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Ficha Técnica

Título original: Refining Felicity


Título: A Educação de Felicity
Autor: M.C. Beaton
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem da capa: Shutterstock
Tradução: Helena Ruão
ISBN: 9789892330228
 
Edições ASA II, S.A.
uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
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© 1988, M.C. Beaton
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ZZZZ
A educação

de

Felicity
Para Thelma Osmani
A grande bênção da velhice, a que nunca falha, se tudo o
mais falhar, é ter uma filha.

REVERENDO
DR. OPIMIAN

Nem todas as filhas são boas.

MR. FALCONER

THOMAS
LOVE
PEACOCK, GRYLL
GRANGE

É triste a consciência de que o nosso interior não acompanha o


ritmo do nosso exterior. São as dores lombares, as rugas à volta dos
olhos, a pele flácida sob o queixo, o vigor que desaparece do passo;
todas as manifestações exteriores do envelhecimento formam um
escudo lamentavelmente endurecido que reveste a alma
eternamente jovem e esperançosa.
Tal era o caso das irmãs Tribble. A cada nova temporada social
ambas renovavam as esperanças, sofrimentos e alegrias da
adolescência. Eram gémeas e ninguém sabia ao certo qual a sua
idade, mas corriam rumores de já terem atingido o meio século de
existência. Todavia ainda sonhavam com o seu mais-que-tudo, e na
privacidade da sala de estar, depois de saraus, festas, bailes
tradicionais ou de máscaras, as duas analisavam juntas cada brilho
irresistível no olhar e cada esperançoso aperto da mão.
Euphemia, ou Effy, Tribble tinha a vantagem de ter adquirido a
falsa reputação de ter sido uma beldade. Quando jovem fora
amaldiçoada com um cabelo cor de areia, pestanas a combinar e
uma figura pequena e roliça. Agora o cabelo era uma nuvem de
prata, a figura elegante e usava as pestanas discretamente
escurecidas com pó de carvão. A pele delicada era apenas
levemente marcada por rugas e ela assumira todos os maneirismos
de uma grande beldade.
A irmã gémea, Amy, era um contraste gritante. Alta, de ombros
quadrados e ar masculino, pele grossa e uma massa de cabelos
grisalhos. Não tinha peito nem rabo e tinha uns pés grandes e
chatos que atirava para a frente como barbatanas. Era frequente
Effy lamentar em suspiros o facto de ela própria ter recusado
propostas de casamento para não deixar a sua querida Amy
sozinha, e Amy, que se tinha em muito pouca conta, quase
acreditava em tal ficção, embora a realidade fosse a contrária: Amy
é que havia recusado duas propostas de casamento por lealdade a
Effy – que se agarrara a ela a chorar, dizendo-lhe que os
pretendentes queriam apenas brincar com os afetos dela.
O facto de alguém ter proposto casamento a qualquer uma das
duas era já de si um milagre, pois nenhuma delas tinha dote. A mãe
morrera quando eram jovens e o pai era um jogador que foi ao
encontro do Criador numa nuvem de fumo de charuto no meio das
mesas de jogo de St. James durante uma singular sucessão de falta
de sorte.
A casa de campo foi vendida para pagar as dívidas. Não teria
passado pela cabeça das irmãs nem em sonhos desfazerem-se da
casa na cidade, porque a cidade significava a temporada social, o
que, por sua vez, significava casamento.
O dinheiro que tinham no momento da morte do pai foi guardado
no banco, fazendo levantamentos à medida das necessidades. Nem
pensar em investi-lo, ambas considerando a Bolsa de Valores
apenas uma outra versão de antro de jogatina. E assim os anos
foram passando e o dinheiro diminuindo. Um por um, os criados
foram sendo despedidos, até restar apenas uma mulher da limpeza
que ia todos os dias.
Mas elas iam-se mantendo felizes com a partilha de sonhos e,
aliada a ela, uma esperança de segurança financeira. A tia, uma tal
Mrs. Cutworth, que morava em Streatham e que era muito rica, tinha
prometido deixar-lhes tudo em testamento. Há anos que as irmãs
viajavam até Streatham para visitar a velha e intratável senhora, que
parecia estar sempre às portas da morte, mas que nunca fazia a
passagem.
Um certo dia de novembro, quando o gelo reluzia nos parques e
um sol baixo e rubro no horizonte lançava à Londres fuliginosa um
olhar maligno, as irmãs Tribble decidiram partir numa sege de praça,
tentando não contabilizar o custo total de todas as viagens de sege
pagas ao longo dos anos para as levar até Streatham.
Amy viajava bem agasalhada numa capa de peles. Embora já
tivesse peladas em alguns sítios, ela pintara-as com tinta castanha,
esperando que não fossem muito evidentes. Na cabeça usava uma
touca às riscas e por cima um enorme chapéu de feltro preto do tipo
usado pelos salteadores de estrada. Effy estava envolta em tantos
cachecóis e xailes compridos que era difícil perceber o que usava
por baixo.
Pouco depois, os edifícios cobertos de fuligem deram lugar a
pequenas casas, também elas cobertas de fuligem, e a painéis
publicitários da fábrica de graxa Warren Blacking, como se fosse
necessário adicionar mais aquele apontamento ao negrume geral.
Sombras azuis estendiam-se à sua frente na estrada coberta de
gelo à medida que o sol se punha. Mas ambas se sentiam
aconchegadas no sonho do que fariam com o dinheiro quando Mrs.
Cutworth morresse.
– Carvão – disse Amy, batendo com entusiasmo os grandes pés
para cima e para baixo no chão da carruagem. – Teríamos lareiras
acesas até nos quartos.
– E uma criada de quarto – acrescentou Effy. – Que digo? Um
batalhão inteiro de criados.
– E três refeições por dia – disse, por sua vez, Amy.
– E dotes. – Effy considerava um bom dote mais importante do
que comida ou calor.
Effy era suave e tímida por fora, mas com um interior duro como
aço, o traço distintivo de uma mulher verdadeiramente feminina.
Amy era bruta, rude e desajeitada, soltando ocasionalmente
blasfémias bastantes terríveis, mas capaz também de ser
sentimental e lírica. Tinha por hábito dar dinheiro aos mendigos até
Effy a proibir de andar com dinheiro, para refrear tal generosidade
equivocada e irresponsável.
Assim que a carruagem atravessou aos solavancos os portões e
subiu a curta distância até à mansão de Mrs. Cutworth, elas viram a
carruagem do médico.
– Achas que...? – começou Effy em tom ansioso.
– Não, não acho – cortou Amy secamente. – Ela está sempre a
chamar o médico.
Saíram da carruagem e Amy bateu à porta, uma batida enérgica
que ecoou pela casa.
A porta foi aberta por um mordomo de cara redonda e expressão
lúgubre.
– Triste notícia, minhas senhoras – disse ele com voz desolada. –
A senhora foi-se.
– Saiu? – perguntou Amy.
O mordomo apontou para cima.
– Foi para os anjos.
Os belos olhos cinzentos de Amy cintilaram e ela desviou-os do
mordomo para a escada sombria, como se tivesse já visões de
jantares de carne assada, aposentos aquecidos e um bando de
criados à sua espera no cimo da escadaria. Effy levou rapidamente
um lenço aos olhos para esconder o entusiasmo.
– Vamos prestar as nossas últimas homenagens – disse Amy.
As gémeas subiram lentamente os degraus, apesar da forte
tentação de desatar a correr.
O médico saía do quarto quando se aproximaram da porta.
– Caranguejo com manteiga – anunciou ele. – Eu bem a avisei
para nem lhe tocar, mas ela não me deu ouvidos... foi a sua morte.
Baxter, a criada de quarto de Mrs. Cutworth, acabava de fechar as
cortinas da cama quando as irmãs Tribble entraram na penumbra do
aposento.
Era uma mulher já de certa idade, alta e magra, e assim que viu
as irmãs Tribble, desatou num pranto, com grandes e medonhos
soluços a agitarem-lhe o corpo.
– Pronto, pronto – tentou consolá-la Amy. – Acalme-se. Afinal não
foi uma coisa inesperada.
– Nada – soluçou Baxter. – Como é que ela foi capaz de fazer isto
comigo? Nem um vintém me deixou, ela que me prometeu riquezas
em testamento.
– Não chore – disse Effy com vivacidade. – Nós não a deixaremos
desamparada, Baxter.
– Como? – respondeu a criada com brusquidão. – Ela também
não vos deixou nada!
Amy sentiu-se fisicamente doente.
– Está exausta, Baxter – cortou ela muito pronta. – Como pode
saber uma coisa dessas?
A criada limpou os olhos com a ponta do avental de musselina.
– Porque eu li o testamento.
Effy afastou as cortinas da cama e olhou para o rosto morto da tia.
Mrs. Cutworth exibia um sorriso, como se estivesse a saborear a
consternação e a mortificação delas.
– Onde está esse testamento?
– Na escrivaninha – respondeu Baxter. – Eu mostro-vos.
Foi até uma escrivaninha no canto do quarto e abriu a tampa.
Tirou um rolo de pergaminho amarrado com uma fita cor-de-rosa de
um dos escaninhos e estendeu-o em silêncio.
Amy pegou nele e, seguida por Effy, foi até à janela e puxou a
cortina. Uma luz pálida e cinzenta penetrou no quarto.
Com Effy a espreitar-lhe por cima do braço, Amy leu o documento
num silêncio horrorizado. Mrs. Cutworth tinha deixado todos os seus
bens terrenos a um tal de Mr. Desmond Callaghan.
– Quem é Mr. Callaghan? – perguntou ela.
– Um tonto – respondeu Baxter com amargura. – Um coquete.
Começou a aparecer por cá há mais de um ano.
– Porque não nos avisou? – exigiu saber Effy.
– Eu não levei a sério – explicou Baxter. – Ele costumava adulá-la
e ela ria-se nas costas dele e dizia que ele só estava atrás do
dinheiro.
As mãos de Amy apertaram o testamento com mais força e ela
notou com irritação que o seu último par de luvas boas estava
descosido no dedo indicador da mão direita.
– A vontade que tenho é de destruir isto – disse ela.
– Eu também pensei o mesmo – concordou Baxter. – Mas ela
enviou uma cópia ao advogado. As senhoras podiam contestar o
testamento. Mr. Callaghan não é parente. Certamente conseguiriam
provar que ele é apenas um intrujão.
– Seria preciso dinheiro para lutar por isso em tribunal –
raciocinou Effy. – E o advogado dela diria que ela estava de mente
sã.
Baxter recomeçou a chorar e Amy deu-lhe umas palmadinhas
constrangidas no ombro.
– Eu vou escrever-lhe uma boa carta de referência, Baxter, e se o
pior vier a acontecer, está convidada para vir apertar o cinto
connosco.

As duas irmãs mantiveram-se em silêncio enquanto a mala-posta


cruzava aos sacões os sulcos congelados na estrada de regresso a
Londres.
Até que, por fim, Amy disse intempestivamente:
– Que o diabo a carregue! Espero que tenha tido uma morte lenta.
– Não digas isso! – admoestou Effy, chocada. – Pode ser o
julgamento de Deus sobre nós. Sabes bem que nunca gostámos
dela. Só fingíamos que sim para receber o dinheiro.
– Isso não é completamente verdade – contrariou Amy
duramente. – Nós sempre fomos atenciosas com ela. Aturámos-lhe
o rancor e as mudanças de humor. Éramos os únicos parentes que
ela tinha. Pelo que sabemos, o dinheiro teria vindo para nós quer a
visitássemos quer não. Mas fizemo-lo pelo sentido do dever, e
sabes disso! Ela era cruel e insultuosa. No entanto, como também
sabes, grande parte da nossa motivação em ir vê-la era por
sentirmos pena dela. Era uma pessoa tão amarga e solitária. Além
disso, de que outra maneira duas mulheres de sangue nobre como
nós iriam conseguir arranjar dinheiro? A sociedade só nos permite
duas opções: casar ou esperar que alguém morra. Eu é que gostaria
de estar morta. Ninguém vai querer casar com uma de nós.
Effy começou a chorar. Amy tinha dito finalmente o até então
indizível.
Amy passou o braço pelos ombros da irmã.
– Eu sou mesmo uma alimária. É claro que alguém vai querer
casar contigo. És tão bonita. Com mil diabos! Deve haver alguma
solução. O que temos para vender?
– Nada – lamentou Effy. – Não há mais nada.
– Há a casa.
Effy mostrou-se angustiada. Ela preferia morrer de fome num bom
endereço do que viver de forma mais modesta num local pouco
recomendável. O choro dela intensificou-se ainda mais.
– Oh, querida. Esquece o que eu disse – pediu Amy em
desespero. Mas, subitamente, o seu rosto iluminou-se. – Já sei!
Temos uma coisa para vender. Nós mesmas.
– Como cortesãs? – perguntou Effy, secando os olhos e
parecendo mais animada com a perspetiva de uma fantasia muito
interessante. – Podíamos ser como a Harriet Wilson e ter o duque
de Wellington a pagar pelos nossos serviços.
– Não, não. Podemos ser acompanhantes. Pensa só! Somos
pessoas muito bem relacionadas que pertencem à nata da
sociedade.
– A nata da sociedade não enche barriga – comentou Effy,
irritada.
– Ouve... há muito comerciante e novo-rico que daria bom
dinheiro para ter a oportunidade de entrar na alta sociedade.
– Mas como é que vamos encontrar essas pessoas? – perguntou
Effy. – Quero dizer, pode levar anos e anos. Nós não conhecemos
gente do povo.
– Pomos um anúncio, caramba. Anunciamos. Assim como a
Warren Blacking.
Algumas semanas mais tarde, Mr. Benjamin Haddon hesitava na
calçada em frente à casa das irmãs Tribble em Holles Street. Sentia-
se perdido e deslocado. Estivera afastado de Londres durante
muitos anos, a trabalhar arduamente para a Companhia Britânica
das Índias Orientais, até que um serviço insignificante para um
marajá rico e a recompensa generosa daí resultante lhe
concederam fortuna e liberdade. Antes de virar para Holles Street,
ele caminhara ao longo de Oxford Street, ofuscado pelo brilho das
lojas. Perguntou-se se as gentes que a percorriam aos magotes
alguma vez pensariam no tempo, não muito remoto, em que aquela
rua era ainda uma trincheira sombria, uma Via Dolorosa, ao longo
da qual os infelizes eram levados para a Triple Tree, nome pelo qual
era conhecido o cadafalso de Tyburn. Estimava-se que cerca de
quinhentas mil pessoas tinham já encontrado o seu fim naquela
forca infernal, mas agora era como se nunca tivesse existido. Tudo
era novo e diferente. Até a moda tinha mudado. As senhoras
andavam praticamente nuas, e ele tinha dificuldade em diferenciar
uma meretriz de uma dama. Foi por isso que pensou nas irmãs
Tribble. Elas certamente não tinham mudado. Faziam parte das
suas lembranças da Londres que ele havia conhecido antes de
partir para a Índia.
Embora, na época, ele não fosse um jovem de bolsa muito
recheada, era de boas famílias e chegara a ser convidado para
vários eventos sociais. Mas, infelizmente, as roupas que usava eram
marcadamente rurais e pouco sofisticadas e as senhoras
prontamente o ignoravam. Todas, exceto as irmãs Tribble. Amy e
Effy Tribble mostravam-se sempre encantadas quando ele
convidava uma delas para dançar. Na sua inocência e ainda envolto
em boas recordações da juventude, Mr. Haddon não se deu conta
que as irmãs Tribble teriam ficado encantadas por dançar com
qualquer pessoa, ambas já saturadas das longas noites passadas
com o grupo que permanecia a um canto a fazer ofício de corpo
presente. Ele recordava-as como sendo pessoas fiáveis e amáveis.
Será que ainda estavam vivas e que ainda viviam em Holles Street?
Notou que a placa de bronze da porta, já do século passado, antes
de os números de rua terem sido inventados, dizia claramente
TRIBBLE. Bateu à porta.
A princípio não reconheceu Amy, que veio atender. Só viu uma
mulher alta e ossuda que usava uma touca pavorosa e um avental
de serapilheira amarrado por cima do vestido.
Ambos se fitaram em silêncio. Amy viu um homem magro e muito
alto, ligeiramente curvado, vestido com um casaco simples mas
caro. O cabelo grisalho estava penteado para trás e amarrado na
nuca com uma fita, de maneira antiquada.
– A sua patroa está? – perguntou ele, estendendo o seu cartão de
visita.
Amy leu a inscrição e corou.
– Sou eu, Mr. Haddon. Miss Amy Tribble. Não admira que não me
tenha reconhecido. É dia de folga dos criados. Entre, entre.
Mas eu não o teria reconhecido, pensou Amy. A imagem que
tenho dele é muito longínqua. Lembro-me de ele ser uma pessoa
amável e de boas famílias, mas muito pobre.
Ela conduziu-o até à sala de estar, onde Effy se encontrava
sentada diante da lareira vazia, embrulhada em tantos xailes que só
se via a ponta do nariz vermelho de frio.
– Effy, querida – disse Amy. – Este é Mr. Benjamin Haddon.
Lembras-te? Ele esteve na Índia.
Effy afastou vários xailes e deu a mão a beijar a Mr. Haddon.
– Encantada – murmurou ela. – A última vez que nos
encontrámos foi no baile dos Chumley, se estou recordada. Eu
usava um vestido leve branco com um debrum de padrão grego
dourado, muito bonito, e tinha, deixe-me ver, três plumas na cabeça.
– Está ainda mais bonita, Miss Effy – disse ele, galante –, ao
passo que eu me tornei bastante curvado e amarelo.
– Como foi na Índia? – perguntou Amy, enquanto pensava se
devia descer e decantar a última e preciosa garrafa de vinho do
Porto.
Ele sorriu. Ainda tem os próprios dentes, pensou Amy, tal como
nós. Que estranho. Não é costume ver pessoas da nossa idade com
os dentes todos, e no entanto, aqui estão três exemplos reunidos.
– Demasiado calor – disse ele. – Cheia de cor e violenta. Sonhei
tantas vezes com o céu cinzento e a chuva fina, mas agora que
regressei, sinto-me angustiado ao descobrir que não sou capaz de
me acostumar. Foi por isso que vim vê-las. Sempre foram tão
amáveis comigo quando eu era um jovem sem tostão. Como têm
passado? O vosso pai ainda é vivo?
– Não, o pai já morreu há muito.
Effy tirou mais alguns xailes e começou a abanar-se, os olhos
azuis namoriscadeiros por cima do leque. Amy pensou com
azedume que era típico de Effy pôr-se a abanar um leque quando a
sala estava fria como um túmulo.
Mr. Haddon olhou em redor. Percebeu que havia muito pouca
mobília, sem enfeites ou bibelots de qualquer espécie. Eram
perfeitamente visíveis os retângulos mais claros no papel de parede
desbotado onde antigamente teriam estado pendurados quadros.
– Tornei-me muito rico – anunciou ele abruptamente. – Peço que
me deixem ajudá-las.
Dois pares de olhos chocados fitaram-no. As irmãs Tribble
sentiam-se obrigadas pelas leis férreas das convenções sociais. Era
muito comme il faut aguardar que um parente idoso morresse ou
casar com alguém detestável com o simples intuito de arranjar
dinheiro, mas aceitar caridade? Nunca!
– Parece-me que, infelizmente, lhe causámos uma impressão
errónea – disse Amy. – Estamos a dois passos de nos tornarmos
mulheres trabalhadoras, por isso não há necessidade de ter piedade
de nós.
– Que género de trabalho?
Effy apresentou um recorte dobrado e muito manuseado do jornal
The Morning Post e apontou em silêncio para um anúncio
publicitário. Ele pegou no monóculo e leu-o com atenção.
– Já tiveram respostas?
– Sinceramente, ainda não – confessou Amy, lançando um olhar
de advertência a Effy. Tinham tido duas respostas, mas as famílias
que apareceram de visita ficaram nitidamente desencorajadas pela
casa gélida e pela falta de criados.
– Deixem-me pensar – disse ele. – Na minha opinião colocaram o
tipo de anúncio errado.
– O que quer dizer? – perguntou Effy em voz aguda, esquecido já
o tom namoradeiro.
– Nesta época muito dada ao sentimentalismo – começou ele,
devagar – os pais muitas vezes arruínam as filhas satisfazendo-lhes
todos os caprichos. Certamente já viram algumas assim, difíceis.
São tão mimadas e selvagens que ninguém lhes pega. Mas se
pusessem um anúncio a oferecerem-se para educar jovens difíceis,
pais absolutamente desesperados são capazes de responder... se
entendem o que quero dizer. – Ele tossiu e acrescentou
diplomaticamente: – As classes médias são capazes de se igualar
em riqueza às classes altas. Um aristocrata não se importaria,
desde que pensasse estar a providenciar o ensino correto para a
sua filha antes do início da temporada social. Afinal, uma das
vossas frases favoritas costumava ser que conseguiam transformar
o pior em melhor.
Seguiu-se um longo silêncio. Effy olhava para Amy de olhos
arregalados.
– Meu Deus! Acho que acertou na mouche! – exclamou Amy, de
repente, saindo da sala a correr e regressando logo depois com
caneta e papel.
– Faço questão de levar já em seguida o vosso novo anúncio para
o jornal – disse Mr. Haddon. – Deixem-me, pelo menos, fazer isso
por vós.
Os três trabalharam ativamente, escrevendo e cortando e
reformulando até ficarem satisfeitos.
– Isto vai atraí-los – anunciou Mr. Haddon por fim, quando todos
olhavam para o resultado final.

