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Nenhum romance que eu escrevesse seria tão interessante

quanto estes textos em que pessoas, em diferentes fases da


vida, falam sobre suas casas.

Há aqueles que falam da casa da infância, há os que falam de


uma antiga casa... Há também os que antecipam seu caso com
a futura casa, com a qual estão sonhando.

A casa pode ser requintada, com muitos metros quadrados


ou... não. Pode ser alugada, emprestada, compartilhada...
Pode estar localizada numa vila, num condomínio... As
necessidades dependem da história pessoal de cada um.

O que vale é a casa exercendo a função de casulo, no sentido


de proteger. Essa proteção que aconchega e renova nossas
energias.

Vale, ainda, o desejo por uma proteção de forma definitiva, o


tão conhecido “sonho da casa própria”. 

(ORELHA)

1
Shirley Pires

O caso com a casa


Um caso que todos têm para contar

Caieiras/SP - 2008
2
Estado de São Paulo – Cidade de Caieiras – 2008
O caso com a casa — um caso que todos têm para contar
Não ficção – entrevistas.
Fotos: Álbuns de Família
Revisão:
Capa:
Diagramação:

3
Agradeço
a todas as pessoas retratadas aqui
por compartilharem conosco sua história.

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6
O primeiro passo

Não sei se meu pai alguma vez tentou comprar


uma casa, nunca conversei sobre isso com ele, só sei que
morou a vida inteira numa casinha oferecida pelo patrão
dele. Tive medo de, como ele, nunca ter uma casa. Quero
dar mais segurança para meus filhos além de ter
tranquilidade na velhice.
Eu morava com minha esposa e dois filhos numa
casa antiga, úmida, onde chovia mais dentro do que fora.
Procurei financiamento bancário, consórcio de imóveis,
mas os prazos muito longos, os aumentos... Era uma
ilusão.
Na Companhia de Desenvolvimento Habitacional e
Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) encontrei um
apartamento com bom preço, que estava desabitado havia
mais de dois anos, num prédio bem conservado, de cor
forte, pouca escada... A vendedora chegou dizendo que
tinha diminuído o valor porque estava encontrando
dificuldades para vendê-lo pelo fato de o marido ter
falecido, vítima de um ataque cardíaco, no apartamento.
Não tivemos medo como as outras pessoas, e negociamos.
No dia seguinte ao fechamento do negócio, nos mudamos
para lá.
Foi uma felicidade, é difícil explicar, senti uma
segurança... Era minha casa. Uma coisa que eu queria
muito e consegui, a minha primeira grande conquista.
Apesar de tudo, pouco tempo depois, nasceu minha
outra filha, e o apartamento ficou pequeno para nós. Por
isso ainda penso em comprar uma casa que tenha terreno

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onde eu possa construir um lar para meus pais. Vamos ver,
por enquanto só dei o primeiro passo.

Foto do dia da compra do apartamento

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Vitor Alves Pedroso, 35 anos
Auxiliar de Escritório

As aparências enganam

Morei de favor; paguei aluguéis; desejei por muitos


anos comprar um terreno e construir uma casa. Meu velho
dizia que só compraria se fosse uma casa, porque pagar
aluguéis e construir, com o salário que ganhava, seria
impossível.
Em tempos difíceis, com ele doente e nossos três
filhos pequenos, decidimos morar na casa de uma
sobrinha. Lá as coisas melhoraram e até pudemos pagar
alguns aluguéis, que, embora ela não quisesse receber,
meu velho fazia questão disso.
Um dia, a sobrinha chegou em casa falando de um
imóvel à venda com excelente preço e facilidades de
pagamento, nos incentivou a comprá-lo e nos ofereceu
ajuda financeira.
Lembro como se fosse hoje: o piso vermelhão
estava encerado e era lindo, no quintal havia três
laranjeiras, nos fundos, dois cômodos, a casa era cor-de-
rosa, as portas e janelas, cinzas. Falei: “aqui vai ser a casa
da minha mãe”. Adorei a casa.
No cartório, meu velho deixou por conta do amigo
e marido de sua sobrinha a tarefa de examinar a
documentação, já que não sabia ler. Com tudo assinado, o
Tabelião disse: “agora a casa é de vocês”. É uma
lembrança muito boa, era mês de junho de 1971. As

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crianças fizeram uma festa, correram e cantaram na casa
vazia.
Seis meses depois, a primeira enchente: móveis e
roupas estragados. Só então entendemos o porquê das
vantagens no preço, além da pintura nova que certamente
servira para encobrir as marcas de lama nas paredes. Mas
não me importei, os vizinhos me ajudaram na limpeza e
logo comprei outro colchão...
Agora faz tempo que não dá enchente, apesar de
qualquer chuvinha as pessoas dizerem: “vai encher tudo”.
Vai encher nada! Se encher, esvazia, e tudo bem.
Sempre gostei da minha casa, foi a melhor coisa
que tive depois dos meus filhos. Meu velho se foi e tenho
meu canto.

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Anazir de Souza Pinto, 79 anos
Dona de casa

Quando se mergulha pela segunda vez, o rio


não é mais o mesmo*

Quando o corretor de imóveis me mandou entrar


naquela rua, tive a certeza de que aquele seria meu
caminho por muito tempo. Às voltas com dificuldades
financeiras, tive de driblar a resistência do meu marido,
que preferia o apartamento no conjunto habitacional onde
morávamos, e que, só a contragosto, aceitou a compra do
terreno e a construção da pequena casa. Contudo, aquela
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obra tinha um encantamento que eu nunca mais veria em
nenhuma outra.
As paredes uniformes mostravam o capricho do
pedreiro que trabalhou quase sempre sob meu olhar atento.
Elas tinham cheiro de casa nova, mesmo sem pintura eram
alvas e me pareciam prontas a receber as cortinas. Para a
cozinha e o banheiro, compramos cerâmicas vermelhas, as
de menor preço, e no quarto permaneceria o piso rústico
até que fosse possível uma nova compra no depósito de
materiais de construção.
Na área imediatamente próxima à porta da cozinha,
o piso permanecia de terra batida; isso indicava que, nos
dias de chuva, eu teria de limpar a lama que certamente se
formaria. Também não havia muros, portão ou escada para
chegar à casa que estava bem acima do nível da rua, que,
aliás, não tinha asfalto, nem guias e sarjetas. Mas nada
disso me preocupava. Não hesitei em arrumar a mudança...
e lá vivemos, com a construção inacabada, por dez anos.
As crianças já não necessitavam de tantos
cuidados, então comecei a trabalhar. Foi aí que nossa
situação financeira melhorou, e começou outra história:
quando o corretor de imóveis me mandou entrar naquela
rua, tive a certeza de que aquele seria meu caminho por
muito tempo, driblei a resistência do meu marido, que
insistia em continuar na pequena casa, e que, só a
contragosto, aceitou a compra do terreno e a construção.
Nessa história tudo foi mais fácil: o local com
infra-estrutura, o terreno naturalmente aplainado, não
havia tanta dificuldade financeira... Consegui o que tanto
queria: a casa com muitos metros quadrados, os azulejos, a
pintura... encantei-me com ela.

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Depois veio a outra obra que também teve seu
encanto, mas nenhum igual ao outro.

Protagonista da segunda história

Shirley Aparecida Pires, 47 anos


Corretora de imóveis

O bem-estar da nossa família dentro de casa é


tudo
Meu marido, médico, tinha o consultório junto à
casa onde morávamos; eu, nutricionista, trabalhava no
hospital israelita, e nossos três filhos estudavam em um
colégio muito bom, de ensino revolucionário dentro do
catolicismo, mas que ficava distante, sendo, durante muito
tempo, um transtorno levá-los e buscá-los.
De repente, eu soube de uma casa recém-
construída à venda, num terreno amplo, a uma quadra do
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colégio. Fui ao consultório e disse a meu marido: “nosso
problema está resolvido”. Viemos vê-la, foi o sírio que nos
atendeu; eram três dormitórios, e a cozinha, imensa, tinha
de um lado uma pia de cinco metros de mármore branco e,
do outro, o fogão – acho que isso era usado na Síria.
Olhamos tudo, e o Munhoz, meu marido, disse: “está
comprada”.
Foi então que fui ao Instituto da Previdência
levantar o crédito para completar o pagamento da casa, e
lá encontrei um primo muito querido. Disse-lhe que
comprara uma casa próxima ao colégio das crianças, onde
as três meninas dele também estudavam. Tive, então, uma
surpresa muito agradável: ele tinha um terreno que,
coincidentemente, era ao lado da casa, mas que ainda não
havia nada construído por falta de vizinhança.
Fomos os desbravadores do bairro, há 45 anos: era
o colégio, a nossa casa e a do nosso primo. Meus filhos
escorregavam nos morros de terra mesmo de uniforme.
Uma vez, o mais velho chegou assustado, com as
mãozinhas para trás, escondendo o rasgado da única calça
limpa, e o pai teve que ir às pressas comprar outra, pois as
freiras não permitiam a entrada no colégio sem uniforme
de maneira nenhuma.
A casa acomodou perfeitamente minha família por
alguns anos. Depois, a menina ficou moça e quisemos dar
um quarto melhor a ela e resolver o problema dos dois
meninos, que brigavam pelo quarto e banheiro. Então
reformamos e ampliamos a casa, pois a vida se resume no
bem-estar da nossa família.
Todos se formaram. O que é dentista, certa vez, fez
um trabalho na faculdade contando da casa da sua
infância: falou do quarto dele, da imensa sala de visitas, da
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sala de estudos do pai... A casa é marcante na vida das
pessoas, é inesquecível.

Dona Cecília na sala de estudos do Dr. Munhoz

Cecília Munhoz, 88 anos


Nutricionista aposentada

Na minha casa tudo tem sentido

Minha casa me trouxe a sensação de missão


cumprida, de poder, de vitória por ter conseguido construí-
la como tinha sonhado, no condomínio que eu adoro.
Entro aqui e tenho a sensação de proteção, é nosso
cantinho, meu, da minha mulher e do meu filho.

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A casa é pequena, aconchegante, todos os detalhes
têm um significado para nós: o piso de madeira, as
arandelas da entrada da sala, um lustre deslumbrante do
começo do século que ganhamos de um amigo. Ele tinha
demolido um casarão e viu nossa paixão pela peça, então
nos presenteou.
Um dia desses, fazendo caminhada pelo
condomínio, que tem casas imensas e lindíssimas, me
perguntei: “qual dessas casas eu trocaria pela minha?”
Olhei uma, outra e outra. Passei a pensar nisso.
Na primeira possibilidade real de troca – uma casa
lindíssima, bem maior que a nossa, cujo proprietário
aceitaria a que nos pertence como parte no pagamento –,
falei com a Sonia. Ela, que é muito meiga, disse: “parece
que nossa casa vai chorar ao ouvir isso”.
Chegamos à conclusão de que nem a melhor casa
do condomínio tem os detalhes que a nossa tem, e mais
vale a qualidade que a quantidade.

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Casa do Luiz, Sonia e João Vitor

Luiz Vicente Milano, 48 anos


Corretor de imóveis

Felipe e Lídia

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Nasceu o Felipe, então precisaríamos de mais
espaço. Vendemos o apartamento para comprar uma casa.
Passados dois dos três meses para a entrega do
apartamento, nada de encontrar a casa. Começava o
estresse. Nosso plano B era morar na casa do meu sogro,
lá até faríamos nosso lar, mas o espaço era deles.
Fomos até um bairro, que conhecíamos de
passagem, era no caminho para a assembleia da Igreja, um
encontro para estudo bíblico, na cidade vizinha. Eu
gostava do lugar, em ocasiões anteriores havia dito para
minha esposa: “puxa, Su, como seria bom morar aqui”. E
ela concordava.
Procuramos uma imobiliária naquela região e
poucos dias depois a corretora me ligou dizendo que havia
encontrado uma casa para nós. Era véspera da assembleia,
então, marcamos a visita para a manhã seguinte, pois
aquele seria mesmo nosso caminho. Mas, ansiosos, não
esperamos nada, fomos à noite para ver a casa por fora. E
gostamos.
No dia seguinte, iniciamos as tratativas e aí fomos
conhecer o bairro. Entre outras coisas, reparamos em uma
linda área em reflorestamento. Sempre que passamos por
lá, digo para meu filho que aquelas árvores têm a idade
dele e que só cresceram mais do que ele porque não saem
do lugar. Ele já está até na escola e agora tem uma
irmãzinha, a Lídia. Nós temos dois pirralhos.

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Lídia e Felipe

Marcelino A. S. Pinheiro, 44 anos


Técnico em eletrônica

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Sete mudanças em três meses

O excesso de trabalho na máquina de costura me


trouxe problemas na coluna e nos braços, mas preciso
pagar a meu ex-marido a parte dele na minha casa. Ele
exigiu mais do que vale a casa; felizmente já paguei quase
tudo; tenho muito medo de perde-la. Vai ser uma vitória
conseguir a escritura.
Quando vim do Norte, morei na casa de uma irmã.
Comecei a trabalhar e logo encontrei este terreno; para dar
a entrada, vendi um relógio que tinha comprado no Recife
à prestação. Mudamos para a casa praticamente sem
condições de morar, não tinha nem banheiro.
Aos poucos, fui arrumando a casa. Meu marido não
queria gastar nada nela; a escada no quintal, um sobrinho
fez para mim, numa época em que ele estava de cama,
acidentado. Os meninos cresceram e me ajudaram nos
afazeres mais necessários, mas ainda faltam muitas coisas,
que vou fazer só depois que acabar de pagar meu ex-
marido.
Essa é minha primeira casa. Lá no Recife, com
meus pais, chegamos a mudar sete vezes em três meses.
Entrávamos numa casinha e logo víamos que não tinha
condições de ficar, e íamos para outra achando que era
melhorzinha e... tudo se repetia. Meus pais nunca tiveram
uma casa. Não tínhamos segurança.

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Madalena na sala de sua casa frente a foto dos dois filhos

Maria Madalena dos Santos, 55 anos


Costureira

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Suco de laranja

Não dou muita importância à casa, e sim à


companhia com quem se mora. A casa pode ser grande,
bonita, com piscina e a pessoa não ser feliz; ou, pode ser
simples, de dois cômodos e se viver muito bem.
Após minha separação, comprei uma casa e fui
morar sozinho; só usava dois dos três cômodos e a
garagem. No quintal, havia uma laranjeira carregada, eu
tomava suco de manhã e à noite. Tinha poucos móveis e
tudo era muito simples.
Naquela casa, vivi um desafio de vida, foi uma fase
que me marcou muito, pois aprendi a cuidar das minhas
coisas, fazer faxina, lavar roupa... foi muito bom. Eu
gostava também do bairro.
Vendi a casa para investir num negócio no interior,
que, aliás, não deu certo. Por tudo isso, me arrependo de
tê-la vendido, poderia ter contornado a situação, resolvido
de outro jeito. Sinto saudades dela e das laranjas.

