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O caso das irmãs Paupin coincidiu com o surgimento de várias vertentes

artísticas e filosóficas que buscavam dar a vida um sentido diferente daquele


cultivado durante a era da ilustração. Foi o período da psicanálise, das
vanguardas modernas, de Nietzsche e sua negação da verdade, da escola de
Frankfurt e do acontecimento mais terrível da humanidade até então: a primeira
guerra mundial. Nessa efervescência do saber, muitos valores novos passarem
a permear a vida cultural europeia, sendo o embrião da vida que conhecemos
hoje, chamada de pós-modernidade.

Sobre o caso, vale a pena uma rápida descrição. Na década de 30, as irmãs
Christina e Léa Paupin cometeram um crime hediondo causando repulsa na
sociedade francesa. Era véspera do dia 2 de fevereiro do ano de 1933 – uma
noite fria de inverno. Sem aparente explicação as duas mataram e
desfiguraram mãe e filha da casa onde trabalhavam como empregadas
domésticas. Relatos contam que as irmãs voltavam de um passeio e
encontraram a casa toda escura. O motivo: um ferro de passar roupa causara a
queda de um fusível. Porém, o técnico não foi capaz de resolver o problema, e
os custos do profissional recaíram sobre as duas. Tudo indica que o caso irritou
profundamente a patroa, que começou a agredir verbalmente Léa e Christine.
Então, num ato de fúria, elas arremessaram um jarro na cabeça da patroa,
desencadeando um frenesi incontrolável cujo resultado foi o brutal assassinato.

Se fossemos abordar a história das irmãs Papin do ponto de vista policial


teríamos inúmeras particularidade para tratar aqui. No entanto, nosso objetivo é
entender como o caso foi traduzido do ponto de vista das vanguardas
surrealistas que pediram empréstimo dessa história para fazer uma
ressignificação da ideia de violência.

Em 1924 – 9 anos antes do assassinato – André Breton, um dos líderes do


movimento surrealista, escreve um texto que fica marcado na história.
Chamado de o “O manifesto Surrealista”, ele tecia fortes críticas à maneira
tradicional de produzir arte e buscava romper com paradigmas que vinham
desde a época medieval. Essa mudança se baseava justamente na negação
da arte racional, clássica, realista e romântica, para abrir portas à um novo jeito
de pensar a estética – um modo que utilizasse algo que surgia aos poucos, em
vários lugares diferentes, mas que sacramentou-se na Alemanha, por meio de
um médico judeu chamado Freud: o Inconsciente.

Logo na abertura do manifesto, Breton diz o seguinte:

O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu
destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por
sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar,
ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão [...] Esta imaginação que
não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma
utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel
inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o
homem ao seu destino sem luz.

Neste pequeno trecho, Breton aponta um problema e uma solução. O problema


é a mediocridade da vida; o tédio oriundo das relações cotidianas e arbitrárias,
do trabalho e das trocas mundanas. E a solução, que, para ele, existe em cada
um de nós, é resgate do sonho, das vontades infantis, dos desejos amorfos –
ou seja, das expressões de nosso inconsciente. Para os surrealistas, havia um
desgaste na ideia de “vida normal” – aquilo que foi prometido pelos
revolucionários burgueses. Por isso, seu apreço pela ideia de loucura.

Neste outro trecho é possível entender bem essa relação de admiração.

Fica a loucura."a loucura que é encarcerada", como já se disse bem. Todos


sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um
reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes
atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada.
Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com
isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora
das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a
profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe
fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite
supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu
delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido.
Neste trecho, Breton deixa clara a importância da loucura como contraponto às
regras vigentes da sociedade. O louco é aquele que pode, por meio de sua
relação profunda com o imaginário, com suas próprias verdade, oferecer
caminhos distintos à humanidade. É como se ele fosse uma fonte inesgotável
de significantes do mesmo jeito que Levi-Strauss enxergava o xamã nas tribos
indígenas. O crime também foi interpretado como um rompimento da fachada
da civilização, revelando a violência subjacente que poderia ser desencadeada
pela repressão e pelo inconsciente. Para ele, as irmãs Papin eram uma
encarnação das tensões e desejos reprimidos na sociedade e explorou o crime
como um exemplo do que ele chamou de "automatismo psíquico", uma
manifestação do subconsciente e do irracional. Breton viu paralelos entre os
atos das irmãs Papin e as ações surreais que os artistas praticavam em suas
obras. Ele acreditava que o crime revelava o potencial revolucionário do
inconsciente e a necessidade de romper com as convenções sociais e morais
para alcançar a liberdade.

Porém, a relação dos surrealistas com o caso das irmãs Papin não era
unânime, e houve debates e divergências dentro do movimento sobre como
interpretar o evento. Alguns surrealistas viram as irmãs como símbolos de
resistência e libertação, enquanto outros condenaram sua violência. Ainda
assim, o caso das irmãs Papin foi emblemático para o surrealismo por trazer à
tona questões de psicologia, repressão social e irracionalidade que eram
centrais para o movimento.

Tudo que envolve a relação entre os surrealistas e as irmãs Papin gira entorno
de uma consagração da violência e da loucura. Mas, diferente daquela
violência explicita mostrada em programas policiais, há um sentido conceitual
no modo como os surrealistas o fazem. Em primeiro lugar, não é a própria
imagem obscena da brutalidade que interessa à eles, e sim as motivações que
geraram a violência. A compreensão de que os surto psicóticos são
provenientes de problemas sociais e psíquicos é muito distinta daquela
apresentada pela grande mídia que trata a criminalidade como algo moral. Os
surrealista não atribuem qualquer maldade/bondade às irmãs Papin; e mesmo
a louvação dessa personagens soa um pouco irônica, como se em
contraposição às

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