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FUNDAMENTOS

DA LÍNGUA
PORTUGUESA

Asafe Cortina
Noção de inferência
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Conceituar inferência apresentando sua importância no processo


de leitura.
 Articular as inferências textuais ao processo de compreensão da leitura.
 Listar as pistas textuais que favorecem o processo de inferenciação.

Introdução
A inferenciação é um processo de construção de sentido que relaciona um
texto com conhecimentos prévios, de forma que o leitor possa entender o
significado de partes de um texto ao relacioná-lo com outros elementos,
como, por exemplo, outros textos, situações, contextos, conhecimentos
prévios e etc.
Neste capítulo, você vai estudar sobre a inferência e os elementos
textuais que servem como pistas para a construção de sentidos; esses
elementos podem ser linguísticos e não linguísticos e aliados aos conhe-
cimentos prévios do leitor, que capacitam-no a chegar a determinadas
conclusões e, portanto, a inferir conclusões.

A inferência
Imagine os seguintes cenários:

Cenário 1
Um amigo está em sua casa para uma visita, você lhe oferece uma xícara
de café e ele responde: “Gosto mais de chá!”.
Cenário 2
É fim de tarde, você chega em casa e convida seu esposo para ir à academia
se exercitar um pouco e ele responde: “Hoje o dia foi estressante e não parei
sentado na minha cadeira no escritório.”.
2 Noção de inferência

Cenário 3
Marcos está na sua casa e está suando muito. Ele olha para o ar-condicionado
e percebe que está desligado, então diz: “Como o dia está quente hoje, né?”.
Cenário 4
Você lê uma notícia sobre um acidente em um jornal que diz: “Acidente
fatal de carro na rodovia 101. O veículo transportava quatro pessoas quando
perdeu o controle e saiu da estrada. O motorista sobreviveu.”.
Cenário 5
É época de Copa do mundo, que está acontecendo no Brasil. Você não
entende quase nada de futebol e muito menos de como funciona a Copa.
Contudo, ao chegar no aeroporto você passa por uma banca de revistas e um
dos jornais diz: “Copa do mundo: semifinais”.
Alguns minutos depois, ainda no aeroporto, você vê uma grande comoção.
Alguém lhe informa: “É a seleção de futebol da França que está voltando
para casa.”.

Nos cinco cenários comunicativos acima, para que as mensagens cumpram


os seus propósitos é necessário que exista um processo inferencial, que
ocorre quando interlocutores concluem/deduzem um significado ou atribuem
sentido a alguma produção linguística por meio de informações que não estão,
necessariamente, explícitas. Ou seja, a inferência é um processo intelectual
por meio do qual se chega a uma conclusão por intermédio de proposições
que se associem a outras proposições (estejam elas dentro ou fora do texto) e
que permitem uma construção de um significado.
Vamos observar os cenários e entender, com maior clareza, o que é a
inferência.
No cenário 1, quando você ofereceu uma xícara de café para o seu convi-
dado e ele respondeu: “Gosto mais de chá!”, é natural que você tenha inferido,
pelo menos, uma informação: o convidado não quer café. Embora a palavra
“não” não tenha sido proferida pelo seu convidado, a informação que ele lhe
passou (que chamaremos de proposição) é o suficiente para que você possa
entender que ele não quer café.
Além disso, ainda é possível inferir outra informação: ao mencionar que
prefere chá, seu convidado rejeita a oferta por café e sugere, sutilmente, que
acetaria chá caso você oferecesse. Logo, nessa situação comunicativa é possível
inferir pelo menos duas informações.
No cenário 2, quando você convida seu esposo para ir à academia e pra-
ticar exercícios no final do dia e ele lhe responde: “Hoje o dia foi estressante
e não parei sentado na minha cadeira no escritório.”, o que você pode inferir?
Noção de inferência 3