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Auge da produção da única laranjeira do quintal

Jaime Trevisan Gomes, 50 anos


Comerciante

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Nada aos filhos

Nunca comprei uma casa. Desde que me casei


morei de aluguel e foram tantas as mudanças que me
parecem incontáveis. Eram casas espaçosas, bem
acabadas, em bairros de classe média. Algumas gostei
muito e outras não.
Eu já estava separada e meus filhos adultos quando
alugamos a casa que adorei.
Quando venceu o primeiro contrato, o proprietário
nos ofereceu a casa para compra, mas não tínhamos o
dinheiro e então saímos de lá. Um ano mais tarde, sem
conseguir vendê-la, ele nos alugou a casa de novo. Isso já
faz mais de 15 anos. Se eu tiver que deixá-la, vou sentir
muito, como se diz: “peguei amor a esta casa”.
Há quem questione o fato de eu não ter uma casa
própria. Meu marido dizia que não recebeu nada dos pais,
então não deixaria nada aos filhos. Certamente o imóvel
que poderíamos comprar seria inferior àqueles em que
morei durante toda a minha vida.
Dos meus quatro filhos, duas moças têm suas
casas; as duas, desde meninas, diziam que as comprariam
mesmo antes de ter um carro. E assim o fizeram. Os outros
dois nunca demonstraram esse desejo; moram comigo.

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A casa que amo como se fosse minha

Dirce Maria Fragoso, 75 anos


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Dona de casa

A um quarteirão

Perder minha casa me marcou profundamente. Eu a


tinha encontrado pela placa de venda. Levei a família,
todos adoraram; providenciei os papéis, acertei tudo.
Praticamente fui eu que comprei a casa.
Moramos lá por quatro anos e só então eu soube
que meu marido, na época, tinha pago apenas um terço do
financiamento de seis anos, além de não ter pago nenhum
imposto. Eu mesma atendi o oficial de justiça que trouxe a
notícia: tínhamos perdido a casa. Fui implorar, em vão,
aos vendedores que reconsiderassem. Meu marido
contratou um advogado às pressas, que nada pôde fazer.
O casamento, que já ia muito mal, acabou; fui
viver com outra pessoa e estamos juntos até hoje. Cheguei
a pensar que meu ex-marido tinha perdido a casa para que
eu saísse do casamento sem nada, mas ele nunca
confirmou essa minha suspeita.
Agora, depois de quase 30 anos, realizei meu
sonho: tenho uma casa de novo. Um conjunto residencial
bem arrumado, a guarita, o jardim... Enquanto o corretor
confirmava o preço, que estava dentro de nossas
condições, apertei o braço do meu marido: aquela seria a
nossa casa.
Olho à minha volta e quase não acredito que
consegui. O mais incrível é que morei em tantos lugares
distantes e voltei a residir a um quarteirão da casa que
perdi.

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O conjunto residencial a um quarteirão da antiga casa

Olinda Aparecida de Oliveira, 68 anos


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Dona de casa

Vida nova

Tínhamos pouco mais de um ano de casados.


Tentávamos a compra de um terreno quando a corretora
ofereceu uma casa que, mesmo com as facilidades de
pagamento, estava acima de nossas condições; ela insistiu
para que fôssemos conhece-la, não podia nos acompanhar
naquele momento, quase escurecia, então nos entregou a
chave e o endereço.
Quando olhei a casa, achei que era demais para
mim; aquilo não seria possível. Mas abri a porta como se a
casa fosse minha, nem errei a chave. Entrei escolhendo os
lugares dos móveis, das plantas... me senti morando lá.
Não contamos a ninguém. No dia seguinte,
acertamos a venda de um terreno lá do Norte para meu
cunhado, por telefone.
Oferecemos de entrada o dinheiro do terreno e o
carro que meu marido usava para o trabalho extra, e o
restante assumiríamos em parcelas. Tudo certo. Marcamos
o negócio para sábado à tarde.
Foi uma semana de intensa ansiedade; o Diógenes
mal conseguia dormir preocupado com a dívida que
assumiria. Cansado com o excesso de trabalho e tanta
ansiedade, na sexta-feira, durante o expediente na
empresa, cochilou e foi pego pelo encarregado. No sábado
pela manhã, recebemos por telegrama a notícia de que ele
tinha sido dispensado por justa causa.

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Choramos muito, mas não desistimos da compra.
Ele dizia que o difícil seria pagar no primeiro ano até a
situação se estabilizar; se conseguíssemos, o restante seria
mais fácil. E, se não desse para pagar no primeiro ano,
devolveríamos a casa ao dono.
Na hora marcada para nosso compromisso, eu
disse:
— Vamos lavar o rosto e vamos à imobiliária
fechar o negócio.
“Vocês estavam tão alegres, agora parecem
tristes, o que houve?” Disfarçamos. Quando o vendedor
me entregou as chaves, fiz a pose para a foto sorrindo. Era
dia 19 de dezembro de 2001. Desde então tudo deu muito
certo para nós. O fato de meu marido ter saído da empresa
só fez melhorar a nossa situação financeira.
Trabalhamos, as coisas se multiplicaram, quitamos
a casa antes do prazo previsto, compramos um carro e
fomos viajar para nossa terra natal. Estamos comprando
outro imóvel, não para morar porque gosto demais da
minha casa, mas para alugar.
Nossa casa foi e é uma benção, tudo o que fizemos,
do dia que a compramos para cá, deu certo. Foi uma
transformação em nossas vidas, como se tivessem nos
virado de cabeça para cima.

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Marli Germano Marques, 39 anos
Comerciante

Minha casa azul

Eu, Corretora de Imóveis, vendia muitas casas, e


pensava: “será que não vou vender uma casa para mim?”
Tinha chegado do Paraná havia pouco tempo e estava
morando num apartamento pequeno e num conjunto
habitacional do qual não gostava.
Fui conhecer uma casa para vender e senti que
seria minha. A casa era nos fundos e o terreno plano e
livre na frente, bem como imaginava minha casa azul (ela
ainda não era azul).
Sugeri ao vendedor que dividisse o terreno, pois
sabia que não teria condições de comprar tudo. Vendi
metade para o primeiro cliente a quem mostrei o imóvel.
Como eu não podia perder o outro lado, dei meus pulos,
peguei dinheiro emprestado, negociei e comprei.

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No intervalo entre querer e comprar, levei minha
mãe para ver a casa, depois meu marido e as crianças, e
todos gostaram.
Tudo deu tão certo, era mesmo a hora de eu
comprar, porque minha mãe ficou muito doente e teve que
deixar a casa dela por causa da escada. Minha casa serviu
a ela, infelizmente por pouco tempo, pois logo faleceu.
A casa tinha dois cômodos; na divisão do terreno, a
cozinha ficou na metade do vizinho, então eu cozinhava
embaixo do beiral da laje, do lado de fora, sob uma
cobertura improvisada; depois, levava as panelas para
dentro para as refeições. Tinha tudo por fazer, mas era tão
gostoso...
Construímos, reformamos, arrumamos... ficou
muito boa. Meu marido e meus filhos não gostam que eu
fale em vendê-la. Até a nenê, minha netinha, quando vai a
outras casas, logo pede a casa dela.
Minha casa é tudo de bom, porém sinto que não
vou morar muito tempo nela, pois vou ter outra.

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Elisabete Dimitropoulus, 42 anos
Corretora de imóveis

A casa certa no lugar errado

Eu pensava em morar em uma fazenda. Na minha


adolescência, trabalhei muito no sítio dos meus pais, a
poucos quilômetros de casa, onde havia horta, muitas
frutas, animais...
32
Quando me casei, morei numa casa confortável e
modesta do meu pai por alguns anos, depois comprei um
terreno num bairro novo e com boas perspectivas de
valorização.
Assim que comecei a construir a casa, começaram
também minhas tentativas de comprar os terrenos
vizinhos. Não foi fácil comprar o que não estava à venda,
cheguei a pagar o dobro do preço por um dos terrenos.
O terreno central comportava a casa, a piscina e a
edícula; o da direita, um jardim, o da esquerda, o pomar, e
o dos fundos, a horta e o canil para três cães, de que eu
gostava muito. Um empregado cuidava das plantas e da
piscina diariamente, mantinha tudo impecável.
Nos fins de semana, eu nem queria sair, ficava pelo
quintal... Tinha minha faquinha lá no pomar para
descascar as frutas. À tarde, ficava na rede coberta por um
caramanchão, olhando a serra que tinha um verde muito
bonito, sentindo o ar puro. Fui muito feliz naquela casa,
recebíamos familiares e amigos, os amigos de meus filhos,
tudo era muito bom.
Em 20 anos, o bairro se deteriorou, conjuntos
habitacionais para pessoas de baixa renda, invasões na
serra...

A casa muito vistosa chamava a atenção das


pessoas que transitavam pela rua, que deixou de ser uma
rua tranquila.
Com os filhos casados, minha esposa e eu
decidimos morar num condomínio, numa casa menor, com
todo conforto e segurança, portanto, não restava
alternativa senão vender a casa.

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Fiz um excelente negócio com proprietários de
uma escola, o valor expressivo certamente pagou o que
valia o imóvel; mas senti muito, muito mesmo em deixar
tudo aquilo.
Nestes dez anos, evitei passar naquela rua.
Recentemente, passei e senti pena de ver tudo modificado,
sem cuidado, um toldo enorme e feio na frente da sala, um
ferro por cima da jardineira; fiquei triste em ver como
acabaram com tudo aquilo que fiz.

Silvestre Lopes Moço Neto, 71 anos


Advogado

Agradeço a Santo Expedito a graça alcançada

Nossa casa tinha problemas na estrutura, tinha


infiltrações, rachaduras... Eram tão sérios que, logo que a
vendemos, foi demolida. Meus pais já estavam separados e
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precisávamos acomodar a situação. Quando meu irmão
sugeriu a venda da casa, achei que encontraríamos
dificuldades devido a sua má conservação, além dos
problemas de documentação. Mas em uma semana
apareceu o comprador.
Rapidamente a corretora me chamou para conhecer
uma casa, fui acompanhada de um primo. Não era uma
casa qualquer, era “a” casa, maravilhosa! Tudo em ordem:
as instalações, a pintura, os pisos, o abrigo do gás... Todos
os detalhes, tudo perfeito. Nos fundos do quintal, um
pomar que eu adorei.
Quando entrei, vi um quadro de paisagem na
parede da sala que era idêntico ao meu. Naquele instante,
senti que aquela seria minha casa. Brinquei com a dona
dizendo que daria meu quadro a ela, assim não precisaria
tirá-lo do lugar. Na mudança, ela levou o dela e eu
pendurei o meu naquele mesmo lugar, que já era dele.
A graça foi tão grande que coloquei no portão uma
faixa em agradecimento ao protetor das causas
impossíveis, Santo Expedito. Dois anos se passaram e de
lá para cá nossa vida só tem melhorado. Essa casa fez
muito bem para todos nós.

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Kely poucos dias após a compra da casa

Kely Nogueira, 26 anos


Auxiliar administrativa

O valor e o preço pago pelo imóvel

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O corretor lida com sentimentos, não apenas com
coisas palpáveis, e muitos não percebem isso. Às vezes,
para o corretor, a venda de um imóvel é mais uma entre
tantas, para o cliente é um momento especial que o
acompanhará a vida toda. A qualquer tempo, basta tocar
no assunto e as emoções voltam como no dia em que
ocorreu a negociação.
Cabe ao corretor gerenciar a negociação para que
tudo ocorra bem e não haja divergências entre o(a)
vendedor(a) e o(a) comprador(a). Uma contrariedade neste
momento pode gerar uma ferida na alma da pessoa, e
então a imagem do corretor ficará marcada negativamente
na sua lembrança para sempre. Em casos assim é melhor
não fazer o negócio.
Há pessoas que choram quando compram um
imóvel. Lágrimas são resultados de sentimentos
profundos. Só a pessoa sabe o preço que pagou pelo
imóvel, quanto esforço, quanta coisa envolvida, o quanto
teve que aguentar do chefe... O corretor sabe o valor, mas
não o preço.
Fiz um negócio para uma senhora que era uma
pessoa muito simples; ela ficou felicíssima e dias depois
me trouxe um bolo de fubá. Achei lindo aquilo. Foi um
gesto de gratidão. Intermediei uma venda para uma jovem,
ajudei-a a vender uma perua Kombi antiga para interar o
dinheiro da entrada, negociei com o vendedor as parcelas
e, conseguimos fazer o negócio. Passado algum tempo,
encontrei a mãe dela na rua; ela me abraçou e me
apresentou à pessoa que a acompanhava dizendo que eu
era para ela como um filho. Emocionei-me.

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Há corretor que não se dá conta de que faz parte de
um momento mágico no qual as pessoas vão levar na
alma. E a alma é eterna.

Mizael em seu escritório “Sonho Real Imóveis”

Mizael Tiofilo Pereira, 52 anos


Corretor de Imóveis

38
Parece milagre

Meu intento era criar bem meus filhos, dar uma


boa educação para que tivessem condições de ter suas
coisas, principalmente uma casa própria. Eu ganhava
pouco; para comprar um terreno e construir uma casa,
sacrificaria a educação deles, então morava de aluguel.
Numa fase difícil, com as crianças pequenas,
tivemos que morar com minha sogra, que foi muito boa
para nós. Era uma pessoa maravilhosa, mas mesmo assim
não me sentia muito à vontade em sua casa; quando as
coisas melhoraram, aluguei a minha própria. Sempre
moramos de aluguel.
Meus filhos cresceram e primeiro minha filha
comprou uma casa, depois a outra fez a mesma coisa e
depois o rapaz; todos têm suas casas. Isso foi minha
vitória, minha realização. Era o que eu mais queria.
Só então comprei um terreno, financiado, com a
intenção de construir a casa aos poucos. Fiz o orçamento
para a construção da garagem e comecei a obra. As coisas
foram indo bem e não precisei parar; fui construindo,
construindo e em nove meses a casa estava pronta. Tenho
isso como um milagre porque não sei como consegui. Não
tinha condições financeiras para fazer a casa em tão pouco
tempo, mas fiz.
Foi tão rápido que custei acreditar: olhava em volta
e pensava “puxa! Estou morando na minha casa”. O lugar
é sossegado, muito confortável. Nem que me oferecessem
mais do que vale a venderia. É muito bom ter a própria
casa.
39
Josias da Cunha, 57 anos
Comerciante
40
Nota 1000

Minha casa não é de luxo, não tem nada de


moderno, no entanto, é muito acolhedora. Procuramos
manter tudo sempre limpo e em ordem; quando alguma
coisa se quebra, logo consertamos, quando precisa de
pintura, logo fazemos... A casa é velha, foi herança do
meu sogro para os dois filhos e, quando meu cunhado a
comprou dele, doou sua parte para meu marido: não teve
briga nem pagamento, ele fez isso para o irmão porque
moramos aqui e fizemos benfeitorias.
Criei todos os meus quatro filhos nesta casa. Meu
marido e eu já fizemos bodas de ouro de uma união feliz.
Demos o exemplo para nossos filhos e eles acolheram,
pois nenhum deles se separou, estão casados há 19, 23, 27
e 31 anos. O catolicismo foi muito importante na formação
deles. Se todos se doassem mais à religião, não haveria
tanta separação. Eu sempre fui católica praticante, meus
pais e sogros também. Nossos filhos seguiram nosso
exemplo como seguimos o de nossos pais.
Graças a Deus tenho uma família maravilhosa,
muito unida, sei que sempre que precisar posso contar com
eles; são “nota mil”. Aos domingos, nos reunimos para
tomar café na casa de um ou de outro. Quando há alguma
comemoração, nos reunimos na casa deles, porque há mais
espaço e ficamos mais à vontade. Todos têm suas casas e
cuidam bem delas.
Já pensei em morar numa casa mais nova, aqui é
preciso reformar, é que ainda não deu. Também porque
meu marido gosta muito dessa casa, o lugar é muito bom,
os vizinhos, excelentes, tudo ótimo, tirando os cupins.

