JORNAL

EDICAO nº 25. Jun, 2023

Periódico Pedagógico para estudantes do
Ensino Fundamental Anos Finais
e Ensino Médio.

CAPA: Como o TikTok

está ajudando a criar
uma nova geração de
leitores no país pág 8

Dicas valiosas para

inspirar jovens
cientistas pág 10

Bebês geneticamente
modificados já são uma
realidade pág 7

Paraense de 18 anos
tem mais de 15 prêmios
por criar tijolo de
caroço de açaí pág 6
2 JORNAL LUPA n. 25, Jun 2023 E D I T O R I A L

SU M Á RIO
O poder atemporal da Literatura e a
inspiração para enfrentar desafios
2 • editorial

3 • cidades Por Leonardo Távora

A literatura é um tesouro atemporal que dade e a clareza de pensamento necessá-

também transcende as barreiras do espaço, rias para enfrentar seus desafios com mais
sendo capaz de envolver leitores de todas equilíbrio emocional.
4,5 • história as idades. Essa frase é clichê, mas traduz Ao ler romances de ficção científica, como
muito a verdade, no sentido que, através "1984", de George Orwell, ou distopias
das páginas dos livros, as histórias ganham como "Admirável Mundo Novo", de Aldous
vida, transportando-nos para universos des- Huxley, os leitores são desafiados a refletir
conhecidos e nos permitindo explorar as pro- sobre questões sociais, políticas e éticas
6,7 • Ciencia fundezas da condição humana. que permeiam a sociedade contemporâ-
Especialmente para os jovens, a literatura nea. Não é incrível?
8 • matéria de capa possui um poder transformador único, ca- Além disso, a literatura expande horizon-
paz de inspirar e auxiliar na superação de tes, promovendo a compreensão de dife-
desafios. Os livros, ao longo dos séculos, rentes culturas e perspectivas, e oferece um
tem sido uma testemunha silenciosa das vi- refúgio seguro para a reflexão e o autoconhe-
cissitudes humanas (e eu espero que você cimento. Ao estimular a criatividade e o pen-
10 • curiosidades encontre o significado disso no dicionário). samento crítico, a literatura equipa os jovens
Ela oferece aos jovens a oportunidade de se conectar com as habilidades necessárias para enfrentar os
11,12 • cinema com personagens fictícios que enfrentam desafios desafios do século XXI.
semelhantes aos seus, proporcionando um senso O que eu quero dizer aqui é que em um mundo em
de empatia e solidariedade. constante mudança, a literatura permanece
13-15 • literatura Através de personagens como Harry Pot- como um farol de luz, guiando as pessoas
Em um mundo
ter, de J.K. Rowling, ou Katniss Everdeen, em constante em sua jornada de autodescoberta e ca-
de Suzanne Collins, podemos encontrar mudança, pacitação. Espero que os jovens de hoje
modelos de coragem, perseverança e a literatura se inspirem na magia das palavras, mer-
resiliência, que os encorajam a enfrentar permanece como gulhem nas páginas de livros poderosos
seus próprios obstáculos. Além disso, a li- um farol e descubram em si mesmos a coragem e
E X P ED IEN T E teratura apresenta uma janela para diferen- a resiliência que os ajudarão a superar to-
Responsável – Projeto Lupa: Weyner tes culturas, épocas e realidades. Ao explorar dos os desafios que encontrarem no caminho.
Lopes Rodrigues obras clássicas como "Dom Quixote", de Miguel de Com a literatura como aliada, temos o poder de es-
Diretor da Escola de Formação da Cervantes, ou "Orgulho e Preconceito", de Jane Aus- crever a nossa própria história e transformar o mun-
Secretaria de Educação de Minas ten, os jovens de hoje são expostos a perspectivas e do ao nosso redor.
Gerais valores que vão além de sua
Conteudistas Vol. 25:
própria experiência de vida.
Leonardo Távora
Essa expansão de horizon-
Ana Tafnes
Vinícius Braz
tes estimula a imaginação
Viviane Soares e promove a compreensão
Mônica Couto de que existem várias for-
* Esta publicação é para fins mas de encarar os desafios
didáticos. Proibida a comercialização da existência.
Projeto Gráfico: Oros Soluções Ao mergulhar em um bom
Educacionais livro, todos somos convi-
ASCOM: Pablo Lima dados a nos desconectar
Supervisão: Anderson Camelo do mundo exterior e a nos
Direção: Ana Paula Ribeiro conectar com a gente mes-
Coordenação de Equipe:
mo, estimulando a reflexão
Lúcio Gomes
e o autoconhecimento. Essa
Designers:
Douglas Lendel, imersão literária, claro, ofe-
João Victor Sampaio rece uma oportunidade de
Natália Guimarães fuga temporária dos proble-
Ilustrações: Natália Guimarães mas cotidianos, permitindo
Diagramação: Douglas Lendel que recuperemos a sereni-
C I D A D E S
Direito à cidade
A ideia de Direito à Cidade surge em 1968, concebendo, sobretudo, o direito de transformar e renovar a
cidade a partir de nossas necessidades e desejos como seres humanos e não em favor do capital.
Disponível em:https://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2018/12/guia-sao-paulo_alta.pdf.. Acesso em: 4 jun. 2023.
Passados 50 anos, muitos movimentos sociais e po-
pulares apropriaram-se desse direito, dando a Direito
à cidade novos significados a partir de suas lutas. No
entanto, para muitas pessoas, a cidade continua sen-
do um ambiente precário, inacessível e violento. A luta
pelo Direito à Cidade continua atual e necessária.
Foto: Agência de Notícias da Prefeitura de Curitiba/
Reprodução
Uma prova disso foram as jornadas de junho de
2013, quando milhares de pessoas foram às
ruas do Brasil reivindicando cidades mais
justas e melhores serviços públicos.
Atualmente, entende-se que o “Di-
reito à Cidade é o direito de todos os
habitantes, presentes e futuros, perma-
nentes e temporários, de habitar, usar,
ocupar, produzir, transformar, governar e
desfrutar de cidades, aldeias e assentamentos
humanos justos, inclusivos, seguros e democráticos,
definidos como bens comuns essenciais para uma
vida decente, que devem ser compartilhados e be-
neficiar todos os membros da comunidade”.
O direito à cidade significa garantir cidades que se-
jam livres de discriminação; com igualdade de gêne-
ro; que abracem minorias e promovam diversidade
étnica, racial, sexual e cultural; com maior participa-
ção política; e com economias diversas e inclusivas.
Esse direito está previsto nos tratados internacio-
nais de direitos humanos e também nas normas
brasileiras, especialmente a Constituição de 1988 e
o Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001).
A efetivação desse direito requer o respeito, a prote-
ção e o cumprimento de todos os direitos humanos,
juntamente com os princípios e direitos específicos
que somente o Direito à Cidade prevê: as funções
sociais da terra, da propriedade e da cidade; a luta
contra a discriminação socioespacial; espaços públi-
cos de qualidade; e ligações rural-urbanas sustentá-
veis e inclusivas.
MOBILIDADE
Como você circula na sua cidade? Anda a pé, usa
bicicleta, transporte coletivo ou carro? Quanto tem-
po demora para chegar em casa, no trabalho ou na
escola? Se quiser sair para se divertir, tem como vol-
tar para casa? As mulheres se sentem seguras em
seus trajetos?
Todas essas questões dizem respeito à nossa mobi-
lidade urbana, que são as condições para as pesso-
as se locomoverem em uma cidade. A Constituição
garante que todos podem ir e vir, circular pelo terri-
tório livremente, e para a juventude não é diferente.
No entanto, enfrentamos diversos problemas para
nos locomovermos, como o alto preço das passa-
gens e a escassez ou mesmo falta do serviço em
algumas regiões da cidade.
Algumas políticas foram criadas para tentar so-
lucionar os problemas de mobilidade, dentre elas
o Plano Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Nº
12.587/2013), baseado na ideia de um desenvol-
vimento urbano sustentável e democrático. Para
pessoas com deficiência ou com mobilidade
reduzida, as condições de acesso a trans-
porte e trânsito na cidade estão asse-
guradas pela Lei nº 13.146/2015, a Lei
Brasileira de Inclusão com Deficiência.
Além disso, em 2015, foi aprovada a
Emenda Constitucional 90, que tornou o
transporte um direito social constitucional,
assim como a saúde e a educação. E para a
juventude como um todo, o direito ao passe livre
estudantil ou às passagens com valor reduzido é
uma das maiores conquistas.
MORADIA
O direito à moradia integra o direito a um padrão
de vida adequado. Não se resume a apenas um
teto e quatro paredes, mas ao direito de toda
pessoa ter acesso a um lar e a uma comunida-
de seguros para viver em paz, com dignidade e
saúde física e mental. A moradia adequada deve
garantir: segurança da posse; disponibilidade de
serviços, infraestrutura e equipamentos públicos;
custo acessível; adequação física às necessidades
de cada família (habitabilidade); localização ade-
quada com oportunidades de desenvolvimento
econômico, social e cultural.
O problema da moradia atinge milhares de famílias
em todo o país, a grande maioria delas com renda
familiar mensal de até 3 salários mínimos. A falta
histórica de políticas habitacionais apropriadas as-
sociada à especulação imobiliária produziu cidades
excludentes, nas quais a população de baixa renda
não consegue ter acesso a uma moradia bem locali-
zada e com padrões adequados.
Por isso, para promover o direito à moradia é
fundamental que exista uma diversidade de po-
líticas urbanas e programas habitacionais que
dialoguem com as diversas necessidades das
diferentes famílias: locação social, produção de
novas habitações bem localizadas na cidade,
combate à especulação imobiliária e ocupação
de imóveis vazios, urbanização de favelas e re-
gularização fundiária.
Periódico pedagógico para estudantes 3
ESPAÇO PÚBLICO
O direito à cidade também inclui o direito à apro-
priação do espaço público, aquele que é de uso
comum e posse coletiva. O uso de ruas, praças e
parques para atividades culturais, políticas e de la-
zer está cada vez mais na pauta dos moradores das
cidades brasileiras.
Uma série de iniciativas populares, das regiões mais
centrais às mais periféricas, reivindica a democrati-
zação desses espaços. A ocupação do espaço públi-
co muitas vezes provoca tensões com a administra-
ção municipal ou a polícia, e com outros moradores.
MEIO AMBIENTE
Temos direito a uma vida digna e à preservação dos
recursos naturais, o que é responsabilidade das pes-
soas, da sociedade e do Estado. Nas cidades, há uma
série de espaços naturais que devem ser preservados
e cuidados para o bem-estar de toda a comunidade.
Mas é importante observar que essas áreas não estão
igualmente distribuídas no espaço urbano, de forma
que é preciso reivindicar uma maior democratização
de parques, praças e áreas verdes.
Outra questão fundamental é assegurar a integra-
ção entre os espaços urbanos, rurais e ambientais,
preservando práticas e saberes. Os movimentos
agroecológicos são um bom exemplo de iniciativas
que promovem o aproveitamento de espaços para
o cultivo de alimentos e criações de animais.
CAMPANHA NA CIDADE SEM MEU CARRO
Na cidade sem meu carro (em inglês: European Mo-
bility Week) é uma campanha mundial que visa uma
reflexão sobre o uso intensivo do automóvel nas ci-
dades e seus efeitos na emissão de poluentes; per-
da de qualidade de vida; redução de áreas verdes
e de convivência para construção de novas vias de
tráfego entre outras externalidades negativas.
A data era realizada de maneira pulverizada em al-
guns países europeus, mas principalmente na Fran-
ça. A partir do ano 2000 foi adotada a entrada do
outono no hemisfério Norte, 22 de setembro, como
a data oficial do evento que assim passou a ser rea-
lizada de maneira integrada em diversas cidades da-
quele continente. Atualmente é realizada a "Semana
Europeia da Mobilidade".
No Brasil, o evento foi realizado em 2000 de ma-
neira pioneira pelos funcionários da empresa gesto-
ra de transportes de Belo Horizonte, a BHTRANS,
originando a ONG transporte e ecologia em movi-
mento - ongtrem.
A Campanha “Na Cidade Sem Meu Carro” aconte-
cerá entre os dias 16 a 23 de setembro de 2023.
4 JORNAL LUPA n. 25, Jun 2023 H I S T Ó R I A