Possivelmente, que ele está cansado e não irá à academia com você, correto?
Embora, semelhantemente ao primeiro caso, seu marido não tenha explici-
tamente rejeitado a sua oferta, a proposição citada por ele lhe permitiu um
processo intelectual por meio da qual a relação entre a fala e o contexto daquele
momento lhe possibilitaram concluir que ele, provavelmente, estaria cansado
demais para se exercitar.
Contudo, podemos afirmar com total certeza de que o convite para ir à
academia foi rejeitado? Não!
Inferências são fortemente relacionadas ao contexto e às demais relações
textuais e situacionais.
Vamos considerar que, por exemplo, o marido do cenário é uma pessoa
que ama se exercitar e que não perde um dia sem ir à academia. Ademais,
você sabe que ele é o tipo de pessoa que só relaxa e descansa depois de um
dia exaustivo de trabalho quando vai para a academia e se exercita (Acredite,
há pessoas assim!). Portanto, quando ele responde: “Hoje o dia foi estressante
e não parei sentado na minha cadeira no escritório.”, o que você infere? Que
deve colocar seus tênis porque vocês irão para a academia.
O cenário 3, embora bastante semelhante aos dois primeiros, traz para o
processo de inferência um elemento não linguístico que também servirá como
“proposição” para que você chegue a uma conclusão.
Quando seu amigo está na sua casa, visivelmente suado e seu ar-condi-
cionado está desligado e ele diz: “Como o dia está quente hoje, né?”, o que é
possível inferir?
A primeira inferência (por meio do elemento não linguístico: o suor) é
bastante simples: Marcos está com calor.
A segunda pode ser um pouco mais sutil. Ao olhar para o ar-condicionado e
proferir a frase dita, Marcos pode estar sugerindo, discretamente, que você ligue
o aparelho. Dessa maneira, a informação “por favor, ligue o ar-condicionado
porque eu estou com muito calor” está implícita na frase de Marcos e pode
ser entendida como um pedido por meio de um processo inferencial.
O cenário 4 também nos possibilita conclusões por meio de inferência.
Quando lemos a respeito de um acidente fatal de um carro que carregava quatro
pessoas e a notícia diz: “O motorista sobreviveu.”, podemos inferir que as
demais pessoas não sobreviveram. Isso ocorre por meio de duas informações:
a primeira é explícita por intermédio da palavra “fatal”, que nos informa que
houve morte no acidente. A segunda, contudo, pode ser concluída por meio da
inferência: se a informação foi de que o motorista sobreviveu, possivelmente
as outras três pessoas faleceram, caso contrário, haveria outra informação
linguística, como: “o motorista e mais um passageiro sobreviveram”.
4 Noção de inferência

Obviamente, essa não é a única inferência possível. Dentro de um contexto


diferente, que tivesse como foco uma estimativa sobre a quantidade de moto-
ristas que sobrevivem a acidentes de carro, por exemplo, poderíamos inferir
que a frase “o motorista sobreviveu” foi usada somente para adicionar uma
informação às estimativas e que mais algum passageiro possa ter sobrevivido.
Novamente, precisamos lembrar que inferências estão relacionadas aos
contextos e situações.
O cenário 5, embora para você, leitor com conhecimento sobre o funcio-
namento da Copa do mundo, possa parecer fácil de entender a informação que
pode ser inferida com as proposições apresentadas, requer um pouco mais de
background para que o processo inferencial seja correto.
Ainda que pareça óbvio que a única inferência possível dentro desse cenário
é que o time de futebol da França não se classificou para as semifinais e, por
isso, está indo embora; essa inferência pode não ser tão simples para alguém
sem o mínimo de conhecimento sobre futebol e sobre o funcionamento desse
evento.
Se uma pessoa não sabe que os jogos da Copa ocorrem em um determi-
nado período consecutivo e que as seleções costumam ficar no país que está
sediando o evento até o final dos jogos ou até serem eliminadas, ela poderá
não conseguir inferir que a França não está nas semifinais.
Você pode até pensar: “Nossa! Mas isso seria muita burrice!”, mas não é.
Em alguns esportes, as diferentes etapas que conduzem às finais não ocorrem,
necessariamente, dentro de um período consecutivo. Ao contrário, alguns
esportes e algumas competições têm dias (ou até meses) de intervalo entre
uma etapa e outra da competição para que os esportistas se preparem e/ou
descansem.
Se você não tivesse conhecimento sobre o funcionamento temporal da
Copa do mundo, você poderia inferir que a seleção de futebol da França está
voltando para casa para se preparar para as semifinais ou para esperar o dia
que ela ocorrerá.
Obviamente, esse exemplo é um recorte quase impossível da realidade,
principalmente por estarmos no país do futebol e porque, durante a Copa, somos
“bombardeados” por constantes informações a respeito dos jogos e, mesmo
não gostando de futebol ou acompanhando o evento, “qualquer pessoa” tem
conhecimento sobre como funcionam os jogos. Contudo, esse exemplo nos
mostra que os processos inferenciais não são sempre tão simples e que são
restritamente dependentes de outras informações anteriores e/ou contextuais.
Noção de inferência 5