41
Dona Assunta e Sr. Gentil

Assunta Baraldi Bertolini, 73 anos


Dona de casa

42
Não aceitaria o dinheiro

Eu imaginava uma casa bonita e extremamente


confortável, com três quartos grandes, garagens para três
carros, a lavanderia sendo uma extensão da cozinha... Meu
marido tentava tirar isso da minha cabeça, dizendo que
não íamos conseguir.
Nosso apartamento estava quitado. Eu queria uma
casa e sempre pensava: “só saio do apartamento se
encontrar uma casa deste jeito”.
Por mais de um ano procurei, passei por muitas
imobiliárias e ia descartando os imóveis sem comentar
com meu marido.
— Vou mostrar uma casa um pouco acima do valor
que você procura, mas vale a pena ver.
A corretora insistiu. Era aquela. Embora a casa
precisasse de reforma, era o que eu queria. Evitei que a
corretora percebesse meu entusiasmo, afinal estava acima
do valor que eu possuía e poderia não dar certo.
Não esperei que meu marido chegasse em casa,
telefonei:
— Acho que encontrei a nossa casa.
Ele, que fazia questão mais da localização que da
casa, gostou muito. Tudo se encaixava, a facilidade da
escola das crianças, a proximidade do comércio, tudo.
O valor que excedia nossas posses a corretora
negociou facilmente com o vendedor. A casa tinha que ser
nossa e veio como um presente.

43
A reforma durou algum tempo e tive que abrir mão
de muitas coisas, como trocar de carro, os passeios,
viagens... Mas valeu muito a pena, faria tudo de novo.
Se alguém me oferecesse um dinheiro:
— Este dinheiro é para você mudar o que quiser na
sua casa.
Eu não aceitaria porque não teria nada para mudar.
É por dentro e por fora tudo como eu queria.
Acho interessante como superamos os obstáculos
para conseguir algo que está além do que se pode.

Amarílis na parte externa de sua casa

Amarílis Milan Machado, 40 anos


Dona de casa

44
Aprendi a me dedicar mais às pessoas que às
coisas

Minha casa atende a todas as nossas necessidades:


meus filhos, meu sogro, todos têm seu ambiente, um não
incomoda o outro. Não foi sempre assim, quando meu
marido a recebeu de herança, era velha e inadequada. Sem
que a abandonássemos, driblando os inconvenientes
trazidos pela reforma, fizemos dela nossa identidade.
A localização é excelente, como também os
vizinhos. Se não fosse o fato de ter ganho uma casa dos
meus pais, a decisão de deixá-la por uma com menos
escadas, poderia até acontecer, mas seria bem mais tarde.
Os meninos querem mudar, porém, há horas em
que o coração pede para não ir — mãe, vamos deixar
nossa casa? Dizia um dos filhos. Meu marido morava aqui
com os pais quando solteiro, tem apego a ela. Meu sogro é
mais desprendido, acho que não terá dificuldade em se
adaptar. Já eu não me importo muito com a casa, aprendi
com a vida a me dedicar mais às pessoas que às coisas. Se
o tapete não combina com o sofá, não me importo, me
importo com o conforto e a funcionalidade da casa. É
importante despender mais tempo para a família; existem
outros prazeres como viajar, passear, trabalhar, estudar...
Vamos ver como vai ser a adaptação, há o fator da
distância do nosso trabalho, do colégio, da faculdade dos
meninos... Nossa casa ficará fechada por seis meses para
vermos o que acontece. Esse é um período de transição.
Sem dúvida, o que vai prevalecer na decisão da
escolha da casa são os nossos filhos, pois crescem e a
gente pensa em dar um suporte a eles. A casa nova, além
45
da proximidade com meus pais, que eles adoram, oferece
segurança e assim terão maior liberdade. O fator decisivo
na escolha da casa é o ideal da família.

Por algum tempo, fechada.

Heloisa Regina Gomez, 44 anos


Advogada

46
O trânsito e o rodoanel

De quem nasceu a ideia da gente se mudar para o


condomínio onde mora minha avó? Acho que a ideia foi
dela mesma. Foi bom. Lá no condomínio posso ir a pé à
casa dela e a dos meus primos e posso andar de bicicleta
na rua. Gosto do meu quarto, é um pouco menor do que o
da outra casa, mas é mais bem-arrumado.
O melhor de ter mudado para essa minha “casinha”
é que, para eu trabalhar e ir à casa da bisa e à minha mãe,
não pegamos o trânsito infernal da cidade, vamos pelo
rodoanel, que é rapidinho.
Agora vai ter pedágio no rodoanel, é necessário
para arrecadar recursos para as obras dos outros trechos.
Não vai ser muito caro e, só de não ter que pegar o trânsito
cada dia pior da cidade, compensa pagar o pedágio.
O meu pai reclama do trânsito, meu irmão, não sei
por quê, não reclama, não.

Nossa outra casa foi alugada e, quando terminar o


contrato, minha mãe vai alugar para outro cliente, porque
ninguém mais quer voltar a morar lá. Meu avô, paterno,
reclamava que aqui a padaria era longe, agora se
acostumou. Gosto muito desta casa e é bem perto de onde
meus primos e minha avó moram, que adoro.

47
Diego Lopes Gomez, 21 anos
Auxiliar de Escritório

48
Minhas orações atendidas

Eu pagava aluguel e o que me preocupava era


chegar à velhice sem condições de trabalhar e sem ter
onde morar. Como eu ia fazer? Tantas pessoas moram na
rua, em barracos; tinha medo de que acontecesse isso
comigo. Queria uma casa do jeito que eu pudesse ter, não
precisava ser grande nem bonita, não queria luxo.
Fiquei viúvo. Estava no meu segundo casamento
quando consegui comprar um terreno bom e construir
minha casa, que é tudo para mim. Aposentei-me com o
salário mínimo, assim como minha mulher também o fez.
Mas a casa é nossa. Não quero fazer mais nada, está muito
bom. A cozinha é azulejada, tem uma salinha gostosa, um
quartão com minha TV, a garagem para meu carrinho, a
varanda com uma vista muito bonita, o que quero mais?
Tem pessoa que gosta de ficar para a rua, no
futebol... Prefiro ficar em casa. Está chovendo lá fora e
estou quietinho no meu canto... e não tenho ninguém na
minha porta cobrando aluguel, graças a Deus, vivo
sossegado.

49
João Vicente Barbosa, 68 anos
Motorista aposentado

50
A casa é a estabilidade da gente

Sempre quis ter uma casa boa e com todo o


acabamento. Quando era criança, morava em uma muito
simples, num sítio; tinha todo o necessário, mas não era
casa em que a gente quisesse viver pelo resto da vida.
Construí uma casa que não consegui terminar, a
vendi e comprei um terreno onde fiz outras duas. Lá
moram minha mãe, que pagava aluguel, e meus três filhos
com minha ex-mulher do meu primeiro casamento, no
qual tínhamos uma convivência tumultuada, então me
separei, mas deixei-os com a estabilidade da casa própria.
Com minha segunda mulher, morei um tempo
pagando aluguel. Embora com o relacionamento muito
tranquilo e em casas boas, vivia incomodado. Não podia
viver bem numa casa que não fosse minha. Moramos na
casa de um irmão meu; não pagava aluguel, reboquei e a
pintei, arrumei algumas coisas, mas não tinha liberdade de
fazer o que eu quisesse. A casa era dele, não minha.
Até que encontramos uma casa “pobrinha”,
pequena e sem acabamento, o terreno com excesso de terra
e mato. Compramos e logo nos mudamos. Minha mulher
se dedicou muito e até sofreu porque todo o período de
gravidez e do nascimento da nossa filhinha foi em meio à
construção, com muita poeira.
Trabalhei com vontade e muita garra nesta casa.
Lutei com gosto e consegui tudo do jeito que queria.
Valeu a pena! Entro em casa e me sinto um... rei.

51
A esposa, Lourdes, José e a filhinha Jamilly.

José Alves de Souza, 55 anos


Auxiliar Técnico

52
Meu céu

Quem sabe um dia compro uma casa para mim,


seria bom. Mas só se sobrar dinheiro. Já morei em tantos
lugares... de uns gostei, de outros não, e sempre pagando
aluguel, isso não me incomoda. O que quero, é ter minha
liberdade, chegar e sair nos horários que desejar, fazer
meu jantar na hora que quiser...
Cheguei a construir uma casa no terreno da minha
tia; tínhamos um acordo: ela, já idosa e vivendo sozinha,
teria minha companhia e eu pouparia o dinheiro do
aluguel. Não deu certo, me arrependi amargamente. Perdi
o que mais me importa na vida: minha liberdade.
Fui à imobiliária para realugar a casa que entregara
há poucos meses. Ela tinha passado por uma reforma e um
pretendente a inquilino já tinha se manifestado, mas eu,
pedi: “devolvam meu céu”, e mereci a preferência.
Agora eu e meu sobrinho-filho, que crio desde que
nasceu, estamos felizes, perto do meu trabalho e da escola
dele, de volta à nossa vizinhança; além de tudo isso a casa
reformada ficou ótima. Não quero mais nada.

53
Geraldo Viana da Silva, 55 anos
Auxiliar Químico aposentado

54
Desapegado

Quero morar sempre numa casa legal. Não tenho


amor ao imóvel, e sim satisfação de estar nele. Atualmente
moro numa casa perfeita. Tem tudo que minha família
precisa. Meu filho pode andar de bicicleta à vontade pelas
ruas do condomínio. No entanto, se alguém me pergunta:
— Você não sai mais daqui, não é?
— Não sei, se aparecer um negócio melhor, vamos
fazer. O importante é estar bem e para isso não existe um
limite determinado.
Eu morava num apartamento pequeno, de conjunto
habitacional popular. Assim que comecei a conquistar
condições melhores de trabalho, busquei moradias
melhores.
Comprei uma casa bonita e confortável, mas num
bairro onde não podia ter nada além de um carro simples,
pois não havia segurança. Comprei outra, em outro lugar,
onde moramos felizes por dois anos; apareceu outra e
depois outra, na qual estávamos muito bem. Até que, num
sábado, acordei pensando que poderia tentar comprar uma
casa num condomínio.
Ainda pela manhã, liguei para a imobiliária. Em
poucos dias, estava comprando esta aqui. Estamos muito
bem, mas se aparecer um negócio bom...
Eu me guio pelos corretores, porque eles tendem a
facilitar ao máximo a negociação entre vendedor e
comprador. Se, ainda assim, houver muita dificuldade num
negócio, algo pode não estar sendo favorável, então,
desisto. Senão, vamos em frente.
55
Lúcio Flávio Baúte, 40 anos
Diretor de Licenciamento

56
A casa invertida

Minha casa era na Síria. Como todas as casas da


região, ela era invertida, ou seja, construída com as janelas
e portas voltadas para o meio, onde havia o jardim com
um chafariz, que tinha a função de manter a umidade do
ar. O calor era tão intenso que as pessoas dormiam em
tendas em cima das casas.
A cidade era cercada por um muro que tinha várias
portas. Minha casa ficava próxima da bab touma (“bab”,
que é porta, e “touma”, que é o nome de uma pessoa), a
cem metros do lugar conhecido como a Janela de São
Paulo, que, segundo uma passagem bíblica, Paulo, por
defender Cristo, foi perseguido pelos judeus e, na fuga,
pulou o muro neste local. Muitos turistas iam até lá. Era na
parte antiga da cidade de Damasco, que é preservada até
hoje.
Minha casa tinha um padrão médio, acomodações
amplas, o porão... Quando estourou a guerra de Israel, em
1947, tocava uma sirene para avisar dos bombardeios. As
pessoas corriam para se abrigar no porão e eu, garoto,
corria para cima da casa e ficava frustrado porque minha
mãe me tirava de lá e não me deixava ver a fumaça dos
aviões.
Aqui no Brasil, formei-me engenheiro e quis
construir uma casa como aquela, mas as normas de
edificação não permitiam para o tamanho do terreno que
eu tinha. Então mantive algumas semelhanças: as portas e
janelas voltadas para a piscina e um pequeno bosque.
Tenho vontade de construir uma casa exatamente como
aquela, mas agora estou com muita idade, não dá mais.
57
Casa tradicional Síria muito semelhante à do Sr. Assad

Mohamed Assad, 68 anos


Engenheiro aposentado

58
A casa do sítio

Compramos o sítio, há quase 60 anos. Eram apenas


três casas na vizinhança. Havia pedras enormes na estrada,
que foram tiradas com dinamite, e, em dias de chuva,
precisávamos usar correntes nas rodas do carro. Nossa
festa de São Pedro durava a noite toda, vinham pessoas da
cidade, o padre rezava missa na capelinha do sítio; tinha
fogueira, balões, bandeirinhas de papel... No Natal,
enfeitávamos os pinheiros com luzes movidas pelo
gerador. Era muito bonito! Em meio a toda aquela
escuridão, nossa casa parecia um navio em alto mar.
Não morávamos na casa do sítio, mas vínhamos
com tanta frequência que sempre considerei mais lá do
que a casa da cidade. Hoje me doeu muito retirar a mobília
e entregar as chaves. Vendi porque, depois que meu
companheiro faleceu, tudo ficou abandonado, além de que,
precisei de dinheiro. Sinto muito.

59
O sítio no dia da entrega ao novo proprietário

Yvone Silva, 84 anos


Dona de casa

60
A vida é um conto que se conta*

O Dito arrumava serviços e não parava muito num


lugar, mudávamos de um lado para outro. Em todo lugar
que morávamos, eu criava cabrito, cabra de leite, porco,
galinha... e, quando mudava, dava para os outros, perdia
tudo. Moramos oito anos nas terras de um japonês, um
homem muito bom, e a casa era boa, de tijolo. Até que o
Dito começou a falar que queria trabalhar por conta e
entregou o serviço.
A mudança foi de caminhão e levamos os animais.
Mas, quando paramos numa cidade e tiramos o caixote, as
galinhas escaparam. As pessoas corriam atrás delas.
Pensei: “Meu Deus! Que vida!”.
Chegamos à fazenda e não tínhamos como entrar
na casa de tanta pulga, elas pareciam voar na gente. Não
tínhamos onde ficar, iríamos ficar no mato. Então, fomos
do outro lado da colônia, onde havia uma casa velha
abandonada, e passamos lá a noite.
No outro dia, fui fazer café e a água era suja. Para
fazer a comida para as crianças, antes precisei limpar o
poço. Era tanta sujeira naquele poço, como eu nunca tinha
visto. Fui limpando, limpando até que começou a vir água
limpa, uma água boa. Arrumamos tudo e plantamos milho,
algodão... Ficamos lá menos de dois anos e mais uma vez
deixamos tudo para trás. Meu sofrimento era querer ter
minha casa e não conseguir.
Quando o Dito morreu, meu filho mais velho tinha
19 anos e o mais novo, um ano e pouco. Foi um tempo

61
difícil, trabalhei muito na enxada, por dias, abri mata com
machado, com foice, furei poço...
Pouco tempo depois, viemos para esta cidade e
moramos de aluguel. Cansada de viver mudando de casa,
depois de pedir a Deus um caminho, comprei um terreno.
Era só mato. Chamei um rapaz para me ajudar e eu
ia com a foice e ele com o machado. Fiz um quartinho e
trouxe minha família. Era tudo longe, não tinha condução,
eu andava muito – mas eu era nova, tinha sessenta e
poucos anos. Furei um poço que, com três metros, deu
água muito boa, e todos usavam. Vinha gente de longe, de
carro, de caminhãozinho, buscar água. Daí meu filho pôs
uma bomba.
Aos poucos, construí o restante da casa. E ficou
muito boa. Só acho pequena no dia do meu aniversário,
Dia das Mães, Natal... quando vêm os netos, os bisnetos e
tataranetos, todos de uma vez. Não cabe todo mundo,
então, fica um pouco no quintal, depois saem uns e entram
outros. É uma alegria para mim, ver minha casa cheia.