Se tem uma Filha Desobediente, Rebelde ou Indisciplinada,


duas Senhoras da Nobreza oferecem-se para Preparar a dita
Filha para apresentação à sociedade e Educar o que pode
parecer Ineducável. Formação Religiosa e Social. As Sementes
do Decoro plantadas em Terreno até então Árido. Nós
conseguimos transformar o Pior em Melhor.
As cartas deverão ser endereçadas para XYZ, Perfumaria
Cruickshank, 12, Haymarket.

Os perfumistas tinham um serviço de recolha de cartas para os


anunciantes.
– Vou levá-la já – garantiu Haddon. – Vemo-nos amanhã.
Assim que ele saiu, Amy disse tristemente:
– Vamos ter de lhe contar a verdade. Não podemos continuar a
dizer que os criados estão de folga.
– É um homem muito bem-posto – comentou Effy, sonhadora. –
Reparaste no olhar eloquente que me lançou quando se inclinou
para me beijar a mão?
Mas, pela primeira vez, Amy não partilhou das especulações
românticas da irmã.
– É melhor eu ir à despensa ver se consigo descortinar alguma
coisa para comermos – disse ela. – Amanhã vamos a casa de Lady
Rochester. Come o mais que puderes, Effy.
– Oh, assim farei. Mas não me envergonhes outra vez.
– O que queres dizer com isso?
– Sabes muito bem o que quero dizer, Amy. Na festa dos
Peterson, deixaste-os escandalizados quando tentaste enfiar aquela
comida toda numa bolsa do tamanho de uma mala e foste
apanhada. Por causa disso, nunca mais nos convidaram.
– Na altura, pareceu-me uma boa ideia – confessou Amy,
amuada.
Ela passou a hora seguinte na cozinha tentando transformar um
pedaço de carne do cachaço de borrego num guisado nutritivo. Um
estrondo vindo da rua fê-la deixar a panela e subir os degraus de
acesso à rua. Viu um carvoeiro inclinado sobre o postigo do carvão.
Atrás dele estava a carroça, carregada com sacos de carvão.
– Pare com isso! – ordenou Amy bruscamente. – Nós não
encomendámos carvão.
– Foi Mr. Haddon que encomendou e pagou – explicou o
carvoeiro, irritado.
– Muito bem, pode continuar – aceitou Amy. – Tinha-me
esquecido – justificou, recuando e descendo as escadas para dentro
de casa.
Sentiu um calor especial no coração. Qualquer outro homem
poderia ter enviado flores ou chocolates, mas só o perspicaz Mr.
Haddon teria a ideia de lhes enviar carvão. Se lhes tivesse
perguntado se gostariam de carvão, as irmãs teriam recusado,
porque isso seria aceitar caridade. Mas isto! Isto era um presente.
Amy desceu para a cave vazia e, de mãos apertadas e olhos a
brilhar, ficou à espera que a avalanche de carvão descesse pela
calha.

Dois dias depois, no condado de Sussex, a condessa de


Baronsheath encontrava-se sentada a uma bonita escrivaninha na
sua sala de estar. Abriu uma gaveta, tirou um exemplar do The
Morning Post e leu o anúncio das irmãs Tribble uma e outra vez.
Seria uma brincadeira? Seriam aquelas autodenominadas senhoras
da nobreza realmente nobres? Haveria alguém no mundo inteiro
capaz de educar a sua filha, Lady Felicity Vane?
A condessa ouviu gritos e exclamações lá fora. Guardou às
pressas o jornal na gaveta e foi até à janela. Um grupo de jovens a
cavalo, liderados pela sua filha, Lady Felicity, atravessavam o
roseiral, enquanto um jardineiro escocês pulava e vociferava como
um gnomo enfurecido para as costas dos cavaleiros.
Lady Baronsheath voltou a sentar-se, sentindo as pernas bambas.
O que podia ela fazer? O primeiro baile de debutantes de Felicity
era naquela mesma noite e, em vez de se embelezar, ela preferia
destruir o roseiral com o grupo de convidados masculinos mais
barulhento da casa.
Era tudo culpa do marido, pensou Lady Baronsheath com
amargura. Ele queria um filho, sempre quis ter um filho, e ela só fora
capaz de lhe dar uma menina. Então, ele passou a tratar a filha
como se ela fosse um rapaz, satisfazendo-lhe todos os caprichos.
Agora preparava-se para navegar para a América para uma visita
prolongada, deixando à mulher a responsabilidade de levar Lady
Felicity para Londres para a sua primeira temporada.
Bem vistas as coisas, nem deveria haver necessidade de nada
disso, pensou Lady Baronsheath, irritada, considerando o bom
partido que tinham mesmo à porta. O marquês de Ravenswood, seu
vizinho e recentemente retornado da guerra. Era bonito, elegante e
rico. Era um pouco mais velho, já na casa dos trinta, e Felicity tinha
dezanove anos, mas um homem mais velho era certamente o que
ela precisava para lhe pôr algum travão. Todos os sonhos de Lady
Baronsheath de ver a filha noiva do marquês na noite do baile há
muito que haviam desaparecido. O marquês já conhecera Lady
Felicity e parecia desprezá-la, e a simples presença dele parecia
sempre trazer ao de cima o pior de Felicity.
Às vezes, a exuberância do marido e da filha fazia Lady
Baronsheath sentir-se emurchecida e exausta. A casa era muito
elegante e bastante moderna, construída no estilo pseudoclássico
do século XVI, com duas graciosas alas a estenderem-se de ambos
os lados do edifício principal. Os quartos eram cheios de luz e muito
bem decorados. Mas toda a casa cheirava sempre a roupa húmida,
a cavalos e a cães. Felicity montava quase todos os dias, sempre
vestida com roupas masculinas.
O baile iria realizar-se na série de grandes salões que
compunham o primeiro andar do edifício central. De cima já se ouvia
vagamente os acordes da orquestra, ensaiando uma valsa. Lady
Baronsheath tentou consolar-se com o pensamento de que Felicity
em vestido de noite e com o cabelo arranjado talvez parecesse
encantadora aos olhos do marquês e que, com sorte, ele não
tivesse ouvido falar da sua reputação de ser a maria-rapaz da caça.
Desconfiava muito, mas tinha de se agarrar a essa esperança
para ter coragem de enfrentar a noite que se aproximava.
É agora que o temido campo aparece;

Toda ela suspira ao ouvir o ruído que esmorece

Das carruagens distantes que se afastam lestas,

Logo tremendo em sobressalto à visão da floresta.

SOAMES JENKINS, THE MODERN FINE LADY

Lady Felicity Vane estava decidida a portar-se bem. Notara a


expressão ansiosa da mãe, os olhares preocupados, o nervosismo
quanto ao sucesso ou fracasso deste baile. Por isso Lady Felicity
tinha decidido ficar tão bonita quanto possível e namoriscar e sorrir
como a melhor das filhas. Iria encantar o tal marquês de
Ravenswood e aceitar o pedido de casamento. Todas as jovens
procuravam conseguir um bom casamento; todas as boas filhas o
deviam aos queridos pais. Além disso, se Lady Felicity casasse com
Ravenswood, não seria afastada da sua preciosa caça. Orgulhando-
se da sua mente prática e sem parar para pensar que o marquês
poderia ter outra opinião, Lady Felicity, com uma docilidade
incomum e preocupante, permitiu que Wanstead, a criada de quarto,
a preparasse para o baile.
Wanstead resistia aos humores de Lady Felicity há mais tempo do
que a maioria. Era uma mulher do campo já de certa idade e de
espírito inflexível, de pouca graciosidade e com a pele curtida. No
passado fora um corrupio de amas e depois uma sucessão de
precetoras, afugentadas pelas partidas e comportamento selvagem
de Lady Felicity, mas Wanstead assentara lugar há já três anos. O
seu maior trunfo era o facto de ser dura de ouvido. A gritaria das
birras de Felicity não a incomodava e desenvolvera um movimento
pendular e ziguezagueante ao aprender a evitar escovas de cabelo,
pinças de frisar e outros mísseis atirados na sua direção.
Felicity adorava o pai e esforçava-se muito para se comportar
como o jovem estroina que ele gostaria de ter tido como filho. Certa
vez tinha colocado um vestido muito bonito, com babados e rendas,
para agradar à mãe, mas o pai desatara à gargalhada dizendo que
ela parecia o macaquito de um tocador de realejo. Esta era a
primeira vez, desde esse momento humilhante, que Felicity fazia um
esforço para se parecer com a jovem que era.
Pacientemente, deixou-se ficar sentada diante do toucador,
enquanto lhe besuntavam o cabelo com brilhantina e lhe faziam
caracóis, enquanto era perfumada e empoada.
Ela era uma rapariga alta com cabelo preto grosso, um rosto
magro bronzeado e grandes olhos verdes acinzentados. Tinha uma
boca carnuda e um peito generoso. Não era bonita para os padrões
da moda, que exigiam uma figura rechonchuda e delicada, um rosto
com covinhas e uma boca pequena. Ela tinha as maçãs do rosto
altas, uma grande desvantagem numa época em que as mulheres
usavam almofadas de cera no interior das bochechas para alcançar
uma aparência de boneca holandesa. Mas, com o cabelo preto
penteado em estilo romano e a figura magra e atlética vestida em
musselina branca flutuante, conseguia atingir um certo ar régio. O ar
saudável conferia à pele um certo brilho e fazia o cabelo refulgir com
reflexos azulados.
Felicity recebera instruções precisas. Devia esperar até que os
convidados estivessem todos reunidos na sala e só depois descer a
escadaria. A escadaria era dupla e ela devia descer pela da direita,
uma mão descansando levemente no corrimão e a cabeça erguida.
Um lacaio iria segui-la, segurando um candelabro. Felicity estava
muito animada com a ideia de fazer uma entrada triunfante. No seu
subconsciente, embora ainda não o soubesse bem naquela altura,
residia a esperança de que o pai, ao ver na filha uma donzela
atraente, desistisse do seu desejo de um filho. Embora ele adorasse
Felicity, conseguia sempre fazê-la sentir como se tivesse usurpado o
lugar desse filho tão sonhado.
No dia anterior, enquanto andava a cavalo, vira de relance o
marquês de Ravenswood. Alguns dos empregados dele andavam a
cavar uma vala de drenagem no campo de Plump na sua
propriedade. Ao passar por ele a cavalo, Felicity viu o marquês, até
aí a dar instruções, tirar o casaco, pegar numa pá e começar a
cavar. Reparou, não pela primeira vez, como ele era alto e forte. Um
lorde que não era demasiado arrogante para cavar as suas próprias
valas daria um bom marido. Felicity pensava num marido como
sendo alguém parecido com o próprio pai, alguém que lhe
permitisse rédea solta. Sabia que o romance não tinha lugar num
casamento aristocrático. As terras dela faziam fronteira com as do
marquês. Seria uma parceria de negócios sensata.
Do piso de baixo vinham os acordes de uma valsa. Felicity sentiu
um frémito de excitação e correu até ao espelho de corpo inteiro do
seu quarto, virando-se de um e outro lado, para se certificar de que
as fitas do vestido estavam devidamente apertadas.
– Até que enfim começou a preocupar-se com a aparência,
menina – resmoneou Wanstead.
– Tens de estar sempre a reclamar? – protestou Felicity,
enrubescendo.
Alguém bateu ao de leve na porta e Wanstead foi abrir. Era o
lacaio com o candelabro. Chegara a hora da entrada triunfal de
Felicity.
Felicity saiu e atravessou o corredor, seguida pelo lacaio. Atrás
dele veio Wanstead, a dizer ainda:
– Passos curtos, menina. Não ande assim com passos tão largos.
Requebre, menina, requebre!
No cimo da escadaria dupla, Felicity fez uma pausa e olhou para
baixo. Os rostos estavam voltados para ela: o da mãe, pálido e
ansioso; o do pai, corado e divertido. Foi então que viu o marquês
de Ravenswood. Ele era realmente muito atraente, pensou Felicity
com uma pontada de comoção. Ainda não tinha tido a oportunidade
de o ver em traje de gala. O cabelo claro era espesso, com um corte
curto e elegante em estilo Brutus, o corpo era forte, os ombros
largos, as ancas estreitas e as pernas esguias, todo ele glorificado
pela requintada alfaiataria de Weston. O rosto arrogante de nariz
altivo voltou-se por breves instantes na direção de Felicity. Ao seu
lado estava uma bela loira minúscula, toda vestida de cor-de-rosa. O
marquês olhou de relance para Felicity com um ar de desdém
divertido e, em seguida, virou-se para a acompanhante, que sorria
para ele.
Felicity supôs que o olhar desdenhoso do marquês se devia ao
facto de ela se parecer com um rapaz. De imediato o prazer que
sentira pela sua aparência desapareceu. Sentiu-se uma pateta
desajeitada. A hipótese de o marquês já ter certamente ouvido o
relato de todas as suas façanhas e ter antipatizado com ela nem lhe
passou pela cabeça. Sentiu-se exatamente como no terrível dia em
que vestira aquele lindo vestido e o pai troçara dela. Todo este
raciocínio foi obra de um momento.
Felicity passou uma perna por cima do corrimão polido e deslizou
por ele abaixo, saltando por cima do animal heráldico esculpido no
poste ao fundo do corrimão, e aterrou suavemente no salão, perante
as exclamações chocadas das senhoras e os rugidos de aprovação
ruidosa dos amigos de caça.
A noite foi um pesadelo para Lady Baronsheath. O marquês não
convidou Felicity para dançar uma só vez, preferindo namoriscar
com Miss Betty Andrews, a donzela de cor-de-rosa. Acompanhou
Miss Andrews à ceia, enquanto Felicity fez par com Tommy Lush,
um vigário beberrão e praguejador que parecia ter-se esquecido de
que a mulher estava presente.
Felicity bebeu de mais à ceia. Tinha os olhos brilhantes e o rosto
fino corado. Parecia estar a divertir-se imenso. Lady Baronsheath
poderia ter ficado menos angustiada se soubesse que a filha se
comportava assim por se sentir desnorteada e infeliz, mas não
sabia. O comportamento de Felicity era muito semelhante ao do
conde, que soltava gargalhadas ruidosas e dava palmadas nas
costas de todos e contava histórias cheias de entusiasmo.
Estava previsto o conde partir para a primeira etapa da sua
viagem à América na manhã seguinte. Lady Baronsheath ficaria
para trás, com o trabalho horrendo de preparar Felicity para a
temporada social londrina. Rezara muito para que Ravenswood
propusesse casamento à filha, para que qualquer um o fizesse, de
modo a tornar tal calvário desnecessário. Mas agora teria de ir até
ao fim.
Foi no momento em que Felicity, já meia embriagada, desatou a
gritar como um selvagem das montanhas a meio de uma dança
escocesa que Lady Baronsheath fugiu de mansinho para a sala de
estar, indo buscar à escrivaninha o recorte de jornal amassado e
alisando-o. Sentou-se e começou a escrever. Um dos lacaios partiria
para Londres nessa mesma noite. Lady Baronsheath sentiu que
precisava de toda a ajuda que pudesse conseguir.

