo que estava ligado a esta percepção precedente,
e são levados a sentimentos semelhantes aos que então ha-
viam experimentado. Por exemplo, quando se mostra um pau
aos cães, eles se lembram da dor que lhes causou, e ganem
e fogem. Prelimin. 65.
27. E a imaginação forte que os incomoda e agita pro-
vém ou da magnitude ou da multiplicidade das percepções
anteriores. Pois, freqüentemente, uma impressão forte pro-
voca de uma só vez o efeito de um hábito prolongado ou
de muitas percepções fracas reiteradas.
28. Os homens agem como os animais quando as con-
secuções de suas percepções só se efetuam pelo princípio
da memória, à semelhança dos médicos empíricos, que pos-
suem simplesmente a prática sem a teoria; e somos mera-
mente empíricos em três quartos de nossas ações. Por exem-
plo, quando se espera que amanhã raie o dia, procede-se
como um empirista, porque sempre foi assim até hoje. Só o
astrônomo julga, nesse caso, segundo a razão.
29. Mas o conhecimento das verdades necessárias e
eternas é o que nos distingue dos simples animais e nos faz
possuidores da razão e das ciências, elevando-nos ao co-
nhecimento de nós mesmos e de Deus. É o que se chama
de Alma Racional ou espírito.
30. Também pelo conhecimento das verdades necessá-
rias e por suas abstrações, elevando-nos aos atos reflexivos,
que nos fazem pensar no que se chama Eu e considerar
que isto ou aquilo está em nós; e é assim que, ao pensar
em nós, pensamos no ser, na substância, no simples ou no
composto, no imaterial e no próprio Deus, quando conce-
bemos que o que em nós é limitado, nele é sem limites. E
estes atos reflexivos fornecem os objetos principais de nos-
sos raciocínios. Prefácio Teodicéia.
31. Nossos raciocínios estão fundados em dois grandes
princípios, o da contradição, em virtude do qual julgamos

136
Discurso de metafísica e outros textos.

que é falso o que ele implica, e verdadeiro o que é oposto


ou contraditório ao falso. Teodicéia, §§ 44 e 169.
32. E o de razão suficiente, em virtude do qual consi-
deramos que nenhum fato pode ser verdadeiro ou existen-
te, nenhum enunciado verdadeiro, sem que haja uma razão
suficiente para que seja assim e não de outro modo, ainda
que com muita freqüência estas razões não possam ser co-
nhecidas por nós. Teodicéia, §§ 44 e 169·
33. Há dois tipos de verdades, as de raciocínio e as de
fato. As verdades de razão são necessárias e seu oposto é
impossível; e as de fato são contingentes e seu oposto é pos-
sível. Quando uma verdade é necessária pode-se encontrar
sua razão pela análise, resolvendo-a em idéias e em verda-
des mais simples até se chegar às primitivas. Teodicéia, §§ 170,
174, 189, 280-282, 367; Resumo, 3 a Objeção.
34. É assim que os matemáticos reduzem, pela análise,
os teoremas de especulação e os cânones de prática a defi-
nições, axiomas e postulados.
35. E há enfim idéias simples cuja definição não pode-
ríamos dar; há também Axiomas e Postulados ou, em suma,
princípios primitivos, que não poderiam ser provados e
tampouco têm necessidade de sê-lo; são os enunciados
idênticos cujo oposto contém uma contradição expressa.
36. Mas a razão suficiente deve encontrar-se também
nas verdades contingentes ou de fato, ou seja, na série das
coisas espalhadas pelo universo das criaturas; onde a reso-
lução em razões particulares poderia chegar a um detalha-
mento sem limite devido à variedade imensa das coisas da
natureza e à divisão dos corpos até o infinito. Há uma infi-
nidade de figuras e de movimentos presentes e passados
que entram na causa eficiente desse meu ato presente de
escrever, e há uma infinidade de pequenas inclinações e
disposições de minha alma, presentes e passadas, que en-
tram na sua causa final. Teodicéia, §§ 36, 37, 44, 45, 49, 52,
121, 122, 337, 340-344.

137
G. W. Leibniz

37. E como todo este detalhe não encerra senão outros


contingentes anteriores ou mais detalhados, cada um dos
quais ainda necessitando de uma análise semelhante que
pudesse explicá-lo, não se logrou avançar mais com isso: a
razão suficiente ou última tem de estar fora da seqüência
ou séries deste detalhe das contingências, por infinito que
este possa ser.
38. Assim sendo, a razão última das coisas deve estar
em uma substância necessária, na qual o detalhe das mudan-
ças só esteja eminentemente, como em sua fonte: é o que
chamamos Deus. Teodicéia, § 7.
39· Ora, sendo esta substância uma razão suficiente de
todo este detalhe, o qual também está interligado em toda
parte, não hã mais que um Deus e este Deus é suficiente.
40. Pode-se julgar também que esta Substância Supre-
ma que é única, universal e necessária, não tendo nada fora
dela que lhe seja independente, e sendo uma conseqüên-
cia simples do ser possível, deva ser incapaz cle limites e
conter tanta realidade quanto seja possível.
41. Donde se segue que Deus é absolutamente perfeito,
pois a perfeição não é senão a grandeza da realidade posi-
tiva considerada precisamente, pondo à parte as restrições
ou os limites das coisas que os têm. E onde não há limites,
ou seja, em Deus, a perfeição é absolutamente infinita. Teo-
dicéia, § 22; Prefácio Teodicéia.
42. Segue-se também que as perfeições das criaturas
procedem da influência de Deus; mas suas imperfeições,
de sua própria natureza, incapaz de ser ilimitada. Por isto
distinguem-se de Deus. Teodicéia, §§ 20, 27-31, 153, 167,
377 ss.
43. Também é verdade que em Deus reside não só a
fonte das existências, mas também a das essências, enquan-
to reais, ou do que há cle real na possibilidade. Porque o
Entendimento de Deus é a região das verdades eternas, ou
das idéias cle que estas verdades dependem e sem ele não