Maria do Rosário Inácio,96 anos


Dona de casa

62
Bela e egoísta*

Você se lembra do brinquedo Forte Apache? Para


acompanhar esta história, dispense os homenzinhos e
pense apenas nas quatro peças que, unidas, formam as
paredes externas do forte, uma espécie de cercadinho. Essa
é a estrutura básica de uma casa, ainda em construção, que
visitei com um amigo. Nessa casa, o cercadinho tem uns
cinco metros de altura.
Visualize: a construção fica no meio de um terreno
plano. Quartos, salas, banheiros estão encostados em duas
laterais internas, formando um “L” e deixando um pátio
interno descoberto, parecido com o encontrado em
conventos antigos.
Entre as paredes da casa e os muros de divisa, será
plantada uma estreita floresta. O pátio interno será um
espaço aconchegante, com piscina e deque dando vista
para a vegetação. Não haverá nenhuma interferência
externa, apenas o céu azul.
Meu amigo comenta: “será uma bela casa, mas...
egoísta. Guardando para si toda a sua vida. Ao longo da
calçada, seu muro cego, quem passar pela rua não saberá
se a família está reunida, jamais verá a janela acesa do
filho que estuda até a madrugada; os vizinhos apenas
ouvirão o “tchibum” de alguém mergulhando na piscina
invisível”. Concordo.
Essas casas egoístas estão cada vez mais presentes
na paisagem da cidade. Triste é quando se encontram
vizinhas uma à outra: nesses casos passear na calçada se
torna entediante.
63
Anos atrás, o escritor Isaac Asimov fez um
comentário divertido: “se um extraterrestre chegando à
Terra parasse a nave espacial sobre uma cidade moderna, é
possível que sua primeira impressão fosse a de que os
habitantes do lugar são os carros, e os homens, seus
alimentos”.
Poderíamos completar: e as casas egoístas, suas
moradias.

Brinquedo Forte Apache*

Rogério Marcondes, 39 anos

64
Arquiteto

50 m²

Minha sorte foi ter alugado este flat, onde fiz


amizades com os funcionários e os vizinhos; a
administração do prédio também é ótima. De início seria
uma locação temporária porque não sabia bem onde
moraria, mas agora pretendo continuar aqui.
Tenho uma casa confortável, num condomínio
muito valorizado, projetado pela minha filha, que é
arquiteta, segundo os desejos da mãe. No final da
construção, precisei vender um apartamento para fazer o
acabamento, o que valeu a pena, pois desfrutamos da casa
por oito anos.
Estive doente por um bom período e minha esposa
cuidou de mim. Quando estava quase que totalmente
recuperado, ela faleceu de repente, nem sequer tive tempo
de socorrê-la. Isso faz três anos, dois meses e vinte e um
dias. Quando acordo, somo mais um dia sem ela.
Não consegui ficar naquela casa sem minha
companheira de 53 anos de casamento. Morar com os
filhos não deu certo, eu me sentia um intruso e um
estranho na casa deles. Não aguentei, saí sem saber para
aonde ia e cheguei a este prédio, que já conhecia, pois há
algum tempo tive dois apartamentos no prédio vizinho.
A funcionária da administração me conhecia de
longa data e me ajudou. Telefonou ao proprietário e me
alugou de pronto este apartamento que tinha acabado de
desocupar. Da recepção fui para o apartamento sem voltar
para a casa do meu filho, que depois trouxe meus
pertences.
65
Adaptei-me bem: durante o dia, saio para vender
perfumes, isso me ocupa o tempo. À noite penso na minha
esposa e como era a vida na nossa casa, que hoje está
alugada, aliás, para um inquilino que não cuida dela como
deveria.
Dentro do possível estou muito bem, aqui tenho
todo o conforto, a limpeza diária do apartamento, as
roupas limpas e passadas, as refeições... embora seja muito
triste morar sozinho.

Carlos Araújo, 74 anos


Vendedor
66
Voo maior

Moro com meus pais e minha irmã. Temos total


liberdade, nossos pais nos aconselham, mas sempre
deixam nossas decisões por nossa conta. Mesmo assim,
minha irmã está construindo a casa dela e estou
procurando uma para comprar. É que chega uma hora em
que queremos conquistar nossa casa, ter nosso espaço.
Afinal, o que motiva a vida da gente são nossos objetivos,
como estudar, trabalhar, viajar, comprar um carro...
E assim foi comigo, fui conquistando meus
objetivos e almejando outros. Agora almejo um voo maior,
quero ter minha casa, uma conquista minha, quero ver o
fruto do meu trabalho.

67
Kátia Katsuragi, 36 anos
Comerciante
68
O efeito e a causa

Há muitos anos venho exercendo, como atividade


paralela ao comércio, a compra e venda de imóveis.
Embora, frequentemente, o retorno financeiro seja menor
que qualquer aplicação bancária e haja ainda o risco da
inadimplência, continuo financiando imóveis. O principal
motivo é a satisfação que sinto em proporcionar às pessoas
condições de terem suas casas. Afinal todos têm esse
direito.
Sei que é uma conquista bastante importante.
Lembro-me de uma jovem que assim que assinou o
contrato pediu um copo com água. Estava trêmula e me
agradeceu emocionada por eu financiar a casa; ela
realizava seu grande sonho. Isso me marcou
profundamente.
Na minha infância, não tive as coisas que desejei
porque ninguém me dava. Minha bicicleta eu mesmo que
comprei e demorou muito para conseguir; era usada e
paguei à vista. Percebi, então, que ter as coisas dependia
de mim. Acredito que esse fato me motive a continuar
fazendo com que algumas pessoas consigam ter suas casas
por elas mesmas, pagando de acordo com suas condições,
sem depender dos outros.
Particularmente não me incomodo em pagar
aluguel na casa onde moro, não tenho pretensão de ter
uma casa grande, linda e com piscina, nada disso. O que
me importa é me sentir bem.

69
Jaime Trevisan Gomes, 50 anos
Comerciante

70
Um sonho e nove casas

Vim do Norte com oito filhos pequenos e um na


barriga, e com um grande sonho: dar a cada um deles uma
casa. Paguei aluguel e na primeira oportunidade comprei
um barraco numa favela. Trabalhei sem parar, a fome não
espera nada.
Lá moramos por uns 20 anos. Daí uma filha se
casou, construiu sua casa e levou os irmãos com ela.
Fiquei no barraco até vender. Com o dinheiro da venda do
barraco e da Brasília do meu filho mais velho, compramos
o terreno do lado da casa da minha filha.
Quando íamos cobrir a minha casa, surgiu à venda
o terreno em frente. Pegamos o dinheiro destinado à
compra da laje e todas as economias e compramos aquele
terreno para o outro filho. Levamos mais de um ano para
comprar a laje da minha casa. E mais uns seis anos para
construir para o outro filho e depois para o outro e para o
outro...
Hoje meus oito filhos têm suas casas. O mais novo,
aquele que veio do Norte na minha barriga, morreu com
18 anos num acidente, do qual nunca me esqueço. Os
outros todos vivem pertinho de mim na mesma rua, só
uma filha mora noutra vila, mas mesmo assim é bem perto
daqui.
Não pude dar uma casa para cada um deles, como
era meu sonho, mas ajudei todos a conseguir. Ficava com
o pagamento de cada um e só dava o dinheiro da
condução. Eu tinha dó deles irem trabalhar com o dinheiro
71
contadinho, mas precisava economizar. Não me arrependo
de nada, porque tudo valeu a pena.
Agradeço à favela onde morei, por dois motivos: lá
criei meus filhos e todos são trabalhadores, estão bem
empregados, têm suas famílias... e porque foi com a venda
do barraco que consegui meu terreno e a minha casa, que é
do jeito que imaginava.
Sou realizada: tenho dez netos, um bisneto e vem
vindo mais um neto e outro bisneto. Meus filhos cuidam
de mim. Há anos não me deixam mais trabalhar fora.
Todos têm suas casas, com a documentação toda em
ordem, e isso é muito, muito, muito importante. Pois você
sabe que ninguém vai tirar você dali.

Eunice Felix Anacleto, 63 anos

72
Dona de casa

A grande casa pequena

Moro na casa da minha avó, a mãe da minha mãe.


A casa é bonita e grande. Tem um quintal na frente, o
corredor e, nos fundos, outro quintal e a casa da minha tia.
Minha mãe, meus dois irmãos e eu – estas quatro pessoas
– dormimos no mesmo quarto. Queria ter um quarto só
para mim, com guarda-roupa, minha cama e brinquedos.
Como não dá, assim mesmo está bom.
Adoro a sala; quando chego da escola, deito no
sofá para descansar até a hora de buscar o Richard, meu
irmão caçula, na escola. À tarde vou brincar no quintal; o
Yuri, meu irmão mais velho, e também o Richard brincam
mais na rua.
Gosto da casa do meu avô paterno, mas não para
morar; gosto de ir lá conversar com ele, com meu pai e
também com a Gisele, a sua nova mulher. Converso
também muito com a Socorro, que é mulher do meu tio.
Para morar, gosto mesmo desta casa aqui, que é tão boa
que não quero ter outra não.

73
Ingrid e os irmãos Yuri e Richard (foto de três anos atrás).

74
Ingrid Silva de Jesus, 10 anos
Estudante

O trabalho nem parecia pesado

Nasci e cresci nesta casa. O terreno bem grande


comportou quatro casas; meu pai veio construindo lá dos
fundos, e nós, os filhos, o ajudavam. O trabalho pesado
dava muita fome, e minha mãe fazia aquelas paneladas de
comida, era uma delícia. Nosso vizinho dizia que eu
trabalhava como homem.
Quando me casei, fui morar na casa do meu sogro
e sentia falta da minha casa. Logo, meu pai, que gostava
muito do meu marido, ajeitou uma das casas para nós. Ele
dizia que, se um dia precisasse morar com um dos filhos,
seria comigo.
Faleceu muito novo, foi uma perda irreparável.
Minha mãe viveu mais alguns anos, sempre morando aqui
com a gente. Nesta casa criei meus quatro filhos. Uma
vez, cismamos de morar na nossa chácara, foi um
tormento, não me acostumei, os meninos não queriam
ficar lá. Pedi emprestada uma casa da vizinha, que já era
minha amiga, voltei, e fiquei esperando até o inquilino
desocupar minha casa.
Um tempo atrás, meu irmão quis vendê-la. Não me
opus porque, afinal, ele também é herdeiro. Se fosse da
vontade de Deus, eu aceitaria. Durante mais de um ano as
imobiliárias tentaram vender e não apareceu nenhum
negócio. Daí desistimos.

75
As casas são simples, às duas dos fundos até
desmanchamos, mas é muito bom morar aqui. Tive loja
aqui do lado por mais de 30 anos, conheço todo mundo e
todos me conhecem.

Aparecida Luzia Serrano de Lima, 60 anos


76
Comerciante aposentada

Meu xodó

Nunca trabalhei fora, meu marido viajava a


serviço, o salário dele não era muito e então eu precisava
administrar bem a casa, economizar. Hoje ele diz que
administrei bem. Viemos do interior, recém-casados, com
as roupas do corpo e algumas dívidas. Criamos bem
nossos dois filhos; temos quatro casas das cinco que
construímos, só vendemos a primeira.
O primeiro terreno compramos à prestação e a
entrada foi paga com o dinheiro do auxílio à maternidade.
Construímos a casa com ajuda dos colegas dele da firma e
alguns parentes. Porque não tínhamos como pagar.

Aquela casa de quarto e cozinha sem acabamento


foi uma alegria muito grande, era uma conquista nossa.
Aos poucos fomos arrumando, aumentando, ficou muito
boa. Quatorze anos mais tarde, uma oportunidade, e
compramos outro terreno com uma localização muito
superior. Não hesitamos em vender aquela, que eu pensava
que seria minha única casa, para construir a outra. Dela
ficaram as lembranças.
A segunda construção foi uma tranquilidade, tudo
do meu gosto, uma casa espaçosa, com bom acabamento,
o quintal... uma maravilha. Tanto que tenho por essa casa
um carinho especial.
77
Depois dela construímos outras três, todas bem
arrumadas, mas ela continua sendo a minha preferida. Só
me desfaço dela se for por uma grande necessidade de um
dos meus filhos, porque eles estão acima de tudo, do
contrário não me desfaço dela nunca.

A casa onde meus filhos nasceram.

78
Minha segunda casa, meu xodó.
Doria Lopes Pereira, 61 anos
Dona de casa

Predestinado

Procurei um terreno no condomínio onde desejava


morar. Gostei do último terreno de uma rua sem saída; não
passaria carro, minha filha de dois anos brincaria à
vontade por ali. Mas seu valor era praticamente tudo que
tínhamos, não daria para construir. Eu e minha mulher
resolvemos então ir para um bairro mais simples, onde
compramos uma casa pronta.
Cinco anos se passaram. Voltei ao condomínio à
procura de terreno e observei que aquele mesmo estava à
venda. Minha filha de sete e meu filho de dois anos
brincariam à vontade por ali. Liguei para o corretor,
acertamos a compra.

79
No cartório, a vendedora comentou que em uma
ocasião tinha tentado vendê-lo e desistido porque estava
de mudança para o exterior, e caso não se adaptasse no
outro país voltaria e executaria o projeto da casa,
engavetado há anos. Casou-se lá, e o marido, um
estrangeiro que falava mal o português, mas entendia
perfeitamente, me contou que descartaram a possibilidade
de morar no Brasil.
O alemão comentou que nossa negociação foi tão
rápida porque coincidira com a estada deles por aqui, já
que raramente vinham passear. Eu, sem dizer uma palavra,
pensei o contrário: a negociação foi muito demorada,
levou pelo menos cinco anos. Aquele terreno estava
reservado, destinado para mim, talvez por eu tê-lo
desejado muito ou sei lá por quê.

A rua larga, pouco movimento

80
O terreno quase plano

Márcio Pereira Leme, 38 anos


Técnico em Telefonia

A troca parecia impossível

Já mudei muito. Meus sobrinhos já estão


acostumados a fazer minhas mudanças. A casa de que
mais gostei de morar foi a de uma das minhas irmãs, onde
morei por seis anos. Só sai de lá porque não poderia morar
a vida toda em casa emprestada. Agora tenho minha casa,
mas ela ainda não é do jeito que quero. É grande demais,
não apanha sol, é fria, além de que precisa de uma boa
reforma. Quero uma casa ensolarada, de dois quartos,
quintal para umas plantinhas e que seja bem localizada.
Acredito que vou conseguir. É que tudo tem sua hora.
Essa casa veio para mim quando menos esperava.
Eu procurava um terreno para comprar, a corretora me
81
levou para ver a casa dizendo que o preço era atrativo,
nem quis entrar porque não havia a menor condição de
comprá-la.
Como os terrenos também estavam muito caros,
acabei comprando num lugar bem retirado; lá construí
uma casa e morei pouco mais de um ano. Ela era
boazinha, mas o problema de locomoção de meu marido e
dos meus filhos ficou insustentável. Daí procurei a mesma
corretora para vendê-la.
Ela sugeriu uma troca com a casa que havia me
oferecido há mais de um ano e que continuava à venda. A
troca me pareceu impossível, mas deu certo, o negócio foi
muito bom. Mal pude acreditar. Resolvemos o problema
da distância. Foi uma alegria.