É fundamental entendermos que os processos de inferência são dependentes


de vários fatores, como, por exemplo, de conhecimentos linguísticos, de mundo
e de intertextos. A inferência não ocorre apenas por meio de uma decodificação
linguística, ela sobrepassa os conhecimentos lexicais e gramaticais. Portanto,
inferir é um processo pragmático que ocorre por meio da língua em uso, não
apenas pela própria língua como sistema.
Vamos voltar no cenário 1, mas imaginar de forma um pouco diferente.
Dessa vez, é aproximadamente cinco da tarde e você está recebendo um
convidado da Inglaterra em sua casa. Contudo, você não sabe falar muito bem
inglês, sabe apenas o básico. Com sua limitação linguística, você consegue,
pelo menos, oferecer café para o convidado, que responde: “I’m a tea person”.
Uma vez que seu inglês é limitado, você pode não inferir nada a partir da
proposição do estrangeiro e, em consequência, não entender se ele gostaria
ou não do café, porque – naturalmente – você estava esperando um “yes” ou
um “no” (palavras que você sabe!) e nenhuma dessas palavras apareceu na
resposta. Então, você fica lá, segurando o bule de café, sorrindo nervoso e
sem saber o que fazer.
Nesse cenário, inferir corretamente que o convidado não quer café depende
de conhecimentos linguísticos e um pouco de conhecimento de mundo.
Primeiramente, é necessário um conhecimento linguístico em saber que
quando uma pessoa falante de inglês utiliza “I’m” (eu sou), mais um substan-
tivo e a palavra “person” (pessoa), ela está querendo dizer que gosta daquilo.
Por exemplo, se ela diz: “I’m a cat person”, ela está afirmando que gosta de
gatos; se diz “I’m a summer person”, que gosta do verão e assim por diante.
Em seguida, o conhecimento de mundo ajudaria a uma possível inferência:
aproximadamente às cinco da tarde é um hábito que pessoas inglesas tomem
chá. Obviamente, tomar chá às cinco da tarde não é uma regra, mas é um
costume.
Logo, o conhecimento linguístico para entender a estrutura da frase as-
sociado ao conhecimento de mundo de que os ingleses costumam tomar chá
às cinco da tarde ajudam a inferir que o convidado está rejeitando o café e
que, possivelmente, está sugerindo de forma sutil que você lhe ofereça chá.
Em suma, podemos chegar a algumas conclusões a respeito da inferência.
Para resumir de forma simples, vamos dizer que inferência é um processo
de identificação de sentido por meio de informações não explícitas que es-
tejam relacionadas a outras informações ou situações. No campo da lógica,
inferir é executar uma operação intelectual que admitirá como verdadeira
uma proposição que esteja relacionada com outras proposições que sejam
consideradas verdadeiras. Para nós, na língua, podemos dizer que inferir é
6 Noção de inferência

extrair/entender informações de palavras, frases ou textos que não carreguem


um significado explícito, mas que nos permitam chegar a uma determinada
conclusão; ou seja, quando o “A” que foi dito nos faz entender o “B” que não
foi explicitamente dito.

A inferência na língua está fortemente relacionada à inferência no campo da lógica.


A inferência, para a lógica, é atribuir como verdade uma proposição (ou premissa)
em decorrência a sua ligação com outras proposições que já sejam entendidas como
verdadeiras.
Por exemplo:
Proposição 1: Todos os estudantes foram aprovados.
Proposição 2: Diego é um estudante.
Conclusão: Portanto, Diego foi aprovado.
Nesse exemplo, as duas proposições nos permitem inferir uma conclusão.
Não pretendemos entrar em detalhes sobre a lógica, mas é preciso observar que
“validade” e “veracidade” são dois conceitos diferentes para esse tipo de conclusão.
Observe:
Proposição 1: Todo iPhone é um celular.
Proposição 2: Samsung é um celular.
Conclusão: Portanto, Samsung é iPhone.
No caso acima, as premissas 1 e 2, embora verdadeiras, levaram a uma conclusão falsa.
Embora a conclusão [inferida] pareça válida por meio das premissas, a conclusão
(inferência) não é verdadeira.

Inferência e compreensão textual


Como sabemos, o processo de leitura é uma atividade comunicativa de inte-
ração entre o autor (o emissor), o texto (a mensagem) e o leitor (o receptor).
Entendemos, também, que ler é — ao mesmo tempo — extrair e atribuir
significado ao texto. Extraímos o significado enquanto utilizamos os com-
ponentes linguísticos para entendermos “o que o autor quis dizer com tais
palavras”, e atribuímos significado porque sabemos que a língua só funciona
pela possibilidade de relacionar os signos com um referencial no mundo real.
Noção de inferência 7

Também sabemos que em qualquer processo comunicativo, podemos ter


dois tipos de informação: as explícitas (aquilo que está claro no texto) e as
implícitas (o que não está claro e que só pode ser entendido por processos de
inferência).