138
Discurso de metafísica e outros textos.

haveria nada de real nas possibilidades, e não somente


nada de existente, como tampouco nada de possível. Teo-
dicéia, § 20.
44. Pois, se há uma realidade nas essências ou possibi-
lidades, ou então nas verdades eternas, é imperativo que
esta realidade esteja fundada em algo existente e Atual; e
por conseguinte na Existência do Ser necessário, no qual a
Essência encerra a Existência ou no qual é suficiente ser
possível para ser atual. Teodicéia, §§ 184-189, 335.
45. Assim, só Deus (ou o Ser necessário) tem o privilé-
gio de ter de existir necessariamente, se é possível. E, como
nada pode impedir a possibilidade do que não encerra ne-
nhum limite, nenhuma negação e, por conseguinte, nenhu-
ma contradição, isto é suficiente para se conhecer a existên-
cia de Deus apriori. Também a provamos pela realidade das
verdades eternas. Mas acabamos de prová-la também a pos-
teriori, posto que existem seres contingentes que só podem
ter sua razão última ou suficiente no ser necessário, que pos-
sui em si mesmo a razão de sua existência.
46. No entanto, não se deve pensar, com alguns, que
as verdades eternas, sendo dependentes de Deus, sejam ar-
bitrárias e dependam de sua vontade, como parece conce-
ber Descartes e depois o senhor Poiret. Isto só é verdadei-
ro no caso das verdades contingentes cujo princípio é a
conveniência ou a eleição do melhor, ao passo que as Ver-
dades Necessárias dependem unicamente de seu entendi-
mento e são seu objeto interno. Teodicéia, §§ 180-184, 185,
335, 351, 380.
47. Assim, só Deus é a unidade primitiva ou a substân-
cia simples originária, da qual todas as Mônadas criadas ou
derivativas são produções; e nascem, por assim dizer, por
Fulgurações contínuas da Divindade, de momento a mo-
mento, limitadas pela receptividade da criatura, para a qual
é essencial ser limitada. Teodicéia, §§ 382-391, 398, 395.
48. Em Deus está a potência, que é a fonte de tudo, de-
pois o conhecimento, que contém o detalhe das idéias, e por

139
G. W. Leibniz

fim a vontade, que opera as mudanças ou produções se-


gundo o princípio do melhor. E isto corresponde ao que
nas Mônadas criadas constitui o Sujeito ou Base, a Faculda-
de Perceptiva e a Faculdade Apetitiva. Mas em Deus estes
atributos sâo absolutamente infinitos ou perfeitos; enquan-
to nas Mônadas criadas ou nas Enteléquias (ou perfectiha-
bies, como traduziu esta palavra Ermolao Barbaro) não pas-
sam de imitações, proporcionais à perfeição delas. Teodi-
céia, §§ 7, 149, 150, 87.
49. Diz-se que a criatura age exteriormente na medida
em que tem perfeição; epadece a ação de outra na medida em
que é imperfeita. Assim, atribui-se ação à Mônada na medi-
da em que esta tem percepções distintas e paixão na medida
em que as tem confusas. Teodicéia, §§ 32, 66, 386.
50. E uma criatura é mais perfeita que outra quando se
encontra nela o que serve para dar a razão a priori do que
se passa na outra, e por isso se diz que age sobre a outra.
51. Mas nas substâncias simples só há uma influência
ideal de uma Mônada sobre outra, a qual não pode efetuar-
se senão pela intervenção de Deus, enquanto nas idéias de
Deus uma Mônada requer com razão que Deus, tendo regu-
lado as outras desde o começo das coisas, também a consi-
dere. Pois, como uma Mônada criada não poderia influir fi-
sicamente no interior de outra, só por este meio uma pode
depender de outra. Teodicéia, §§ 9, 54, 65, 66, 201; Resumo,
3a Objeção.
52. E por isto as ações e paixões entre as criaturas são
mútuas. Pois Deus, ao comparar duas substâncias simples,
encontra em cada uma delas razões que o obrigam a aco-
modá-la à outra; e, por conseguinte, o que é ativo em cer-
tos aspectos é passivo de outro ponto de vista: ativo en-
quanto o que se conhece distintamente nele serve para ex-
plicar o que acontece em outro, e passivo enquanto a razão
do que lhe acontece encontra-se no que se conhece distin-
tamente em outro. Teodicéia, § 66.

140
Discurso de metafísica e outros textos.

53. Ora, como há uma infinidade de universos possíveis


nas idéias de Deus e apenas um deles pode existir, tem de
haver uma razão suficiente da escolha de Deus, que o de-
termine a preferir um a outro. Teodicéia, §§ 8, 10, 44, 173,
196 ss., 225, 414-416.
54. E esta razão só pode encontrar-se na conveniência,
ou nos graus de perfeição que estes mundos contêm, cada
possível tendo o direito de pretender à Existência segundo
a medida da perfeição que envolva. Teodicéia, §§ 74, 167,
350, 201, 130, 352, 345 ss., 354.
55. E esta é a causa da existência do melhor, que a sa-
bedoria revelou a Deus, que sua bondade o levou a esco-
lher e sua potência o levou a produzir. Teodicéia, §§ 8, 78,
80, 84, 119, 204, 206, 208; Resumo, Ia Objeção, 8a Objeção.
56. Ora, esta ligação ou acomodação de todas as coi-
sas criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras faz
com que cada substância simples tenha relações que ex-
pressem todas as outras, e que seja, por conseguinte, um
espelho vivo perpétuo do universo. Teodicéia, §§ 130, 360.
57. E assim como uma mesma cidade contemplada de
diversos lados parece totalmente outra, e sendo como que
multiplicada perspectivamente, o mesmo ocorre quando,
devido à multiplicidade infinita de substâncias simples, pa-
rece haver outros tantos universos difei'entes que, entretan-
to, nada mais são do que as perspectivas de um só, segun-
do os diferentes pontos de vista de cada Mônada. Teodicéia,
§ 147.
58. E este é o meio de obter toda a variedade possível,
mas com a maior ordem possível, ou seja, é o meio de ob-
ter tanta perfeição quanto possível. Teodicéia, §§ 120; 124,
241 ss., 214, 243, 275.
59- Também esta hipótese (que ouso afirmar demons-
trada) é a única que destaca, como é devido, a grandeza de
Deus; o senhor Bayle o reconheceu quando lhe fez obje-
ções em seu Dicionário (artigo Rorarius ), onde ficou mes-