No entanto, a casa não é como eu queria. Acredito


que, se for da vontade de Deus, vou ter a casa do jeito que
quero. E daí faremos mais uma mudança.

82
Rosangela Maria da Silva França, 48 anos
Costureira

83
Algodão entre cristais

A casa da minha avó era difícil desenhar: o vitrô da


cozinha e a janela do quarto eram nas laterais; na frente
uma grande cobertura se estendia sobre a porta da cozinha,
onde havia varais sempre cheios de roupas. Embora meu
desenho não tivesse ficado parecido, fiz de conta que
aquela do papel era a casa da avó.
A pequena casa onde moravam minha avó e minha
tia parecia me proteger contra todos os males, além disso,
lá tudo era divertido: o insistente ranger da cama de armar,
onde eu frequentemente dormia, o barulho da chuva no
telhado, baldes e panelas aparando as goteiras...
Uma ameaça era constante: minha mãe, em
cochichos com as vizinhas, insistia que não moraria por
muito tempo no mesmo quintal que a sogra. De nada
adiantou o empenho do meu pai, apaziguador, que entre as
duas mais parecia algodão entre cristais; a predição de
minha mãe se efetivou.
Daquela casa ficaram doces lembranças e o
desenho que ainda hoje faço em qualquer pedaço de papel.

84
Sandra Cristina Prado, 42 anos
Advogada

85
Uma casa inesquecível

Meu pai trabalhava numa grande companhia que


foi a “mãe” da cidade, os empregados moravam em casas
no terreno da fábrica, todas tinham um enorme quintal
com horta, pomar, criação. Vivíamos como uma grande
família.
Assim que me casei, fui morar em outra cidade, na
casa da minha sogra, e não gostei de morar lá. Mas eu
amava muito meu marido e não queria chateá-lo, então
não reclamava. Logo meu pai arrumou serviço para ele na
Companhia e, assim, ganhamos nossa casa. Era bem
próxima à casa do meu pai. Era nova, acabaram de
construir e entregaram a chave para o Orestes, meu
marido. Quase não acreditei, a casa era boa demais, isso
foi em 1950. Tinha tudo, luz, água encanada, o quintal
grande com muitas frutas, um fogão à lenha e, ainda, um
forno que quase ninguém tinha. As vizinhas me pediam
para assar bolos e carnes, até cabrito eu assava para elas.
Era tudo muito bom e aquela casa era maravilhosa.

86
Sr. Orestes e dona Yolanda

Yolanda Bertacchini, 85 anos


Dona de casa

87
Como se fosse minha

Quando vi aquela casa, próxima à da minha mãe,


na rua em que nasci e cresci, senti um desejo enorme de
morar nela. O portão estava aberto e um pedreiro
trabalhava no quintal. “Essa casa vai ser alugada?” Para
minha frustração, ele respondeu que não, ela seria
vendida. Mesmo assim pedi o telefone de contato e espiei
a casa: achei linda a escada de três degraus com faixa de
granito na entrada da sala, não sei por que sempre gostei
de escadas.
Havia mais de um ano que eu morava num
apartamento e ainda não tinha me adaptado. Sentia-me
presa, com a porta sempre fechada, além da vigilância
constante à minha filha: “Bruna, não arraste a cadeira,
Bruna, calce o tênis direito, não arraste o pé”. Morávamos
sobre o apartamento da síndica e não podíamos fazer
barulho.
Minhas esperanças cresceram quando da
imobiliária me informaram que tanto a venderiam como a
alugariam. Providenciei tudo na maior ansiedade e
consegui. Foi muito gostoso fazer a faxina, limpar os
vidros, o quintal... adorei fazer minha mudança.
Há algum tempo troquei o portão, fiz a cobertura
do carro, grafiato na fachada... sempre com a autorização
do proprietário, mas sou eu quem escolhe tudo e faço com
satisfação. Só me lembro sempre que ela não é minha,

88
porque convivo com a possibilidade de o proprietário
pedir que eu a deixe.
Já tentei financiamentos bancários, empréstimos...,
mas devido às mudanças de emprego do meu marido,
ainda não foi possível. Mensalmente, quando vou à
imobiliária pagar o aluguel, reitero que assim que possível
farei uma proposta de compra ao proprietário, que, por
enquanto, não manifestou intenção em vendê-la.
Tenho tanta fé que vou conseguir, que nunca mais
pensei em pesquisar preço ou ver outras casas. Cuido dela
com carinho como se já fosse minha.

Eliana Aparecida Ribeiro, 45 anos


Dona de casa
89
Dever cumprido

Eu não tinha noção de negócio. Quando fui morar


na casa da minha irmã, pensei em comprar um terreno
porque quem mora na casa de parente ou é muito farrista,
ou não quer nada com a vida; nem um nem outro era meu
caso.
Tentei comprar um apartamento da Cohab, mas
não tive como comprovar renda. Encontrei o terreno, meu
cunhado foi comigo e me incentivou a comprá-lo; era
início do loteamento, ainda não tinha água nem luz.
Um colega de serviço, que também era pedreiro,
me ajudou na construção desde a escavação do terreno. Eu
era o servente dele, só trabalhávamos na construção nos
finais de semana. Esse meu amigo me ajudou muito e
também o ajudei sempre que precisou. Hoje não temos
mais contato, mas ainda tenho por ele o sentimento de
amizade.
Casei, nasceu minha primeira filha e depois as
gêmeas. Então aumentamos a casa, apesar de ainda faltar
um pouco de acabamento. Mesmo assim minha esposa e
as meninas gostam muito de tudo aqui. As pessoas que
vêm nos visitar dizem que gostam do estilo da casa, do
lugar... e estou satisfeito.
Se eu não tivesse feito minha casa naquela ocasião,
hoje não faria mais. A idade vem chegando, tudo fica mais

90
difícil. Certamente pensaria: “o tempo passou e não
aproveitei nada”.

João Marques de Souza, 64 anos


Mecânico de autos
91
Uma benção

Eu tinha muita vontade de morar neste


condomínio, lugar valorizado, casas de padrão muito bom,
segurança, vista para as montanhas e uma tranquilidade
que parece de um retiro.
Quando me casei, comprei uma casa, depois um
apartamento e outra casa, que a vendi; uns tempos eu
paguei aluguel, depois comprei a chácara. Tentava uma
troca da chácara com um imóvel no condomínio quando
minha filha encontrou, no site da imobiliária, aquela que
seria nossa. A corretora me acompanhou e até me mostrou
outros imóveis.
Precisei vencer vários obstáculos para conseguir o
que era um sonho. A venda da chácara, a aceitação do
vendedor da minha proposta, o levantamento do dinheiro
todo...
Foi um período de expectativa... a chácara
vendida... Foi então que levei meu pai para ver a casa: “o
que papai acha?” Ele achou a construção grande para
quatro pessoas. No mais, gostou muito e me incentivou a
fechar o negócio.
Minha filha me acompanhou na escolha dos
materiais do acabamento. Há quatro meses nos mudamos.
Creio que tive ajuda de Deus, pois tudo se encaixou muito
bem: minha mulher, que no início não queria, está amando
tudo aqui. Meu filho agora tem os três cachorros, que
antes moravam na chácara, perto dele. Além disso, há
92
lugar na garagem para o carro que ele pretende comprar
em breve.

Minha sogra e minha cunhada, que moram num


lugar movimentado e querem tranquilidade nos finais de
semana, se acomodam bem no quarto a mais da casa.
Minha mãe desde o início gostou muito, por ser em meio a
árvores; e papai, quando viu a família reunida, satisfeito
disse que a casa não era grande como tinha pensado, era
do tamanho ideal para nós. Tudo isso só pode ser por
Deus.

Casa do Mauro, no destaque, vista pelos fundos.

Mauro Gentoko Goya, 47 anos


Advogado
93
Acolhedora

Tínhamos vendido nossa casa, buscávamos um


lugar melhor para criar nossos filhos e estava difícil
encontrar outro imóvel. Um dia meu marido foi a um
açougue novo no bairro vizinho e encontrou um
loteamento à venda. A corretora lhe mostrou alguns
terrenos, ele gostou muito e foi me buscar. Perto do
primeiro terreno que fomos ver, senti como se uma mão
me conduzisse até a frente dele. Era ali que seria minha
casa. Nem quis ver os outros.
No dia seguinte, no domingo, às nove horas da
manhã, a corretora telefonou dizendo que tinham sido
aceita nossas condições para a compra, e que poderíamos
marcar o fechamento do negócio. Logo, um vizinho, o seu
José, me disse: “dona Neusa, a senhora comprou o terreno,
vou ser seu pedreiro, vou erguer sua casa”.
O prazo para desocupar a casa era curto.
Começamos a construção que foi uma saga. Quando as
paredes estavam na altura das janelas, um dos meus filhos
sofreu um acidente. Foi horrível. Eu ia ajudar na
construção, sentava num canto e chorava. Seu José dizia:
“dona Neusa, se acalme, já passou, não foi nada. Ele está
bem”. Logo o dinheiro acabou; nos lugares dos vidros
pusemos plásticos, emprestamos dos vizinhos a pia da
cozinha, o vaso sanitário e mudamos. Por isso digo que
esta casa foi feita com sacrifícios e lágrimas.
Nesses 20 anos fizemos dela uma grande casa,
bonita e confortável, embora não tenha um acabamento
tão bom como eu gostaria. Ela acolheu toda nossa família,
inclusive uma neta que morou por dez anos com a gente.

94
Agora se tornou grande demais porque somos só eu e meu
marido.
Agradeço muito a Deus por tudo: por meus três
filhos terem tido oportunidade de estudar e terem
conseguido suas casas, sem a luta que eu e o pai deles
enfrentamos; pela casa que Ele nos deu, porque, em vista
do lugar de onde eu vim, esta casa é um palácio. E até por
gratidão digo a Ele: não estou jogando fora o que o senhor
me deu, só quero que traga uma pessoa que cuide dela
como eu gostaria de cuidar e quero para mim uma casa
pequena da qual eu possa cuidar direito.
Sei que, se aparecer uma troca assim, tenho que
esvaziar minha mente como em uma meditação e fazer o
negócio logo, porque se pensar muito, perco a coragem.

Neusa Pereira Agibert, 60 anos


Dona de casa

95
Bonita por si só

Amei fazer esta casa, a construção foi muito


tranquila. Meu marido acompanhou a obra até o início da
fase de acabamento e aí entrei para escolher os pisos, os
azulejos, as pedras...
A casa ficou maravilhosa. Todos que entram aqui
elogiam o projeto do arquiteto, o Onizuka. É uma casa
diferente, com muitos vidros, é bem iluminada e arejada.
Vista de fora, é robusta, imensa, parece maior do que
realmente é. Em qualquer cômodo onde a pessoa esteja
não se sente isolada, porque há vista para a vizinhança e,
na sala, um vão livre, lindíssimo... deixa tudo em contato.
Bonita por si só, nem precisa de muita decoração.
E o que é melhor, tem um astral muito bom, parece até que
ela nos transmite paz. Era a realização que me faltava,
embora também gostasse muito da casa anterior. Aquela
compramos recém-construída, e nela tínhamos todo o
conforto e a segurança deste mesmo condomínio. Agora
ela ficou para minha filha.
A decisão de construir uma casa com mais espaço,
embora sejamos só nós dois, foi para receber nossos netos
com mais liberdade. Essa liberdade que os traria mais
perto de nós, é isso que nos importa agora.

96
Vista dos fundos da casa

Íris Moço, 67 anos


Empresária

97
Go home

A casa é um ponto de união da família. Como


arquiteto, tenho dever de fazer a casa bem ventilada e
iluminada para criar salubridade. O espaço também é
muito importante. Quando as medidas são limitadas, uso a
criatividade: um teto mais alto, mais claridade... para as
pessoas se sentirem à vontade.
Para fazer os projetos, converso com a família e
ouço bastante a mulher. Quem mantém a ordem, a retidão
da forma de viver da família é a mulher, e é ela quem
manda na casa. E a felicidade do homem é espelhar na
casa os desejos da mulher.
Minha casa é meu templo, lugar de respeito no
sentido geral. A gente trabalha para voltar para casa. “Go
home” é o nome de um grupo musical americano. E é
sempre assim: estuda-se fora, trabalha-se fora e vamos
para casa.
Minha casa é minha referência, onde posso falar,
chorar, realizar... onde me centralizo. Quem não tem um
prumo não tem nada.

98
Onizuka, em visita a uma das casas que projetou

Yoshitaka Onizuka, 56 anos


Arquiteto

99
A nossa casa

Gostei da minha casa antes de conhecê-la; quando


a corretora explicou como era a construção, o que faltava
fazer, o tamanho do terreno... Era o que queríamos. Ela
marcou para o dia seguinte a visita à casa, porque não
encontrou o proprietário naquela hora. Passamos em frente
para vê-la, o dono estava chegando e nos deixou entrar. Eu
e meu marido olhamos um para o outro: “era a nossa
casa”.
Pedimos que a corretora solicitasse a ele uma
semana para vendermos o carro. Era pouco prazo, pois era
um Audi, carro de difícil comercialização. Passamos dias
de insegurança imensa imaginando que poderia surgir
outro comprador para ela.
No sábado, faltavam cinco minutos para as dezoito
horas, quando saímos da agência que comprou nosso
carro. Demos um telefonema e a corretora se prontificou a
nos esperar. Ah! Que bom! Assim nosso domingo seria
tranquilo. E foi. Assinamos o compromisso da compra
naquele dia.
Essa casa tinha que ser nossa, porque tudo se
encaixou perfeitamente em nossas condições. Nunca vou
me esquecer da corretora falando dela, da assinatura dos
documentos, dos ajustes do prazo para o vendedor
desocupar...
Agora estamos começando a arrumá-la do nosso
gosto. Só vamos nos mudar quando estiver tudo pronto,
nos mínimos detalhes. Como sempre quis.

100
Moramos até agora no quintal da casa de minha
mãe, numa casa que construímos quando nos casamos.
Estamos bem instalados, por isso não temos pressa de nos
mudar. Só compramos essa porque queríamos “a nossa”
casa.