Neste capítulo, usaremos a palavra “texto” para “toda e qualquer manifestação linguística
que carrega significado(s)”, não apenas o escrito.
Quando necessário, classificaremos o texto como “texto escrito” ou “texto oral”.

Portanto, a compreensão leitora está fortemente relacionada a conheci-


mentos que vão além dos linguísticos. A leitura é uma atividade que exige
exercícios de raciocínio não só para a decodificação dos signos e símbolos,
mas também para relacionar o texto com outros textos, com a realidade, com
o autor e etc. Por conseguinte, a inferência é um processo extremamente
importante para a compreensão leitora.
O termo inferir é proveniente do latim “inferre”, que significa a ligação
entre duas coisas, na qual a anterior implica a posterior. Desse modo, se
transferirmos essa ideia para a compreensão leitora, podemos concluir que
ler é um processo altamente inferencial, porque para assegurar a qualidade
de leitura é necessário associar o texto lido com conhecimentos de mundo,
com textos antecedentes e etc.
Os textos apresentam informações implícitas ou explícitas que nos servem
como “dicas” para chegarmos a conclusões que, na maior parte das vezes,
nos leva a ideias próximas às que o autor quis passar, mas que — em outros
momentos — nos conduz a outra(s) conclusões. Ou seja, as informações
fornecidas nos textos possibilitam uma atividade de construção de sentidos
que ocorre pelo cruzamento das informações que estão sendo apresentadas
com as que já existem na mente do leitor. Logo, a inferência não é um produto
e não ocorre no texto, mas na interação entre o texto e o leitor: o texto serve
apenas como pistas para que o leitor possa inferir.
É por esse motivo que existem diferentes tipos de leitores e que leitores
diferentes podem chegar a conclusões diferentes ao acessarem o mesmo texto.
8 Noção de inferência

As informações que um leitor tem previamente à leitura de um texto interferem


na sua capacidade de inferir e, portanto, compreender, o texto.
Vamos observar alguns exemplos. Atente ao seguinte parágrafo:

Já estava angustiado e inquieto. Andei de um lado para o outro esperando


ouvir o carro parando em frente ao meu portão, ou aguardando para
que meu celular ou a campainha tocassem. Parecia uma eternidade e até
minha mãe já estava ficando preocupada. Até Godot já havia passado
por ali.

Embora pareça bastante fácil inferir que o personagem do parágrafo está


esperando pela chegada de alguém que está demorando, isso só ocorre porque
podemos identificar alguns elementos do texto que nos permitem chegar à
determinada conclusão. Quando o texto diz “ouvir um carro parando em
frente ao meu portão” ou “a campainha tocasse”, conseguimos compreender,
quase que automaticamente, que o personagem espera por alguém. Contudo,
não entendemos, com total certeza, que a pessoa esperada está demorando.
Podemos concluir que o personagem está ansioso, mas não, necessariamente,
que o esperado está demorando.
Entretanto, existe um elemento no texto que nos permite compreender a
demora da outra pessoa, que ocorre quando o texto diz: “Até Godot já havia
passado por ali.”.
Nesse caso, só podemos chegar a essa conclusão se conhecermos o intertexto
relacionado a Godot, que é o personagem de uma peça de Samuel Beckett
que é esperado por um longo tempo por dois outros personagens, mas que
nunca chega.
Se temos conhecimentos sobre essa informação, podemos inferir corre-
tamente que a pessoa esperada está demorando; caso contrário, o fato nos é
limitado.
Esse é um exemplo que nos permite observar a relação entre intertexto
e inferência. Nesse caso, houve um intertexto entre o texto de Beckett e o
parágrafo, de forma que o sentido do segundo só pode ser completamente
construído da forma pretendida pelo autor (de que a pessoa estava demorando)
quando o leitor reconhece o intertexto e, portanto, consegue identificar o
objetivo do autor e chegar à conclusão desejada.
Noção de inferência 9

Vamos observar mais exemplos de inferência dos quadrinhos das Figuras


1, 2, 3 e 4:

Figura 1. Tirinha do Armandinho.


Fonte: Beck (2017a).

Figura 2. Tirinha do Armandinho.


Fonte: Beck (2017b).

Figura 3. Tirinha do Armandinho.