141
G. W. Leibniz

mo tentado a crer que eu concedia demasiado a Deus, e


mais do que possível. Mas não pôde alegar razão alguma
da impossibilidade desta harmonia universal, que faz com
que cada substância expresse exatamente todas as demais
mediante as relações que mantém com elas.
60. Vêem-se ademais, pelo que acabo de dizer, as ra-
zões a priori das coisas não poderem ser de outro modo;
porque Deus, ao regular o todo, considerou cada parte e
particularmente cada Mônada; cuja natureza sendo repre-
sentativa não poderia ser limitada, por coisa alguma, a re-
presentar só uma parte das coisas, ainda que seja verdade
que essa representação seja apenas confusa quanto ao de-
talhe de todo o universo, e distinta apenas em uma pequena
parte das coisas, isto é, naquelas que são ou as mais próxi-
mas ou as maiores com relação a cada uma das mônadas;
de outro modo cada Mônada seria uma Divindade. Não é
no objeto, mas na modificação do conhecimento do objeto,
que as Mônadas são limitadas. Todas elas tendem confusa-
mente ao infinito, ao todo; mas são limitadas e distinguem-
se pelos graus das percepções distintas.
61. E nisto os compostos simbolizam os simples. Pois
como tudo é pleno, e toda a matéria, por conseguinte, liga-
da, e como no pleno todo movimento produz algum efei-
to sobre os corpos distantes, segundo a distância, de ma-
neira que cada corpo é afetado não só por aqueles que o
tocam, ressentindo-se de algum modo de tudo o que lhes
ocorre, como também por meio deste s ressente-se ainda
dos que tocam os primeiros com os quais está imediata-
mente em contato. Donde se segue que esta comunicação
atinge qualquer distância. E por conseguinte todo corpo
ressente-se de tudo o que se faz no universo, de tal modo
que aquele que tudo visse poderia ler em cada um o que
se faz em toda parte, e mesmo o que ocorreu e o que ocor-
rerá, observando no presente o que está distante tanto nos
tempos como nos lugares; , dizia Hipócra-

142
Discurso de metafísica e outros textos.

tes. Mas uma Alma pode ler em si mesma só o que nela está
distintamente representado, ela não poderia desenvolver
de uma só vez todos seus recantos íntimos, pois eles se es-
tendem até o infinito.
62. Assim, ainda que cada Mônada criada represente
todo o universo, ela representa com maior distinção o cor-
po que lhe é particularmente afetado e cuja enteléquia cons-
titui; e como esse corpo expressa todo o universo pela cone-
xão de toda a matéria no pleno, a Alma representa também
todo o universo ao representar este corpo que lhe pertence
de maneira particular. Teodicéia, § 400.
63. O corpo pertencente a uma Mônada, que é sua En-
teléquia ou Alma, constitui com a Enteléquia o que se pode
chamar um vivente, e com a Alma o que se pode chamar
um animal. Ora, esse corpo de um vivente ou de um ani-
mal é sempre orgânico, pois cada Mônada sendo a seu
modo um espelho do universo, e estando o universo regu-
lado conforme uma ordem perfeita, é preciso que haja tam-
bém uma ordem no representante, ou seja, nas percepções
da alma e por conseguinte no corpo, segundo a qual o uni-
verso está representado nela. Teodicéia, § 403·
64. Assim, cada corpo orgânico de um vivente é uma
Espécie de Máquina Divina ou de Autômato Natural, que
supera infinitamente todos os Autômatos artificiais. Porque
uma Máquina, construída segundo a arte humana, não é
Máquina em cada uma de suas partes. Por exemplo, o den-
te de uma roda de latão tem partes ou fragmentos que não
são mais para nós algo artificial e não têm mais nada que
identifique a Máquina para o uso da qual está destinada a
roda. Mas as Máquinas da Natureza, isto é, os corpos vivos,
são Máquinas inclusive em suas menores partes até o infi-
nito. É isto que constitui a diferença entre a Natureza e a
Arte, isto é, entre a arte Divina e a Nossa. Teodicéia, §§ 134,
146, 194, 403.
65. E o Autor da Natureza pôde praticar este artifício
divino e infinitamente maravilhoso, porque cada porção da

143
G. W. Leibniz

matéria não só é divisível ao infinito, como reconheceram


os antigos, como ainda está subdividida atualmente sem fim,
cada parte em partes, das quais cada uma tem algum movi-
mento próprio; de outro modo seria impossível que cada
porção da matéria pudesse expressar todo o universo. Dis-
curso preliminar; § 70; Teodicéia, § 195.
66. Pode-se assim observar que há um Mundo de cria-
turas, de viventes, de Animais, de Enteléquias, de Almas,
na menor parte da matéria.
67. Cada porção da matéria pode ser concebida como
um jardim cheio de plantas e como um lago cheio de peixes.
Mas cada ramo da planta, cada membro do Animal, cada go-
ta de seus humores, é também um jardim ou um lago.
68. E, embora a terra e o ar interpostos entre as plantas
do jardim, ou a água interposta entre os peixes do lago, não
sejam planta, nem peixe, eles os contêm ainda, mas muito
freqüentemente com uma sutileza que para nós é imper-
ceptível.
69. Assim, não há nada inculto, estéril, ou morto no uni-
verso, não há caos, não há confusão senão na aparência; se-
ria como se víssemos, de uma certa distância, num lago, um
movimento confuso e um tumulto dos peixes do lago, sem
que discerníssemos os próprios peixes. Prefácio Teodicéia.
70. Assim, vemos que cada corpo vivo tem uma Ente-
léquia dominante que no Animal é a Alma; mas os mem-
bros deste corpo vivo estão plenos de outros viventes, plan-
tas, animais, cada um dos quais tem ainda sua Enteléquia
ou sua Alma dominante.
71. Mas não se deve pensar, como alguns que haviam
compreendido mal meu pensamento, que cada Alma tem
uma massa ou porção de matéria própria ou que está afe-
tada a ela para sempre, e que possui, conseqüentemente,
outros viventes inferiores, destinados a servi-la para sempre.
Pois todos os corpos estão em um fluxo perpétuo, como os
rios, e as partes neles entram e saem continuamente.