Nádia Rosa da Silva Reis, 28 anos


Técnica em Enfermagem
101
Mais importante é nos embelezar por dentro

A casa é um abrigo onde precisamos nos sentir


bem, ter conforto razoável, para descansarmos e reunirmos
a família. É onde criamos raízes. Prefiro as raízes a me
aventurar de uma casa para outra. Há 32 anos moro nesta
chácara, com muito espaço, muitas árvores..., é simples,
até precisaria de uma boa reforma, pois foi construída para
o caseiro e depois ampliada por nós, que ficamos morando
nela.
Todo recurso que eu poderia ter usado na melhoria
da casa direcionei para a educação dos meus três filhos,
escolas particulares, cursos de línguas, faculdades...
A educação tem que ser sedimentada, aos poucos; já a
casa, você pode arrumar e pintar de uma vez só.
Não me importo se o piso é verde ou rosa. Nem
tenho tempo para arear, encerar, lustrar, aqui e ali. Se eu
tivesse mais tempo, usaria em passeios culturais, em
cursos de línguas, piano, história, geografia...
O estudo serve sempre, a pessoa tem mais
oportunidades na sociedade em qualquer lugar do mundo.
A pessoa nunca o perde, enquanto que a casa pode ser
destruída por um furacão ou desapropriada... e aí? Há um
projeto que prevê a desapropriação de toda esta área onde
fica minha casa, espero que não aconteça. Porque não
gostaria de morar com a casa vizinha encostada na minha
parede. Vamos ver.

102
Iza Cruz, 64 anos
Advogada
103
O sonho da minha mãe...

Comprei a parte da Sandra Regina, minha irmã, da


casa que herdamos dos nossos pais, porque ela queria o
apartamento; por mim ela teria continuado com a casa.
Mais tarde ficaria para nossos filhos.
Minha mãe gostava muito dessa casa e sonhava em
remover a terra, construir a garagem... Quero fazer o que
minha mãe queria, por isso gastei tanto com a remoção da
terra e a estrutura da garagem. Tão caro que daria para ter
comprado um terreno plano e construído nele. Eu só parei
a obra porque me apertei financeiramente, no entanto
pretendo continuar logo.
Com a graça de Deus deu tudo certo, minha irmã
comprou o apartamento e está feliz. Sinto falta dela e da
Gabi, a gente não conversava todos os dias, mas
estávamos no mesmo quintal. A casa em que ela morava
ajeitei para minha sogra.
No dia da assinatura dos documentos, ficamos
emocionados porque afinal não era apenas um negócio,
somos irmãos, temos o elo da família.
Tenho planos de comprar uma outra casa e alugar
esta, que futuramente deixarei para as crianças. Não quero
vendê-la nunca, ela era muito importante para minha mãe.

104
Carlos Alberto Saraiva Pinto, 39 anos
Mecânico de refrigeração

105
... Um presente...

Entrei no apartamento e me encantei. Nem olhei


bem o rosto da Jucilene e o Benê, só tive olhos para o
apartamento. Era espaçoso. Lindo, o piso, o azulejo...
Tudo era lindo, lindo. Falei para a corretora: “Ele tem que
ser meu. É tudo que eu quero”.
Aí ficava pensando: não vai dar certo, meu irmão
não vai comprar minha parte na casa, ele não vai
concordar com o preço, não vou conseguir comprar o
apartamento...Eu tinha que parar de pensar não, não, não.
Precisava acreditar que daria certo.
No primeiro encontro com o vendedor, na
imobiliária, não falei quase nada, estava nervosa e tremia
muito. Nem aceitei o café. Olhava para minha filha
indicando que continuasse quietinha. A corretora conduziu
a negociação de modo a ajustar a compra à minha
condição financeira. O que não parecia tarefa fácil. Sai
esperançosa. Tudo dependia do Beto, meu irmão, comprar
minha parte na casa que herdamos da nossa mãe, e aí eu
efetivaria a compra do apartamento.
Eu e a Gabriela, minha filha, vivemos dias de
expectativa, só conversávamos sobre isso, pois, embora
tão jovem, ela participa de tudo que eu faço, somos só nos
duas. Eu nem trabalhava direito.
Na imobiliária, enquanto meu irmão e minha
cunhada liam o documento, rezei e pedi a Deus que não
106
desistissem. Nem sei explicar a sensação que tive quando
entreguei as chaves para ele. Foi como se me livrasse de
um peso.
Só acreditei que o apartamento era meu quando vi
meus pertences lá dentro. Os móveis realçaram. Parece
que tudo ganhou vida. Chamei a atenção da minha irmã :
“Olha, Bete, como meu sofá ficou bonito”. Minha filha
gostou tanto de morar aqui que nem quer sair de casa. Eu
nem sinto saudades da casa em que morei durante tantos
anos.

107
Sandra Regina Saraiva Pinto, 37 anos
Vendedora

.. A energia boa...

Quando do portão olhei a casa da Sueli, não quis


me entusiasmar. Achei que não conseguiríamos comprá-la.
O Benê, meu marido, ficou animado, comentou o tamanho
dos cômodos, o acabamento, a garagem... Na saída me
perguntou:
— Você gostou?
— Não vou falar nada porque é muito cara.
— Se você gostou, é sua.
Mesmo assim, não me animei porque há tempos
tentávamos vender o apartamento e nada. Por aqueles dias,
a corretora que tinha nos mostrado a casa levou uma
compradora para nosso apartamento e essa demonstrou ter
gostado muito, muito mesmo. Desejei que ela, a Regina,
comprasse o apartamento e nós a casa. E foi isso que
aconteceu.
A casa dá mais trabalho para cuidar, porque é
maior. Mas é bom demais. A antiga proprietária disse que
esta casa tinha uma energia muito boa. É verdade.
Mudamos para cá há um ano e eu ganhei até um bebê.
Tínhamos só uma filha com 23 anos, que
recentemente se casou, e, quando menos esperava, fiquei
grávida. Nós preferimos, de início, não contar para
ninguém porque as pessoas fariam comentários sobre a

108
possibilidade da criança ter problema de saúde devido à
minha idade.
Pois posso dizer que ganhei dois presentes: a casa e
o Mateus Henrique, um meninão, saudável, lindo, lindo.

109
Jucilene Simões S Silva, 41 anos
Dona-de-casa

...Guardado para nós...

Eu só tenho a agradecer a Deus por tudo. Fui muito


feliz na minha casa e estou muito feliz agora, no
apartamento que compramos da Marta. Foi tão boa a
mudança que, embora continue gostando da antiga casa,
não sinto falta dela.
Assinamos o contrato pela manhã e à tarde a
corretora que fez a venda me ligou oferecendo o
apartamento que ela, em parceria com um colega, havia
encontrado, do jeito que procurávamos. Uma semana
depois, voltamos à imobiliária para a compra do
apartamento. A vendedora, disse que há tempos tinha
intenção de vendê-lo, mas não sabia por que ainda não
tinha o oferecido às imobiliárias.
O apartamento era o que queríamos: confortável,
nas proximidades da faculdade e do trabalho dos nossos
filhos.

O bairro, o prédio, a vizinhança, tudo ótimo. Estou


muito feliz. Chegar ao meu trabalho também ficou muito
rápido: saio de casa e, num estalar de dedos, estou lá; só

110
para o meu marido ficou um pouquinho mais longe, no
entanto, ele nem se importa com isso.
Quando encontrei minha primeira casa, também
tudo deu muito certo. A casa acabava de ser construída,
era térrea, linda, do jeito que eu queria. Eu estava grávida
da minha filha, ela e o menino nasceram e foram criados
lá, com todo o conforto, com saúde e muita harmonia.
Aquela casa tem uma energia muito boa. Desejo de
coração que a Jucilene e o Benê sejam muito felizes lá,
como eu fui.

111
Sueli Maneze Pezzelin, 56 anos
Secretária

...O apartamento guardado

Tive um apartamento durante algum tempo com o


qual não estabeleci nenhum vínculo emocional, nunca
dormi uma noite lá. Quando o vendi, foi um alívio porque
só me gerava despesa.
Eu o comprei para facilitar a vida de uma de
minhas filhas que foi trabalhar e estudar naquela região.
Mas quando ela mudou de emprego e constatou que não
estava indo bem na faculdade, achamos melhor que ela
voltasse para casa e o apartamento ficou fechado.
Não cheguei a anunciar sua venda nem a locação,
não sabia bem o que faria com ele. Retirei os móveis e o
mantive fechado por mais de um ano. Uma pessoa
conhecida pediu-o emprestado enquanto estivesse fazendo
uma reforma na sua casa, eu concordei sem objeções, mas
não sei por que ela desistiu.
Até que um dia um corretor conhecido meu trouxe
uma proposta de compra. Na imobiliária, os compradores,
112
a Sueli e o marido, me disseram que há pouco tinham
vendido sua casa e aquele era o apartamento que
procuravam. Até das cortinas a Sueli tinha gostado, então
deixei para ela.
Fiquei contente, acho que o apartamento estava

guardado para eles, porque para mim não tinha nenhum


sentido.

Martha Amélia Dártora Harada


Psicóloga

113
Minha casa me guarda como um abraço*

É preciso fritar o arroz bastante


Antes de colocar água fervendo.
E não pode mexer jamais depois de a água ser posta.
O alho deve fritar no óleo junto com o arroz.

Coisas que eu sei e que não sei. Eu sei muitas coisas.


Faxina, por exemplo, sei limpar uma casa de tal modo
Que não sobra um canto que não
Tenha sido tocado por minhas mãos
Depois vou sujando. Com muito gosto.
Deixo peças na sala e louças sujas na pia.
Não na mesma hora, mas um pouco bastante depois
Volto limpando. Assim me faço.
Nos objetos que me acompanham.

Gosto de andar nas ruas e comprar coisas


Que vão se arrumando em torno de mim.
114
Eu tenho muitas coisas,
Quero dizer, tenho muitas camadas.
Uma camada de livros, outra de sapatos.
Tem a camada de plantas. E toalhas de rosto.
Tenho camadas de cosméticos e adereços.
Uma camada de nomes e coisas que vejo.
Tudo ordenado ao meu redor. Em forma de corpo.
Um corpo que me sustenta
Quando meu próprio me falta.

Cadeiras são meus ossos.


Sapatos são meus braços.
Torneiras em meus poros.
Paredes como roupas de inverno.
(quando toca musica em minha casa sai do umbigo)
Descanso recostada nas paredes da casa
Que me guardam como um abraço.
Me abraço quando me derramo na sala.
E na cozinha. Em geral adormeço no quarto.

Tudo em minha casa tem existência.


Todas as coisas significo. Com os olhos.

115
Ou com as mãos. Minha casa tem silêncios
Que às vezes ouço. Em meu corpo
Tem silêncios maiores ainda.
Que às vezes ouço. E faço poemas.
Faço poemas dos silêncios que ouço.

Ando com mania de lustra-móveis e ceras líquidas.


Olho um por um nas prateleiras. Sinto a textura e o cheiro.
Espalhando um pouco entre os dedos. Prefiro os de textura
fina
E que cheiram a jasmim (gosto mais do aroma floral
mas a palavra jasmim é tão bonita)
Levo todas pra casa e vou espalhando. Primeiro o
assoalho.
Considero todos os cantos. Depois os móveis
Com as mãos vou tateando. Um por um.

Em reverência.
Ao que me sustenta quando em desamparo.

As casas me sustentam em mim. Por isso as quero em


detalhe.

116
Bem cuidadas e cheias de espaços onde novas coisas se
deitam.
Costumo encontrar tesouros escondidos
nas dobras das colchas.
E nas louças sujas na pia. Tenho muitas janelas.
Que é por onde o sol e a chuva me visitam.
O vento aqui também é muito forte.
Às vezes derruba tudo e eu gosto.
Mas aqui também cabem pessoas.
Tem sempre lugar pra pessoas em mim.

117
Viviane Mosé,
psicóloga, doutora em filosofia e poeta

A família é nossa base

Quando a pessoa se sente realizada, as coisas boas


vão fluindo, fluindo... Estamos arrumando nossa casa
devagar, porque no início da obra, meu marido e eu
fizemos algumas coisas precipitada se nos arrependemos:
tivemos que desfazer. Agora, tudo é bem pensado, com
calma e está sendo muito prazeroso. Minha casa parece
que foi feita para mim. Ela não poderia ser diferente nem
em outro lugar. Até os vizinhos, parece que os conheço há
anos.
Custei a encontrá-la. Os corretores pareciam não
ter paciência em ouvir o que eu queria e me mostravam o
que eles tinham.
Comentei com meu irmão: “Luis, está difícil
encontrar a casa que eu quero, estou cansada. Preciso de
uma casa legal, onde eu deposite meus sonhos, minhas
emoções...”
Ele me apresentou a uma corretora amiga dele e na
primeira visita encontramos minha casa. Foi de cara. Não
tive dúvida nenhuma: era aquela a casa que eu queria.
118
Meu marido disse: “A casa não está pronta, vai dar
muito trabalho. Além disso, não conhecemos o bairro...”
Ele é muito exigente e isso é característica da cultura
japonesa, ele é nissei. Mas o importante foi ele ter gostado
da casa. Então sugeri conversarmos com os moradores ao
redor, conhecermos melhor o imóvel e também os
vizinhos...
Agora ele está namorando a casa, cada vez que vai
até lá, diz que quer se mudar logo. É bem animador. A
casa é um estímulo para receber bem a família e a família
é a nossa base. Estou muito feliz e quando estamos felizes
atraímos coisas boas. Até o bebê, que pretendíamos ter um
pouco mais tarde, se antecipou: estou grávida.

119
Elaine Neves Susaki, 27 anos
Cabeleireira

120
Cheiro bom

Sou tão satisfeita com minha casa que gosto até do


cheiro dela. O bairro é tombado, a preservação é
obrigatória e, embora com toda comodidade, parece
cidade do interior, ainda mais que ouço perfeitamente o
sino da igreja. A casa, espaçosa e linda, começa a ficar
grande para nós. Enquanto os filhos e netos desfrutarem
do conforto dela, ficamos aqui. Depois vamos ver o que
faremos.
Antes desta casa, morei em um apartamento e não
tinha espaço para nada. Se comprasse um sapato, tinha que
tirar uma cadeira. Não me acostumei. Foi então que
conheci todas as casas à venda da região, até que um
corretor nos trouxe, com nossos cinco filhos, nesta que
seria nossa. Todos gostaram e eu me encantei com ela.
Meu marido não se animou pelo preço, que era uma
verdadeira fortuna.
Um espetáculo de casa. Projetada por um arquiteto
premiado, para um italiano, dono de uma fábrica famosa.
Fiquei de olho nela e em pouco tempo o corretor me
informou que o italiano baixara o preço: a casa ficara
grande para ele porque os filhos tinham se casado, os
netos já crescidos e não acompanhavam mais os pais.
Resolvemos fazer nossa proposta com um preço ainda
bem mais baixo.
Deixamos a proposta com o corretor e fomos para
o exterior, com poucas esperanças de que fosse aceita.
Quando voltamos, a boa notícia: o proprietário nos
aguardava para fecharmos o negócio.
121
Estamos aqui. No entanto sabemos que o fato se
repete: a casa fica grande porque os filhos casam, os netos
crescem...

122
Ana Maria Moutinho de Abreu, 62 anos
Empresária

A casa influencia a coletividade


 

Minha casa deve ser o melhor lugar, é onde eu


sempre vou preferir estar. A casa nos dá proteção e
segurança contra as intempéries, nos oferece conforto
físico e psicológico, nos dá o aconchego familiar... A
pessoa pode estar numa situação difícil,
desempregada, mas, se ela tem sua casa, se sente mais
segura. Uma casa bem projetada, com uma boa estética,
um bom acabamento eleva a auto-estima do seu habitante,
além de lhe dar um certo status.
 

Quando faço um projeto, preliminarmente procuro


entender bem como a pessoa vive para projetar a casa que
satisfaça seus anseios; afinal a casa é uma extensão da sua
personalidade, tem uma ligação direta com o futuro
habitante. É, assim, fundamental que a pessoa se sinta bem
em sua casa.
 