Fonte: Beck (2017c).
10 Noção de inferência

Figura 4. Tirinha do Armandinho.


Fonte: Beck (2017d).

Para quem não conhece, as tirinhas do Armandinho são charges bastante


conhecidas em uma página do Facebook que abordam assuntos diversos por
meio de interações inteligentes entre o Armandinho e os outros personagens.
Os autores tratam de assuntos polêmicos por meio de quadrinhos de humor
que, na sua maioria das vezes, só podem ser compreendidos por meio de
inferências. Caso o leitor não tenha conhecimento de mundo sobre o assunto
que está sendo retratado em cada tirinha, ele não consegue compreender a
crítica ou a ironia de cada uma delas, como foram apresentadas nos exemplos.
Vamos analisar cada um dos casos:
Na Figura 1, além dos elementos linguísticos (as falas) da tirinha, tam-
bém temos elementos visuais que nos auxiliam a inferir o sentido da tirinha.
Quem não conhece o caso em que a água sanitária foi encontrada diluída em
determinadas marcas de leite e que, posteriormente, os responsáveis foram
detidos, não consegue compreender completamente a mensagem pretendida
pela tira; ou seja, a informação fica incompleta e descontextualizada. O leitor,
possivelmente ficará se perguntando: “por que tem gente presa por causa dos
produtos de limpeza?”.
A Figura 2, que representa uma crítica à mudança de perspectiva da in-
fância atual e ao fato de crianças viverem “presas” a aparelhos eletrônicos,
pode não ter o mesmo impacto para um leitor que não conhece a brincadeira
telefone sem fio; que é um jogo bastante comum, no qual um participante
cochicha uma mensagem no ouvido do outro, até que ela chegue ao final de
um determinado grupo para que o último participante reproduza a mensagem
que ouviu. A brincadeira é geralmente engraçada porque a informação se
perder ou é distorcida no meio do caminho. Logo, quando Armandinho chega
para o grupo de amigos e sugere brincar de telefone sem fio, sua intenção era
participar do jogo e não que cada amigo utilizasse seu celular (um telefone
Noção de inferência 11

sem fio) para “brincar” de qualquer outra coisa. Só é possível inferir a crítica
da forma como o autor desejou se o leitor tem o conhecimento a respeito da
brincadeira.
A Figura 3 também exige uma certa inferência para que a crítica seja reali-
zada da forma como pretendida pelo autor. No momento em que Armandinho
afirma que o dicionário deles está desatualizado por causa dos diferentes
significados da palavra justiça, os autores estão criticando os movimentos
políticos brasileiros dos últimos tempos. Essa inferência só pode ocorrer para
quem está consciente do cenário político atual e de todas as decorrências dele.
Quem não tem os conhecimentos de mundo necessários para compreender a
tirinha como um todo, provavelmente não compreenderá o motivo pelo qual
a tirinha é tão crítica; poderá, certamente, associar a outro momento e, ainda
assim, conseguir inferir algo. Contudo, é importante observar as condições
de produção de um texto para que as inferências aconteçam de forma correta.
Essa tirinha foi escrita especificamente após os casos de corrupção política
ocorridos no Brasil nos últimos anos e o objetivo do autor era criticar a justiça
(ou a falta dela) no cenário atual.
Na Figura 4, podemos observar — com humor — uma inferência errada.
Quando Armandinho se referiu que a senhora vivia de renda, sua amiga
realizou um processo de inferência e chegou à conclusão de que a senhora
era rentista (ou seja, que vivia de certo valor de dinheiro). Contudo, o que
Armandinho desejou dizer era que a senhora fazia objetos de renda. Esse caso
ilustra a necessidade de conhecimentos extralinguísticos que são necessários
para que uma inferência ocorra de maneira eficiente.
Os exemplos acima nos permitem perceber que os processos de inferência
são fundamentais e constantemente presentes durante a compreensão da leitura.
Ou seja, utilizamos as informações que são explicitamente apresentadas no
texto e somamos aos nossos conhecimentos prévios para obtermos outras
informações.
Na verdade, linguisticamente, podemos chegar a conclusão de que todo o
processo de compreensão de texto é apenas uma inferência: sempre tentamos
inferir o que o autor quis dizer com determinadas palavras. Algumas inferências
são óbvias e únicas, mas outras podem ter múltiplas interpretações.
A capacidade de inferir é uma habilidade que se desenvolve à medida que
o conhecimento de mundo de um leitor e sua “carga de leitura” são ampliados.
A qualidade de uma leitura está fortemente relacionada às inferências prove-
nientes da interação entre o texto e o leitor; a proficiência de leitura também
está relacionada com a capacidade de inferir.
12 Noção de inferência