144
Discurso de metafísica e outros textos.

72. Assim a alma só muda de corpo pouco a pouco e


gradativamente, de maneira que nunca é despojada instan-
taneamente de todos os seus órgãos; e freqüentemente há
metamorfose nos animais, mas nunca Metempsicose, nem
transmigração das Almas; tampouco há Almas completa-
mente separadas, nem gênios sem corpo. Só Deus está
completamente separado. Teodicéia, §§ 90, 124.
73· É isso que faz com que não haja nunca nem com-
pleta geração, nem morte perfeita, no sentido estrito, a sa-
ber, a que consiste na separação da alma. E o que chama-
mos gerações são desenvolvimentos e crescimentos, assim
como o que chamamos mortes são envolvimentos e dimi-
nuições.
74. Os filósofos já ficaram muito embaraçados a res-
peite') da origem das Formas, Enteléquias ou Almas; mas
hoje, quando nos apercebemos, por investigações exatas,
feitas em plantas, insetos e animais, que os corpos orgâni-
cos da natureza nunca são produzidos a partir de um caos
ou de uma putrefação, mas sempre a partir de sementes
nas quais sem dúvida havia alguma preformação, conside-
ramos que antes da concepção não só já existia, em seu
interior, o corpo orgânico, como também uma Alma neste
corpo e, em uma palavra, o animal mesmo; e que median-
te a concepção este animal só foi disposto para uma gran-
de transformação para tornar-se um animal de outra espé-
cie. Vê-se mesmo algo parecido fora da geração quando
os vermes se transformam em moscas e as lagartas, em borbo-
letas. Teodicéia, §§ 86, 89; Prefácio Teodicéia, §§ 90, 187-188,
403, 397.
75. Os animais, dos quais alguns são elevados ao grau
dos maiores animais por meio da concepção, podem ser
chamados espermáticos-, mas os que permanecem em sua
espécie, isto é, a maioria, nascem, multiplicam-se e são des-
truídos como os animais grandes, e não há senão um pe-
queno número de Eleitos que passa a um teatro maior.

145
G. W. Leibniz

76. Mas isto só é meia verdade; julguei, então, que se


o animal nunca começa naturalmente tampouco termina
naturalmente; e que não só não haverá geração, como tam-
pouco destruição completa, nem morte no sentido estrito.
E estes raciocínios feitos a posteriori e tirados das experiên-
cias concordam perfeitamente com meus princípios dedu-
zidos apriori, como acima. Teodicéia, § 90.
77. Assim, pode-se dizer que não só a Alma (espelho
de um universo indestrutível) é indestrutível, como tam-
bém o próprio animal, ainda que sua Máquina freqüente-
mente pereça em parte e abandone ou tome despojos or-
gânicos.
78. Estes princípios me permitiram explicar natural-
mente a união ou, melhor, a conformidade da alma e do
corpo orgânico. A alma segue suas próprias leis, e os corpos
também as suas, e eles se encontram em virtude da harmo-
nia preestabelecida entre todas as substâncias, pois todas
elas são representações de um mesmo universo. Prefácio
Teodicéia, §§ 340, 352, 353, 358.
79· As almas agem segundo as leis das causas finais
por apetições, fins e meios. Os corpos agem segundo as
leis das causas eficientes ou dos movimentos. E os dois rei-
nos, das causas eficientes e o das causas finais, são harmô-
nicos entre si.
80. Descartes reconheceu que as almas não podem dar
força aos corpos porque sempre há na matéria a mesma
quantidade de força. Entretanto, acreditou que a alma po-
dia mudar a direção dos corpos. Mas isto foi assim porque
em seu tempo desconhecia-se a lei da natureza que estabe-
lece também a conservação da mesma direção total na ma-
téria. Se a conhecesse, teria caído no meu sistema da har-
monia preestabelecida. Prefácio Teodicéia, §§ 22, 59, 60, 61,
63, 66, 345, 346 ss., 354, 355.
81. Este Sistema faz com que os corpos ajam como se
não houvesse Almas (o que é impossível); e que as Almas

146
Discurso de metafísica e outros textos.

ajam como se não houvesse corpos; e que ambos ajam co-


mo se um influísse no outro.
82. Quanto aos espíritos ou Almas racionais, ainda que
eu considere haver no fundo a mesma coisa em todos os
viventes e animais, como acabamos de dizer (a saber, que
o Animal e a Alma só começam com o mundo e, como o
mundo, não acabam), há todavia uma particularidade nos
animais racionais, a saber, que seus pequenos Animais Es-
permáticos, enquanto não são senão isso, somente têm Al-
mas ordinárias ou sensitivas; mas, assim que os eleitos, por
assim dizer, alcançam por concepção atual a natureza hu-
mana, suas almas sensitivas são elevadas ao grau da razão
e à prerrogativa dos Espíritos. Teodicéia, §§ 91, 397.
83· Entre outras diferenças entre as Almas ordinárias e
os Espíritos, algumas das quais já assinalei, há ainda esta:
as almas em geral são espelhos vivos ou imagens do uni-
verso das criaturas, enquanto os espíritos são ainda ima-
gens da própria divindade, ou do próprio autor da nature-
za, capazes de conhecer o sistema do universo e de imitar
algo dele mediante amostras arquitetônicas, pois cada espí-
rito é como uma pequena divindade em seu âmbito. Teodi-
céia, § 147.
84. É o que faz com que os espíritos sejam capazes de
ingressar em uma Espécie de Sociedade com Deus, e por
isto Deus é para eles não só o que um inventor é para sua
Máquina (o que Deus é relativamente às outras criaturas),
como também o que um príncipe é para seus súditos e in-
clusive um pai para seus filhos.
85. Donde é fácil concluir que a reunião de todos os
Espíritos deve constituir a Cidade de Deus, isto é, o estado
mais perfeito possível sob o mais perfeito dos monarcas.
Teodicéia, § 146; Resumo, 2- Objeção.
86. Esta cidade de Deus, esta Monarquia verdadeira-
mente universal, é um Mundo Moral no Mundo Natural e o
que há de mais elevado e divino nas obras de Deus. Nisto
consiste verdadeiramente a glória de Deus, posto que não