As descobertas que estão mudando

o que sabemos sobre os neandertais
Em algum momento, entre 50 mil e 135 mil anos atrás, mãos sujas de
sangue carregaram mais de 35 cabeças de animais enormes com chifres
para o interior de uma caverna pequena, escura e sinuosa.
Disponível em: https://tinyurl.com/3bb2p4jk.
Pequenas fogueiras foram acesas sobre o chão de mento é uma questão fundamental que intriga os
pedras. Na câmara iluminada pelas chamas, ecoava pesquisadores. E, apesar dos imensos avanços da
o ruído monótono dos homens batendo, quebran- arqueologia alcançados nos últimos 160 anos, a
do e esmagando os crânios de bisões, gados selva- resposta para estas questões ainda é difícil e, às
gens, cervos-vermelhos e rinocerontes. vezes, problemática — em parte, devido aos nos-
Esta cena sangrenta não é a abertura de um ro- sos próprios preconceitos. que temos é a arqueologia e a ciência do século 21
mance de horror da era glacial. É o cenário de um Os neandertais sempre representaram um con- para nos ajudar a reconstruir, ao máximo possível, a
fascinante mistério dos neandertais. traste filosófico para o Homo sapiens — ou seja, vida dos nossos parentes extintos.
No início de 2023, pesquisadores anunciaram que para nós mesmos. O cérebro e seu uso
um sítio arqueológico espanhol — cujo nome é um Inicialmente, eles eram a única outra espécie de Os neandertais estão entre os nossos parentes
trocadilho, Cueva Des-Cubierta — abrigava uma hominídeo conhecida na Terra. E, mesmo com a mais próximos conhecidos. Nosso último ancestral
quantidade incomum de crânios de animais de descoberta de outras espécies antigas, eles manti- comum viveu em algum momento de 550 mil a
grande porte. veram um lugar especial como "os outros", uma es- 800 mil anos atrás, o que é um período realmente
As cavernas do Vale de Lozoya, a cerca de uma hora pécie de espelho com o qual nos comparávamos. muito recente em termos de evolução.
de carro ao norte da capital espanhola, Madri, eram E essas comparações, até pouco tempo atrás, eram Somente por isso, já deveríamos esperar que os
conhecidas desde o século 19, mas a Des-Cubierta todas a nosso favor. neandertais fossem muito parecidos conosco em
só foi encontrada em 2009, durante uma pesquisa O fato de os neandertais terem desaparecido diversos aspectos, incluindo o poder cerebral. Os
em outras cavernas na encosta da montanha. há cerca de 40 mil anos, depois de terem sobre- crânios dos neandertais, por exemplo, indicam
À medida que os pesquisadores escavavam lenta- vivido no oeste da Eurásia por centenas de mi- que seu cérebro tinha pelo menos o mesmo vo-
mente as camadas no seu interior, começou a sur- lhares de anos, era considerado uma evidência lume do nosso.
gir uma imagem impressionante do local. de que houve algo que fez com que eles "me- Mas a mente envolve muito mais do que apenas o
Eles afirmam que os crânios têm um significado recessem" sua extinção (no sentido científico e, tamanho do cérebro. Os cérebros dos neandertais
que vai além dos simples detritos da caça e coleta. talvez, também moral). podiam ser grandes, mas, aparentemente, eram um
Na verdade, eles acreditam que os crânios eram Conscientemente ou não, os pesquisadores pro- pouco diferentes.
simbólicos — talvez um santuário que abrigava os curavam provas de que os neandertais eram me- Seu formato geral — que deduzimos a partir do
troféus da caçada. nos bem-sucedidos — uma versão beta da hu- formato interno do seu crânio — era diferente.
Se os pesquisadores estiverem certos, isso le- manidade, destinada a ser substituída pela nossa Isso pode indicar possíveis funções cerebrais
vanta uma perspectiva tentadora. Os neander- espécie superior. E um dos elementos mais ób- distintas, devido à forma em que as diferentes
tais teriam sido capazes de formar conceitos vios em que eles se concentravam refletia exata- regiões do cérebro parecem estar relacionadas
simbólicos complexos — comportamentos carac- mente o que acreditávamos que distinguia nossa com funções específicas, como o pensamento
terísticos da nossa espécie. espécie de todas as outras formas de vida no analítico e a memória.
Será que podemos realmente sugerir que os nean- planeta Terra: a cognição. Também podemos encontrar indicações genéti-
dertais, espécie de hominídeo que se extinguiu há Mas o que é a cognição? Em poucas palavras, é a cas. Pesquisas recentes descobriram, por exemplo,
cerca de 40 mil anos, desenvolveram rituais basea- forma como pensamos — nossos processos e ha- que alterações minúsculas em dois genes ligados
dos nos crânios das suas presas? bilidades mentais, desde a solução de problemas ao desenvolvimento neurológico tiveram impactos
Outras descobertas demonstram diversos aspec- até a nossa imaginação. E ela também inclui a atri- importantes no cérebro humano.
tos da sua cultura e algumas até sugerem que os buição de significados simbólicos a ações, objetos Uma delas, denominada NOVA1, afeta o cresci-
neandertais produziam formas do que podemos ou lugares. mento e a atividade elétrica dos neurônios. Já ou-
chamar de arte. Mas as respostas ainda Se a equipe de pesquisa que está escavando tra, TKTL1, parece aumentar significativamente a
estão longe de serem claras. em Des-Cubierta estiver certa, os nean- quantidade de neurônios e o número de dobras do
Entrar na mente dos povos antigos é Conscientemente dertais aparentemente eram capazes de cérebro. Os neandertais tinham versões levemente
um dos grandes desafios da arque- ou não, os atingir pelo menos algumas dessas for- diferentes desses genes.
ologia, que dirá na mente de uma pesquisadores mas superiores de cognição. E, quando os pesquisadores inseriram um gene
procuravam provas
espécie diferente da nossa. de que os neandertais É claro que os neandertais não estão NOVA1 de neandertal em células-tronco humanas
Desde que foram identificados os eram menos bem- aqui para que a gente possa perguntar para fazer crescer os chamados "minicérebros" (na
primeiros restos de neandertais no sucedidos o que eles pensavam — e tampouco po- verdade, conjuntos de células diferenciadas), eles
século 19, sua forma de vida e pensa- demos viajar no tempo para observá-los. O descobriram que o gene alterou o crescimento dos
 Periódico pedagógico para estudantes 5

neurônios e as conexões entre eles, em compara-
ção com a nossa espécie.
Da mesma forma, a versão neandertal do TKTL1
— diferente da nossa em apenas um aminoácido
— pode ter levado a espécie a desenvolver um
neocórtex menor que o dos seres humanos mo-
dernos. E o neocórtex é a parte do cérebro rela-
cionada às funções cognitivas superiores, como
o raciocínio e a linguagem.
Mas alguns pesquisadores sugerem que milhões
de seres humanos modernos também podem
carregar a "versão neandertal" deste gene, o que
levanta novas dúvidas sobre a diferença entre os
nossos cérebros e os dos nossos parentes.
Os ossos e o DNA são a única forma de ex-
plorar como realmente teria sido a mente
dos neandertais.
Pesquisas recentes sobre a sua audição, por parecem ser exclusivos da nossa espécie, como a
exemplo, sustentam a ideia de que os neander- elaboração de projetos de manufatura mais exten-
tais se comunicavam pela voz na sua vida sos e complicados.
diária. E a arqueologia, que é o instru- Acredita-se, por exemplo, que a produ-
mento mais próximo de uma máqui- Os avanços da ção de arcos e flechas tenha sido in-
na do tempo que temos disponível, arqueologia nas últimas ventada pelo Homo sapiens na África,
pode nos mostrar o que eles real- três décadas produziram pelo menos 80 mil anos atrás. E que
mente faziam e sobre o que eles uma espécie de este processo tenha sido introduzido
renascimento da nossa
provavelmente falavam. compreensão
na Eurásia por algumas populações há
Os avanços da arqueologia nas últi- 55 mil anos.
mas três décadas produziram uma es- Mas, do uso da pedra e da tecnologia
pécie de renascimento da nossa compre- da cola até as técnicas de caça, aos pou-
ensão, minando inevitavelmente os preconceitos cos descobrimos cada vez mais sobre os nean-
de que os neandertais, de alguma forma, eram dertais — e as diferenças entre as duas espécies
inferiores a nós. parecem cada vez menores. Atualmente, são re-
Embora haja uma perspectiva crescente das capa- lativamente poucas as áreas em que ainda ob-
cidades cognitivas dos neandertais, alguns pontos servamos diferenças claras.

S A Ú D E

Sono e o aprendizado
Depois de um dia de estudo, nada melhor do que dormir!
Por Giorgia Lay-Ang Graduada em Biologia. Disponível em: https://tinyurl.com/2p9c86nz.
Acesso em: 8 jun. 2023

Uma noite de sono profundo e relaxante é
o que naturalmente recompõe as energias
após um dia de estudo, trabalho e estresse
das grandes e também das pequenas cida-
des. Dormir bem é sinônimo de qualidade
de vida e de prevenção de doenças cardio-
vasculares, Alzheimer ou de doenças que
envolvem o sistema hormonal.
O sono, além de beneficiar o corpo e pre-
venir doenças, é fator relevante quando
se trata de concentração e aprendizado.
Quando se dorme bem, a atenção aumenta
e fica muito mais fácil aprender, melhoran-
do assim o desempenho intelectual do indi-
víduo que teve uma boa noite de sono, pois
ela interfere no armazenamento de infor-
mações. Durante o sono, as memórias do
dia serão consolidadas, as antigas são rea-
firmadas e tanto o corpo quanto a mente se
preparam para um novo dia.
No sono, há diferentes etapas. Em cada
uma delas uma parte da memória é pro-
cessada. Por exemplo, nas fases mais le-
ves do sono, as informações relativas à
música e ao esporte são armazenadas.
Depois disso, a memória espacial é arma-
zenada para posteriormente as novas in-
formações serem fixadas.
Para a maioria das pessoas, o sono ideal
dura cerca de 8 horas ininterruptas. O que
não significa que para outras não possa ser
necessário maior ou até menor número de
horas. É importante saber que a menor lu-
minosidade e a temperatura mais baixa do
organismo contribuem para um descanso
mais efetivo. Portanto, mesmo que esteja
estudando ou trabalhando muito, nunca
prive seu organismo de uma boa noite de
sono, ideal para diminuir a irritabilidade e
estresse, melhorando o aprendizado e a
qualidade de vida.
6 JORNAL LUPA n. 25, Jun 2023 C I Ê N C I A

Paraense de 18 anos tem mais de 15

prêmios por criar tijolo de caroço de açaí
Com o projeto, Francielly Rodrigues Barbosa ganhou uma viagem para conhecer
Harvard e participa de eventos para inspirar jovens cientistas
Por Nathalia Fabro. Fonte: Revista Galileu. Disponível em: https://tinyurl.com/yc56md8x. Acesso em: 5 jun. 2023