Componentes textuais que contribuem


para a inferência
Como já aprendemos, a inferência é um processo que não está no texto per
se, mas que se dá na interação entre o texto e os conhecimentos do leitor. O
texto é uma série de pistas que permitem ao leitor relacioná-lo com outros
fatos ou textos e, então, chegar a conclusões.
Por esse motivo, existem diferentes componentes em um texto que con-
tribuem para a construção de inferências e que não são, exclusivamente,
linguísticos.
Existem, basicamente, duas fontes de pistas para inferências: dentro do
próprio texto e fora do texto.
Muitas vezes, a inferência de um significado provém de informações apre-
sentadas anteriormente no mesmo texto. Podemos considerar como “mesmo
texto” dois tipos de textos: um que inicia no título e vai até o último ponto
final (como um livro ou uma redação, por exemplo) ou um texto que está
inserido em uma série (como o segundo livro de uma trilogia, por exemplo)
que embora não esteja fisicamente no mesmo livro, está na sequência de um
texto (Figura 5).

Figura 5. Tirinha da Magali.


Fonte: Souza (1999).

Na Figura 5, o leitor só pode inferir a mudança de atitude da personagem


bebê quando tem uma informação que é apresentada na mesma série de textos
das personagens da Turma da Mônica de Mauricio de Sousa: a Magali come
tudo o que vê pela frente.
Noção de inferência 13

Portanto, a pista para a inferência e o entendimento dessa tirinha é prove-


niente de uma grande quantidade de outros textos dentro dessa mesma série
que permitem a construção do significado dela por um leitor.
Agora observe esse outro texto:

A minha casa nunca está vazia. Minha mãe está quase sempre lá. E não
estou exagerando, nem mentido. Minha mãe realmente não sai de casa.
Ela tem a crença de que nunca devemos deixar nossa casa vazia e que
um de nós sempre precisa estar lá. Como meu pai trabalha e eu tenho
a escola, ela ficou encarregada de cuidar da casa.
Se um dia você chegar na minha casa e não encontrar ninguém lá,
pode ter certeza de que alguma coisa muito grave aconteceu. Só assim
mesmo para que a minha mãe saia de casa sem que outra pessoa esteja
lá para “zelar pela casa”, como ela diz. Só me lembro de uma vez que
cheguei em casa e não havia ninguém, quando a irmã da minha mãe
sofreu um acidente e não tinha ninguém para levá-la ao hospital.
Ontem eu estava na escola. O dia foi bastante agitado. Começou com
uma prova de geografia que estava dificílima. E para ajudar, tive outra
prova, mas dessa vez de matemática, logo depois do recreio.
Como de costume, saí da escola perto das três e meia da tarde e voltei
de bicicleta para casa.
Chegando lá, achei algo bastante estranho. A porta da frente estava
aberta.
Suspeitei que minha mãe estivesse estendendo roupa ao lado da
casa e tivesse deixado a porta aberta enquanto fazia isso, mas assim que
entrei na casa senti que algo estava diferente.
Procurei por todos os cômodos e ninguém estava lá: a casa estava
vazia.

No texto acima, o leitor consegue inferir, com a última frase, que algo de
grave deve ter ocorrido com a família do personagem. Como que o leitor pode
chegar a essa conclusão? Porque as informações que sustentam essa ideia e
permitem que ele construa esse sentido são apresentadas no mesmo texto.
Obviamente, esse é um exemplo bastante curto e o processo inferencial
bastante rápido, mas imagine que os dois primeiros parágrafos estejam na
página dez do livro e que os cinco últimos estejam na página duzentos. Dessa
forma, o acesso às informações apresentadas que fazem o leitor inferir que
houve algum problema na família do personagem não ocorre de forma tão
14 Noção de inferência