147
G. W. Leibniz

teria nenhuma se sua grandeza e sua bondade não fossem


conhecidas e admiradas pelos espíritos. É também relativa-
mente a esta cidade divina que Ele tem propriamente Bon-
dade, enquanto sua sabedoria e sua potência manifestam-
se em tudo.
87. Assim como acima estabelecemos uma Harmonia
perfeita entre dois Reinos Naturais, o das causas eficientes,
outro das finais, também devemos destacar outra harmo-
nia entre o reino Físico da Natureza e o reino Moral da Gra-
ça, isto é, entre Deus considerado como Arquiteto da Má-
quina do universo, e Deus considerado como Monarca da
cidade divina dos Espíritos. Teodicéia, §§ 62, 74, 118, 112,
130, 247, 248.
88. Esta harmonia faz com que as coisas conduzam à
graça pelas próprias vias da natureza, e que este globo, por
exemplo, deva ser destruído e reparado pelas vias naturais,
nos momentos requeridos pelo governo dos Espíritos; para
castigo de uns e recompensa de outros. Teodicéia, §§ 18 ss.,
110, 244, 245 e 340.
89. Também se pode dizer que Deus como arquiteto
satisfaz em tudo a Deus como legislador; e que, assim, os
pecados devem implicar seu próprio castigo segundo a or-
dem da natureza e em virtude da própria estrutura mecâni-
ca das coisas; e que do mesmo modo as belas ações obte-
rão sua recompensa por vias mecânicas em relação aos cor-
pos, ainda que isto não possa nem deva ocorrer sempre
imediatamente.
90. Enfim, sob este governo perfeito não haverá boa
Ação sem recompensa, nem má sem castigo: e tudo deve
resultar no bem dos bons, isto é, dos que não estão des-
contentes nesse grande Estado, que confiam na providên-
cia depois de terem cumprido seu dever, e que amam e
imitam, como é devido, o Autor de todo o bem, compra-
zendo-se na consideração de suas perfeições segundo a
natureza do verdadeiro amor puro, que faz com que se sin-

148
Discurso de metafísica e outros textos.

ta prazer com a felicidade daquilo que se ama. É isto que


faz trabalhar as pessoas sábias e virtuosas em tudo o que
parece conforme à vontade divina presuntiva ou antece-
dente; e o que as faz se contentarem, entretanto, com o que
Deus faz com que ocorra efetivamente pela sua vontade
secreta, conseqüente e decisiva, reconhecendo que, se pu-
déssemos entender suficientemente a ordem do universo,
descobriríamos que supera todas as aspirações dos mais sá-
bios, e que é impossível fazê-lo melhor do que é; não só
relativamente ao todo em geral, mas também relativamente
a nós mesmos em particular, se estamos ligados, como é
devido, ao Autor do todo, não só como arquiteto e causa
eficiente de nosso ser, mas também como nosso Senhor e
causa final, que deve constituir todo o fim de nossa vonta-
de e o único que pode fazer nossa felicidade. Teodicéia,
§ 134 fin.; Prefácio Teodicéia, 278.

149
PRINCÍPIOS DA NATUREZA E DA
GRAÇA FUNDADOS NA RAZÃO

Tradução
ALEXANDRE DA CRUZ BONILHA

Revisão
MÁRCIA VALÉRIA MARTINEZ DE AGUIAR
1. A substância é um Ser capaz de Ação. Ela é simples
ou composta. A substância simples é aquela que não tem
partes. A composta é a reunião das substâncias simples ou
Mônadas. Monas é uma palavra grega que significa unida-
de ou o que é uno. Os compostos ou os corpos são Multipli-
cidades, e as Substâncias simples, as Vidas, as Almas, os Espí-
ritos são unidades. É preciso que em toda parte haja substân-
cias simples porque sem as simples não haveria compostas.
Por conseguinte, toda a natureza está plena de vida.
2. As Mônadas, não tendo partes, não podem ser forma-
das nem destruídas. Não podem começar nem terminar natu-
ralmente e duram, por conseguinte, tanto quanto o universo,
que será mudado mas não será destruído. Não podem ter fi-
guras, caso contrário teriam partes; e, por conseguinte, uma
Mônada em si mesma, e em um momento dado, não pode-
ria distinguir-se de outra a não ser pelas qualidades e ações
internas, que não podem ser outra coisa senão suas percep-
ções (isto é, as representações do composto ou do que é ex-
terno, no simples) e suas apetições (isto é, suas passagens
ou tendências de uma percepção a outra), que são os prin-
cípios da mudança. Pois a simplicidade da substância não
impede a multiplicidade das modificações, que devem ocor-
rer simultaneamente nesta mesma substância simples, e de-
vem consistir na variedade das relações com as coisas que

153
G. W. Leibniz

estão fora. É como um centro ou ponto no qual, por mais


simples que seja, existem uma infinidade de ângulos forma-
dos pelas linhas que para ele convergem.
3. Na natureza tudo é pleno. Há substâncias simples
em toda parte, efetivamente separadas umas das outras por
ações próprias, que mudam continuamente suas relações-, e
cada substância simples ou Mônada distinta, que constitui
o centro de uma substância composta (como, por exemplo,
de um animal) e o princípio de sua unicidade, está rodea-
da por uma massa composta de uma infinidade de outras
Mônadas, que constituem o corpo próprio desta Mônada
central, a qual representa, segundo as afecções desse cor-
po, como em uma espécie de centro, as coisas que estão
fora dela. E este corpo é orgânico quando forma uma espé-
cie de Autômato ou Máquina da Natureza, que é máquina
não apenas no todo, como também nas mais ínfimas par-
tes, que podem ser observadas. E como tudo está ligado de-
vido à plenitude do mundo, e cada corpo atua em maior
ou menor medida sobre cada um dos demais, segundo a
distância, sendo por sua vez afetado por reação, segue-se
que cada Mônada é um Espelho vivo, ou dotado de ação
interna, representativo do universo, segundo seu ponto de
vista, e tão regulado como o próprio universo. Na Mônada,
as percepções nascem umas de outras segundo as leis dos
Apetites ou das causas finais do bem, e do mal, que consis-
tem nas percepções notáveis, reguladas ou desreguladas,
assim como as mudanças dos corpos e os fenômenos ex-
ternos nascem uns de outros segundo as leis das causas
eficientes, isto é, dos movimentos. Assim, há uma harmo-
nia perfeita entre as percepções da Mônacla e os movimen-
tos dos corpos, preestabelecida de antemão entre o sistema
das causas eficientes e o das causas finais, e nisto consiste
o acordo e a união física da alma e do corpo, sem que um
deles possa mudar as leis do outro.