Aproximadamente 90% de todo o açaí consumido Reconhecimento sino Médio, Barbosa toca sua pesquisa em paralelo.
no mundo é produzido no Pará. No entanto, apenas No desenvolvimento do projeto, ela ganhou uma A jovem conseguiu parceria com um laboratório da
4% do fruto é aproveitado; o resto – principalmente credencial para participar da Feira Brasileira de Ci- Universidade de São Paulo (USP), onde estão sen-
o caroço – permanece sem uma utilidade definida. ências e Engenharia (FEBRACE) de 2018. O evento do testadas diferentes fórmulas da mistura com o
Isso acaba provocando a contaminação do meio científico é voltado para jovens e um dos mais im- caroço. A ideia é descobrir em quais porcentagens
ambiente regional, visto que não há uma estratégia portantes do país. Na ocasião, ela recebeu dez prê- é possível criar outras aplicações para alvenaria,
eficiente de descarte. mios pela pesquisa com o caroço do açaí. "Antes, eu como telhas, cimento e argamassa. "É para testar a
Foi a partir desta perspectiva que Francielly achava que a minha participação nestas feiras resistência do material. Agora temos um ano para
Rodrigues Barbosa, de 18 anos, resolveu não teria nenhum impacto, mas agora eu fazer os testes e abranger um pedido de patente",
desenvolver um projeto para amenizar chego nos lugares e fico emocionada ela informa.
o problema ambiental e ainda ajudar Brincar também é quando adolescentes dizem que não #LugarDeMulherÉNaCiência
ciência. Foi legal para
os moradores de sua cidade, Moju, a desistiram da ciência por causa da mi- Barbosa começou a se interessar por ciência aos
mostrar que a ciência
cerca de 120 km de Belém. "O caroço inclui todo mundo, nha história", ela declara. oito anos de idade, quando participou pela pri-
possui uma substância chamada lig- basta querer. Uma das premiações foi uma viagem meira vez de uma feira científica em sua escola e
nina, que impede o ataque de fungos, aos Estados Unidos para conhecer a do Clube de Ciências de Moju. "Vi tantas coisas
demorando a decomposição", ela explica Universidade de Harvard e o Instituto de interessantes que me apaixonei e decidi que que-
à GALILEU. "Isso causa mau cheiro, chorume Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla ria fazer aquilo", comenta.
e a liberação de gás metano." em inglês). "Foi sensacional, me senti em um filme Ela pretende cursar engenharia, mas ainda não sabe
Aluna da Escola Estadual Ernestina Pereira Maia, de ficção científica. Quando entrei em Harvard, vi em qual das áreas irá se especializar. "Mas com cer-
Barbosa começou o projeto no primeiro ano do En- o quanto eles investem na tecnologia e educação. teza será em uma área de STEM [ciência, tecnologia,
sino Médio – agora ela já está cursando o último Como eu quero que o Brasil se torne assim." engenharia e matemática]", conta. Barbosa ainda
ano. A inspiração para a pesquisa veio de uma pro- Em 2019, ela também participou da FEBRACE, afirma que a participação dela em palestras, con-
fessora, que comentou com ela sobre os problemas onde ganhou mais cinco prêmios. Entre participa- gressos e viagens ampliaram seu campo de visão
de odor ruim e rachaduras nas casas de um bairro ções em feiras e outros eventos de ciência, ela cole- para o ensino superior. "Penso que posso entrar na
de Moju. ciona mais de 15 prêmios. USP ou estudar no exterior. É tão maravilhoso. Se é
A jovem descobriu que muitas residências foram Construção possível para mim, é possível para qualquer jovem."
construídas em terrenos frequentemente usados Para criar o tijolo de açaí, ela convidou jovens de Para ela, ser cientista significa poder ajudar as
como local de descarte de lixo. Como as constru- Moju para ajudá-la. Eles colocaram os caroços para pessoas – mas também considera essencial que
ções foram levantadas sem regularização, a decom- secar, depois carbonizaram e os trituraram em um os jovens cientistas tenham suporte de familia-
posição acabou afetando as estruturas – e a vida pilão. A massa resultante foi misturada com argila e res, amigos e professores. "Peço que as pessoas
da população. "Comecei a pensar qual material de carvão para chegar ao produto final. "Foi um traba- orientem os alunos a não deixar os sonhos deles
baixo custo e que não agride o meio ambiente eu lho muito divertido", conta. "Brincar também é ciên- morrerem", ela diz. "Eu tive sorte, pois a minha
poderia aproveitar para fazer a fundação de forma cia. Foi legal para mostrar que a ciência inclui todo família sempre me apoiou. Se não fosse isso, eu
segura", conta Barbosa. "Não tinha como desenvol- mundo, basta querer." nunca teria ido para fora do país e conhecido vá-
ver algo que custasse muito dinheiro." No momento, enquanto cursa o último ano do En- rios cantos do Brasil."

Exemplos de tijolos criados por

Francielly Rodrigues Barbosa
(Foto: Divulgação)
C I Ê N C I A
Bebês geneticamente modificados já são
uma realidade
Por Virginia Meneghini Lazzari – Dpto. de Biologia Celular Embriologia e Genética, UFSC.
Disponível em: https://bit.ly/43uhDfP. Acesso em 09 jun. 2023.
A tecnologia de edição do DNA vem pentier e Jenifer A. Doudna) permite
sendo utilizada para desenvolver Cientistas que os cientistas façam alterações
cura e tratamentos para doen- descobriram genéticas com relativa facilidade.
ças, criar testes de diagnósticos, que é possível A enzima Cas9 corta o DNA em
editar o DNA de
produzir variedades agrícolas embriões humanos, um local indicado por uma mo-
resistentes às mudanças climá- causando debates lécula guia. O DNA é editado no
ticas, entre outros. Os estudos na comunidade local que foi cortado pela enzima
de edição gênica são conduzidos científica e, em seguida, a maquinaria das
principalmente em linhagens celula- células passa a gerar proteínas a par-
res ou em modelos animais. No entan- tir dessa sequência modificada. A CRIS-
to, este cenário vem mudando desde 2015. PR-Cas9 passou a ser utilizada em embriões
Cientistas descobriram que é possível edi- humanos a partir de 2015, quando um gru-
tar o DNA de embriões humanos, causando po de cientistas chineses editou embriões
debates na comunidade científica sobre os humanos triploides. Embriões triploides são
limites éticos implicados nesse novo passo incompatíveis com a vida, pois apresentam
da ciência. As discussões sobre o assunto três cópias de cada cromossomo e, portanto,
tentam responder perguntas como: A técni- são comumente descartados nas clínicas de
ca de edição gênica é segura para ser apli- reprodução assistida. Esse primeiro estudo
cada em embriões humanos? Quais seriam na área demonstrou dois problemas: a edi-
as consequências da criação de indivíduos ção gênica gerava embriões com mutações
“transgênicos” para as futuras gerações? em regiões diferentes da região alvo e oca-
Será que existe a real necessidade de editar sionava mosaicismo nos embriões (diferen-
o DNA de embriões ou existem alternativas tes células do embrião apresentavam dife-
mais seguras? Caso a edição gênica de em- rentes sequências genéticas).
briões passe a ser utilizada, quais seriam os Em seguida, outros dois estudos, também
responsáveis pela supervisão ética da apli- com embriões triploides, foram conduzi-
cação da técnica? dos em 2016 e 2017, apresentando em-
A edição do DNA utiliza a técnica CRIS- briões com mutações somente no local
PR-Cas9 (que rendeu o prêmio Nobel de escolhido, porém ainda apresentando mo-
Química de 2020 às duas cientistas desen- saicismos em seus resultados. Em 2017,
volvedoras da técnica, Emmanuelle Char- cientistas dos Estados Unidos usaram a
CRISPR-Cas9 para
corrigir uma mutação
causadora de doen-
ças, o grupo criou 58
embriões humanos
fertilizados com es-
permatozoides com
uma mutação chama-
da MYBPC3 e logo
em seguida editados
com a técnica CRIS-
PR-Cas9. Os resulta-
dos foram promisso-
res, os pesquisadores
não encontraram evi-
dências de mudanças
genéticas fora do alvo
e geraram apenas um
único mosaico em
um experimento en-
Periódico pedagógico para estudantes 7
volvendo 58 embriões. Em
comparação, quando a maqui-
naria de edição gênica CRISPR-Cas9 foi
injetada 18 horas após a fertilização, 24%
dos embriões tratados eram mosaicos.
Alguns países consideram ilegal a criação
de embriões humanos para fins de pes-
quisa. Nestes casos, os embriões utiliza-
dos devem ser embriões excedentes de
clínicas de fertilização in vitro, que nor-
malmente encontram-se em estágios mais
avançados de desenvolvimento.
Com esses embriões, não é possível con-
duzir a edição gênica em um período pró-
ximo da fertilização, colocando o tipo de
estudo em que a maquinaria CRISPR-Cas9
é introduzida ao mesmo tempo em que o
espermatozoide, fora do alcance. De qual-
quer forma, essas pesquisas são importan-
tes para testar a segurança da técnica antes
que ela seja aplicada na prática clínica.
Atualmente, a aplicabilidade da edição gê-
nica de embriões humanos encontra três
esferas de preocupação: a primeira é a
segurança de uma técnica que ainda está
imatura, mas que apresenta perspectiva
promissora de aplicação; a segunda é a de-
finição de quais são as situações razoáveis
para gerar um bebê geneticamente modi-
ficado frente às outras opções oferecidas
pela ciência atual; a terceira é sobre quais
são os limites éticos da edição gênica e
quem são os responsáveis por definir es-
ses limites. Neste contexto, foi anunciado
na China, em 25 de novembro de 2018, o
nascimento de gêmeas modificadas gene-
ticamente. Os embriões tiveram seu DNA
modificado para que pudessem resistir ao
vírus HIV presente no sêmen do pai, ape-
sar de existirem atualmente formas seguras
de evitar a transmissão do HIV de pais para
filhos sem a necessidade da edição gênica.
As pesquisas foram conduzidas sem apro-
vação ética e o pesquisador envolvido no
caso foi condenado a três anos de prisão.
Agora nos resta observar se essa técnica
tão promissora quanto imatura irá causar
algum efeito colateral nas meninas e tor-
cer para que a edição gênica de embriões
humanos seja utilizada com cautela e ética
daqui para frente.
8 JORNAL LUPA n. 25, Jun 2023 M A T É R I A D E C A P A