No início da minha carreira, projetei e construí


alguns sobradinhos numa rua onde havia uma casinha
muito simples de um comerciante. Vi lá um futuro
promissor. Fiz os sobrados com boa estética e bom
acabamento e percebi que isso incentivou a vizinhança a
fazer as casas bem-feitas também, o que valorizou toda a
vila.

123
124
Joel Felipe Rodrigues, 56 anos
Engenheiro civil

Tem até tucano

Se a Marlise, minha mulher, topasse, moraríamos


na chácara. Quando a comprei, me chamaram de louco
porque não tinha nada, nem asfalto, nem luz, nem água,
nada. Agora, eu não poderia mais comprá-la de tanto que
valorizou. Lá é muito legal, temos a casa, piscina, um
gramado lindo, muito verde, muitos pássaros, tem até
tucano. Moraríamos a cinco minutos do meu trabalho.
Para minha mulher e meus filhos, ficaria um pouco mais
longe, mas pouca coisa. E valeria a pena.
A casa onde moramos, embora não tenha sido bem
projetada, é boa e recentemente fizemos uma reforma.
Seria perfeita se não estivesse no bairro onde está. O
bairro se deteriorou devido aos diversos conjuntos
habitacionais de baixa renda que trouxeram muita gente de
fora, não se conhece mais ninguém na rua como há pouco
tempo. Meus amigos quase todos já se mudaram para
condomínios ou bairros mais preservados.
Um dia desses, um dos meus filhos foi assaltado na
rua de casa. Não existe perspectiva de mudança do perfil
desses novos moradores. Então alguma coisa tem que
acontecer: ou vamos para um condomínio ou para outro
bairro. Não sei! Vamos ver o que acontece.

125
a entrada... a casa...

a piscina... e o gramadão verdinho

126
Ayrton Rossi, 50 anos
Contador

Saudade da casa que nunca existiu

Comprei este terreno distante da minha casa e de


meu trabalho porque me apaixonei por um homem que
morava nesta região e quis ficar perto dele. Tive medo de
que a distância nos separasse, ele era bonito e namorador.
Sonhei em construir uma casa de três quartos, duas
salas, com um telhado bonito e uma varanda espaçosa
onde eu colocaria uma rede. Nas constantes visitas ao
terreno, fazíamos nossos planos. Meu amor era pedreiro e
construiria nossa casa.
Vivi com ele mais que uma paixão: uma linda
história de amor, por seis anos. Quase morri de amor
quando ele se foi. Reencontrei-o num velório e no velório
nos despedimos. Uma vez ele me procurou, marcamos um
encontro e não tive coragem de ir. Sabia que o perderia de
novo. Recentemente tive notícias de que está casado e tem
dois filhos. Desejo que seja feliz e não quero mais vê-lo.
Nesses 20 anos sem ele, conservei o terreno.
Quando mandava limpá-lo, ficava parada em pé, de frente
a ele, recordando nossos planos e sentia uma espécie de
saudade da casa que nunca existiu.
Hoje estou aqui para vendê-lo, porque acabou o
sentido dele na minha vida. E diante da alegria de vocês

127
(os compradores), fico alegre também, afinal a vida é
maravilhosa, vejam só:
Sempre fui empregada doméstica, querida e
respeitada por todos os meus patrões. Tenho uma casa na
minha terra, pronta, com móveis e tudo, para me receber,
casa que comprei para quando me aposentasse. Criei bem
meu único filho, orgulho-me dele. Vivi uma grande
paixão; quem nos conheceu diz que foi um amor tão
bonito que não é todo mundo que tem essa sorte.
O terreno era um vínculo que eu mantinha com
meu passado, que agora acabou.

128
Idália de Souza Pereira, 62 anos
Empregada doméstica

A edificação não é tudo

Não me opus a que meu ex-marido ficasse com a


casa em que morávamos, pois lá eu teria que conviver com
a lembrança dos conflitos que nos levaram à separação. O
que eu quis foi a casa em que vivo agora, pequena e
simples, em um bairro distante de onde morávamos.
Compramos essa casa para meu sogro, mas ele adoeceu e
então foi morar com uma das filhas. A casa permanecia
desabitada.
Minha filha é deficiente mental. O pai dela
queixava-se de falta de atenção a ele, alegando que eu
exagerava nos cuidados com ela. Nosso casamento acabou
ele logo se casou novamente e eu desejo de verdade que
ele seja feliz neste seu segundo casamento.
Agora nossa casa só tem as coisas dela e as
minhas, nunca pensei que poderíamos viver tão bem. Ela
não se agita como antes, não range os dentes, dorme
melhor. Diante dos primeiros sinais de melhora, o médico
reduziu a dose da medicação e ela continua tranquila e até
se mostra mais alegre.
O bairro é de pessoas pobres, casas pequenas e
muitas crianças. Na rua as crianças brincam, gritam, nos
bares há conversas, músicas até tarde, brigas... Nada disso
me incomoda. O que importa é estar em paz dentro de
casa.
129
Casa em que Marilene vive com a filha, Sofia, há 8 meses.

130
Marilene dos Santos Victor, 49 anos
Manicure

Cuidada pela vizinhança

Minha casa está prestes a desabar, com as paredes


trincadas ela pode cair a qualquer momento. A laje do
salão da floricultura está escorada com pedaços de
madeira. É um problema muito grave, preciso
praticamente refazê-la e o dinheiro não dá, mas nem assim
tenho vontade de deixá-la.
Há 42 anos, quando a compramos, era pequena, de
tijolo assentado com barro e em cima do brejo. Havia dois
anos que tinha me casado e pagávamos aluguel, eu não via
a hora de fazer meu ninho e logo quis mudar. Em casa
alheia, além da responsabilidade de cuidar do que é dos
outros, não se tem liberdade sequer de mudar a cor da
parede.
Quando mudamos, me senti no céu. Eu podia pôr
uma janela se achasse que estava escuro, mudar a porta de
lugar e, se não desse certo, mudaria de novo. Fizemos
várias reformas e ampliações. Mesmo assim a umidade e
falta de ventilação nunca conseguimos resolver.
Agora não sei como vou fazer para arrumar tudo o
que não pode mais ser adiado. Poderia alugar uma casa
enquanto arrumo a minha, mas preciso fazer a reforma em
partes por dois motivos: pela falta de dinheiro e para não
131
ter que sair. Depois de tantos anos, confio na vizinhança,
me sinto cuidada por ela. Qualquer movimento diferente
em casa e os vizinhos já vêm saber se aconteceu alguma
coisa. O que não ocorreria em outro lugar. Tenho fé que
vou resolver o problema sem sair do que é meu.

Julita na sua loja entre flores e as escoras da laje

132
Julita Lopes César Novaes, 58 anos
Comerciante

A casa compartilhada

Moro na oficina há 14 anos. Estou tranquilo porque


não dependo de condução, não pago aluguel... Nunca me
importei de compartilhar a casa com as pessoas que
trabalham comigo, como nunca me importei de trabalhar
aos sábados, domingos e feriados. Mesmo quando não
tenho serviço dentro da oficina, encontro o que fazer e
acabo trabalhando: faço cadeiras, bancos,
churrasqueira...pra um e pra outro.
A gente nem percebe que está cansado. Eu só me
dei conta porque andei me irritando com as brincadeiras
das crianças e chamei a atenção deles. Depois me
arrependi: “Pra que isso? Por que briguei com eles?” Dos
meus cinco filhos, dois moram com as famílias no quintal
da oficina. Eles não me incomodam, pelo contrário, eu
gosto disso. Só preciso de um lugar para descansar,
desligar do trabalho nos fins de semana.
Tive um colega na indústria Matarazzo que um dia
se pôs a chorar sem parar, sem nada ter acontecido. O
médico deu a ele férias recomendando que nem sequer
passasse em frente à fábrica, porque estava havia muitos
anos naquele trabalho sem nunca ter descansado.
133
Quero uma casinha não muito distante, aonde eu
possa ir de trem, e assim não depender dos filhos para me
levar. Há pouco tempo um filho comprou um terreno num
lugar de muito mato para formar uma chacrinha. Nas idas
com ele, só de andar pelo mato e na beira do rio me sentia
descansado, pena que era muito longe, ele acabou
desistindo.

Tenho pensado muito nisso: mudar de ambiente e


ter coisas diferentes para fazer será como um hobby. Acho
que vai me fazer tão bem que não vou mais me irritar com
as crianças.

Sr. Manoel na frente de sua oficina e casa.


134
Manoelino Rodrigues, 77 anos
Funileiro de ar condicionado

Você faz suas escolhas e suas escolhas fazem


você.*

Se a memória pudesse ser fotografada, a minha


mostraria a imagem perfeita da primeira casa que eu tive.
Aquela foi também a primeira casa do loteamento. Não
tinha nenhum acabamento, era no tijolo e no chão grosso,
e ainda assim precisei de dinheiro emprestado para
construí-la. Na frente, fiz um pequeno salão onde minha
mulher tocou uma lojinha de tecidos por um bom tempo.
Nessa casa nasceram dois dos meus quatro filhos.
Mudei de emprego, a situação financeira começou
a melhorar e então a segunda casa foi mais fácil. Quando
tive a proposta do Banco Bradesco para implantar a
primeira agência da região, não hesitei em demolir aquela
casa que havia sido construída com tantas dificuldades e
alugar o terreno ao banco. Escolhi agir pela razão e não
me arrependi porque foi um ótimo negócio.
De lá para cá, fiz diversas casas, salas e salões
comerciais e continuo fazendo para os filhos e os netos.
Embora tenha demolido aquela casa há mais de 50 anos,
lembro-me perfeitamente dela. A gente nunca esquece a
primeira vitória.

135
136
Alceu Rabelo, 82 anos
Industrial aposentado

Útil e agradável

Em viagens de negócios pelo exterior, percebi que


morar e trabalhar no mesmo lugar era usual no meu ramo
de negócio, o que me pareceu muito prático. Há quatro
anos comprei um imóvel para minha loja e me mudei para
o andar superior.
Acabei com o estresse do trânsito e me adaptei,
instantaneamente, à nova casa. Meu cão, um golden de 6
anos, ganhou mais espaço e dá um tom familiar aos
negócios, recepcionando os clientes e passeando pela loja,
que abriga centenas de móveis e objetos.
Decorei a casa com peças do acervo do antiquário.
Nem chego a me cansar da decoração, sempre que me
encanto por uma peça nova, mudo alguma coisa e insiro-a
no ambiente onde gosto de receber os amigos e fazer meus
artesanatos nas horas de lazer. Minha cozinha serve
também como refeitório aos funcionários da loja e tudo
bem.
Reconheço que tudo transcorre na mais perfeita
harmonia porque moro sozinha. Se fosse na época em que
era casada e meus filhos moravam comigo, teria que viver
no modo convencional, trabalhar num lugar e morar em
outro, porém essa fase já passou. A que vivo agora me
permite mais autonomia e eu me permito novas
experiências.
137
138
Adi Mary Vasconcelos, 54 anos
Antiquária

Portas abertas

Queria ter vida própria, ter meu próprio negócio.


Depois de muitos anos em uma empresa, saí e com a
indenização montei uma loja e construí uma casa na
cidade natal da minha esposa. A cidade era muito parada e
não obtive o resultado que esperava. Só não perdi mais
dinheiro porque não persisti com o negócio.
Minha sorte foi que a empresa em que eu havia
trabalhado tanto tempo manteve as portas abertas para
mim e eu voltei para lá, onde ainda continuo trabalhando,
mesmo já aposentado.
Sei que essa tentativa de trabalhar por conta
própria foi uma experiência útil para minha vida, mas não
tenho boas lembranças daquela fase. Quando me mudei de
volta, não senti nada por ter deixado a casa que construí
pensando em todos os detalhes; minha esposa diz a mesma
coisa. Não tivemos apego à casa, aliás eu não sou mesmo
de me apegar a nada.
A casa esteve um tempo alugada e agora está à
venda. No dia em que vendê-la, vou fazer uma festa.
Aplico o dinheiro em outro imóvel e esqueço tudo o que
passou.

139
No dia em que vendê-la vou fazer uma festa

140
Ari Jesus Camargo, 62 anos
Aposentado

Relógio externo

Meu sonho de criança era morar em frente à mata,


com casas vizinhas encostadas e um relógio na parede do
lado de fora. Eu odiava o Paulinho, um moleque da minha
idade que morava bem em frente da minha casa. Ele
dividia o meio da rua para os buracos do jogo de bolinha e
arremessava os piões do meu lado da rua. Era um estorvo
na minha vida.
Dona Nair, minha mãe, não dava a atenção à minha
reivindicação do relógio para que eu usasse até o último
minuto que tinha para brincar. Morávamos numa chácara
que herdamos do meu avô, vizinhos laterais eram os
abacateiros, mangueiras, laranjeiras...eu achava que seria
mais tranquilo ter vizinhos laterais, assim eu teria a rua só
para mim em toda a frente da minha casa.
Apesar de não ter lembranças do meu pai, que
morreu muito jovem, tive uma infância tranquila e muito
saudável; meu irmão mais velho me defendia nas brigas
com o Paulinho e depois me chamava a atenção, me dava
“pito” como costumávamos dizer.
Recentemente minha esposa não queria acreditar
quando comprei o relógio de parede para compor a
fachada da nossa casa recém-construída. “Zé, quem passar
pela rua não vai entender o que esse relógio faz do lado de
141
fora da casa, se nem vizinho de frente temos, quem vai
olhar as horas? ”
Quando vou trabalhar, certifico-me de que é a hora
de sair e, quando chego, de que é a hora de entrar.

142
José Luiz André, 49 anos
Industrial

Éramos cinco

Quando viemos para nossa casa, eu era muito


pequena, o quarto e a cozinha eram divididos com o
guarda-roupas, não tinham nem piso. Minha mãe sempre
ajudou muito meu pai. Até eu os ajudava. Foi muito legal
ver a casa ficando pronta aos poucos. No final da
construção, os rejuntes nos pisos eu e minha mãe que
passamos. Agora está tudo prontinho, tenho meu quarto,
que é o que mais gosto na casa. Minhas irmãs têm o quarto
delas.
Éramos três meninas, nem imaginávamos que
teríamos um irmãozinho, eu mesma nem sonhava com
isso. E ele chegou: o Gabriel,é lindo, bonzinho, uma
gracinha. Eu adoro cuidar dele. Logo vamos dividir um
quarto com ele.
Todos nós nos damos superbem; às vezes, fico
brava é com meu pai porque não gosto de algumas coisas
que ele fala. Acho que é porque tenho gênio forte como
ele, somos muito parecidos.
Mesmo gostando muito da minha casa, me
entendendo com meus pais e minhas irmãs e adorando o
Gabrielzinho, ainda assim pretendo, um dia, me mudar
para um apartamento. Penso em morar sozinha ou com

143
alguém que divida as despesas comigo. Não tão já, só
quando eu for mais velha.