instantânea; será preciso que o leitor resgate na sua memória que sempre que
a casa do personagem estiver vazia, algum problema aconteceu.
Esse texto nos exemplifica o tipo de pista de inferência que se encontra
dentro do próprio texto. Se tirássemos a frase “Procurei por todos os cômo-
dos e ninguém estava lá: a casa estava vazia.” desse determinado contexto,
não conseguiríamos compreender que alguma situação grave ocorreu com
alguém da história, pois não haveria uma ligação entre essa sentença e a outra
informação que permitissem essa inferência.
As pistas que contribuem para a inferência também (e na grande maioria
dos casos) provêm de fora do texto; ou seja, da habilidade do leitor de elencar
o texto com referenciais extratextuais e chegar a determinadas conclusões.
Por isso, conhecimentos de mundo e “bagagem de leitura” são fundamentais
para os processos de inferência.
É preciso atentar que os processos de inferência não ocorrem exclusivamente
por meio de elementos linguísticos escritos. Os elementos visuais também
podem ter um papel determinante na inferência, como é o caso da Figura 5,
que quase não contém texto escrito, mas suas imagens nos permitem chegar
a uma determinada conclusão por meio de um processo de inferência.
A Figura 6 (assim como a Figura 5) apresenta componentes não linguísticos
(mas visuais) que servem como pistas para as devidas inferências.

Figura 6. Tirinha do Armandinho.


Fonte: Beck (2017e).

O processo inferencial da tirinha ocorre por uma soma do texto escrito,


da imagem e do conhecimento de mundo do leitor. Uma inferência correta
só pode ocorrer quando o leitor consegue inserir a tirinha no contexto de
movimentos de igualdade sexual e pela interpretação da fala da personagem
e dos desenhos que a representam fazendo uma embaixadinha.
Noção de inferência 15

Em um pensamento extremamente misógino, futebol é “coisa de homem”.


O fato de a personagem estar dominando a bola com os pés, aliado às falas,
nos permite inferir que as tirinhas tratam de igualdade dos gêneros e é uma
crítica a quem pensa que “futebol é coisa de homem”.
Portanto, a inferência foi realizada por uma combinação de elementos
escritos, de elementos visuais e de conhecimentos prévios.
Digamos que você está lendo um texto e que encontra a seguinte fala de
um filho para a mãe: “Mãe, você parece a Daenerys Targaryen com os dragões
dela. Não posso nem sair sem levar um casaco.”. O que você pode inferir a
respeito da mãe?
Caso você conheça Daenerys Targaryen e entenda a referência a Game
of Thrones, você conseguirá inferir que a mãe do menino é superprotetora.
Caso contrário, o processo inferencial será perdido e você, possivelmente, não
conseguirá essa informação (a menos que pesquise sobre quem é Daenerys).
Agora, digamos que você vai encontrar um grupo de amigos e que, chegando
ao local, tem um rapaz que você não conhece, mas que pareceu interessado em
você logo de cara. Ele chega em você, dá um sorriso e diz: “How you doing?”.
Se você é fã do seriado Friends, pode inferir, quase instantaneamente, que
o rapaz está lhe passando uma cantada, porque você sabe que Joey, um dos
personagens da série, utiliza essa frase com um sorriso para “cantar” mulheres.
Caso você desconheça o seriado, você pode simplesmente achar que o rapaz
está perguntando como você está, porque a tradução de “how you doing?”
nada mais é do que “como você está?”. Desse modo, você não irá inferir que
ele está lhe cantando e pode encarar a frase como uma pergunta inocente. Seu
processo de inferência (ou da falta de inferência) foi proveniente do seu [des]
conhecimento prévio de um determinado assunto, que lhe permitiu interpretar
a fala de uma forma ou de outra.
Esses exemplos servem para nos demonstrar que pistas para os processos
inferenciais podem ser provenientes tanto de fora do texto como por meio
de intertextos e referências, por exemplo. Para entender o significado deles
é preciso um amplo conhecimento de mundo. As referências indiretas (como
citar personagens, lugares, falas, etc.) geralmente podem ser vistas como
dicas (ou proposições) que nos permitem construir um determinado sentido
por meio de um processo inferencial.
Em suma, inferência é a capacidade de deduzir informações e construir
sentidos por meio de dicas que podem ser explícitas ou (como a maioria dos
casos) implícitas. Para que uma inferência seja realizada corretamente e de
forma completa é preciso não só do conhecimento linguístico, mas também
— e principalmente — de conhecimentos prévios do leitor.
16 Noção de inferência