Como o TikTok está

ajudando a criar uma
nova geração de
leitores no país
Publicação de resenhas literárias vira febre entre jovens
e adolescentes, aquece o mercado e dá status de
celebridade para novos escritores
Por A Gazeta. Disponível em: https://tinyurl.com/bdwfcbam

É quase senso comum imaginar que as crian- ton), “A Garota do Lago” (Charlie Donlea), um vídeo viralizar e alcançar mais pessoas.
ças e os adolescentes, nativos digitais das ge- “Mentirosos” (E. Lockhart) e “Torto Arado” Todo mundo é usuário e criador de conteúdo
rações Z e Alpha, não tenham muito contato (Itamar Vieira Junior). Todas estão na lista ao mesmo tempo”, ressalta.
com os livros nos dias de hoje. Hiperconectada dos livros mais vendidos em 2021, segundo Isso acontece porque os algoritmos do aplica-
e curiosa, essa turma consome conteúdos com levantamento da PublishNews, e todas foram tivo são “educados” pelos usuários a mostrar
a rapidez que os dedos deslizam pelas telas dos sucesso de crítica e indicação no TikTok. conteúdos que estão alinhados aos seus inte-
tablets e celulares. Presencialmente, o impacto pode ser visto nas resses. Se você fizer uma pesquisa sobre a saga
Mas, para a surpresa de muitos, é livrarias, que criaram prateleiras com títulos Harry Potter, por exemplo, o TikTok sugerirá
Na Bienal
justamente o TikTok - aplicativo Internacional do que bombam no TikTok. Na última edição mais vídeos relacionados ao mesmo assunto e
famoso pelos vídeos curtos de Livro booktokers e da Bienal Internacional do Livro de São também temas semelhantes.
dança e humor - que está aju- escritores alçados à Paulo, realizada em julho, booktokers e “As outras redes sociais demandam que o usu-
dando a consolidar uma nova fama pelo aplicativo escritores alçados à fama pelo aplica- ário faça uma busca mais ativa pelos assuntos.
levaram milhares de
geração de leitores assíduos. adolescentes para tivo levaram milhares de adolescentes Já no TikTok, é só ir rolando a tela para cima
As resenhas com indicações de os corredores do para os corredores do evento. que os vídeos aparecem. É mais dinâmico e or-
livros viraram febre na platafor- evento. Bolha de conteúdo gânico”, explica Natália. O perfil dos usuários
ma, composta, em sua maioria, por É fato também que as resenhas literárias não também é outro diferencial.
adolescentes e jovens. são uma novidade na internet. A prática, inclu- Para a neuropsicopedagoga Geovana Mascare-
O fenômeno, que se repete em vários países, sive, ainda resiste em outras plataformas, como nhas, os vídeos do TikTok são bons aliados na
é conhecido como BookTok. Por meio de ví- blogs, Instagram e YouTube. Mas para a pesqui- formação de novos leitores e podem ser usa-
deos criativos, usuários compartilham opini- sadora Natália Huf, doutoranda em Jornalismo dos, inclusive, na sala de aula. No entanto, pais
ões sobre os livros, criam listas de autores pela Universidade Federal de Santa Catarina, o e professores precisam filtrar esses conteúdos
preferidos, fazem leitura de capítulos e até sucesso desses conteúdos no TikTok pode ser previamente. “É importante verificar também
encenam personagens. explicado pela maneira como o próprio aplica- se o livro indicado tem uma linguagem apro-
Para se ter uma ideia, os booktokers, como tivo funciona. priada para a faixa etária da criança ou do ado-
são chamados os amantes da literatura na Enquanto o Instagram cria bolhas por afinida- lescente”, pondera.
plataforma, estão por trás do êxito comercial de, a partir das pessoas que o usuário segue, Em um vídeo de 55 segundos, Patrick Tor-
recente de várias obras, entre elas “Verme- o TikTok prioriza os conteúdos. “Você não res (@patzzic), de 22 anos, conta uma história
lho, Branco e Sangue Azul” (Casey McQuis- depende do número de seguidores para fazer aparentemente chocante. “O meu vizinho es-