154
Discurso de metafísica e outros textos.

4. Cada Mônada, com seu corpo particular, constitui


uma substância viva. Desse modo não só há vida em toda
parte, incorporada nos membros ou órgãos, como também
há uma infinidade de graus entre as Mônadas, e umas do-
minam mais ou menos as outras. Mas, quando a Mônada
tem órgãos tão ajustados que graças a eles ganham relevo e
distinção as impressões que eles recebem e, por conseguin-
te, também as percepções que os representam (como, por
exemplo, quando, mediante a configuração dos humores dos
olhos, os raios da luz se concentram e atuam com maior
força), então se pode chegar até o sentimento, quer dizer,
até uma percepção acompanhada de memória, isto é, uma
percepção cujo eco perdura durante muito tempo, fazendo-
se ouvir na ocasião apropriada; tal vivente é chamado ani-
mal e sua Mônada é chamada alma. E quando esta Alma
se eleva até a Razão, ela é algo mais sublime e pode ser in-
cluída entre os espíritos, o que logo se explicará.
É verdade que os Animais se encontram às vezes no
estado de simples viventes e suas Almas no estado de sim-
ples Mônadas, a saber, quando suas percepções não são su-
ficientemente distintas para que possam recordar-se delas,
como ocorre em um profundo sono sem sonhos ou em um
desmaio. Mas as percepções que se tornaram inteiramente
confusas devem voltar a desenvolver-se nos animais pelas
razões que direi mais adiante no § 12. Assim, é bom distinguir
entre a percepção, que é o estado interior da Mônada repre-
sentando as coisas externas, e a apercepção, que é a cons-
ciência ou conhecimento reflexivo desse estado interior, a
qual não é dada a todas as almas e nem sempre a mesma
alma. Foi por não ter feito esta distinção que os cartesianos
erraram, ao desconsiderar as percepções de que não nos
apercebemos, assim como o vulgo desconsidera os corpos
insensíveis. Foi isto também que levou estes mesmos carte-
sianos a acreditar que só os espíritos são Mônadas, que não
existem almas dos animais e menos ainda outros princípios

155
G. W. Leibniz

de vida. E, assim como chocaram demasiado a opinião co-


mum dos homens recusando sentimento aos animais, con-
formaram-se demasiadamente, pelo contrário, aos preconcei-
tos do vulgo, ao confundirem um longo aturdimento, que
provém de uma grande confusão das percepções, com mor-
te propriamente dita, na qual cessaria qualquer percepção.
Isto reforçou a opinião mal fundada da destruição de algumas
almas e o pernicioso sentimento de alguns espíritos fortemen-
te presunçosos que combateram a imortalidade da nossa.
5. Existe uma ligação nas percepções dos animais que
tem certa semelhança com a Razão; mas está fundada ape-
nas na memória dos fatos ou efeitos e de modo algum no
conhecimento das causas. Assim, um cão foge do bastão com
o qual lhe bateram porque a memória lhe representa a dor
que esse bastão lhe causou. E os homens, enquanto empí-
ricos, isto é, nas três quartas partes de suas ações, só atuam
como animais. Por exemplo, espera-se que amanhã raie o
dia porque sempre se experimentou assim: só um astrôno-
mo prevê tal fenômeno segundo a razão; e mesmo esta
previsão falhará, finalmente, quando a causa do dia, que
não é eterna, cessar. Mas o raciocínio verdadeiro depende
das verdades necessárias ou eternas, como são a da Lógica,
a dos Números e a da Geometria, que tornam indubitável a
conexão entre as idéias e infalíveis suas conseqüências. Os
animais, nos quais não se notam essas conseqüências, são
chamados bestas-, mas os que conhecem essas verdades ne-
cessárias são, em sentido próprio, os que são chamados
animais racionais e cujas almas se conhece pelo nome de
espíritos. Essas almas são capazes de realizar Atos reflexi-
vos e de considerar o que chamamos eu, Substância, Alma,
Espírito, em uma palavra, as coisas e as verdades imate-
riais; e é isso que nos torna capazes de ciências ou conhe-
cimentos demonstrativos.
6. As investigações dos modernos nos ensinaram, e a
razão o confirma, que aqueles seres vivos cujos órgãos co-

156
Discurso de metafísica e outros textos.

nhecemos, isto é, as plantas e os animais, não provêm em


absoluto de uma putrefação ou de um Caos, como acredi-
tavam os antigos, mas de sementes preformadas e, por con-
seguinte, da Transformação dos viventes preexistentes. Nas
sementes dos animais grandes há pequenos animais que,
mediante a concepção, adotam um novo revestimento do
qual se apropriam, que lhes permite se alimentar e crescer
para passar a um teatro maior e realizar a propagação do
animal grande. É verdade que as Almas dos Animais Esper-
máticos humanos não são racionais e só chegam a sê-lo
quando a concepção destina estes animais à natureza huma-
na. E, assim como em geral os animais não nascem inteira-
mente na concepção ou geração, tampouco perecem com-
pletamente nisso que chamamos morte, porque é razoável
que o que não começa naturalmente tampouco termine
naturalmente na ordem da natureza. Assim, ao abandonar
sua máscara ou seus despojos, voltam simplesmente a um
teatro mais sutil onde, contudo, podem ser tão sensíveis e
estar tão bem regulados como no maior. E o que se acaba
de dizer dos grandes animais tem lugar também na geração
e na morte dos animais espermáticos; isto é, estes são de-
senvolvimentos de outros animais espermáticos menores,
comparados com os quais podem ser considerados gran-
des, pois na natureza tudo vai ao infinito. Assim, pois, não
só as Almas como também os animais são ingênitos e im-
perecíveis; são apenas desenvolvidos, envolvidos, reves-
tidos, despojados, transformados; as Almas nunca abando-
nam totalmente seu corpo e não passam de um corpo a outro
inteiramente novo. Não há metempsicose, mas sim meta-
morfose. Os animais mudam, tomam e abandonam só par-
tes. Isto ocorre pouco a pouco e segundo pequenas por-
ções insensíveis, mas continuamente, na Nutrição; e de uma
só vez, de maneira sensível, ainda que raramente, na con-
cepção ou na morte, quando adquirem ou perdem muito
de uma vez.