1. O que é inferência? ler e isso despertou seu


a) Um processo de construção interesse pelas palavras.
de sentido proveniente de b) Joana só saberá palavras que
informações textuais explícitas. já tenha lido em algum texto.
b) Um processo de construção c) Joana será a vencedora do
de sentido entre texto e leitor concurso porque lê bastante.
proveniente de informações que d) Joana saberá soletrar qualquer
podem ser explícitas, implícitas, palavra no concurso porque
linguísticas ou não linguísticas o fato de ler bastante lhe
e que se relacionam aos permitiu um conhecimento
conhecimentos prévios do leitor. lexical extenso.
c) Um processo de construção e) A escola provavelmente escolheu
de sentido entre texto e leitor Joana porque sabe que o fato de
proveniente de informações ler bastante pode contribuir para
que podem ser explícitas, que ela tenha êxito no concurso.
implícitas, linguísticas ou não 3. A respeito das pistas que permitem
linguísticas independente dos a inferência, podemos dizer que:
conhecimentos prévios do leitor. a) só podem ser encontradas
d) Um processo de construção no próprio texto, sem que
textual em que um texto seja necessário recorrer aos
menciona outro por meio conhecimentos extratextuais.
de algum componente, b) são somente extratextuais, nunca
como personagem, fala, estão dentro do mesmo texto.
tempo, local e etc. c) podem ser linguísticas ou
e) Um processo de extração não linguísticas, mas devem
de significado que ocorre estar dentro do próprio
unicamente de informações texto impreterivelmente.
que sejam implícitas em d) podem ser linguísticas ou não
um determinado texto. linguísticas, podem estar dentro
2. Joana foi selecionada por sua escola do próprio texto ou serem
para participar de um concurso de provenientes de fora do texto.
soletrar palavras. Joana é uma garota e) podem ser somente linguísticas
que lê bastante. Podemos inferir que: e podem estar dentro do
a) Joana participará do próprio texto ou serem
concurso porque gosta de provenientes de fora do texto.
Noção de inferência 17

4. Observe a imagem e assinale que ocorra a inferência,


a alternativa correta apenas uma pura dedução.
b) O intertexto é o único recurso
que permite que o leitor infira
informações corretamente,
por ser a única forma que
permite que ele acesse o texto
original e possa compreender
a intenção do autor ao
a) Podemos inferir que Mafalda mencionar outro texto.
critica a crise constante por c) O ato de inferir é entender a
meio de duas pistas: sua fala e ligação entre uma informação
seus gestos que indicam sua que está em um texto com
estatura e o passar do tempo. as informações que estão
b) Podemos inferir que Mafalda em outro texto. Portanto, um
crítica que ela cresceu pouco leitor só pode inferir uma
em estatura por causa da crise. informação corretamente se
c) Podemos inferir que Mafalda, já leu todos os textos citados
embora tenha crescido dentro de outro texto.
em estatura, continua com d) A inferência e o intertexto
o mesmo entendimento são, na verdade, sinônimos.
sobre o que é a crise. As duas palavras se referem
d) Podemos inferir somente por à referenciação de um
meio da sua fala que Mafalda texto (ou parte dele) dentro
critica a crise constante. de um outro texto.
e) Podemos inferir somente por e) Um intertexto, que é quando
meio dos seus gestos que um texto referencia outro
Mafalda critica a crise constante. de forma direta ou indireta,
5. Qual a relação entre pode contribuir para que um
inferência e intertexto? processo inferencial ocorra de
a) A inferência só pode ocorrer por forma eficiente ou não, porque
meio do intertexto. Um processo ele pode ser utilizado como
inferencial só existe quando uma pista que permite uma
um texto menciona outro, seja construção de sentido somente
de forma direta ou indireta. se o leitor entender o intertexto.
Outros elementos não permitem
18 Noção de inferência

BECK, A. Armandinho. 2017a. 1 ilustração, color., n. 2500. Disponível em: <goo.gl/


WBxhrt>. Acesso em: 18 abr. 2018.
BECK, A. Armandinho. 2017b. 1 ilustração, color., n. 2496. Disponível em: <goo.
gl/5FZ69C>. Acesso em: 18 abr. 2018.
BECK, A. Armandinho. 2017c. 1 ilustração, color., n. 2481. Disponível em: <goo.gl/
KC2qcP>. Acesso em: 18 abr. 2018.
BECK, A. Armandinho. 2017d. 1 ilustração, color., n. 2440. Disponível em: <goo.gl/
VZWxjF>. Acesso em: 18 abr. 2018.
BECK, A. Armandinho. 2017e. 1 ilustração, color., n. 2485. Disponível em: <goo.
gl/2ndZUn>. Acesso em: 18 abr. 2018.
SOUZA, M. Magali. 1999. 1 ilustração, p&b, n. 4972. Disponível em: <https://essen-
ciadetari.wordpress.com/2010/12/05/vem-ai-a-magali-come-come/>. Acesso em:
18 abr. 2018.

Leitura recomendada
DELL’ISOLA, R.; PÉRET, L. Leitura: inferência e contexto sociocultural. Belo Horizonte:
Formato/Saraiva, 2001.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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