pancou a namorada dele outro dia… A polícia
veio aqui e tudo”, começa o relato, todo feito
em primeira pessoa.
Parece fofoca de bairro, mas é, na verdade, o
enredo do clássico “O Estrangeiro”, de Albert
Camus, publicado em 1942. Somente esse ví-
deo já foi visto mais de 5 milhões de vezes e
tem quase 900 mil curtidas no TikTok.
A estratégia de apresentar a história do livro
como se a pessoa tivesse presenciado todos os
fatos narrados, mas sem entregar o desfecho, é
conhecida como “fofoca literária”. Bastante uti-
lizado por booktokers de outros países, o estilo
se popularizou no Brasil somente em 2021, ten-
do Patrick como um dos precursores.
e s te m
i c k To r r
P at r
( A rq
o o k toker Tik Tok.
O b o re s n o
id
seg u
O jovem, que também é escritor e estudante de
Medicina, hoje tem mais de 300 mil seguidores
no TikTok. A publicação dos vídeos começou
em abril de 2021. “Resolvi ler 30 livros em um
mês e precisava de um espaço para falar sobre
eles”, conta.
Filho de uma professora que sempre o incen-
tivou a ler e apaixonado pela obra de Macha-
do de Assis, o estudante não abre mão de falar
sobre os clássicos, especialmente os brasileiros.
“As pessoas ainda associam a leitura de Macha-
do de Assis ao ambiente escolar, e isso pode ser
um pouco desagradável quando feito por obri-
gação”, observa. Para driblar essa resistência,
principalmente entre os mais jovens, é preciso
mil
d e 320
m a is )
oal
i vo Pe s s
u
Periódico pedagógico para estudantes 9
mostrar que o hábito da leitura pode ser cons-
truído de maneira divertida e descomplicada, e
é isso que os booktokers têm feito.
“Nosso papel é mostrar a acessibilidade da lei-
tura, que é possível inseri-la no cotidiano. O jo-
vem pode e deve ler e conversar sobre livros
para além do ambiente escolar ou acadêmico. A
leitura também é um entretenimento de quali-
dade”, reforça.
Com o sucesso no TikTok, Patrick foi chama-
do para falar sobre literatura em escolas e
seus vídeos são usados por professores. Ele
também criou o podcast “Nas horas vagas,
Machado de Assis”, em que lê contos do re-
nomado escritor.
10 JORNAL LUPA n. 25, Jun 2023 C U R I O S I D A D E S

Dicas valiosas para inspirar jovens cientistas

Veja aqui algumas dicas para ajudar você a se dar melhor nas mais diversas situações e, principalmente,
na hora de desenvolver e apresentar seu projeto.
Fonte: Agência Fapesp. Disponível em: https://febrace.org.br/inspire-se/dicas-valiosas/. Acesso em: 8 jun. 2023.