157
G. W. Leibniz

7. Até aqui só falamos como simples físicos-, agora de-


vemos elevar-nos à metafísica, valendo-nos do grande prin-
cípio, pouco empregado usualmente, que afirma que nada
se faz sem razão suficiente, isto é, que nada ocorre sem que
seja possível àquele que conheça suficientemente as coisas
dar uma razão que baste para determinar por que é assim
e não de outro modo. Posto este princípio, a primeira per-
gunta que temos direito de formular será: por que existe al-
guma coisa e não o nada? Pois o nada é mais simples e
mais fácil do que alguma coisa. Ademais, supondo-se que
devam existir coisas, é preciso que se possa dar a razão de
por que devem existir assim e não de outro modo.
8. Ora, não se poderia encontrar esta razão suficiente
da existência do universo na série das coisas contingentes,
isto é, na série dos corpos e de suas representações nas Al-
mas: porque a Matéria sendo em si mesma indiferente ao
movimento e ao repouso, e a tal ou qual movimento, não
poderíamos encontrar nela a razão do movimento e menos
ainda de um movimento determinado. E ainda que o movi-
mento presente, que está na matéria, provenha do prece-
dente, e este de outro precedente, com isso não consegui-
ríamos avançar, ainda que retrocedêssemos indefinidamente,
pois sempre permanece a mesma questão. Assim, é preciso
que a razão suficiente, que não necessita de outra razão,
esteja fora desta série de coisas contingentes e se encon-
tre em uma substância que seja sua causa, e que seja um
Ser necessário, que tenha em si a Razão de sua existência,
pois de outro modo não teríamos ainda uma razão suficien-
te na qual pudéssemos parar. E esta última razão das coisas
se chama Deus.
9· Esta substância simples primitiva deve encerrar emi-
nentemente as perfeições contidas nas substâncias derivati-
vas, que são seus efeitos. Assim, terá a potência, o conheci-
mento e a vontade perfeitos, isto é, terá onipotência, onis-
ciência e bondade soberanas. E como a justiça, considera-

158
Discurso de metafísica e outros textos.

da de maneira geral, não é outra coisa que bondade con-


forme à sabedoria, é preciso que haja também uma justiça
soberana em Deus. A Razão, que fez com que as coisas exis-
tissem por Ele, faz com que continuem dependendo dele
também enquanto existem e operam; e elas recebem conti-
nuamente dele aquilo que faz com que possuam alguma
perfeição; mas o que lhes resta de imperfeição provém da
limitação essencial e original da criatura.
10. Da perfeição suprema de Deus segue-se que, ao pro-
duzir o universo, Ele elegeu o melhor Plano possível, no
qual existisse a maior variedade possível associada à maior
ordem possível; o terreno, o lugar, o tempo mais bem dis-
postos, o máximo efeito produzido pelas vias mais simples;
e o máximo de potência, o máximo de conhecimento, o
máximo de felicidade e de bondade que o universo pudes-
se admitir nas criaturas. Pois como todos os Possíveis pre-
tendem à existência no entendimento de Deus na propor-
ção de suas perfeições, o resultado de todas essas preten-
sões deve ser o Mundo Atual o mais perfeito possível. E
sem isto não seria possível dar a razão de por que as coisas
ocorreram antes assim clo que de outro modo.
11. A Suprema Sabedoria de Deus o fez eleger sobretu-
do as leis do movimento melhor ajustadas e que melhor
convêm às razões abstratas ou Metafísicas. Nelas conserva-
se a mesma quantidade da força total e absoluta ou da ação;
a mesma quantidade da força respectiva ou da reação; a
mesma quantidade, por fim, da força diretiva. Ademais, a
ação é sempre igual à reação e o efeito integral sempre
equivale à sua causa plena. É surpreendente que, somente
mediante a consideração das causas eficientes ou da maté-
ria, não possamos explicar as leis do movimento descober-
tas em nosso tempo, parte das quais foram descobertas por
mim mesmo. Pois percebi que era necessário recorrer às
causas finais, e que estas leis não dependem do princípio
da necessidade, como as verdades Lógicas, Aritméticas e

159
G. W. Leibniz

Geométricas, mas sim do princípio da conveniência, isto é,


da eleição realizada pela Sabedoria. E esta é uma das provas
mais eficazes e mais sensíveis da existência de Deus para
os que podem aprofundar estas questões.
12. Segue-se ainda da Perfeição do Autor Supremo que
não só a ordem do universo inteiro é a mais perfeita possí-
vel, como também que cada espelho vivo que representa o
universo segundo seu ponto de vista, isto é, cada Mônada,
cada centro substancial, deve ter suas percepções e seus
apetites regulados do modo mais compatível possível com
todo o resto. Donde se segue ainda que as almas, quer di-
zer, as Mônadas mais dominantes, ou ainda mais, os pró-
prios animais, não podem deixar de despertar do estado de
dormência a que a morte ou algum outro acidente possa
submetê-los.
13· Pois nas coisas tudo está regulado de uma vez para
sempre com tanta ordem e correspondência quanto possí-
vel, já que a Suprema Sabedoria e Bondade não podem
atuar senão com perfeita harmonia: o presente está prenhe
do futuro; o futuro poderia ser lido no passado, o longín-
quo está expresso no próximo. Poderíamos reconhecer a
beleza do universo em cada alma se pudéssemos desdo-
brar todas as suas dobras, que só se desenvolvem sensivel-
mente no tempo. Mas, como cada percepção distinta da
alma compreende uma infinidade de percepções confusas
que envolvem todo o universo, e como a própria alma só
conhece as coisas que pode perceber na medida em que
possui percepções distintas e acuradas destas coisas, tendo
perfeição na mesma medida em que possui percepções dis-
tintas. Cada alma conhece o infinito, conhece tudo, mas con-
fusamente; como quando passeando nas margens do mar e
ouvindo o grande barulho que produz, ouço os barulhos
particulares de cada onda de que se compõe o barulho to-
tal, mas sem discerni-los. Mas percepções confusas são o
resultado das impressões que todo o universo produz em