Euclides, Tereza, Andressa com o Gabriel, Patrícia e a


Larissa

144
Andressa Motterani de Lima, 17 anos
Estudante

Digital e feminista

Nos próximos 15 anos, bilhões de pequenos chips


entrarão e se espalharão pela casa tal qual um exército de
formigas e cupins. A casa do futuro pode ser muito
parecida com as de hoje, a particularidade será sua
inteligência. Todos os equipamentos da casa serão
interligados por meio de uma rede conectada à internet de
alta velocidade.
Uma geladeira poderá identificar os itens que estão
faltando, pesquisar preços e disparar a compra no
supermercado pela internet; se estiver com defeito, o
próprio eletrodoméstico procura por manutenção via
internet e ainda escolhe o melhor orçamento. O
despertador sabe que naquela manhã o congestionamento
da cidade está maior, então acorda você mais cedo e ainda
muda o horário programado da sua torradeira. Objetos
serão capazes de medir nossos sinais vitais e transmitir os
dados para um computador, que os comunicará ao médico
em caso de alguma anormalidade, etc.
145
O comando por voz pode se tornar algo tão
corriqueiro como abrir uma gaveta. Com esse sistema
ficará mais fácil transmitir à maquina o que você quer
dela. Imaginem uma situação em que a casa inteligente, ao
presenciar a discussão do casal, fique solidária à mulher, a
quem dedica total lealdade, e se recuse a responder aos
comandos do marido, o que o deixaria em maus lençóis.
Situações como essa, certamente, virão com o futuro,
próximo.

146
José Antonio Zuffo, 71 anos,
Professor de eletrônica da USP.

Depois da reforma

Tudo começou com a história do “jaquê”: já que


vamos aumentar a sala, podemos aumentar também os
quartos, já que vamos mexer na parte superior podemos
acrescentar as sacadas, já que...já que...
Queríamos apenas um pouco mais de espaço na
sala e trocar os pisos. O arquiteto, Onizuka, muito bom
naquilo que faz, nos apresentou um projeto que previa
total transformação da casa. Projeto tão interessante que
merecia ser executado.
Senti deixar a casa vazia à mercê da reforma. O
apartamento alugado que nos serviu de moradia durante os
dez meses da obra era espaçoso, mas o barulho da avenida
e dos vizinhos incomodava demais. Eu não via a hora de
voltar para minha casa, que fica em rua tranquila, uma das
melhores ruas do condomínio, com uma vista muito
bonita... As crianças e minha esposa também
manifestavam sentir falta da nossa casa. Mas tínhamos que
ter paciência.
147
O prazo e o custo da obra foram maiores que o
previsto, mas compensaram, pois o resultado superou e
muito nossas expectativas: a casa ficou perfeita. Mesmo
sendo um imóvel de valor alto sei que não teria
dificuldade em vendê-la. Se eu falasse em vender,
comprador apareceria no ato.
Mas não é essa minha intenção, não penso em
vendê-la, afinal, merecemos morar bem, com todo o
conforto e assim compensar o estresse do dia-a-dia. É uma
pena que tantas pessoas vivam num terrível estresse e
ainda morem mal.

148
Marco Aurélio da Silva, 46 anos
Empresário

O diplomata inglês de 1799 e eu

A casa é essencial na nossa história de vida, ela faz


parte das nossas memórias. Os quartos dos meus filhos,
que foram decorados com papel de parede com motivos
infantis, depois com cores fortes na época da adolescência
deles, hoje, com a discreta pintura cor-de-palha, os
acomodam na condição de hóspedes.
No lugar da antena da televisão, passaram a
escama-de-peixe, que funcionou muito bem anos e anos,
uma parabólica enorme, e agora uma minúscula. Os
ladrilhos cor-de-rosa e os azulejos em meia parede da
época da construção não fazem mais parte da cozinha, mas
estão presentes nas fotos das reuniões familiares.
O amor pela nossa casa, tanto da minha parte como
da parte de meu marido, não nos deixou sequer cogitarmos
a possibilidade de vendê-la ou de um deixá-la para o outro
diante de uma situação inesperada: uma paixão
avassaladora dele por uma fisioterapeuta, que me atendia
quando de um acidente doméstico. Tudo clamava pela
nossa separação, mas e a nossa casa?
149
Num período de recusa e aceitação, um consenso: a
edícula construída por nós e que com louvor abrigou
minha mãe nos últimos anos de vida, dando-lhe todo o
conforto e a “independência” que ele priorizava, seria o lar
do novo casal. Ele continuaria me assessorando na
manutenção da casa, e continuaríamos mantendo tudo
impecável.
A figueira que plantamos no dia do nascimento da
nossa filha e o pessegueiro do dia do nascimento do nosso
filho não se intimidam com a cerca que há quase dez anos
separa os espaços e vêm com os galhos para o meu lado do
quintal.
Em encontros esporádicos, no único acesso à rua,
mal nos olhamos: mantenho com a mulher de meu marido
uma relação fria, mas cordial; com ele,
incompreensivelmente, nada fria.
O fim da nossa história o tempo vai escrever.
Como escreve de todas as histórias, como escreveu a do
lendário Nelson.
Horácio Nelson, o almirante invencível, pequeno e
nervoso, privado de um olho e de um braço, ambos
perdidos em batalhas memoráveis, era adorado pelos seus
marinheiros e aclamado pelas massas. Sua coragem era
atrativo implacável para as mulheres. Ele amou — e foi
correspondido — a mulher de Sir Willian Hamilton, um
velho diplomata, enviado pelo governo inglês para a corte
dos Bourbons em Nápoles, antes de ter sido constituída a
república Partenopéia, em 1799.
Emma Hamilton conheceu o fascinante
*condottiero em Nápoles, onde a frota inglesa tinha feito
escala. A mulher dele o aguardava em Londres, mas nada
150
impediu o romance, e a partir de então os dois viveram
uma apaixonada e turbulenta história de amor.
O marido de Emma assumiu uma postura de
verdadeiro diplomata: limitava-se a seguir os movimentos
dos amantes sem interferir. Os falatórios dos problemas
conjugais do diplomata abalaram sua carreira como
vulcólogo e botânico apreciado pela própria rainha,
Carolina de Bourbon. Como conseqüência do adultério
exibido publicamente, fecharam-lhes as portas dos salões
aristocráticos.
Nelson arrumou uma pequena casa, uma *vivenda
senhorial do século anterior, fora de Londres, onde viveu
com Emma, a filha em comum, Horácia, e o paciente Sir
William.
Na batalha de Trafalgar, em 1805, Nelson
encontrou a morte; Emma, já viúva de Hamilton, ficou na
miséria e foi presa por dívidas. Nem um único dos antigos
amigos de Nelson se condoeu com a sorte daquela mulher,
a quem não perdoaram a conduta.
Agora no século XXI, as pessoas ainda ficam
indignadas com meu conformismo, semelhante ao do Sir
William. É que emocionalmente não sinto que a mulher do
meu marido tenha me tirado algo. Sinto como se eu tivesse
cedido a ela — a contragosto — por determinado tempo,
em comodato, parte dos meus pertences, inclusive minha
edícula. E que o tempo vai escrever esse fato como um
capítulo e não como o final da nossa história.
Enquanto isso, o cenário das nossas vidas continua
bem-cuidado, com a pintura em dia, as pedras da garagem
resinadas, os pisos dos quartos renovados...

151
Horácio Nelson retratado por L Guzzardi

Emma numa pintura de G. Romney


152
Darcy Teixeira, 68 anos
Historiadora

Assistiu à demolição

Eram barracos de madeira apodrecida por


vazamentos nas telhas remendadas e amarradas com
arames e fios que abrigavam aquelas famílias há anos.
Chegou a hora do terreno, que era de propriedade
do poder público, servir à comunidade com a implantação
de um posto policial. Os moradores receberam, em caráter
definitivo, moradias dignas, de alvenaria muito próximas
dali.
Pela manhã, nublada, chegaram, no caminhão, os
homens que levariam as famílias e seus pertences para a
nova moradia e fariam a demolição e a limpeza do lote. Os
moradores ora expressavam contentamento ora hesitação,
talvez tivessem o resquício da sensação de não ter para
onde ir, o que não era mais o caso.
No caminhão, os homens aguardavam sem
entender o porquê da demora. Era a raiz que custava a se
desprender daquele chão. Aos poucos, os pertences
começaram a aparecer nas portas arriadas e barulhentas, e
levadas em direção ao caminhão. Muitos objetos foram
desprezados no quintal, sem condições de uso. Outros,
protegidos por velhos cobertores para não se danificar.
Mal o primeiro barraco foi esvaziado, os homens
retiraram as poucas telhas re-aproveitáveis, despregaram
as tábuas e, sem piedade, jogaram tudo no chão.

153
O quebra-quebra aos poucos chegou à mãe da
família que, no último barraco, cuidava dos pertences dos
filhos ausentes, presos por tráfico de drogas. E ainda
tentava orientar os presentes na arrumação dos objetos de
cada um.

Os homens gritavam para que todos ficassem longe


dali. A mulher, praticamente sob os cacos de telha que
caíam, não tinha mais como evitar o abandono da casa,
— Vamos, Dona Carmem, não olhe mais nada,
pense na sua casa nova.
— Vivi tanta coisa nessa casa!
— Tudo passou, Dona Carmem, vamos.
— Irmã, canta esse hino comigo?
Acompanhei-a, mesmo sem conhecer a cantoria.
Um ano depois, Dona Carmem faleceu.

O dia da demolição
154
Carmem de Oliveira, 64 anos
Dona de casa

A mudança

Ah! A mudança!
É uma odisséia que se inicia ao fim de outra que
teve as etapas vencidas palmo a palmo: encontrar o
imóvel, negociar preço, ver documentos, pagar... aí vem a
mudança.
Objetos sumindo: “Onde está o abridor de
garrafas?” “Onde se meteu o galão de água?” “O meu
reino por minha agenda!”
Ficar esperando o caminhão. A cidade inteira
passa, nada do caminhão aparecer.
Volta e meia o alvoroço: “É ele, é ele.” Mas é um
caminhão que traz concreto para a obra do outro lado da
rua.
Até que surge o esperado, desnecessariamente alto;
de dentro saem homens suados e perdidos:
— Acho que é aqui.
Ele berra:
— É aqui mesmo!
Os homens, com as cordas e panos para proteger os
móveis, entram para ver as coisas: é tudo um amontoado
de caixas, sacos, quadros, plantas e os cachorros latindo
sem parar inconformados por estarem presos.

155
Lembra as mudanças da casa paterna, o pai tinha
gatos, cachorros, passarinhos, dia de mudança era uma
batalha campal.
Ele não tinha passarinhos, mas tinha quadros —
dentre eles raridades —do seu ídolo da juventude.
— Seria bom o senhor lavar as mãos antes de pegar
nesses quadros.
O homem olha surpreendido as próprias mãos e
julga-as limpas. Mesmo assim, por delicadeza, esfrega as
palmas contra as calças – e aí as mãos devem ter ficado
mais sujas. Ele resolve defender por conta própria sua
preciosidade:
— Esse deixa que eu levo.
É a reprodução de uma foto tirada por ele mesmo
num show de 1974.
Perto do caminhão sente pena dos outros quadros
tão queridos que ficaram inermes, diante daquela tropa
desajeitada.
O telefone toca. A filha que não pôde faltar ao
plantão recomenda a ele que não deixe ninguém chegar
perto dos seus gatos, certamente assustados com a
desordem.
Nem o Grande Lorde que toma conta da coroa de
Sua Majestade ficaria tão compenetrado quanto ele,
depositário da casinha de transporte com a bichana e seus
quatro filhotes.
A geladeira, com a qual sua mulher recomendara
máximo cuidado, ficou imprensada na porta. Não sai nem
entra.
— Esse vaso de planta não é nosso, é do vizinho!
Deixa isso aí!
156
— Ei! Ceará, ajuda aqui!
Quando a confusão chega ao ponto mais alto,
aparece um sujeito querendo vender serviços de telefonia.
— Onde está o dono da casa?
O dono ali está, óbvio. E que casa? – ele se
surpreende com a sua verdade: está sem casa.
Até que a filha menor desvia-o de sua sensação
reflexiva de nômade, exibindo com orgulho:
— Olha, pai, achei sua agenda!

157
Índice por títulos

O primeiro passo -7
As aparências enganam-9
Quando se mergulha pela segunda vez, o rio não é mais
o mesmo* - 11
O bem-estar da nossa família dentro de casa é tudo-13
Na minha casa tudo tem sentido-15
Felipe e Lídia-17
Sete mudanças em três meses-19
Suco de laranja – 21
Nada aos filhos – 23
A um quarteirão-25
Vida nova- 27
Minha casa azul- 29
A casa certa no lugar errado- 31
Agradeço a Santo Expedido a graça alcançada- 33
O valor e o preço pago pelo imóvel- 35
Parece milagre-37
Nota 1000 – 39
Não aceitaria o dinheiro-41
Aprendi ame dedicar mais às pessoas que às coisas- 43
O trânsito e o rodoanel- 45
Minhas orações atendidas- 47
A casa é a estabilidade da gente-49
Meu céu- 51
158
Desapegado – 53
A casa invertida-55
A casa do sítio- 57
A vida é um conto que se conta-59
Bela e egoísta- 61
50 m² - 63
Voo maior-65
O efeito e a causa- 67
Um sonho e nove casas-69
A grande casa pequena-71
O trabalho nem parecia pesado- 73
Meu xodó- 75
Predestinado-77
A troca parecia impossível – 79
Algodão entre os cristais – 81
Uma casa inesquecível – 83
Como se fosse minha- 85
Dever cumprido – 87
Uma benção – 89
Acolhedora- 91
Bonita por si só – 93
Go home – 95
A nossa casa- 97
Mais importante e nos embelezar por dentro-99
O sonho da minha mãe... – 101
...Um presente... - 103
...A energia boa...- 105
Guardado para nós... 107
...O apartamento guardado – 109
Minha casa me guarda como um abraço-111
A família é nossa base- 115
Cheiro bom – 117
A casa influencia a coletividade – 119

159
Tem até tucano-121
Saudade de casa que nunca existiu- 123
A edificação não é tudo – 125
Cuidada pela vizinhança- 127
A casa compartilhada- 129
Você faz suas escolhas e suas escolhas fazem você– 131
Útil e agradável -133
Portas abertas- 135
Relógio externo- 137
Éramos cinco- 139
Digital e feminista – 141
Depois da reforma- 143
O diplomata inglês de 1799 e eu – 145
Assistiu à demolição – 149
A mudança -151

160
Notas:

Página:
8* Quando se mergulha pela segunda vez, o rio não é mais
o mesmo, suas águas não são nunca as mesmas e nós não
somos nunca os mesmos. (Heráclito de Éfeso- filósofo grego)
43* Viviane Mosé - foto publicada na revista Cláudia nº
549 – O poema faz parte do livro Pensamento Chão de
2001.
58* A vida é um conto que se conta (frase bíblica)
63* Texto publicado na revista Morar de 01/06/07
* A foto extraída do site: brinquedos.faroeste.nom.br.
109* Porcelana de Copenhaga dura da primeira metade do
século XVII - do livro “Antiguidades e restauração” —
Planeta D´Agostini
126* Você faz suas escolhas e suas escolhas fazem você.
Willian Shakespeare
143*Foto extraída da revista Casa Cláudia nº 549
146* Condottiero: um senhor feudal que controlava uma
milícia, sobre a qual tinha comando ilimitado.
161
147* vivenda senhorial: casa que tem um senhorio, uma
casa alugada.

162
Shirley Aparecida Pires, 47 anos, paulista, corretora de
imóveis:
“A conquista da casa é Quase tão marcante, quanto o
nascimento de um filho”

(2ª ORELHA)

163

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