Reunimos cinco dicas da Prof.ª Dr.ª Roseli de
Deus Lopes para inspirar vocês jovens que es-
tão realizando um projeto ou qualquer pessoa
que tenha vontade de realizar, mas não sabe por
onde começar.
Uma parte importante da atividade do
cientista é saber observar e identificar
os problemas e necessidades. Um bom
cientista deve estar atento à realidade
que o cerca.
Nenhum pesquisador trabalha inteira-
mente sozinho, e nenhum aprende so-
zinho a pesquisar. A ajuda de colegas e
a orientação de alguém mais experiente
são fundamentais para a pesquisa e a formação
do pesquisador.
Os cientistas também enfrentam di-
ficuldades financeiras. Quando você
não possui ou não pode adquirir to-
dos os materiais para conduzir a pes-
quisa, tente procurar materiais alternativos
que possam substituí-los. Essa solução pode
ser inovadora.
O interesse pelo tema escolhido é im-
portante. Tente usar a sua experiência
e a criatividade não apenas na realiza-
ção do trabalho de pesquisa, mas tam-
bém na escolha do que pesquisar.
Não desanime se ao desenvolver seu
projeto você chegar à conclusão de
que a hipótese que você formulou não
é válida. Mostrar que uma hipótese
não é válida, ou que uma determinada estratégia
não serve para validar ou não uma
hipótese, também é um resul-
tado importante. Um
Para saber mais, acesse bom cientista
também os vídeos elabora- deve estar
dos pela Professora Dou- atento à
tora Roseli de Deus Lopes realidade que
no endereço eletrônico o cerca.
C I N E M A
19 DE JUNHO - Dia do Cinema Brasileiro: 10 dos filmes
nacionais mais premiados da história
“Central do Brasil” e “Cidade do Deus” são exemplos de longas-metragens que foram indicados a
premiações como Oscar e Globo de Ouro
Leia mais em: https://tinyurl.com/ypzmumwk
Divulgação
“Cidade de Deus” é um dos filmes mais aclama-
dos da história do cinema nacional, com mais de
20 indicações e premiações ganhas
No dia 5 de novembro de 1896, em uma sala
alugada na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, o
Brasil teve sua primeira exibição de cinema. As
oito curtas obras, que surpreendiam a elite ca-
rioca, não passavam de cenas do cotidiano de
algumas cidades europeias. Mas, assim como no
resto do mundo, logo essas imagens se desen-
volveram e os primeiros filmes foram rodados
antes do início dos anos 1900.
Muitos desses longas não chegaram a ser exi-
bidos, mas, pelo ineditismo do fato, são mar-
cos do cinema nacional. O título “Vista da Baía
da Guanabara”, por exemplo, produzido pelo
cinegrafista italiano Affonso Segretto enquan-
to estava a bordo de um navio em 19 de junho
de 1898, fez com que a data ficasse marcada
como Dia do Cinema Brasileiro. Vale lembrar,
no entanto, que o cinema brasileiro também
Periódico pedagógico para estudantes 11
é celebrado no dia 5 de novembro, em home- carioca, que ditam o que querem contar às suas
nagem à primeira exibição da história no país. famílias – no entanto, ela nunca coloca as men-
De qualquer forma, comemorar a cinemato- sagens no correio. O longa teve sua pré-estreia
grafia do Brasil duas vezes é uma atitude mais mundial em uma mostra regional de cinema na
do que justa. Embora o país tenha passado por Suíça, seguido de uma exibição no Festival Sun-
momentos de estagnação e atraso no setor, dance de Cinema, nos Estados Unidos.
principalmente por questões políticas, o A recepção da crítica internacional foi
catálogo de filmes produzidos por aqui O filme quase unânime: o filme recebeu um
é rico e valorizado no mundo inteiro. recebeu um Globo Globo de Ouro e foi a primeira pro-
“Central do Brasil”, lançado em 1998, de Ouro e foi a dução brasileira a receber o Urso de
foi a obra que inseriu a nação, defi- primeira produção Ouro do Festival de Berlim. Além dis-
nitivamente, no circuito mundial. Seu brasileira a receber so, foi indicado ao Oscar de melhor
momento de glória fez parte do reflo- o Urso de Ouro filme estrangeiro e responsável pela
rescimento da produção brasileira, um indicação de Fernanda Montenegro à
período conhecido por historiadores como estatueta na categoria de melhor atriz. A
“cinema da retomada”. brasileira fez história, sendo a primeira latino-a-
Dirigido pelo bilionário Walter Salles e escrito mericana já indicada ao prêmio por uma atuação
por João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, em língua portuguesa – para muitos, o fato de
a obra narra a trajetória de Dora (Fernanda Mon- ela ter perdido o prêmio para Gwyneth Paltrow
tenegro), uma ex-professora frustrada que ganha pelo filme “Shakespeare Apaixonado” foi a maior
a vida escrevendo cartas para pessoas analfabe- injustiça da história do Oscar.
tas na Central do Brasil, famosa estação de trem O Brasil começou bem os anos 2000. Após
“Central do Brasil”, “Cidade de Deus” (2002),
“Carandiru” (2003) e “Tropa de Elite” (2007)
foram alguns dos títulos que conquistaram o
grande público e ganharam enorme prestígio
internacional pela crítica social e qualidade
de produção.
Pelo bem do brasileiro, os tempos de glória não
ficaram restritos à época de lançamento desses
filmes. Nos últimos dez anos, diversos longas ga-
nharam espaço no coração dos críticos e do pú-
blico. Um exemplo disso é “Bacurau”, de 2019,
talvez um dos destaques mais recentes do cine-
ma nacional, que conquistou o Prêmio do Júri no
Festival de Cannes no mesmo ano.
Confira os abaixo os 10 dos filmes nacionais
mais premiados da história:
“Central do Brasil” (1998)
“Cidade de Deus” (2002)
“O Auto da Compadecida” (2000)
“Carandiru” (2003)
“Tropa de Elite” (2007)
“Que Horas Ela Volta” (2015)
“O Pagador de Promessas” (1962)
“Bacurau” (2019)
“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2014)
“O Cangaceiro” (1953)
12 JORNAL LUPA n. 25, Jun 2023 C I N E M A
As Órfãs da Rainha
Dizem que ao banhar em suas águas radioativas ou sulfurosas, o visitante retarda o relógio do tempo e, promove no
corpo, o poder milagroso de cura
Por Raquel Gontijo para portal Hoje em Dia. Disponível em: https://bit.ly/43Lzorr. Acesso em 09 jun. 2023.
Um longa-metragem gravado em uma fazen-
da na cidade de Tocantins, na Zona da Mata,
e dirigido pela diretora, professora e
pesquisadora da UFMG, Elza Catal-
do, chegou ao cinema em todo o
país em 11 de maio.
“As órfãs da rainha” retrata o Bra-
sil Colônia do século XVI e tem
como foco a chegada da Inqui-
sição no país. Apesar do recorte
no passado, o longa discute temas
atemporais, como a opressão às mu-
lheres e os estigmas da intolerância.
A ficção conta a saga de três irmãs que vieram
de Portugal com a obrigação de fundar as pri-
meiras famílias brasileiras. O foco recai espe-
cificamente no momento em que um braço da
inquisição portuguesa, Heitor Furtado de
Mendonça, chega no Brasil.
Ao chegar a um lugarejo do Recôn-
cavo Baiano - a fictícia Vila More-
na, onde as irmãs Leonor, Brites e
Mécia estão instaladas -, o obsti-
nado inquisidor desestabiliza ain-
da mais a já frágil estrutura local,
espalhando medo e insegurança.
Criadas como católicas, mas sem de
todo apagarem os indícios da religião
judaica, as irmãs acabam se tornando alvo de
desconfiança do temido inquisidor.
Para a gravação de “As órfãs da rainha” uma
vila cenográfica foi erguida em uma fazenda no
município de Tocantins.
"O cinema nos possibilita transformar um lugar
em outro, uma pessoa em outra. Nós transfor-
mamos uma fazenda da cidade de Tocantins em
Minas Gerais nesta localização do Recôncavo
Baiano, graças a um trabalho imenso realizado
por um conjunto de profissionais", comenta Elza
o sobre a cenografia.
O roteiro leva as assinaturas da própria direto-
ra, junto a Pilar Fazito e Newton Cannito.
Elza Cataldo é formada em Cinematografia pela
Universidade de Nanterre (França) e é doutora
pela Sorbonne (França).
L I T E R A T U R A
As mãos de meu filho
Dizem que ao banhar em suas águas radioativas ou sulfurosas, o visitante retarda o relógio do
tempo e, promove no corpo, o poder milagroso de cura
Erico Verissimo. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 173.
Todos aqueles homens e mulheres ali na plateia
sombria parecem apagados habitantes dum sub-
mundo, criaturas sem voz nem movimento, pri-
sioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas
de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A
luz circular do refletor envolve o pianista e o pia-
no, que neste instante formam um só corpo, um
monstro todo feito de nervos sonoros.
Beethoven.
Há momentos em que o som do instrumento ga-
nha uma qualidade profundamente humana. O ar-
tista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver.
Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melo-
dias, de sugestões — a origem dum mundo mis-
terioso e rico. Fora do círculo luminoso pesa um
silêncio grave e parado.
Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em con-
flito com os homens. A música parece escrever no ar
estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me
lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais
profundo abismo da desolação e da dor. Não serei,
pois, para ti e para os demais, senão um músico? Será
então preciso que busque em mim mesmo o neces-
sário ponto de apoio, porque fora de mim não en-
contro em quem me amparar. A amizade e os outros
sentimentos dessa espécie não serviram senão para
deixar malferido o meu coração. Pois que assim seja,
então! Para ti, pobre Beethoven, não há
felicidade no exterior; tudo terás que bus-
car dentro de ti mesmo. Tão-somente no
mundo ideal é que poderás achar a alegria.
Adágio. O pianista sofre com Beetho-
ven, o piano estremece, a luz mesma
que os envolve parece participar daque-
la mágoa profunda.
Num dado momento as mãos do artista
se imobilizam. Depois caem como duas
asas cansadas. Mas de súbito, ágeis e
fúteis, começam a brincar no teclado.
Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair
para o campo, dar a mão às raparigas em flor e
dançar com elas ao sol... A melodia, no entanto, é
uma superfície leve, que não consegue esconder
o desespero que tumultua nas profundezas. Não
obstante, o claro jogo continua. A música saltitante
se esforça por ser despreocupada e ter alma leve.
É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas
de repente, as águas represadas rompem todas as
barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilu-
sória, e num estrondo se espraiam numa melodia
agitada de desespero. O pianista se transfigura. As
suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado
como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem
no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas
pessoas do submundo eles têm uma significação
especial, contam uma história diferente.
Quando o artista arranca o último acorde, as luzes
se acendem. Por alguns rápidos segundos há como
que um hiato, e dir-se-ia que os corações param
de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona
da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular
formado pela luz do refletor. O pianista está agora
voltado para a plateia, sorrindo lividamente, como
um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi
exorcizado. Rompem os aplausos.
Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz.
Brota de novo o círculo mágico.
Suggestion Diabolique.
D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os
pés, machucando os calos.
Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.
Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode
ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu Gil-
berto. Parece um sonho... Um teatro deste tamanho.
Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfuma-
das, os homens de preto, as mulheres com vestidos
decotados — todos parados, mal respirando, domina-
dos pelo seu filho, pelo Betinho!
D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o ma-
rido. Ali está ele a seu lado, pequeno,
encurvado, a calva a reluzir foscamente
na sombra, a boca entreaberta, o ar pa-
teta. Como fica ridículo nesse smoking!
O pescoço descarnado, dançando den-
tro do colarinho alto e duro, lembra um
palhaço de circo.