160
Discurso de metafísica e outros textos.

nós. O mesmo ocorre com cada Mônada. Só Deus tem um


conhecimento distinto de tudo, pois Ele é a fonte de tudo.
Dele se disse muito atinadamente que é como centro em
toda parte, mas que sua circunferência não está em parte
alguma, pois tudo lhe é imediatamente presente, sem ne-
nhum distanciamento deste centro.
14. Quanto à Alma racional ou espírito, há nela algo
mais que nas Mônadas ou mesmo nas simples Almas. Não
é só um espelho do universo das criaturas como também
uma imagem da divindade. O espírito não apenas tem uma
percepção das obras de Deus, como ainda é capaz de pro-
duzir algo que se lhes assemelhe, ainda que em pequena
escala. Pois, para além das maravilhas dos sonhos, em que
inventamos sem esforço (mas também independente de
nossa vontade) coisas cuja descoberta exigiria de nós, em
estado de vigília, uma longa reflexão, nossa Alma é Arqui-
tetônica também nas ações voluntárias; e descobrindo as
ciências segundo as quais Deus regulou as coisas (pondere,
mensura, numero etc.), ela imita em seu âmbito e em seu
pequeno mundo, no qual lhe é permitido exercer-se, o que
Deus faz no grande.
15. Por isso, todos os Espíritos, seja dos homens, seja
dos gênios, ao entrarem em uma espécie de Sociedade com
Deus em virtude da Razão e das verdades eternas, são mem-
bros da Cidade de Deus, quer dizer, do Estado mais perfei-
to, formado e governado pelo maior e o melhor dos Mo-
narcas, no qual não há crime sem castigo, nem boas ações
sem recompensa proporcional e, finalmente, tanta virtude
e felicidade quanto possível. E isto não mediante uma per-
turbação da natureza, como se o que Deus prepara para as
almas perturbasse as leis dos corpos, mas pela ordem mes-
ma das coisas naturais, em virtude da harmonia preestabe-
lecida desde sempre, entre os Reinos da Natureza e da Gra-
ça, entre Deus como Arquiteto e Deus como Monarca, de
maneira que a própria natureza conduz à graça, e a graça
aperfeiçoa a natureza valendo-se dela.

161
G. W. Leibniz

16. Assim, ainda que a Razão não nos possa ensinar o


detalhe do vasto futuro, reservado à revelação, esta mesma
razão nos assegura que as coisas estão feitas de maneira tal
que excede nossos desejos. Posto que Deus é também a
mais perfeita e a mais feliz, e portanto a mais amável das
substâncias, e posto que o amor puro e verdadeiro consiste
no estado que nos faz sentir prazer com as perfeições e
com a felicidade daquilo que amamos, esse Amor nos deve
proporcionar o maior prazer de que sejamos capazes quan-
do Deus for seu objeto.
17. E é fácil amá-lo como se deve, se o conhecermos
como acabo de dizer. Pois, ainda que Deus não seja sensí-
vel aos nossos sentidos externos, não deixa de ser muito
amável e de proporcionar um prazer muito grande. Vemos
quanto prazer as honras proporcionam aos homens, embo-
ra não consistam de qualidades dos sentidos exteriores. Már-
tires e fanáticos (embora a afecção desses últimos seja des-
regrada), mostram o poder do prazer do espírito. Além dis-
so, os próprios prazeres dos sentidos se reduzem a praze-
res intelectuais confusamente conhecidos.
A Música nos encanta, ainda que sua beleza só consis-
ta nas relações dos números e cálculo de que não nos aper-
cebemos, e que a alma não deixa de realizar, das batidas
ou vibrações dos corpos sonoros que se produzem segun-
do intervalos regulares. Os prazeres que a visão encontra
nas proporções são da mesma natureza; e os causados pe-
los demais sentidos vêm a ser algo semelhante, ainda que
não possamos explicá-lo com tanta distinção.
18. Pode-se mesmo dizer que desde agora o Amor de
Deus nos faz experimentar antecipadamente o gosto da fe-
licidade futura e, ainda que seja desinteressado, constitui
por si mesmo nosso bem maior e nosso maior interesse,
ainda que não o buscássemos e só considerássemos o pra-
zer que nos proporciona, e não a utilidade que produz. Pois
infunde em nós uma perfeita confiança na bondade de nos-

162
Discurso de metafísica e outros textos.

so Autor e Senhor, a qual produz uma verdadeira tranqüili-


dade de espírito; não como os estóicos, que se tornam pa-
cientes pela força, mas por um contentamento presente
que nos assegura também uma felicidade futura. E, além do
prazer presente, nada poderia ser mais útil para o futuro.
Pois o amor de Deus preenche também nossas esperanças
e nos conduz ao caminho da suprema felicidade, já que, em
virtude da ordem perfeita estabelecida no universo, tudo
está feito do melhor modo possível, tanto para o bem geral
como também para o maior bem particular daqueles que es-
tão persuadidos e contentes com o divino governo, como
não poderia deixar de ser entre aqueles que sabem amar a
fonte de todo o bem. É verdade que a suprema felicidade
(qualquer que seja a visão beatífica ou conhecimento de Deus
que a acompanhe) jamais poderia ser plena, porque sendo
Deus infinito, não poderia ser conhecido inteiramente. As-
sim, nossa felicidade nunca consistirá, e não deve consistir,
num gozo pleno no qual nada mais haveria a desejar e que
tornaria estúpido nosso espírito, mas sim num progresso per-
pétuo para novos prazeres e novas perfeições.

163
COLEÇÃO CLÁSSICOS
últimos lançamentos

História da Guerra do Peloponeso Iucídides


O herói do nosso tempo Mikhail Liermontov
Dos deveres Marco Túlio Cícero
Ieatro José de Anchieta
Verdade e conhecimento Tomás de Aquino
Econômico Xenofonte
Galateo ou Dos costumes Giovanni delia Casa
Retórica das paixões Aristóteles
Meditações metafísicas René Descartes
Os analectos Confúcio
Metafísica do amor/Metafísica da morte
Arthur Schopenhauer
Sobre o ensino/Os sete pecados capitais
Tomás de Aquino
As três filípicas/Oração sobre as questões da
Qiiersoneso Demóstenes
Comentários políticos Voltaire
A arte de conversar Morellet e outros
Sobre a fdvsofía universitária Arthur
Schopenhauer
O filósofo ignorante Voltaire
Dois tratados sobre o governo John Locke
Gramática de Port-Royal Arnauld e Lancclot
Da dissimulação honesta Torquato Accetto
O preço da justiça Voltaire
Grandes catedrais Auguste Rodin
Escritos históricos epolíticos Pe. Anrònio Vieira
Zadig ou Do destino Voltaire
Aforismos para a sabedoria de vida
Arthur Schopenhauer
Crítica da razão prática Immanuel Kant
Contribuição à crítica da economia política
Karl Marx
Carta-prejácio dos princípios da filosofia
René Descartes
Tratado da reforma da inteligência
Baruch de Espinosa
Tratado de direito natural
Tomás Antônio Gonzaga
Esta coleção agrupa obras que deixaram
marcas itideléveis na civilização. Tomamos
aqui a palavra clássicos no sentido mais
geral: não apenas as obras gregas e latinas
mas as obras fundadoras da cultura, obras
que, por sua originalidade e pelos valores
que ajudaram a criar na sua trajetória
histórica, conservam sua atualidade.

ISBN 85-336-1978-2

9 788533 619784

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