Amy estava no fosso escuro da cozinha a tostar queijo quando a


carta chegou. Um queijo Cheshire tinha sido o mais recente
presente de Mr. Haddon. Chegara dois dias antes, e Amy e Effy já
estavam fartas de queijo, mas achavam que, por razões de
economia, deviam tentar comê-lo todo.
Ouviu a campainha da sala de estar tinir e, irritada, olhou para a
fila de sinos pretos pendurados nos respetivos fios por cima da porta
da cozinha.
Era típico de Effy continuar a viver como se ainda tivessem uma
casa cheia de criados.
Amy subiu as escadas devagar. Sentia-se muito cansada e
doíam-lhe as costas. Naquela manhã, ao olhar-se ao espelho,
encontrara dois grandes pés de galinha gravados na pele inchada
por baixo dos olhos. Amy precisava de óculos, mas achava que usá-
los iria acentuar-lhe a idade, por isso na noite anterior ficara sentada
a ler um romance de olhos semicerrados à luz de uma vela. Daí os
pés de galinha.
Effy estava sentada na sala de estar, diante do fogo intenso da
lareira, envergando o seu vestido de musselina mais fina.
– Consigo ver as tuas ligas! – rosnou Amy, deixando-se cair numa
cadeira em frente. – Raios partam, estou tão cansada!
– Olha a linguagem, por favor! – admoestou Effy.
– Para o inferno com isso! – resmungou Amy com um acentuado
encolher de ombros. – O que diz a carta?
– A loja veio gentilmente cá entregá-la porque tinha uma entrega
para fazer em Oxford Street. É da condessa de Baronsheath. Ela
precisa de ajuda para a apresentação à sociedade da filha, Lady
Felicity Vane.
– Viva! – exclamou Amy, pontapeando o ar com os seus grandes
pés. – Porque não estás aos pulos de alegria, Effy?
– Porque sua graça nos convoca para o Sussex, para Greenboys
House.
– Então temos de preparar tudo para partir hoje mesmo! –
exclamou Amy.
– Mas é no campo – lamentou-se Effy.
Effy odiava o campo com todas as suas forças. Streatham, com a
promessa de futuras riquezas fora suportável. Mas o Sussex era
mesmo o campo com árvores e relva e pássaros e todas essas
outras coisas estranhas. Para Effy, o campo significava o fracasso
social. A vida era em Londres. Londres era o centro do universo; o
campo era o inferno.
– Tens de ser corajosa – disse Amy. – Vamos para uma casa
senhorial, não para a cabana de um pastor. Quanto dinheiro achas
que devemos pedir? Ela terá de nos adiantar algum dinheiro. E
pensa nas vantagens! Lady Baronsheath não virá entrevistar-nos
aqui!
– Acho que sinto um espasmo a chegar – queixou-se Effy em voz
fraca. Fez um ruído estrangulado e caiu da cadeira para o chão.
Amy levantou-se e puxou a carta das mãos da irmã; em seguida,
sentou-se e começou a lê-la com atenção. Effy sentou-se,
mostrando um ar indignado.
– Como podes ser tão insensível, Amy?
– Hum... – foi a resposta de Amy, ainda atenta à leitura. Só depois
olhou para a irmã e disse: – É melhor ires vestir qualquer coisa
decente, Effy. Não há necessidade de pareceres uma meretriz.
– Eu não pareço uma meretriz!
– Pareces, sim. Consigo ver que as tuas ligas são feitas de lã cor-
de-rosa e que a malha da da direita está remendada. E também vejo
que não trazes ceroulas.
– O uso de ceroulas é um costume masculino.
– Não, já não é – contrapôs Amy. – Além disso, vais morrer de
frio.
– Talvez devêssemos consultar o meu querido Mr. Haddon –
aventou Effy.
– O nosso querido Mr. Haddon – corrigiu Amy, furiosa. – Não há
tempo. E faz o favor de parares de resmungar e de te pores com
esgares por teres medo que uma árvore te persiga e te rapte.
– Amy!
– Vá, despacha-te – terminou Amy e desandou dali para tratar de
reservar uma sege, já decidida a cobrar o custo do transporte à
condessa caso os serviços fossem recusados.

Sem saber que o destino na forma das irmãs Tribble se agigantava


sobre ela, Felicity saiu a cavalo numa calma manhã de novembro,
duas semanas depois do baile. O tempo estava bastante ameno
para aquela época do ano. O ar estava repleto de aromas a lenha
queimada e ao avinhado das folhas em decomposição. Ela
cavalgava sozinha. O pai nunca tinha insistido que um lacaio a
acompanhasse e, embora o conde tivesse partido em viagem,
Felicity não vira motivos para alterar a sua liberdade. A mãe andava
invulgarmente silenciosa e absorta e ainda nem sequer a
repreendera pelo seu comportamento no baile.
Mas, nos últimos dias, Felicity começara a interrogar-se sobre o
que o futuro lhe reservava. Sem o seu pai adorado, o desejo de
beber, galhofar, de praticar tiro e caçar só para lhe agradar
abandonara-a. Preferia ficar sozinha. Chovia há vários dias e o chão
estava pesado e encharcado. Os troncos das grandes árvores
fulgiam de líquenes verdes, destacando-se apenas algumas folhas
vermelhas e amarelas ainda presas aos ramos.
A égua, Titbit, passeava-se ao longo dos caminhos rurais tão
satisfeita como a dona por vaguear lentamente e sem rumo. As
árvores que se arqueavam formando um túnel verdejante deram
lugar a campos pardos ladeados por sebes espinhosas e, em
seguida, a uma charneca.
No topo de uma subida estava um homem a cavalo. Felicity
reconheceu o marquês de Ravenswood. Ele estava vestido com um
casaco de caça vermelho, calças de couro e botas com faixas
castanho-avermelhadas no cimo do cano. Na cabeça usava um
chapéu de três pontas à moda antiga.
Felicity ergueu o chicote em saudação. Ele tocou o chapéu, e, em
seguida, esporeando o cavalo, afastou-se dela o mais depressa que
pôde.
– Maldito! – resmungou Felicity. – Se ele prefere pequenos
bombons como Miss Betty Andrews, não é o homem certo para
mim.
Mas uma vozinha interior perniciosa parecia estar a tentar dizer-
lhe que o gosto de todos os homens era por loiras fofinhas. No baile,
os companheiros de caça tinham-na tratado como mais um homem,
alguns a ponto de lhe confiarem as suas paixões desesperadas por
esta ou aquela donzela.

O marquês cavalgou para longe, mais por querer estar sozinho do


que para evitar especificamente a companhia de Lady Felicity Vane.
A jovem era-lhe quase indiferente. Nutria uma certa compaixão para
com o sofrimento da mãe, ao ser amaldiçoada com uma filha tão
rebelde, e desprezo pelas jovens que se comportavam como
homens. Queria estar sozinho para pensar em Miss Betty Andrews e
se ela daria uma esposa adequada.
O facto de ela não ter muito na caixa craniana não o preocupava.
Ele queria uma mulher atraente e obediente que lhe desse vários
filhos e filhas. Miss Andrews possuía nádegas redondas e ancas
generosas. Provavelmente seria uma boa reprodutora. O marquês
talvez tivesse menos propensão para ver a sua prometida como um
agricultor a avaliar uma vaca na feira se estivesse apaixonado, mas
esse não era o caso. Nem quando adolescente outra coisa que não
o desejo lhe agitara a vida. Considerava livros e poemas sobre o
amor romântico uma sofisticação necessária, uma forma de dar
polimento a sentimentos mais básicos.
Os mugidos de gado, misturado com os sons estridentes de
alguém a gritar, interrompeu-lhe o devaneio. Cavalgou até ao cimo
de uma pequena colina com vista para Lewes Road e olhou para
baixo.
Uma manada de vacas passava a furta-passo por uma sege
empoeirada. Na sege ia uma diminuta senhora que gritava como
louca através da janela aberta, enquanto uma companheira mais
alta tentava acalmá-la. O vaqueiro sorria e propositadamente não se
esforçava para fazer a manada andar mais depressa.
O marquês cavalgou até à estrada, desmontou, amarrou o cavalo
e começou a agitar o chapéu para incitar as vacas a um ritmo mais
rápido. O vaqueiro, reconhecendo o marquês, passou a incitar a
manada também, e pouco depois a sege ficou com a estrada liberta.
O marquês aproximou-se da carruagem, do lado da mulher alta, e
fez uma vénia. Ela desceu o vidro.
– Obrigada – disse ela bruscamente. – Aquele campónio
insubordinado ia manter-nos aqui o dia todo e a minha irmã está
histérica. Oh, cala-te lá, Effy! O raio dos animais já se foram embora
e tens aqui um Sir Galahad que veio para te salvar.
A choraminguice parou e uma bonita senhora de cabelo branco
apareceu ao lado da alta.
– Obrigada, meu senhor – disse ela. – É muito corajoso.
O marquês mostrou-se divertido.
– Não as salvei de salteadores, minhas senhoras. Apenas
afugentei uma manada de vacas. O meu nome é Ravenswood.
– Eu sou Miss Amy Tribble – apresentou-se a mulher alta – e esta
aqui é a minha irmã, Effy Tribble.
– Miss Effy – corrigiu a outra baixinho. – Tem de perdoar a minha
irmã, vossa senhoria. O discurso dela é muito básico – disse Effy,
que sabia os nomes de toda a gente da nobreza.
– Pode dar ao inútil do nosso cocheiro a direção da estalagem
mais próxima? – pediu Amy. – O nosso destino final é a casa dos
Baronsheath, mas queremos refrescar-nos um pouco antes.
– A minha casa é aqui perto – disse o marquês. – Se não se
importarem de me seguir, será um prazer recebê-las e enviar um
homem a Greenboys House para informar da vossa chegada.
– Que delicadeza! – disse Effy, agitando as pestanas escurecidas
num jeito sedutor.
O marquês contrariou a vontade irresistível de rir. Quantos anos
teriam aquelas senhoras? Cinquenta ou mais, com certeza. No
entanto, a de cabelos brancos ainda namoriscava descaradamente.
Ordenou ao cocheiro da sege que o seguisse, voltou a montar e
partiu em direção a casa, Ansley Court.
Pouco tempo depois, as irmãs Tribble foram conduzidas a um
quarto, onde poderiam lavar-se e trocar de roupa antes de viajarem
para Greenboys House.
Assim que ficaram a sós, Amy virou-se para Effy, repreendendo-a.
– Como podes ser tão devassa? – criticou. – A tentar seduzir e a
fazer olhinhos como uma meretriz. Tens idade suficiente para ser
mãe dele.
– Ele está na casa dos trinta anos – justificou Effy, desafiadora.
– Mesmo assim, é demasiado novo para ti.
Effy começou a chorar. Amy olhou-a com impaciência mas, em
seguida, o seu rosto suavizou-se. Tinha coagido brutalmente Effy
para fazerem aquela viagem até ao campo que ela tanto temia. Já
era suficiente.
– Peço desculpa – disse Amy, abraçando a irmã chorosa –, mas
tens de perceber a importância que Ravenswood tem para os
nossos planos.
Effy enxugou os olhos.
– Não, eu não percebo – disse ela com ar ofendido.
– Ele não é casado – explicou Amy – e o nosso trabalho é
encontrar um pretendente para essa tal Lady Felicity. Vamos sondá-
lo e descobrir se ele nutre algum sentimento de afeto pela jovem.
Depois de lavadas e arranjadas, as irmãs Tribble foram para a
biblioteca, onde logo se acomodaram diante da lareira, onde lhes
serviram ratafia e macarons.
– Estamos ansiosas por conhecer Lady Felicity – começou Amy. –
Uma jovem encantadora, imagino.
O marquês não disse nada.
– Eu disse que ela é uma jovem encantadora – repetiu Amy muito
alto.
O rosto do marquês crispou-se.
– Eu não sou surdo, Miss Amy.
– Então, vossa senhoria?
– Então, o quê? – perguntou ele com impaciência.
Amy aclarou a garganta e tentou novamente.
– Qual é a sua opinião sobre Lady Felicity?
– Pensei que estava a deixar bem claro o facto de não querer
pronunciar-me sobre o assunto.
– Porquê? – quis saber Amy com a teimosia de uma criança.
– Não vás por aí, querida irmã – interrompeu Effy. – É
compreensível que estejamos ansiosas para saber o máximo
possível sobre este trabalho antes de...
Ao ver os olhos arregalados da irmã, parou de falar, atrapalhada.
– Trabalho? – perguntou o marquês com surpresa. – São um par
de precetoras ou algo do género?
O olhar de altivez imperturbável no rosto de Effy fê-lo enrubescer
ligeiramente.
– Pois queira vossa senhoria saber que somos acompanhantes
de altíssimo gabarito – respondeu Effy. – Não poderíamos nunca ser
simples precetoras. Nós somos as irmãs Tribble de Wiltshire.
Pertencemos à alta sociedade. O nosso trabalho é apresentar Lady
Felicity à sociedade.
– Lady Baronsheath está doente, é isso? – perguntou o marquês.
– Não, vossa senhoria – respondeu Effy, muito hirta. Ainda não
lhe tinha perdoado por pensar que poderiam ser precetoras. – Sua
graça está a precisar dos nossos serviços especiais.
– Sendo eles...?
– Nós conseguimos transformar o pior em melhor – respondeu
Amy.
– Deve ser uma profissão desgastante – disse o marquês,
pensando em Felicity.
– Este é o nosso primeiro trabalho – explicou Amy sem rodeios –
e precisamos de toda a ajuda que conseguirmos.
O marquês pensou com pesar em todas as histórias que ouvira
sobre Lady Felicity desde que regressara ao país. Os vizinhos
haviam-lhe contado que ela se comportava vergonhosamente desde
que dera os primeiros passos e que conseguira expulsar várias
amas e precetoras.
– Eu tenho alguns assuntos a tratar na cidade – disse ele
lentamente. Simpatizara com aquelas duas irmãs invulgares. Notara
a grandeza desbotada e gasta das suas roupas antiquadas. Amy
escondera o único vestido moderno de Effy, o de musselina
transparente, antes de partirem. – Se quiserem enviar-me uma
mensagem a avisar de quando pretendem regressar, eu poderei
acompanhá-las. A minha carruagem é muito confortável para viajar.
Effy inclinou-se para a frente e deu-lhe uma pancadinha breve e
brincalhona nas costas da mão com o leque.
– Ficamos-lhe imensamente gratas, vossa senhoria – agradeceu
ela. – Os terrores do campo perderão toda a importância na sua
companhia.
– Que terrores, Miss Effy?
Effy estremeceu.
– Oh, campos, vacas e touros, pássaros e árvores e todas essas
coisas. Tão indisciplinadas! Tão ameaçadoras! E estão por todo o
lado.
– Mas então o que me diz a Londres com os seus salteadores e
ruas mal iluminadas e cheiro quase constante a esgoto? –
perguntou o marquês.
Effy enrubesceu e franziu a testa. O marquês era quase tão
desoladoramente franco como a irmã, pensou ela. Pôr-se a falar de
esgoto com uma senhora de tão boa educação. Vergonhoso!
– Londres é o centro da elegância e do discernimento – contestou
ela em tom desaprovador. – Talvez a dificuldade com Lady Felicity,
se houver qualquer dificuldade, seja a de que a pobre rapariga está
há demasiado tempo longe de ambientes refinados. O campo é um
lugar monstruosamente rude.
– Talvez – concedeu o marquês. – No entanto, não parece ter tido
um efeito destrutivo nos modos de qualquer outra beldade local. Na
verdade, Lady Felicity é uma criança mimada.
– Estou certa de que o seu julgamento é duro de mais – disse
Amy, esperançosa.
– Veremos. Agora, se já estão prontas, minhas senhoras,
podemos partir.