D. Margarida esquece o marido e torna
a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos,
aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E
como a música que o seu Gilberto toca
é difícil demais para ela compreender,
sua atenção borboleteia, pousa no teto
do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora
lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legíti-
mos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus
pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem,
encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro
meses que acaba de fazer uma descoberta maravi-
lhosa: as suas mãos... Deitado no berço, com os de-
dinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele
contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de
espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sem-
pre fitos nas mãos...
De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lem-
Periódico pedagógico para estudantes 13
bra-se daquele horrível quarto que ocupavam no
inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio
começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coi-
tado estava desempregado... Tinha perdido o lugar
na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro.
Más companhias. "Ó Inocêncio, vamos tomar um tra-
guinho?" Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E
vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esfor-
ço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a
boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. "Com
efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!"
Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se
ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama.
Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava para a
Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já
estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins
doloridos, os olhos ardendo. Um dia...
De súbito os sons do piano morrem. A luz se acen-
de. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu
lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta,
os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pre-
gueado, o ar humilde... Gilberto faz curvaturas para
o público, sorri, alisa os cabelos. ("Que lindos cabelos
tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre,
crespinhos, vai ser um rapagão bonito.)
A escuridão torna a submergir a plateia. A luz fantás-
tica envolve pianista e piano. Algumas notas saltam,
como projéteis sonoros. Navarra. Embalada pela mú-
sica (esta sim, a gente entende um pouco), D. Marga-
rida volta ao passado.
Como foram longos e duros aqueles anos de luta!
Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto cres-
cendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os
olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arran-
java empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não
tinha constância, não tomava interesse. O diabo do
homem era mesmo preguiçoso. O que queria era an-
dar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando
histórias, mentindo...
— Inocêncio, quando é que tu crias juízo?
O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até
graça naquele homenzinho encurvado, magro, desa-
nimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser
criança. No fundo o que ela tinha era pena do ma-
rido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar
a casa, pensando sempre no futuro de Gilberto. Era
por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a
Deus nunca lhe faltava trabalho.
Um dia Inocêncio fez uma proposta:
— Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar
nas costuras...
— Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou
14 JORNAL LUPA n. 25, Jun 2023 L I T E R A T U R A
pregar botões?
— Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com
sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia
cobrar as contas e fazer a tua escrita.
Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio pas-
sou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança
saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou...
No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta que
conseguira cobrar.
Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a
música que Gilberto está tocando agora... E como
ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa,
os ombros dançam, as mãos dançam... Quem diria
que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe
os aplausos de toda esta gente, doutores, oficiais,
capitalistas, políticos... o diabo! — é o mesmo meni-
no da rua da Olaria que andava descalço brincando
na água da sarjeta, correndo atrás da banda de mú-
sica da Brigada Militar...
De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos
para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com
a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando
um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada
de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos
do pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-
-se no camarote e gritar para o povo: "Vejam, é o meu
filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de
mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar
a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, mi-
nha gente. Vejam! Vejam!"
A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna
surdina as mágoas de Chopin.
No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho
sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu... Mas não
tem direito de se queixar... O rapaz não lhe deve nada.
Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude Gil-
berto, sem saber, está aplaudindo também Margarida.
Cinquenta por cento das palmas devem vir para ela.
Cinquenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse
ela, era possível que o rapaz não desse para nada. Foi
o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de
Margarida que fizeram dele um grande pianista.
Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele
não pode, não deve participar daquela glória. Foi um
mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabunda-
gem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah!
Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respei-
tava a mulher! Às vezes, quando voltava para casa,
via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão
tranquilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar.
Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a
si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um ou-
tro dia e ele começava a sentir aquela sede danada,
aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a
impressão de que se não tomasse um traguinho era
capaz de estourar. E depois havia também os maus
companheiros. O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fo-
go. Convidavam, insistiam... No fim de contas ele não
era nenhum santo.
Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por
ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou
pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe
reservará o futuro? Daqui para diante é só subir. A
porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente
consegue abri-la... adeus! Amanhã decerto o rapaz
vai aos Estados Unidos... É capaz até de ficar por lá...
esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a
mãe. O pai, sim... E é bem-feito. O pai nunca teve ver-
gonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo.
Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de
música triste! O Betinho devia escolher um repertó-
rio mais alegre.
No atarantamento da comoção, Inocêncio sente ne-
cessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para
a frente e murmura:
— Margarida...
A mulher volta para ele uma A porta da
cara séria, de testa enrugada. fama é tão
— Chit! difícil, mas uma
Inocêncio recua para a sua vez que a gente
sombra. Volta aos seus pensa- consegue abri-
la... adeus!
mentos amargos. E torna a cho-
rar de vergonha, lembrando-se do
dia em que, já mocinho, Gilberto lhe
disse aquilo.
Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugentá-
-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como
fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem. Ele
tinha chegado bêbado em casa. Gilberto olhou-o
bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade:
- Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!
Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que
não só cortam as carnes como também rasgam a
alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.
No saguão do teatro, terminado o concerto, Gil-
berto recebe cumprimentos dos admiradores. Al-
gumas moças o contemplam deslumbradas. Um
senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe
com voz profunda:
— Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim se-
nhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe:
— Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi
esta noite... Tudo que sou, devo a ela.
— Não diga isso, Betinho!
D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovi-
do. Depois rompe de novo a conversa. Novos admi-
radores chegam.
Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o
filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de infe-
rioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do
espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como
a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali
no saguão.
Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga.
Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a gran-
de estátua, as árvores paradas... Sente uma enorme
tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar
ao passado... Voltar para se corrigir, para passar a vida
a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias...
O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui,
caminha dum lado para outro, sob a marquise.
— Linda noite! — diz Inocêncio, procurando pu-
xar conversa. O outro olha o céu e sacode a ca-
beça, concordando.
— Linda mesmo.
Pausa curta.
— Não vê que sou o pai do moço do concerto...
— Pai? Do pianista? O porteiro para, contempla Ino-
cêncio com um ar incrédulo e diz:
— O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.
Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se
evaporando aos poucos.
— Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não
sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres...
Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem
coisas engraçadas. Um dia... o Betinho tinha seis me-
ses... umas mãozinhas assim deste tamanho... nós bo-
tamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu
do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o
senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas
costas as mãozinhas do menino e passei a noite im-
pressionado, com medo de quebrar aqueles dedi-
nhos, de esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe,
quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica
o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me
levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no
duro, de olho mal e mal aberto, preocupado com o
menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade
do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolori-
do, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as
coisas... Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho
hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis...
Não podia ser o artista que é.
Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma
partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito consigo
mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho.
O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de
repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do
bolso das calças uma nota amarrotada de cinquenta
mil-réis e mete-a na mão do mulato.
— Para tomar um traguinho — cochicha.
E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.
L I T E R A T U R A Periódico pedagógico para estudantes 15