Nessa manhã, Felicity foi avisada dos planos da mãe e achou tudo
muito divertido. As irmãs Tribble logo seguiriam o mesmo caminho
de toda aquela longa lista de precetoras e amas. Contudo, estava
disposta a oferecer-lhes uma receção de cortesia, até decidir a
melhor forma de se livrar delas.
Mas as irmãs Tribble, tendo já pagado e dispensado a sege,
chegaram na carruagem do marquês de Ravenswood. O próprio
marquês ajudou-as com toda a amabilidade a descer da carruagem
antes de se ir embora. Felicity assistiu a tudo isto da janela do
quarto.
Sentiu-se humilhada. Que ele, de todas as pessoas, soubesse
que a mãe a considerava tão rebelde que contratara estranhos para
a ajudar fê-la ferver de raiva.
Lady Baronsheath recebeu as irmãs Tribble na sala de estar e foi
apanhada de surpresa pela aparência delas. Miss Effy era toda ela
delicadeza, mas a penugem de cisne do remate da peliça estava
amarelada e imperfeita e era bem visível a cerzidura num dos
cotovelos do vestido. Miss Amy tinha retirado o manto de pelo
careca para revelar um vestido rodado castanho desbotado com a
cintura no sítio errado. Nenhuma das senhoras parecia possuir
qualquer tipo de joia.
Por sua vez, as irmãs Tribble ficaram encantadas com a
condessa. Era muito bem-educada e tranquila, com uma maneira de
ser encantadora embora tímida. Ambas começavam a alimentar
grandes esperanças acerca de Felicity.
Lady Baronsheath fez-lhes perguntas pormenorizadas sobre
amigos e parentes e pareceu ficar mais aliviada quando reconheceu
os nomes de vários amigos.
– A minha filha é rebelde e mimada – começou a explicar Lady
Baronsheath –, mas eu sei que, au fond, tem um bom coração. Ela
não teve uma boa formação religiosa. O nosso vigário, Mr. Simms, é
um homem muito bom, mas muito tímido, e infelizmente as
pequenas conversas que teve com Felicity não parecem ter surtido
qualquer efeito.
– Não se preocupe, vossa graça – disse Amy com aspereza –,
Lady Felicity irá ler a Bíblia todas as noites e todas as manhãs.
A condessa pestanejou.
– Bem, talvez isso ajude, se por acaso conseguirem fazê-la
obedecer.
– Oh, Lady Felicity vai obedecer-me – contrapôs Amy de imediato.
– Senão...
Foi quando Lady Baronsheath começou a arrepender-se de tudo
aquilo. Amy parecia tão alta, tão forte, tão excêntrica e tão
ameaçadora que temia que a sua pobre Felicity viesse a ser
maltratada. O destino das irmãs Tribble estava periclitante. Lady
Baronsheath decidiu nesse instante desistir e mandá-las embora.
Fez o movimento de se levantar, mas quando abriu a boca para
emitir a sentença, Effy disse:
– Foi uma enorme amabilidade de Lord Ravenswood oferecer-se
para nos acompanhar a Londres quando partirmos com Lady
Felicity.
Lady Baronsheath voltou a sentar-se.
– Ravenswood! Têm a certeza?
– Sim – respondeu Effy com toda a inocência. – Ele resgatou-nos
com toda a bravura de uma manada de touros furiosos...
– Vacas! Vacas! – corrigiu Amy.
– Touros – disse Effy com firmeza. – Depois levou-nos para sua
casa, para que pudéssemos refrescar-nos e mudar para as nossas
melhores roupas antes de virmos conhecê-la, Lady Baronsheath.
Quando ele soube que íamos levar Lady Felicity para Londres,
ofereceu-se para nos acompanhar.
Lady Baronsheath preocupou-se apenas um instante com a
observação cândida de Effy sobre terem mudado para as melhores
roupas. Se aquelas eram as melhores, pensou, como seriam as
segundas melhores? Mas Ravenswood era outra história!
Certamente que a oferta para as acompanhar indicava que ele devia
nutrir algum sentimento por Felicity.
– Sugiro que conheçam agora a minha filha – anunciou Lady
Baronsheath.
Caminhou até junto da lareira, onde se encontrava pendurada a
faixa bordada que usou para tocar a campainha.
Irra! Que nunca se viu bruto tão maçador!

Não me vou levantar do lugar, não senhor.

Céus! Que significa tanto puxão e provocação?

Decerto não há nada pior que um homem sem razão!

DELIA VERY ANGRY


(ANÓNIMO)

Felicity entrou na sala e fez uma reverência digna da corte, os


olhos bailando de riso. Na sua opinião, as irmãs Tribble eram o par
de excêntricas mais engraçado que já vira.
Lady Baronsheath fez as apresentações. Amy e Effy olharam
atentamente para Felicity. Ambas se sentiram aliviadas ao ver que a
jovem era razoavelmente atraente. Um olho vesgo ou uma leve
corcunda teria sido uma desvantagem grave. Felicity sentou-se e
assumiu um ar recatado. A mãe conhecia aquele olhar e sabia que a
filha estava a planear alguma maldade.
– As irmãs Tribble vão preparar-te para a temporada, Felicity –
disse Lady Baronsheath. – Irás com elas para Londres e lá vais
aprender a arte de ser uma donzela elegante.
– Eu não preciso de instrução – respondeu Felicity em voz baixa.
– Eu sei muito bem como me comportar.
– Então porque não o faz? – perguntou Amy em tom de comando.
As mãos de Lady Baronsheath agitaram-se num tremelicar inútil
de protesto. Os olhos de Felicity estreitaram-se.
– Porque não faço o quê?
– Se comporta como uma donzela elegante? – completou Amy
em tom sereno.
– Eu comporto-me de acordo com a minha condição e educação –
respondeu Felicity, os olhos demorando-se deliberadamente no
vestido andrajoso de Amy.
– Ora vejam só! – exclamou Amy. – Ninguém diria.
Felicity emitiu de repente um suspiro cansado.
– Mamã, vai ficar aí sentada a ver-me ser insultada por estas
pessoas?
– Ora aí está! – disse Amy, triunfante, antes de Lady Baronsheath
conseguir falar. – Esse foi um exemplo crasso de insolência. No
futuro, irá tratar-me por Miss Amy e à minha irmã por Miss Effy.
– Quando é que partimos para Londres? – perguntou Felicity,
rapidamente decidindo tratar da saúde àqueles dois seres
pavorosos assim que ficasse longe da vista da mãe.
Amy percorreu com o olhar a sala confortável, notando os vasos
de flores de estufa, o alegre crepitar do fogo e disse com firmeza:
– Amanhã.
– Amanhã?! – queixou-se Effy. – Mas ainda agora chegámos,
querida irmã, e eu estou terrivelmente cansada da viagem. Além
disso, o nosso caro Lord Ravenswood não poderá acompanhar-nos
em tão pouco tempo.
– Ravenswood? – perguntou Felicity em tom autoritário. – O que
tem ele a ver com o assunto?
– Ofereceu-se muito gentilmente para nos acompanhar a Londres
– explicou Effy. – Oh, Amy, não nos precipitemos. Precisamos da
proteção de um cavalheiro nesta terrível zona rural.
– Ultimamente, as nossas estradas não têm sido excessivamente
atormentadas por bandoleiros e salteadores – adiantou Felicity,
lutando contra a fúria que sentia pelo facto de Ravenswood as
escoltar.
– Minha querida, o campo tresanda a árvores e pássaros e touros
e coisas assim – disse Effy, com desalento.
Felicity decidiu que a última coisa que queria era que Lord
Ravenswood a visse ser levada para ser educada por aquelas duas
excêntricas. Iria apoiar Miss Amy, partir para Londres e assustar as
irmãs a ponto de quererem livrar-se dela.
– Amanhã parece-me muito bem – aceitou.
– Deixa-nos agora, Felicity – disse Lady Baronsheath. – Preciso
de falar com estas duas senhoras em particular.
Felicity levantou-se, fez uma reverência e saiu da sala sem olhar
para trás.
– Agora – disse Lady Baronsheath com firmeza – queiram por
favor explicar a razão para esta partida tão precipitada?
– Há muito trabalho a ser feito, vossa graça – explicou Amy – e
pela expressão do olhar, percebo que Lady Felicity pretende livrar-
se de nós o mais rapidamente possível. Eu não posso começar a
discipliná-la na casa da família. Se quiser que a próxima temporada
seja um sucesso, quanto mais cedo começarmos, melhor.
Lady Baronsheath hesitou apenas um momento; um momento em
que pensou no caos que Felicity poderia criar.
– Muito bem – assentiu ela baixinho, ignorando o protesto de Effy.
– Vou enviar uma missiva a Lord Ravenswood a informar da vossa
partida, mas temo que ele não possa acompanhar-vos num prazo
tão curto. Mas podemos falar sobre isso mais tarde? Confesso que
tenho dúvidas...
Ela estava prestes a dizer que estava arrependida de as ter
mandado chamar. Eram muito estranhas e aquela pressa toda,
apesar da explicação aparentemente razoável, deixara-a muito
preocupada com o bem-estar de Felicity.
Foi Effy que inocentemente garantiu o futuro das irmãs Tribble.
– Eu preferia que contássemos com a escolta do marquês – disse
ela com certa melancolia na voz –, mas também não é como se
nunca mais o voltássemos a ver. Ele disse que estava desejoso de
nos visitar assim que estivesse a residir em Londres.
Lady Baronsheath olhou para as duas irmãs. Seria possível que
elas conseguissem uma mudança efetiva em Felicity? Seria possível
que conseguissem fazer Ravenswood pedi-la em casamento?
Pensou na hipótese de ser ela própria a lidar com a filha e
estremeceu.
– Ainda não discutimos os termos do contrato – disse ela.
Amy abriu os cordões da bolsa, semelhante a uma daquelas de
caçador, e tirou um caderno de apontamentos. Mas antes que
pudesse dizer alguma coisa, Effy inclinou-se para frente e disse:
– Deve ter em consideração, vossa graça, a grande despesa dos
bailes e jantares que teremos de organizar, para não mencionar a
contratação de um professor de dança, de um professor de música
e de um pintor de aguarelas. Sugiro que nos adiante a quantia
necessária, na condição de o dinheiro não utilizado lhe ser devolvido
se a experiência falhar. Sugiro que lhe entreguemos uma carta com
essa mesma promessa. Depois, caso Felicity fique noiva até ao final
da temporada de um cavalheiro adequado, penso que um bónus
seria adequado.
– De quanto? – perguntou Lady Baronsheath.
Amy folheou avidamente o caderninho. Planeava surpreender
Lady Baronsheath com a modéstia das suas exigências.
– Oito mil libras – respondeu Effy com toda a calma.
Amy ficou boquiaberta.
Lady Baronsheath pensou depressa. Em vez de intimidada pela
soma, sentiu-se estranhamente aliviada. A qualidade era sempre
dispendiosa.
– Muito bem – aceitou ela. – Vou tratar de elaborar o acordo.
Amy corou violentamente.
– Agora, se me dão licença, minhas senhoras – disse a condessa,
levantando-se. – Tenho de pedir à criada para preparar Felicity para
a viagem e informar Lord Ravenswood da vossa partida.
As irmãs levantaram-se também, despedindo-se com uma
reverência.
Felicity, que andava, furiosa, de um lado para o outro nos relvados
da propriedade, parou diante das longas janelas da sala de estar e
teve uma visão surpreendente. As irmãs estavam aos pulos pela
sala, numa dança desenfreada.
Elas são completamente doidas, pensou, estupefacta. Vou livrar-
me delas antes mesmo de chegarmos a Londres!

Felicity viajava muito quieta na carruagem de Lord Ravenswood


que seguia na longa estrada para Londres. Despedir-se da mãe
tinha-a deixado mais perturbada do que imaginaria possível. Toda a
sua infância estivera concentrada em agradar ao pai e, algures pelo
caminho, a mãe carinhosa ficara esquecida. Felicity dava-se
finalmente conta do quanto a mãe ficara profundamente perturbada
por enviar a sua única filha para ser educada por estranhos.
Felicity sentia-se intimidada com a presença do marquês, que
viajava com elas na carruagem. Tinha a sensação de que,
intimamente, ele se ria dela.
Miss Effy prontamente adormeceu assim que a carruagem partiu
e Miss Amy, depois de trocar algumas palavras de cortesia com o
marquês, seguiu-lhe o exemplo. As irmãs estavam exaustas depois
de uma noite de euforia e sem dormir. Felicity pôs-se a olhar pela
janela ficando de perfil para o marquês, que estava sentado à sua
frente. Uma espessa camada de nevoeiro instalara-se, vinda do
Canal, e parecia ter eliminado toda a área de Sussex Downs, aquela
vasta extensão natural que ela ainda recentemente percorrera a
cavalo, livre como um pássaro.
A carruagem seguia inexoravelmente o seu caminho,
atravessando pequenas aldeias com as suas casas de sílex, a água
resultante do espesso nevoeiro gotejando dos telhados de colmo.
Atrás vinha uma carroça coberta, carregada com os baús de Felicity
e vigiada pela sua criada pessoal.
O marquês estudou o rosto à sua frente, que o evitava. Pensou
vagamente que Lady Felicity chegava a ser atraente, assim vestida
tão à moda como fizera para esta viagem. Usava um vestido de
tecido georgiano verde-escuro, ornamentado com alamares. Na
cabeça usava um chapéu vistoso de veludo verde debruado com
pelo branco, jovialmente inclinado para um lado, expondo um
conjunto de cachos brilhantes. Ele abriu a boca para iniciar uma
conversa com ela, mas pensou melhor e, tirando um livro do bolso,
começou a ler.
Imediatamente consciente de que a atenção dele se desviara,
Felicity virou-se para a frente, olhando para ele e depois para o livro
no seu colo. Ele estava inclinado para a frente com o queixo
apoiado na mão. Grego! O livro estava escrito em grego antigo.
– Não acredito que consiga ler uma palavra do que aí está escrito
– disse Felicity, irritada. – Está apenas a tentar impressionar-me.
– Não, Lady Felicity, eu não estou a tentar impressioná-la –
respondeu ele, sem levantar os olhos da página. – Na verdade, não
consigo imaginar que venha a querer fazer alguma coisa para
chamar a sua atenção.
Felicity enrubesceu de raiva e reprimiu uma réplica insolente.
Espontaneamente, veio-lhe à mente uma memória bem vívida do
seu baile de debute. Antes daquela noite, Felicity apreciara a
agradável popularidade que tinha entre os homens do concelho, em
especial os companheiros de caça. No entanto, no baile, ficara-lhe
cravada a ferros a noção de que o treino que tivera do pai
funcionara na perfeição. Apesar do vestido de baile e do elegante
penteado, eles continuaram a vê-la como outro homem. Jack
Dempster, o seu companheiro de caça, regressara bastante pálido
de emoção depois de dançar com Miss Betty Andrews e confessara
a Felicity que se Miss Andrews não lhe sorrisse pelo menos uma
vez, o seu destino era matar-se. Nenhum homem tinha alguma vez
suspirado ou tremido sob o olhar dela. Pela primeira vez na sua
jovem vida, Felicity ansiava por um pouco desse poder feminino
mágico capaz de transformar homens fortes em fracos.
Interromperam a viagem numa estalagem para comerem qualquer
coisa. Felicity teria gostado de uma taça de vinho, mas Effy
discretamente mandou vir limonada para as senhoras. Quando
regressaram à carruagem, Felicity já odiava todos os companheiros
de viagem. A pura indiferença do marquês para com ela era
humilhante. Detestava as irmãs Tribble. Convenceu-se de que a
mãe tinha sido enganada por elas. Não era possível que pessoas de
aspeto tão miserável pudessem ter acesso privilegiado aos salões
mais requintados de Londres.
Às seis horas da tarde voltaram a parar numa outra estalagem
para passar a noite. A construção era à moda antiga, com os
quartos perfilados ao longo de um alpendre de madeira com vista
para um pátio quadrado.
O marquês supervisionava o envio dos cavalos para a cavalariça
e as irmãs Tribble lideravam o caminho até às escadas de madeira
de acesso aos quartos, com Felicity atrás, quando esta deixou cair a
bolsa. Antes que pudesse inclinar-se para a apanhar, um homem
lançou-se na frente dela e pegou na bolsa. Felicity estava prestes a
agradecer-lhe na sua forma habitualmente descontraída e franca
quando lhe veio à cabeça a imagem de Miss Betty Andrews. Algum
diabinho interior a fez baixar as pestanas e erguer o olhar velado
para o homem ao aceitar a bolsa que ele lhe entregava. Murmurou
um tímido «Obrigada». Era um homem alto e atlético, mais ou
menos da idade dela, com uma cabeleira farta de caracóis pretos.
Com uma sensação nova de poder a surgir dentro dela, reparou no
brilho dos olhos dele.
– Está a viajar para Londres, Miss...? – perguntou ele.
– Lady Felicity Vane – sussurrou Felicity. – E o senhor é...?
– Bremmer. James Bremmer.
– Muito obrigada, Mr. Bremmer. Sou tremendamente desajeitada.
– Lord Bremmer, Lady Felicity.
– Sim, Lord Bremmer; eu vou para Londres para me preparar para
a temporada.
– Se me permite, Lady Felicity, na minha opinião, não precisa de
preparação alguma.
Felicity soltou um gorjeio e exclamou:
– Sir! É muito ousado.
– Perdoe-me. A sua beleza alimentou-me a ousadia. Janta esta
noite?
– Sim, vossa senhoria, as minhas acompanhantes mantêm o
horário de Londres e eu ainda não comi.
– Eu também não. Talvez nos encontremos...
– Não me parece, Bremmer – interrompeu uma voz fria. – Eu já
reservei uma sala privada. Para o seu quarto, Lady Felicity.
Era o marquês de Ravenswood, o belo rosto obscurecido pelo
desagrado.
Para surpresa dele, Felicity lançou-lhe um olhar assustado e
depois um de apelo na direção de Lord Bremmer, antes de pegar
nas saias e se apressar a subir as escadas. Levantou demasiado as
saias, mostrando a Lord Bremmer e ao marquês que Lady Felicity
Vane tinha uns tornozelos lindamente torneados.
Lord Bremmer corou de fúria.
– O que significa isto, Ravenswood? – perguntou. – Comporta-se
como um tirano. Lady Felicity é sua sobrinha, porventura?
– Não – respondeu o marquês em tom seco. – Acontece que
estou a acompanhá-la a Londres. Bem como às irmãs Tribble.
– As irmãs Tribble! – exclamou Lord Bremmer. – Bem me parecia
que as tinha reconhecido. O que estão duas das doidas mais
excêntricas de Londres a fazer como acompanhantes de uma jovem
tão delicada e bonita?
– Bremmer – suspirou o marquês. – Meta-se na sua vida.
Felicity estava ansiosa com a perspetiva de escravizar Lord
Bremmer um pouco mais durante o jantar. Portanto ficou
extremamente desapontada ao descobrir que o arranjo para a sala
privada se mantinha e pôs-se a picar a comida num silêncio
amuado.
O marquês pediu desculpa pela escassez da refeição e sugeriu
mandar vir mais alguma coisa, mas as irmãs Tribble disseram
alegremente que era mais do que o suficiente. O jantar consistia de
feijão e bacon, costeletas de borrego assadas, empada de miúdos,
fricassé de ganso e um coelho assado com ervilhas, seguido por
tartes, pudins e gelatinas.
As irmãs Tribble comeram num silêncio disciplinado e pensativo.
A certa altura, Amy abriu os cordões da bolsa e lançou um olhar
furtivo ao marquês. Felicity soltou um grito de sobressalto quando
Effy lhe deu um pontapé por baixo da mesa a pensar que era Amy.
Amy olhou para Effy, Effy abanou a cabeça e sorriu e Amy deixou
cair a bolsa ao chão. Felicity ficou a imaginar o que significaria toda
aquela pantomima. Amy tinha, de facto, estado a pensar se seria
melhor meter alguns dos alimentos na bolsa e foi impedida por Effy.
Amy era a que não conseguia acreditar na sua sorte e temia um
retorno aos dias de parca alimentação.
O marquês começou então a falar com elas sobre várias pessoas
da cidade que Felicity não conhecia. E esta pôs-se a pensar se
devia experimentar namoriscar com o marquês para ver o efeito,
mas um olhar para aquele rosto duro e bonito foi o bastante para se
convencer de que seria uma perda de tempo.
Por fim, pediu licença para se levantar da mesa. Quando saiu,
ficou do lado de fora da porta a escutar.
– Ufa! – ouviu Amy exclamar. – Finalmente a paz. Podemos
acompanhá-lo no vinho, senhor? Confesso que toda esta limonada
me está a deixar maldisposta, mas Lady Felicity, para uma jovem da
sua idade, tem demasiada predileção por bebidas fortes.
– Por quem sois – ouviu Felicity o marquês responder em voz
divertida. Seguiu-se o gorgolejo do vinho a ser servido, e então,
novamente a voz do marquês. – Ao vosso sucesso, minhas
senhoras – brindou ele – e que possam encontrar um marido para
Lady Felicity. Não deverá ser muito difícil. Haverá certamente uma
abundância de cavalheiros preparados para relevar a falta de tato
em favor do seu dote.
Felicity foi-se embora furiosa, por isso não ouviu a resposta
ríspida de Amy.
– Está a ser muito duro com a jovem, Ravenswood. Ela
simplesmente precisa de um certo polimento cosmopolita. Não é
exatamente uma beldade, mas, Deus a abençoe, tem uma figura de
deusa grega, que é, a meu ver, muito mais atraente do que essas
jovens roliças de covinhas por quem vós, homens, vos desmanchais
todos.
Estava uma noite fria e sem nuvens. Felicity parou diante da porta
do quarto, apoiou os cotovelos no varandim de madeira do alpendre
e ficou a olhar para o pátio. Um homem passeava-se de um lado
para o outro a fumar charuto. Lord Bremmer.
Felicity esgueirou-se para o quarto, molhou um lenço no jarro da
água e voltou para o alpendre. Quando o jovem passou por baixo
dela, ela apertou o lenço. Uma gota de água caiu na mão de Lord
Bremmer e ele olhou para cima. Felicity soltou um soluço sufocado.
Ele podia vê-la à luz do luar. Ela usava um vestido de musselina
branca e posto pelos ombros um xaile de Norwich sumptuosamente
colorido.
– Lady Felicity – chamou ele em tom suave. – Porque chora?
– Oh, sir – disse Felicity com a voz embargada. – O que irá ser de
mim?
Lord Bremmer subiu as escadas num ápice.
– O que aconteceu? – perguntou ele, preocupado.
– Chiu! – fez Felicity. – Se o encontram aqui, batem-me.
– Quem? Ravenswood?
– Não, as irmãs Tribble.
– Mas isso é uma monstruosidade. Qual foi a ideia dos seus pais
em deixá-la ao cuidado de tais pessoas?
– O meu pai foi para a América – explicou Felicity – e a mamã não
é uma pessoa forte. Estas mulheres malvadas anunciaram-se como
acompanhantes no jornal e a mamã foi completamente ludibriada
por elas. Dizem que tenho de me casar com o primeiro homem que
me pedir, porque a mamã lhes vai pagar uma boa maquia se eu ficar
noiva antes do final da temporada.
– Não se preocupe. Salto para o cavalo e vou já a sua casa
explicar à sua mãe a situação – declarou Lord Bremmer.
Felicity olhou para ele com uma certa dose de irritação. A ideia
era ele pedi-la em casamento, para ela ter a certeza se aquela nova
estratégia funcionava.
– Infelizmente, ela não iria acreditar em si – lamentou Felicity com
outro soluço patético.
– Então eu mesmo caso consigo! – anunciou ele, batendo no
peito e sacudindo para trás os caracóis, num gesto que até o próprio
Byron teria invejado.
Felicity inclinou-se em direção a ele como uma jovem árvore ao
sabor do vento.
– É muito gentil, muito amável – disse ela com a voz embargada.
– Mas Ravenswood está em conluio com elas. Quer-me para ele e
até a mamã diz que é desejo do seu coração que eu me case com
Ravenswood.
– Mas porque quer ele casar consigo? Não parece olhá-la com
afeto.
– Ravenswood perdeu recentemente todo o seu dinheiro na Bolsa
– disse Felicity, cheia de criatividade. – É que eu sou muito rica,
entende?
De repente, ouviu-se o elevar da voz do marquês em despedida.
– Adeus... para sempre – sussurrou Felicity e fugiu para o quarto,
caindo de bruços na cama, perdida de riso. O início de um plano
absolutamente esplêndido começava a formar-se-lhe na cabeça.
Ainda não tinha conseguido parar de rir quando Wanstead entrou
para a ajudar a preparar-se para dormir.

A apreensão das irmãs Tribble crescia cada vez mais à medida que
Londres se aproximava. Começavam a pensar que seria
contraproducente Lady Felicity descobrir que elas não tinham
criados em casa. Amy pretendia ter uma conversa em privado com o
marquês e pedir-lhe ajuda. Sabia que Effy ficaria chocada com tal
ideia e planeava falar com o marquês sozinha. Fizeram uma nova
paragem numa outra estalagem. Agora estavam demasiado
preocupadas para reparar na estranha docilidade de Lady Felicity.
O jantar terminara e Amy ainda não tinha encontrado uma
oportunidade para uma conversa a sós com o marquês. Como
partilhava o quarto com a irmã, teve de ficar deitada na cama a ler
até o ronco suave de Effy lhe garantir que dormia. Amy levantou-se
e vestiu-se; foi em silêncio até ao quarto do marquês e bateu ao de
leve na porta.
Ouviu um «Entre!» surpreendido. Com o coração aos pulos, Amy
abriu a porta e entrou. O marquês estava na cama, um livro
pousado no colo.
– Miss Amy! – exclamou ele. – Aconteceu alguma coisa?
– Eu preciso de ajuda, vossa senhoria – disse Amy, pegando
numa cadeira, levando-a para junto da cama e sentando-se. – O
problema é que não temos criados.
– Nenhum? Nem criada de quarto? Nem...?
– Nenhum – cortou Amy, agitando os grandes pés para cima e
para baixo, envergonhada. – Agora, com o adiantamento de Lady
Baronsheath, temos o suficiente para contratar, mas vai parecer
muito mal quando chegarmos com Lady Felicity e ela se deparar
com uma casa vazia. Não podemos educar a rapariga se não lhe
conquistarmos o respeito.
O marquês pegou no roupão ao fundo da cama e vestiu-o.
– Vamos sentar-nos junto da lareira, Miss Amy – sugeriu ele – e
tentar encontrar a melhor solução. Pode sempre dizer que é o dia de
folga dos criados.
– Sim, mas ela iria ver-nos a entrevistar criados nos dias
seguintes e chegaria à conclusão de que somos umas trapaceiras
que ficaram com o dinheiro da mãe sob falsos pretextos.
O rosto do marquês iluminou-se.
– Vou mandar um dos meus homens à frente, para a minha casa
de Londres, com instruções de mudar a minha equipa de criados
para a vossa casa durante uma semana. Terá de me dar a chave de
casa.
Amy abriu a bolsa e esvaziou-a no chão à sua frente. O conteúdo
era uma variedade ímpar de alfinetes e livros, tricô, uma chave
enorme e uma empada meio comida.
– Não sei como isto veio aqui parar – disse Amy, corando e
apressando-se a esconder a empada. Entregou-lhe a chave. – O
senhor é um anjo – declarou Amy solenemente.
– Eu só estou a ajudá-las a começar o negócio – respondeu ele
com uma risada. – Vá descansar, Miss Amy, e deixe tudo nas
minhas mãos.
Felicity andava a passear no jardim da estalagem. Tinha
esperança de que Lord Bremmer a pudesse ter seguido, mas não
havia sinal dele. Regressava já ao quarto quando a porta do quarto
do marquês se abriu. Felicity recuou para as sombras, não
querendo que ele a visse.
Enquanto observava, Miss Amy saiu corada e feliz, seguida pelo
marquês, de roupão.
– A senhora é mais preciosa do que pérolas, minha querida Miss
Amy – disse o marquês, levando a mão de Amy aos lábios e
depositando nela um beijo.
Felicity começou a tremer de ódio. Que repugnante! Já ouvira
rumores sobre o comportamento decadente de certos cavalheiros
de Londres. Ele tinha estado a divertir-se com aquela velha
pavorosa no quarto, e Felicity tinha a certeza de que «divertir-se»
era uma palavra demasiado educada.
Lágrimas quentes correram-lhe pelo rosto. As irmãs Tribble
mereciam cada humilhação que ela lhes pudesse causar.

No restante da viagem para Londres, o interesse do marquês de


Ravenswood por Lady Felicity Vane foi finalmente despertado.
Achou a atitude dela para com ele muito estranha. Quando lhe
pegava na mão para a ajudar a entrar ou sair da carruagem, todo o
corpo dela parecia retrair-se e os olhos arregalados e assustados
eram sempre rapidamente velados pelas pestanas, mas não antes
de ele lhe surpreender um vislumbre de repugnância. Decidiu mudar
de atitude, deixando de a tratar com a indiferença que dispensaria a
uma colegial travessa e bastante cansativa, e passou a agradá-la.
Mas ela respondia com monossílabos e parecia passar grande parte
do tempo a fingir que dormia.
Foi quando interromperam a viagem pela última vez, já às portas
de Londres, que Amy decidiu encarregar-se do assunto. Ela e Effy já
estavam alarmadas com o ar encolhido de Felicity. Ambas nutriam a
esperança de encher Lady Baronsheath de pasmo, apresentando o
marquês de Ravenswood como futuro genro. Agora que o marquês
mostrava interesse pela jovem, Felicity parecia fazer questão de
estragar tudo por quase desmaiar de nojo sempre que olhava para
ele.
As irmãs conferenciaram no quarto que lhes fora reservado para
se lavarem e descansarem um pouco antes de concluírem a última
etapa da viagem.
– Talvez eu seja mais delicada, querida Amy – disse Effy. – Tu
tens uns modos demasiado bruscos para abordar um assunto tão
sensível.
– Pois eu acho que devo ser eu – argumentou Amy, andando para
um lado e para outro, agitando os braços como um moinho de
vento. – A repugnância que ela mostra também me é dirigida e eu
quero saber porquê. Tu não és franca o suficiente, Effy, e vais
rodear e rodear o assunto sem nunca chegares ao cerne do
problema.
Effy pareceu permanecer inflexível e só depois de Amy soltar
blasfémias terríveis e dizer que se não chegassem a um acordo
teria de pedir ao próprio Ravenswood para lidar com o assunto é
que Effy cedeu.
Effy saiu para ir buscar Felicity, que finalmente entrou e ficou perto
da porta, de olhos baixos.
– Vá, diz lá – começou Amy, depois de a irmã ter saído com
relutância. – Qual é a razão do teu ódio mal velado por mim?
– Não sou obrigada a gostar de duas estranhas que decidiram ser
minhas mentoras, mas que não têm, na minha opinião, quaisquer
qualificações para o trabalho – respondeu Felicity friamente.
Amy perdeu a calma.
– Pelo amor de Deus! – exclamou. – Não éramos assim tão
hipócritas na minha geração. Não sou só eu que sofro com a tua
insolência idiota, mas Ravenswood também. Diz a verdade, ou és
tão cobarde como pareces neste momento?
As faces brancas de Felicity inundaram-se de cor e ela cerrou os
punhos.
– Como ousa repreender-me, velha meretriz – sibilou ela. – Eu vi-
a com os meus próprios olhos, a sair do quarto de Ravenswood e
ele em trajes de dormir a beijar-lhe a mão. Bah!
Amy fitou-a, estupefacta, e então desatou a rir às gargalhadas,
dando uma palmada na coxa. Por fim, conseguiu dizer ainda
engasgada de riso:
– Raios me partam, se esse não é o maior elogio que já me
fizeram. Eu, Amy Tribble... uma meretriz! A menina devia ter
vergonha. Fui pedir um favor a Ravenswood. Não percebe, minha
tontinha, que só uma senhora com a minha aparência e idade pode
visitar com segurança um homem no seu quarto? Ravenswood! Ele,
que pode ter qualquer mulher à face da Terra. A que propósito
quereria ele partilhar a cama com uma veterana como eu, diga lá?
– Oh, meu Deus! – disse Felicity, com consternação caricata.
Estava furiosa com Amy por tê-la feito sentir-se uma tola, mas o
seu senso de ridículo falou mais alto e foi-lhe impossível controlar o
riso.
– Assim está melhor – disse Amy observando-a com satisfação. –
Digo-lhe, Lady Felicity, se eu não tivesse sido capaz de me rir de
alguns dos problemas da vida, há muito que estava sete palmos
debaixo de terra.
Felicity sentiu uma onda de afeição pela estranha Amy, que
rapidamente sufocou. As irmãs Tribble tinham de ser punidas por a
terem levado para longe de casa. Mas, de alguma forma, o
sentimento de leveza e felicidade persistiu e, mais tarde, o marquês
foi brindado com um sorriso deslumbrante quando a ajudou a entrar
para a carruagem.
Ele ergueu as sobrancelhas finas, espantado.
– Se continuar a sorrir assim, Lady Felicity, não haverá um
cavalheiro em Londres a salvo de si – comentou ele.
Um ambiente quase festivo estabeleceu-se no grupo durante o
resto da viagem até Londres.
Uma neve fininha começou a cair, decorando os prédios
fuliginosos com uma camada branca e resplandecente. Um homem
num telhado varria a neve, que caía numa coluna espiralada branca
na frente das janelas iluminadas de uma loja de miudezas.
Na escuridão, a montra de uma confeitaria destacava-se como um
tesouro escondido: ananases e ameixas, pêssegos e peras e outras
frutas exóticas de estufa; chocolates, rebuçados e bombons. Mais à
frente, uma joalharia, com o brilho suave da prata e prismas
cintilantes de diamantes e rubis.
Dois guardas vestidos com uniformes escarlates passaram a
cavalo pela carruagem, as montarias a curvetear e a empinar.
Para Felicity, tudo era como a emocionante abertura de um
espetáculo. A cortina estava prestes a subir na parte mais dramática
de todas: a cidade de Londres.
Durante um tempo até se esqueceu dos seus planos de fugir à
primeira oportunidade.
Então Maria ajudou-me a deitar e aconchegou-me.