Vozes-mulheres
Conceição Evaristo. Disponível em: https://www.culturagenial.com/poemas-de-conceicao-evaristo/. Acesso em: 7 jun. 2023.

A voz de minha bisavó roupagens sujas dos brancos as vozes mudas caladas
ecoou criança pelo caminho empoeirado engasgadas nas gargantas.
nos porões do navio. rumo à favela. A voz de minha filha
ecoou lamentos A minha voz ainda recolhe em si
de uma infância perdida. ecoa versos perplexos a fala e o ato.
A voz de minha avó com rimas de sangue O ontem – o hoje – o agora.
ecoou obediência e Na voz de minha filha
aos brancos-donos de tudo. fome. se fará ouvir a ressonância
A voz de minha mãe o eco da vida-liberdade.
ecoou baixinho revolta A voz de minha filha
no fundo das cozinhas alheias recolhe todas as nossas vozes
debaixo das trouxas recolhe em si

A menina avoada
Manoel de Barros

Foi na fazenda de meu pai antigamente
Eu teria dois anos; meu irmão, nove.
Meu irmão pregava no caixote
duas rodas de lata de goiabada.
A gente ia viajar.
As rodas ficavam cambaias debaixo do caixote:
Uma olhava para a outra.
Na hora de caminhar
as rodas se abriam para o lado de fora.
De forma que o carro se arrastava no chão.
Eu ia pousada dentro do caixote
com as perninhas encolhidas.
Imitava estar viajando. Porque ele tinha uma namorada lá.
Meu irmão puxava o caixote A namorada do meu irmão dava febre no corpo
por uma corda de embira. dele.
Mas o carro era diz-que puxado por dois bois. Isso ele contava.
Eu comandava os bois: No caminho, antes, a gente precisava
– Puxa, Maravilha! de atravessar um rio inventado.
– Avança, Redomão! Na travessia o carro afundou
Meu irmão falava e os bois morreram afogados.
que eu tomasse cuidado Eu não morri porque o rio era inventado.
porque Redomão era coiceiro. Sempre a gente só chegava no fim do quintal
As cigarras derretiam a tarde com seus cantos. E meu irmão nunca via a namorada dele –
Meu irmão desejava alcançar logo a cidade – Que diz-que dava febre em seu corpo.
 JORNAL

P E R I Ó D I C O P E DAG Ó G I C O PA R A E S T U DA N T E S
D O E N S I N O F U N D A M E N TA L A N O S F I N A I S E E N S I N O M É D I O .
G O V E R N O D O E S TA D O D E M I N A S G E R A I S
S E C R E TA R I A D E E S TA D O D E E D U C A Ç Ã O D E M I N A S G E R A I S
E S C O L A D E F O R M A Ç Ã O E D E S E N V O LV I M E N T O P R O F I S S I O N A L D E E D U C A D O R E S