Mas, sem eu dar conta, levou-me as ligas,

para eu não me magoar.

JONATHAN SWIFT

Mr. Haddon aproximou-se, cauteloso, da casa das irmãs Tribble em


Holles Street. Tinha vindo alguns dias antes, mas sentira-se
intimidado pela visão de tantos criados de uniforme numa roda-viva.
Estava com medo de perguntar se as irmãs tinham regressado, pois
temia saber que tinham vendido a casa e desaparecido da sua vida.
Para ele, Londres ainda era um lugar estranho e desconcertante.
Até os sotaques e modos de expressão haviam mudado. Os
homens arrastavam as palavras, com narizes erguidos e olhos
semicerrados, e as mulheres intercalavam o discurso com mau
francês.
No passado, a sua linhagem suplantara sempre a sua fortuna.
Agora que regressara como um novo-rico, todas as portas se
abriam. Mas ele sabia que a sociedade o via como um velho
desajeitado e estranho.
Respirando fundo, subiu os degraus até à porta e martelou o
batente com firmeza.
A porta foi aberta pelo epítome do mordomo inglês. Os olhos
semicerrados, num rosto pálido e balofo sombreado por uma
enorme peruca branca, avaliaram Mr. Haddon. O colete às riscas do
mordomo esticava-se sobre uma barriga generosa e o casaco de
seda verde era engalanado por dragonas douradas. Os calções até
aos joelhos eram amarrados por fitas douradas e as meias de seda
branca terminavam num par de sapatos pretos rasos. Os pés
estavam colocados em quinta posição e as mãos de luvas brancas
pareciam segurar uma bandeja imaginária.
– Estou aqui para visitar as Misses Tribble – anunciou Haddon,
entregando o seu cartão de visita.
O mordomo inclinou a cabeça, pegou no cartão por um canto com
a mão enluvada e desviou-se para dar passagem.
Mr. Haddon entrou no átrio quadrado com chão de azulejos pretos
e brancos. Reparou no elaborado bouquet de flores de estufa a
enfeitar um vaso sobre uma mesa de apoio. Aguardou, inquieto,
observando o mordomo subir lentamente as escadas. O que teria
acontecido? Talvez Lady Baronsheath as tivesse contratado, mas
nenhum valor pelo seu trabalho poderia ser responsável por aquele
repentino ambiente de luxo que emanava da casa. Reparou que a
parede da escadaria ostentava agora retratos, mas tinha a certeza
de que não eram da família Tribble.
O mordomo regressou, descendo as escadas com todo o vagar e
pompa.
– Queira seguir-me, senhor – disse ele.
Mr. Haddon seguiu as costas corpulentas escadas acima.
O mordomo abriu a porta da sala de estar e anunciou em voz
altíssima:
– Mr. Benjamin Haddon.
Mr. Haddon entrou. Effy levantou-se para ir ao seu encontro, com
as mãos estendidas em sinal de boas-vindas.
– Traga chá, Humphrey – ordenou ao mordomo.
E esperou ansiosamente que o mordomo saísse, rindo-se
baixinho do espanto no rosto de Mr. Haddon. Ele olhou em volta,
pensativo, para as fotografias nas paredes, para as flores, para
algumas peças de mobiliário novas e caras.
– Venha sentar-se perto do fogo – convidou Effy, sentando-se
pesadamente num sofá sem costas num redemoinho de xailes. – A
sua maravilhosa ideia funcionou e fomos contratadas para preparar
a apresentação à sociedade de Lady Felicity Vane.
– Mas os criados! – exclamou Mr. Haddon.
– Vejo que devo começar pelo princípio e contar-lhe tudo –
respondeu Effy, passando logo a contar-lhe as aventuras,
exagerando imensamente (o marquês tinha-as salvado de uma
manada de touros selvagens) e terminando com: – Por isso, aqui
estamos nós, rodeadas de luxo e conforto. O nosso querido Lord
Ravenswood disse que não valia a pena estar a retirar os criados
daqui, preferindo ocupar um quarto nesta casa quando cá viesse e
arrendar a casa que tem na cidade durante a temporada e dessa
forma poderíamos poupar o dinheiro dos criados até a próxima
temporada terminar. Quanta generosidade dele.
– Mas os quadros nas paredes?
– O secretário de Lord Ravenswood é um homem muito eficiente.
Ele tinha ordens para tornar a nossa querida casa agradável ao
olhar de Lady Felicity, por isso trouxe móveis, pinturas e ornamentos
da casa do marquês para cá!
A porta abriu-se e o mordomo entrou, seguido por dois criados
transportando uma bandeja de chá.
– Avise Miss Amy da chegada de Mr. Haddon e peça a Lady
Felicity que se junte a nós assim que terminar a prova dos vestidos
– disse Effy grandiosamente.
– Tanta confusão – continuou ela, virando-se para Mr. Haddon. –
Estamos a tratar de um guarda-roupa muito à moda para a nossa
protegida e devo dizer que a Amy tem sido muito empreendedora.
Explicou a Lady Felicity que tem de causar sensação já que a sua
fisionomia não é do tipo mais admirado hoje em dia. Voltámos
apenas há três dias, mas a Amy insistiu, quase assim que
chegámos, que fôssemos a King’s Cross procurar uma costureira
francesa desconhecida, uma vez que é a zona onde vivem os
imigrantes franceses mais pobres. Mas era tudo tão miserável que
eu disse: «Como é que vamos encontrar uma?» e a Amy
respondeu: «Olha para as roupas que elas têm vestidas.» Muito
estranho. Nunca me passou pela cabeça que a pobre Amy tivesse
olho para a moda. Mas entretanto ela viu uma mulher jovem e muito
bem vestida e perguntou-lhe onde é que ela comprava os vestidos...
assim, de caras! Sabe como a Amy é franca. E a amável criatura
disse que ela mesma os fazia. Então a Amy contratou-a e trouxe-a
para cá, para viver connosco, porque a costureira tinha um ar
fraquinho e a Amy disse que viver em King’s Cross era suficiente
para provocar tuberculose a qualquer um, sendo os edifícios tão
húmidos e instáveis. – Fez uma pausa para respirar.
– Uma grande mudança no vosso destino – disse Mr. Haddon,
maravilhado. Tossiu discretamente. – Que idade tem esse marquês
de Ravenswood?
– Não sei – respondeu Effy. – É bastante maduro. – Mr. Haddon
ficou carrancudo. – Bem, vou dar um palpite. Talvez uns trinta e um
anos, eu diria.
Mr. Haddon sorriu e serviu-se de bolo de alcaravia.
– Mas é tanto barulho e agitação – continuou Effy. – A Amy
parece uma criatura possuída, posso assegurar. Tem sorte de nos
encontrar num momento tranquilo. Ela tem andado a entrevistar
professores de dança, pintores de aguarela e professores de
música, porque, segundo ela diz, é melhor não deixar Lady Felicity
muito quieta, porque isso é dar azo a que ela faça travessuras. E
então eu disse: «Mas Amy, não podes esperar até recuperarmos o
fôlego?» Mas ela insiste em continuar. Lord Ravenswood está
sempre pronto a ajudar, muito amoroso da parte dele, e se ele se
encantasse por Felicity, então que sucesso iríamos ter. Mas ela é
um pouco mimada. Bem, na verdade, é muito, e eu ponho as culpas
em todo este absurdo dos direitos das mulheres. Lady Felicity tinha
o hábito de usar roupas masculinas, veja só. E com a bênção do
pai! É contranatura. E...
Ela interrompeu-se quando a porta se abriu e Amy entrou toda
curvada. Tinha um ar cansado.
– Aquela criatura está a deixar-me de rastos – disse ela, servindo-
se de uma chávena de chá. Engoliu um pouco do líquido quente e
depois deixou-se cair num cadeirão de orelhas e sorriu para Mr.
Haddon. – Que bom vê-lo – cumprimentou Amy. – Tem de ficar a
saber todas as nossas novidades.
Amy começou a tentar contar-lhe as aventuras, mas rapidamente
descobriu que Effy se antecipara, o que a deixou furiosa.
– Podias ter esperado – comentou Amy, irritada. – Não é justo,
Effy. A aventura é tanto tua quanto minha, raios.
– Votre mode de parler est un peu de trop – ralhou Effy.
– Fala inglês – retorquiu Amy, lançando um olhar fulminante à
irmã. – Estamos em guerra com os franciús e não vou permitir que
essa língua estrangeira polua estas paredes.
– Lady Felicity está a mostrar-se difícil? – perguntou Mr. Haddon
com ar compassivo.
– Muito – queixou-se Amy. – Mademoiselle Yvette, que é a nossa
nova costureira francesa, de quem, não tenho dúvidas, a minha
querida irmã já lhe contou tudo, está a tentar fazer o seu trabalho
com toda a paciência e qualidade, e a deplorável Felicity põe-se a
suspirar e a remexer-se de tal forma que os alfinetes caem como as
folhas daquele sítio a que o poeta Milton se referia.
– Fico muito contente por ver as duas tão bem e tão prósperas –
disse Mr. Haddon. – Quando cá vim há uns dias e vi tanta
imponência de criados e tanta azáfama, temi que tivessem vendido
a casa e que nunca mais as voltasse a ver... a minha última ligação
ao velho mundo.
– Não ficou muito surpreendido ao descobrir que ainda éramos
ambas solteiras – disse Amy.
Era algo que lhe provocava uma certa mágoa interior. Achava
muito pouco lisonjeiro que Mr. Haddon não tivesse sequer colocado
a hipótese de uma delas ter arranjado marido.
– Mas fiquei! – mentiu Mr. Haddon com convicção.
Ele sentiu que não conseguiria explicar por que razão esperara
que elas ainda estivessem na mesma, ainda solteiras, as únicas
pessoas imutáveis num mundo novo desconcertante.
– Estamos as duas ansiosas por também termos novos guarda-
roupas – disse Effy, franzindo o sobrolho a Amy. Effy mantinha a
ilusão de que o seu estado de solteira era por opção. – Mas a Yvette
é uma pessoa frágil e não queremos sobrecarregá-la.
– Onde está Ravenswood atualmente? – perguntou Mr. Haddon.
– Voltou para o campo. Ele diz que virá visitar-nos de vez em
quando. Foi uma grande sorte termos ficado sob a sua proteção,
pois não há homem mais elegante do que ele e a generosidade e
inteligência com que está a tratar dos nossos assuntos vai garantir-
lhe a nossa gratidão eterna – declarou Effy.
– Disseste a Mr. Haddon que fui eu que pedi a Ravenswood para
nos ajudar na questão dos criados? – perguntou Amy.
– Hã... não – foi a resposta de Effy.
– Não farias tal coisa, não é? – criticou Amy. – Estás sempre
pronta a colher os louros por tudo.
Seguiu-se um silêncio desconfortável.
A porta abriu-se e Lady Felicity entrou. Exibia um rosto corado de
birra e olhos dardejantes.
Mr. Haddon levantou-se e fez uma vénia. Intimamente achou que
Lady Felicity era uma das raparigas mais bonitas que já vira,
admirando-se por Amy ter sentenciado a aparência da jovem como
fora de moda.
– A prova já terminou? – perguntou Amy.
– Por enquanto – respondeu Felicity. – Por hoje já não suporto
mais.
– Não deve sobrecarregar tanto a mademoiselle – aconselhou
Effy, baixinho. – Ela é uma boa rapariga e muito esforçada.
– Também está a ser muito bem paga, calculo – retorquiu Felicity,
baixando em seguida os olhos perante a expressão de choque de
Mr. Haddon.
Felicity ficara desconcertada pela aparente magnificência da
residência Tribble. Tinha a certeza quase absoluta de que iria
encontrar uma casa acanhada numa zona medíocre. Mas a casa de
Holles Street tinha rapidamente readquirido alguma da sua antiga
magnificência, às mãos inteligentes do secretário do marquês. Não
sendo uma mansão nobre, era uma casa bastante grande,
ostentando dois salões no piso térreo, uma sala de estar, uma sala
de jantar, sala de estar e salão de receções no primeiro piso e seis
quartos no segundo e terceiro pisos, assim como os quartos dos
criados no sótão.
Contudo, Felicity não se esquecera dos seus planos de fuga.
Estava apenas a aguardar o momento certo, convencida de que o
jovem Lord Bremmer voltaria a dar ares da sua graça. A sua
intenção era estragar os planos das irmãs Tribble e usar o rapaz
para as envergonhar.
Sentia-se um pouco intimidada pelos modos autoritários de Amy
e, enquanto bebia chá e ouvia as irmãs em conversa educada com
Mr. Haddon, pôs-se a congeminar a melhor forma de começar a
perturbar Amy. Pensou em todos os truques que utilizara no
passado para se livrar das precetoras indesejadas. De repente,
sorriu. A campanha contra Amy iria começar naquela mesma noite.
Amy percebeu o sorriso e sentiu um baque. Tinha a certeza de
que apenas um qualquer plano maléfico faria a sua jovem protegida
parecer tão feliz.
Depois de Mr. Haddon se ir embora, sugeriu a Effy que deviam
esforçar-se mais para ensinar Felicity a ter um comportamento mais
feminino, mas Effy prontamente se desculpou com uma dor de
cabeça e foi para o quarto. Apreensiva, Amy decidiu ela mesma
assumir a tarefa.
– Vamos lá, Felicity – disse Amy. – Quero vê-la atravessar a sala
e sentar-se naquela cadeira junto à lareira.
Felicity ergueu as sobrancelhas com altivez, atravessou a sala e
deixou-se cair pesadamente na cadeira.
– Não, não – bufou Amy, exasperada. – Deve andar sempre com
a cabeça erguida e nunca olhar para os pés. Não deve nunca olhar
para a cadeira onde se vai sentar. Deve descer sempre com toda a
graciosidade até ficar sentada, como se um lacaio estivesse sempre
de prontidão para a colocar debaixo do seu traseiro.
– «Traseiro» é mal-educado – salientou Felicity com um sorriso.
– Chega de infantilidades – ralhou Amy, indo até uma estante
envidraçada e pegando num livro volumoso e pesado: A vida de
Samuel Johnson, de James Boswell. – Venha cá e deixe-me pousar-
lhe isto na cabeça – ordenou Amy.
– Oh, sinceramente! – exclamou Felicity. – Isso é ridículo.
– FAÇA
O
QUE
LHE
DIGO! – berrou Amy com toda a ferocidade de um
sargento-mor.
– Pronto, está bem – acedeu Felicity de mau humor. Voltou a
caminhar até à porta e Amy pousou-lhe o livro na cabeça. – Agora,
ande – comandou Amy.
Felicity atravessou a sala de costas direitas e baixou o corpo
devagar até ficar sentada na cadeira.
– Está melhor – disse Amy. – Agora, mais uma vez, e desta vez
deve mostrar desagrado contido.
– Desagrado contido?
– Sabe muito bem o que quero dizer. Todas as senhoras da
sociedade têm de saber como mostrar desagrado contido. Encolha
o queixo e ponha um ar de quem acabou de ver algo desagradável,
mas, como é uma senhora, não vai fazer comentários.
Felicity fitou, obstinada, o seu carrasco. Amy fitou-a de volta com
um olhar duro. Instantes depois, Felicity decidiu que a vingança
sobre Amy podia esperar até à noite. Seria mais fácil para todos os
envolvidos que por ora obedecesse.
Equilibrou o livro mais uma vez na cabeça e olhou em frente com
firme desdém.
– Demasiado rígida – disse Amy. – Desta vez, mantenha o
desagrado contido, mas balance ligeiramente as ancas enquanto
anda.
Amy obrigou-a a repetir e repetir durante uma hora, até se dar por
satisfeita. Mas ainda assim não permitiu que Felicity escapasse.
– Agora vou dar-lhe uma aula de boas maneiras – anunciou ela. –
Isso não significa ensiná-la a dizer «por favor» e «obrigada», mas
sim ter em consideração as sensibilidades das outras pessoas, quer
esteja a falar com um lorde ou um lojista.
Felicity protestou em vão. Amy inventou e encenou situações tão
extremas como comprar sedas a um lojista gago ou encontrar uma
viúva chata e surda. Se Felicity não estivesse tão furiosa, teria
achado as encenações de Amy muito divertidas. Mas como estava,
não achou o comportamento de Amy nada divertido. Felicity
obedeceu o melhor que pôde, mas com um profundo ressentimento
a queimar-lhe as entranhas.

Ao fim do dia, Amy estava exausta. Tinha uma dor lancinante nas
costas e olheiras de fadiga. Entrou no quarto da irmã para dizer boa
noite. Effy só conseguiu balbuciar uma resposta, deitada nos
travesseiros rendados com ar de pesadelo gótico. Tinha o rosto
coberto por uma máscara de lama, o cabelo branco enrolado em
rolos de barro e uma faixa a envolver-lhe firmemente o queixo e
presa no cimo da cabeça.
Amy foi para o seu quarto, onde Baxter a aguardava para os
preparativos antes de se deitar. Uma das primeiras medidas das
irmãs havia sido ir buscar a criada de quarto da falecida tia ao asilo.
– Não vai abrir aquilo? – perguntou Baxter, enquanto tirava os
ganchos do cabelo de Amy e começava a escová-lo.
– Abrir o quê? – inquiriu Amy, sonolenta.
– Aquele pacote ali ao canto. Chegou hoje à tarde.
– Oh, James, o lacaio, disse-me que era de Mr. Haddon, e eu
decidi não contar a Miss Effy para ter o prazer de o abrir sozinha –
explicou Amy com um bocejo.
Levantou-se e foi até junto do grande pacote cúbico; pegou no
cartão lá pousado e leu-o.
«Cara Miss Amy», escrevera Mr. Haddon, «O conteúdo deste
presente é uma lembrança da minha estadia na Índia e gostaria
muito que o aceitasse.»
– Espero que não tenha enviado nada para a Effy também –
murmurou Amy. – Ela é demasiado possessiva em relação a Mr.
Haddon.
Abriu a tampa da caixa e, ato contínuo, deu um pulo para trás em
sobressalto, pondo a mão no coração.
Baxter espreitou e deu um grito; foi a correr agarrar o atiçador
para esmagar o conteúdo da caixa.
– Não, não – impediu Amy, agarrando o braço da criada. – Deve
ser empalhada.
Amy tirou-a da caixa. Era decididamente uma cobra empalhada.
Uma coisa de ar maléfico com olhos de vidro demoníacos.
Baxter pousou o atiçador.
– Deus me livre! Se isso não é a coisa mais desagradável que já
vi – disse com ar abismado. – O que tem esse Haddon na cabeça
para enviar uma coisa dessas a uma senhora?
– Para si é Mr. Haddon – ralhou Amy. – É um presente bastante
sagaz, na verdade, depois de recuperarmos do choque inicial. Mas
onde irei pô-lo? Se o colocarmos na sala de estar, vamos afugentar
todas as visitas.
Baxter estremeceu.
– Porque não o envia para aquele tal Mr. Desmond Callaghan, o
que roubou os afetos da minha antiga senhora? Duas serpentes
devem dar-se bem juntas.
– Não, vou ficar com ela – afirmou Amy.
Baxter continuou a ajudá-la a preparar-se para dormir, mas
mantendo sempre um olho atento à cobra empalhada. O animal era
demasiado realista, com aqueles olhos a brilhar e a cabeça em pose
de ataque.
A criada abriu a cama e disse:
– Deite-se e descanse Miss Amy, e tente não se levantar de
madrugada, como costuma fazer, ou vai acabar com os nervos em
frangalhos.
– Ai, adorável cama – suspirou Amy profundamente. Esticou os
grandes pés descalços debaixo das cobertas e congelou, o rosto
uma máscara de horror.
– O que foi? – perguntou Baxter, aflita.
Amy atirou as cobertas para trás.
Quando Lady Felicity fazia uma apple-pie bed1, encarava a
partida no sentido mais literal do termo. Os dedos dos pés de Amy
afundaram-se numa enorme tarte de maçã. O sumo, pedaços de
massa e pedaços de maçã cozida já manchavam os lençóis.
– Eu mato-a – bufou Amy, identificando de imediato o culpado.
– Quem, minha senhora?
– A Felicity. Ajude-me, Baxter, e limpe esta cama enquanto eu vou
ali dar cabo dela.

Felicity estava a ler na cama, os lábios curvados no esboço de um


sorriso. Tinha ouvido o grito de Baxter ao ver a cobra e assumira
que fosse Amy ao enfiar os pés na tarte de maçã. Felicity tinha uma
mesada muito boa e nessa mesma tarde conseguira escapulir-se e
ir a uma pastelaria comprar a maior tarte de maçã que lá havia. É
bem feito para a bruxa velha, pensou Felicity. Que pena
Ravenswood não estar lá nesse momento hospedado, senão
poderia ter-lhe pregado uma partida também. Ele mal olhara para
ela e nem sequer se dera ao trabalho de dizer adeus. Felicity
julgava agora saber o motivo do seu estranho interesse pelas irmãs.
Os retratos dos antepassados das irmãs Tribble tinham todos uma
semelhança surpreendente com o atual marquês de Ravenswood.
Por isso, o mais lógico era que ele fosse algum parente afastado
das irmãs Tribble e, em vez de lhes dar dinheiro para viver, pusera-
as a trabalhar. Contudo, Felicity não tinha ainda descoberto o
segredo dos criados. A libré dos criados do marquês na cidade era
diferente da usada pelos da sua casa no campo, o que levou Felicity
a concluir que eram criados da casa das irmãs Tribble.
O romance que Felicity lia era um dos primeiros que alguma vez
abrira, uma vez que o pai tinha um grande desprezo por aquele
género de literatura. Era a história de uma herdeira perseguida que
finalmente conseguia fugir dos seus captores com a cumplicidade
de uma criada leal e corajosa.
Mas por mais cativante que a história fosse, os olhos de Felicity
começaram a fechar-se. Apagou a vela e deitou-se de lado para
dormir.
Ouviu a porta abrir-se devagarinho, mas deixou-se ficar quieta.
Sem dúvida era Amy que vinha azucrinar-lhe a paciência. Alguma
coisa pesada aterrou aos pés da cama e, em seguida, Felicity ouviu
a porta do quarto fechar-se novamente.
Com esforço, sentou-se e acendeu a vela, olhando em seguida
para o fundo da cama. O primeiro instante foi como um pesadelo.
Ela abriu a boca, mas apenas saíram pequenos ruídos
estrangulados de medo. Uma cobra-capelo elevava-se aos pés da
cama, o pescoço dilatado, os olhos tão brilhantes que pareciam
querer perfurar os dela.
Então ela recuperou a voz e gritou desalmadamente. A porta
abriu-se, Amy marchou por ali dentro, pegou na cobra empalhada e
saiu novamente, batendo a porta. Felicity continuou a gritar, o rosto
branco como a cal, os olhos dilatados. Os criadas acorreram em
massa e, logo depois, Effy. Felicity gritou mais alto ainda, não
reconhecendo Effy por trás da máscara de lama e pensando que
algum espírito maligno tinha ressuscitado dos mortos para a levar
para o Inferno.
Foi preciso meia hora para a acalmar, altura em que Amy veio ao
quarto e se encostou despreocupadamente à ombreira da porta.
– A menina teve um pesadelo – disse Effy, que se havia retirado
momentaneamente para tirar a lama da cara e a faixa do queixo,
voltando a emergir como ela mesma. – Não há cobras em Londres.
Foi apenas um sonho mau. Andou a beber outra vez?
– Não bebi nada mais forte do que limonada! – respondeu Felicity,
a raiva começando a substituir o medo. – Alguém me pregou uma
partida muito cruel, foi o que foi – acrescentou, fitando Amy com
uma expressão furiosa.
– Foi a sua imaginação – disse Amy. – Deus do céu! Quem nesta
casa iria pregar-lhe tal partida? Somos todos pessoas adultas. Só
meninas muito mazinhas são capazes de truques dessa natureza.
Felicity respirou fundo. Então era isso. Amy tinha retaliado.
Amy finalmente mandou todos para a cama e, já sozinha, ficou de
braços cruzados a fitar Felicity.
– Espero que no futuro se comporte como uma boa menina –
aconselhou Amy. – Está a entender? Se me tratar mal, eu tratá-la-ei
pior ainda. Merecia umas boas palmadas. Da próxima vez será uma
caixa de aranhas. Boa noite, cara Lady Felicity. Tenha bons sonhos.
Felicity ficou acordada durante muito tempo, a tremer de raiva.
Nunca a sua vontade fora contrariada daquela maneira. Nem nunca
tinha tido medo de ninguém antes.
Mas agora estava com medo de Amy Tribble e odiava-a
exatamente com a mesma força.

O Natal passou, janeiro chegou e partiu e o marquês de


Ravenswood não voltou. Felicity fora vencida e era agora obediente.
Era excelente numa coisa: a tocar piano. Não só tinha um talento
natural, como estava muito treinada, porque o pai gostava que ela
tocasse para ele ao serão. Cheia de remorsos, Amy era
particularmente simpática para Felicity, sentindo que havia pregado
à jovem um susto demasiado grande. Mas Felicity mantinha-se
observadora, aguardando a vez de se vingar. Lady Baronsheath
tinha aparecido de visita em duas ocasiões, mas fizera ouvidos de
mercador às queixas de Felicity. A condessa ficou impressionada
com a casa e com o facto de Ravenswood a utilizar como residência
enquanto estava em Londres. Felicity esperava que ao mostrar-se
mansa como um cordeiro revelasse à mãe o quanto sofria, mas
apenas conseguiu aliviar a preocupação da condessa. Lady
Baronsheath, ela própria uma pessoa tímida e recatada, pensava
que a filha rebelde estava finalmente a aprender a ter juízo.
Num certo dia em que a pálida luz do sol inundava as ruas de
Londres e um vento matreiro conseguira afastar a neblina invernal,
Effy e Amy encontravam-se sentadas na sala de visitas a desfrutar
de uma breve pausa de paz e sossego. Felicity fora dar um passeio
com a criada pessoal, Wanstead, que, na opinião de Felicity, tinha
«passado para o campo inimigo». Trocado em miúdos, isto
significava que a criada fora encarregada de a supervisionar e de
não a deixar meter-se em sarilhos.
Foi então que o mordomo interrompeu a paz temporária das irmãs
ao anunciar a presença de Mr. Desmond Callaghan.
– Diga a essa ratazana que não estamos em casa – ordenou
Amy. – A lata do homem! Roubar a herança da nossa tia e depois
ter o descaramento de nos vir visitar.
No átrio, Mr. Callaghan estava nesse momento a dar meia-volta
para se ir embora quando Lady Felicity chegou. Ele cumprimentou-a
com uma vénia.
– Lamento muito que as Misses Tribble não se encontrem em
casa – disse ele, irritado.
Felicity examinou-o com um cintilar maldoso a bailar-lhe nos
olhos. Pensou que Mr. Callaghan possuía o ar mais fútil e afetado
que alguma vez vira, da cartola altíssima de pelo de castor à cintura
moldada e às botas de salto alto com esporas. O rosto estava todo
maquilhado e a boca petulante pintada de vermelho.
– Tenho a certeza de que deve haver algum engano – disse
Felicity docemente. – As Misses Tribble estão seguramente em
casa. Venha e eu mesma o anuncio. – E ignorando o olhar
indignado do mordomo, liderou o caminho até ao andar de cima.
Abriu a porta da sala de visitas e convidou-o a entrar.
– Este cavalheiro encantador foi erroneamente informado de que
não estavam em casa – disse Felicity com toda a descontração.
Fechou a porta nas costas de Mr. Callaghan e nas caras indignadas
das irmãs Tribble e foi para o quarto, assobiando alegremente.
– Não devia ter feito isso – resmungou Wanstead, seguindo-a. –
Fez por maldade e eu espero que Miss Amy a castigue.
Felicity lembrou-se da cobra e sentiu uma pontada momentânea
de medo. Tinha a certeza de que a coisa era empalhada e tinha
corretamente assumido ter sido um presente daquele novo-rico
idoso, Mr. Haddon. Mas o medo que sentira naquela noite terrível
tinha sido tão grande que ela ainda tinha pesadelos. Em seguida,
encolheu os ombros. Ainda ia conseguir vencer Amy e, de facto,
estava quase pronta para fazer a sua fuga.
Felicity, apesar da educação invulgar que recebera, era um
exemplo típico de uma jovem da segunda década do século XIX.
Amy era, pelo contrário, uma pessoa do século XVIII, época em que
as mulheres podiam falar tão livremente como os homens e em que
mesmo as mais altas damas da sociedade aristocrática eram tão
resistentes como umas botas sólidas. Felicity estava habituada a
desprezar as pessoas do seu próprio sexo por serem fracas e pouco
inteligentes, não se tendo ainda apercebido da força de que as
irmãs Tribble eram capazes. Nem percebera também que talvez
fosse Effy quem devia temer mais, que aquela senhora delicada e
frágil poderia tornar-se uma inimiga bem mais desagradável do que
a irmã masculinizada.
Felicity entretinha-se há já algum tempo a dominar a mente de
uma criada de quarto impressionável, tendo obtido a ideia do
romance que andava a ler. A criada, Charlotte, era proveniente do
East End londrino, facilmente lisonjeada pelas confidências de Lady
Felicity. Ouvia de olhos arregalados enquanto Felicity a alimentava
de histórias de perseguição às mãos das irmãs Tribble e de como
elas queriam forçá-la a casar-se com o malvado Lord Ravenswood.
Ao descobrir que Charlotte sabia ler, Felicity emprestou-lhe o
romance, sabendo que era o bastante para garantir que a jovem
ingénua acreditava em cada palavra sua. Desde o episódio da
apple-pie bed, Felicity nunca mais tivera permissão para sair de
casa desacompanhada.
Lá em baixo, na sala de visitas, o ambiente era gélido.
– Sente-se, Mr. Callaghan, e diga ao que vem – disse Amy.
– As senhoras roubaram a minha herança – acusou Mr.
Callaghan.
– Deus do céu! – exclamou Effy. – O homem é completamente
louco. Foi o senhor que roubou a nossa herança, Mr. Callaghan.
– Mrs. Cutworth não deixou nada além de dívidas e mais dívidas –
esclareceu Mr. Callaghan. – Mesmo depois de vender a casa e o
recheio, não sobrou nada para mim. Agora eu sei porque é que a
pobre e querida senhora morreu sem um tostão. O par ímpio que
aqui tenho à minha frente andava a arrancar-lhe vastas somas com
falinhas mansas.
– Mentira! – defendeu-se Effy. – Nós também achávamos que ela
era rica.
– Mrs. Cutworth disse-me que as senhoras não tinham um tostão
– continuou Mr. Callaghan. – Ela costumava rir-se disso. Uma vez
vim cá e observei a vossa casa. Não se via um criado. Perguntei a
algumas pessoas da alta sociedade. Era do conhecimento geral que
nenhuma das duas tinha onde cair morta. Mas agora vivem com
toda a sumptuosidade e só pode haver uma razão. Ainda há pouco
vi aquela criada de Mrs. Cutworth entrar aqui. Ah, pois é! Tenho
estado a observar as vossas idas e vindas. Com a ajuda dela, as
senhoras roubaram as joias de Mrs. Cutworth e atormentaram a
pobre mulher no leito de morte até ela vos dar o dinheiro.
– Já terminou? – disse Amy, levantando-se.
Mr. Callaghan levantou-se também.
– Vou provar que são ladras e mentirosas nem que seja a última
coisa que faço na vida! – bramiu ele, encolerizado.
Felicity estava a descer as escadas quando a porta da sala de
visitas se abriu. Amy saiu segurando Mr. Callaghan pelos fundilhos
das calças e pelo cachaço. Felicity ficou a ver Amy empurrá-lo
escadas abaixo, o mordomo precipitar-se para abrir a porta da rua e
Amy a atirar o peralta porta fora; ele rebolou até à calçada, indo
parar à rua.
Amy sacudiu as mãos e, em seguida, virou-se para o mordomo,
que lhe explicava alguma coisa. Amy virou-se e olhou para o local
onde Felicity se encontrava. Esta recuou escadas acima e enfiou-se
no quarto. Como iria Amy retaliar?

Nessa noite, Felicity acordou sobressaltada, com uma consciência


instantânea de que havia mais alguém no quarto. Amy, foi o seu
primeiro pensamento.
– Quem está aí?! – exclamou, ríspida.
Um sussurro assustado respondeu-lhe.
– A Charlotte.
Felicity acendeu a vela colocada no castiçal junto à cama.
Charlotte, a criada de quarto, estava ali de pé, segurando algo atrás
das costas.
– O que estás a fazer? – exigiu saber Felicity. – O que escondes
aí atrás?
Charlotte começou a soluçar e lentamente estendeu a mão,
mostrando vários pares de ligas.
– O que estás a fazer com as minhas ligas? – perguntou Felicity.
– Eu ia levá-las – respondeu Charlotte. – Oh, minha senhora, tive
tanto medo que fizesse algum mal a si mesma.
Felicity sentiu o baque da consciência pesada. Uma criada de
uma das casas vizinhas, ainda no outro dia, se enforcara com as
ligas, uma forma muito comum de suicídio. Felicity sentiu que não
devia ter brincado com a compaixão da inocente criada com as suas
mentiras sobre perseguição.
Mas refletiu e voltou a endurecer o coração. As irmãs Tribble
tinham de ser punidas e ela já elaborara um plano simplesmente
maravilhoso e Charlotte era muito importante para o dito plano.
– Não chores, Charlotte – disse ela em voz suave. – Eu vou fugir
e tu vais ajudar-me.
– Como, minha senhora? – perguntou Charlotte, enxugando os
olhos com um canto do avental.
– Eu costumava usar roupas de homem na minha casa no campo
– disse Felicity –, mas não me deixaram trazer nenhuma delas para
a cidade. Vou dar-te dinheiro e pouco a pouco vais-me comprando
um traje apropriado para um jovem que passeie pela cidade. Tens
de ir às melhores lojas de roupa em segunda mão, porque não
quero usar roupa suja e cheia de nódoas.
– Oh, minha senhora, e se eu for apanhada? É muito difícil
arranjar emprego.
– Eu vou proteger-te. É teu dever ajudares-me, Charlotte. Não
posso confiar em nenhum dos outros criados porque com certeza
trabalham para as irmãs Tribble há muito tempo e são-lhes fiéis.
Charlotte hesitou. Sabia muito bem que ela e os outros criados
pertenciam ao marquês de Ravenswood. Mas Mr. Humphrey, o
mordomo, obrigara-os a todos a jurar sobre a Bíblia nunca revelar
esse segredo.
– Eu vou ajudá-la naquilo que puder, minha senhora – prometeu
Charlotte.
– Que bom – disse Felicity, deitando-se. – Agora deixa aí as ligas
e vai-te embora.
Felicity ainda ficou algum tempo acordada depois de a criada sair,
deleitando-se a imaginar a vergonha e consternação das irmãs
Tribble quando descobrissem que ela desaparecera.
– A mãe nunca mais voltará a mandar-me para aqui – disse
Felicity para o castiçal. – Nunca. Vou certificar-me de que isso não
acontece. Ela nunca mais vai confiar nas Tribble para que cuidem
de mim. Mas elas parecem estar a ficar mais sensatas. Eu tinha a
certeza absoluta de que Amy iria pensar em algum castigo para se
vingar de mim.
Mal ela sabia que era o tema de conversa naquele momento. Amy
estava deitada na cama, a chorar, enquanto Effy lhe segurava a
mão.
– Acho que não consigo suportar mais isto – disse Amy, tirando
um lenço do tamanho de um lençol e assoando o nariz com um
ruidoso som de trombeta.
Effy sentiu-se enrijecer de determinação ao ver a irmã a chorar.
Felicity tinha de ser educada e seria ela, Effy, a fazê-lo. Deu uma
palmadinha carinhosa na mão de Amy e disse:
– Nã te piocupes. Ê vô tatá do assunte.
– Pelo amor de Deus! – troçou Amy. – Tira essa faixa do queixo.
Não percebo uma palavra do que estás a dizer.
Effy desamarrou a tira do queixo e disse claramente:
– Não te preocupes, eu vou tratar do assunto. Só estou espantada
por te ver tão abalada.
– É que foi uma demonstração de um despeito tão mesquinho –
disse Amy. – Ela sabia que Callaghan tinha sido informado de que
não estávamos em casa.
– Sim, e sujeitou-nos às duas a uma cena extremamente
angustiante – concordou Effy. – Lady Felicity será punida, não te
preocupes. E é bem feito para ele que depois de tanta tramoia
acabe de mãos vazias. É muito bem... – Effy começou a soltar
risadinhas, mas acrescentou: – Oh, Amy! Ele estava tão zangado.
Amy olhou para ela com surpresa e então começou a rir também.
Riu-se tanto que até se esqueceu de perguntar a Effy que castigo
tinha ela em mente para Felicity.

Uma abismada Felicity foi acordada duas manhãs mais tarde, às


sete horas, e convocada a apresentar-se na sala de estar daí a meia
hora.
Demasiado sonolenta para protestar, deixou que Wanstead a
vestisse e desceu as escadas.
Effy estava sentada na sala de estar com um senhor de meia-
idade, que usava um colarinho clerical.
– Sente-se, Lady Felicity – disse Effy. – Este é o reverendo Tobias
Jiggs, um famoso pregador evangélico. Mr. Jiggs, apresento-lhe
Lady Felicity Vane. Pode começar.
Horrorizada, Felicity ficou a ver Mr. Jiggs levantar-se e começar a
ribombar um sermão sobre obediência e decoro e o papel de uma
jovem mulher na sociedade. Ele tinha os lábios muito grossos, o que
o fazia babar e lançar perdigotos enquanto falava. A sala estava
gelada. Effy não tinha ordenado que a lareira fosse acesa,
acreditando que uma sala de estar fria era uma espécie de
penitência boa para a alma.
A tremer no fino vestido de musselina e coagida pelas palavras,
Felicity ficou ali sentada a imaginar quando acabaria aquele suplício.
O sermão durou toda a manhã.
Quando finalmente terminou, ouviu Effy dizer:
– Extremamente fascinante, Mr. Jiggs. Cá o esperamos amanhã à
mesma hora. Como sabe, tínhamos planeado levar Lady Felicity a
um concerto no Argyle Rooms hoje à noite, mas aceitámos o seu
conselho e cancelámos o passeio.
Felicity fugiu para o quarto, a tremer de raiva. Agora, mais do que
nunca, estava determinada a fugir.

1 A expressão apple-pie bed pode ser traduzida como «fazer a cama à espanhola»,
uma brincadeira muito comum entre estudantes dos colégios internos, que consiste
em fazer a cama com o lençol dobrado a meio, resultando em apenas meia cama.
(N. da T.)
(...) fizeram dele um dândi;

Um daqueles, tu sabes, de suíças e sobretudo de corte tão


cintado

Que mais parece uma ampulheta, tal o modo como está


estreitado.

Um novo género de criaturas, desconhecido ainda das


gentes de bitola,

De cabeça tão completamente impassível e presa na gola,


Que ali se fica como os nossos mochos de piano;

e é ver o sujeito

A ter de rodar todo o corpo não vá dar um mau jeito.

THOMAS MOORE,

THE FUDGE FAMILY


IN PARIS

Foi a cobra-capelo que permitiu a Felicity uma fuga insuspeita.


Humphrey, o mordomo, deu de caras com um estranho no átrio. O
dito cujo parecia ser um homem magro com grande parte do rosto
tapado por suíças ruivas.
– Quem é o senhor? – exigiu saber Humphrey, desconfiado. –
Não ouvi ninguém bater.
Por trás das suíças, firmemente presas com goma-arábica,
Felicity hesitou. A expressão nos olhos ovoides do mordomo era
rígida e desconfiada.
– Eu sou o irmão de Lady Felicity – declarou Felicity com altivez.
Humphrey, que passava o seu tempo livre a estudar a genealogia
da aristocracia, recuou até ao cordão da campainha pendurado a
um canto do átrio e retorquiu:
– Lady Felicity não possui irmãos.
Contudo, antes de Felicity reunir coragem para tentar afastá-lo do
caminho e sair, um grito terrível ecoou por toda a casa seguido de
gritos de socorro vindos da sala de estar no andar de cima.
Humphrey precipitou-se para as escadas com uma agilidade
impressionante para alguém tão obeso e pomposo. Felicity abriu a
porta e saiu, caminhando o mais depressa que pôde até à esquina e
virando para Oxford Street.
Lá em cima, na sala de visitas, instalara-se o caos.
Amy estava abraçada ao presente de Mr. Haddon. Enviara-lhe
uma calorosa carta de agradecimento, mas não contara a Effy
porque sabia que a irmã teria troçado e dito que a ela nunca
ninguém mandava presentes tão estranhos. Os cavalheiros
mandavam-lhe sempre flores ou poemas. Então, Amy guardara a
cobra num armário por baixo das estantes envidraçadas da sala de
estar.
Effy tinha entrado à procura de uma jarra que pudesse usar.
Abrira o armário e, vendo-se diante da cobra empalhada, desatara a
gritar a plenos pulmões. Toda a gente da casa acorreu e o ambiente
tornou-se uma confusão de gritos e exclamações. Um lacaio,
olhando horrorizado para aquela coisa no armário, foi a correr
buscar um bacamarte. Disparou contra a cobra, mas errou a
pontaria, acabando por atingir um retrato da terceira marquesa de
Ravenswood com uma saraivada de pregos.
Quando finalmente Effy se acalmou o suficiente para ouvir a
explicação de Amy, o marquês de Ravenswood chegou, sem ser
anunciado, tendo decidido fazer uma das suas visitas de improviso a
Londres.
Teve de se esforçar muito para não dar uma gargalhada ao ver
Amy orgulhosamente a montar guarda à horrível cobra empalhada e
a vociferar desafiadoramente que era um presente dela e que mais
ninguém tinha o direito de lhe tocar.
Enquanto isso, rumores sobre o que estaria a acontecer
circulavam no piso dos criados, e Charlotte, a criada amedrontada,
convencera-se de que alguém tinha morrido.
A sua pobre cabecinha, a transbordar das histórias românticas de
Felicity, acreditava piamente que Felicity se suicidara. Apressou-se
a subir à sala de estar e, lavada em lágrimas, atirou-se para o meio
do tapete a implorar misericórdia.
Seguiram-se mais gritos e pedidos de explicação. Charlotte
confessou num tom desesperado que sabia que eles iriam conduzir
Lady Felicity à morte com tamanha perseguição e que o melhor era
matarem-na também.
Amy assumiu o comando da situação, mandando o mordomo,
chocado e furioso, sair. Fez uma festa no cabelo da criada de
quarto, ajudou-a a levantar-se e pediu-lhe com toda a amabilidade e
paciência que começasse do início e lhes contasse tudo o que
Felicity lhe dissera, garantindo à rapariga várias vezes que Lady
Felicity estava bem.
Com uma voz hesitante, Charlotte contou toda a história do plano
de fuga de Felicity, confessando ter sido ela a comprar-lhe roupas
de homem.
– Tragam Lady Felicity aqui imediatamente – ordenou o marquês.
Todos aguardaram até que Humphrey regressou e anunciou que
Lady Felicity escapara.
– Podes arrumar a tua trouxa e sair imediatamente – disse o
mordomo a Charlotte.
– Não – contrariou Amy. – Ela fica. Foi a Felicity que fez uma
brincadeira de muito mau gosto com a pobre rapariga. Mas para
onde poderá ela ter ido?
Humphrey observou-os com uma expressão perplexa no rosto.
– Vossa senhoria – disse ele, voltando-se para o marquês. –
Pouco antes de ouvir Miss Effy gritar, havia um homem no átrio de
entrada. Ele disse-me que era irmão de Lady Felicity. Eu respondi
que Lady Felicity não tinha irmãos e estava prestes a tocar a
campainha para chamar ajuda quando toda a confusão começou e
eu corri cá para cima.
– Deve ter sido aquela maldita miúda disfarçada – concluiu o
marquês. – Qual era o aspeto dela?
– Mas não podia ser ela, vossa senhoria – contrapôs Humphrey. –
Aquela pessoa tinha suíças.
– Nunca ouviu falar de suíças falsas, homem? – rosnou o
marquês. – Existe até uma loja que as fornece para a cavalaria. De
que cor eram? O que tinha ela vestido?
– Estava escuro no átrio, vossa senhoria – disse Humphrey –,
mas um raio de sol incidiu sobre as suíças e pareceram-me ser de
um ruivo muito vivo. Ele, isto é, ela tinha vestido um sobretudo
cintado de cor verde-garrafa, julgo eu, um colarinho muito alto e
botas de montar. O chapéu era uma cartola normal de pelo de
castor e aba revirada.
– Reúna todos os homens desta casa e mande-os procurá-la –
ordenou o marquês e, virando-se para as irmãs Tribble, procurou
tranquilizá-las: – Não fiquem tão aflitas, minhas senhoras. Eu
próprio vou tentar trazê-la de volta.

Felicity caminhava em direção à cidade, onde esperava encontrar


uma diligência que a levasse para o Sussex. A primavera tinha
chegado a Londres. Um vento quente soprava às rajadas pelas
ruas, agitando os toldos às riscas nas janelas das casas e fazendo
as venezianas de cor clara das lojas ranger e insuflar, o que dava
por vezes à cidade uma aparência de um grande veleiro à bolina,
esforçando-se para deixar o porto.
Felicity seguia assobiando e desfrutando da nova liberdade e do
prazer que sentia pelo esplêndido disfarce, já completamente
esquecida das irmãs Tribble. Esse capítulo da sua vida estava
terminado. O próximo incluía o Sussex, a sua casa e cavalgar
através dos vales e colinas num dia tão esplêndido como aquele.
Entrou num café em Holborn e pediu uma empada de carne e
uma garrafa de vinho. Bebeu a garrafa inteira, sentindo-se
ligeiramente zonza e ridiculamente feliz ao sair.
Foi só quando se aproximou de Strand, decidida a dar um passeio
por Londres antes de partir, que percebeu que o caos poderia
instalar-se numa parte da cidade, enquanto as outras partes
permaneciam perfeitamente alheias ao rebuliço.
Uma multidão descia furiosa a avenida, destruindo as lojas que
tinham sido tolas o suficiente para permanecer abertas. Num
instante sóbria pelo medo, recuou para Holborn e assim continuou
até Snow Hill e à City de Londres, a Londres original fortificada,
onde todo o comércio da nação acontecia agora.
Tinha acabado de entrar no bairro de Candlewick, quando um
polícia a agarrou e exigiu saber o nome dela.
– Felix Vane – respondeu Felicity na voz mais rouca que
conseguiu.
– Morada?
– Bread Lane – devolveu Felicity, lembrando-se de um endereço
da City que lera num artigo do jornal.
– Proprietário da casa?
– Sim – respondeu Felicity, não querendo ter de mentir mais do
que o necessário. Sabia que se dissesse que não era o dono da
casa, isso poderia levar a mais e mais perguntas.
– Certo. Siga-me. Vai ser empossado como polícia especial.
– Para quê? – perguntou Felicity, sentindo os joelhos começar a
tremer.
– Para quê? – ecoou o polícia com desdém. – Ora essa, para
acabar com aqueles desordeiros assassinos.
E foi assim que Lady Felicity Vane, de baioneta calada e espada
desembainhada, se viu a marchar sobre a ponte de Westminster
cercada por homens igualmente armados para acabar com os
revoltosos. Ela queria saber qual a razão da revolta daquela
multidão, não queria mesmo nada ter de disparar ou mergulhar
aquela baioneta assustadora no peito de alguém, mas estava com
medo de falar e assim revelar a sua identidade com a voz.
O sol escaldava e, sentindo a cabeça latejar ao ritmo da batida
dos tambores, perguntou-se se sairia viva de tudo aquilo.
Todavia, veio a descobrir que corria mais riscos às mãos dos
companheiros do que dos revoltosos. A multidão aglomerara-se em
St. George’s Fields. Mas assim que eles ouviram os tambores e
viram o sol refulgir nas baionetas das forças da lei e da ordem,
rapidamente dispersaram. Nenhum tiro foi disparado. Felicity
suspirou de alívio. Agora só precisava de marchar em silêncio o
caminho de volta, devolver as armas ao arsenal da City e encontrar
a diligência.
Mas assim que se livrou das armas, foi rapidamente cercada
pelos companheiros de guerra, que declararam a intenção de
ficarem tão bêbados quanto possível e, em seguida, levantar as
saias de cada mulher de vida fácil que encontrassem dentro das
muralhas da City, passando a descrever em detalhes gráficos o que
fariam às referidas mulheres; Felicity engasgou-se de choque e
tentou não vomitar na frente deles.
– Peço-vos desculpa – disse ela, recuperando a voz, mas
tentando mantê-la no registo mais grave possível –, mas tenho de
me ir embora.
– Balelas! – exclamou o líder dos seus perseguidores. – Antes
disso vais ter de emborcar uns copos connosco. – Estavam na rua
agora e ele enfiara o braço no dela num aperto forte.
– Eh, lá! Sobrinho – disse uma voz lânguida. – Agora vejo porque
te atrasaste para o jantar.
Felicity ergueu o olhar para a expressão trocista do marquês de
Ravenswood. Os companheiros recuaram ante a magnificência do
traje do marquês. Branca como a cal sob as suíças, Felicity
acompanhou o marquês. Caminharam lado a lado em silêncio até o
marquês parar em frente a um café.
– Acho que devemos ter uma conversa antes de a levar para casa
– anunciou ele.
Entrou à frente no café e dirigiu-se até uma mesa no canto. Pediu
café e biscoitos.
– Como é que me encontrou? – perguntou Felicity, mal-humorada.
– Se visse essas suíças ridículas à luz clara do dia, saberia que
são tão vermelhas como o colete de um mensageiro. Muitas
pessoas no seu caminho até à City se lembravam de um tipo de
aparência estranha com suíças escarlates. Encontrei-a quando
estava a ser recrutada para o serviço policial. Resolvi segui-la
porque os ânimos estavam muito exaltados nessa altura e eu não
queria arriscar arruinar-lhe a reputação ao desmascará-la. Esperei
até que regressasse ao depósito de armas e, depois, foi só escolher
o momento certo.
– Eu ia para a minha casa no Sussex – declarou Felicity,
inclinando a cabeça em desânimo.
– E certificou-se de que o fazia de forma a causar a maior
angústia possível – revidou ele em tom severo. – A criada que
enganou com aquela confusão de mentiras. Pensou nela? A
rapariga pensou que tinha sido morta e estava preparada para a
seguir até à sepultura. Ela quase perdeu o emprego, o que, nos dias
de hoje, teria sido o mesmo que matá-la. Não há futuro para uma
criada de quarto despedida sem referências.
– Não pensei que ela fosse contar a ninguém sobre o seu papel
na minha fuga – justificou Felicity, enfurecida pela culpa.
– Não pensou em ninguém para além de si mesma, aliás nunca
pensa – disse o marquês. – A menina é uma colossal maçada. As
mulheres pouco femininas sempre são. Vai voltar para as irmãs
Tribble e portar-se devidamente. Estamos entendidos?
– Não tem o direito de interferir na minha vida – resmungou
Felicity.
– Eu não quero ter nada a ver consigo – retorquiu o marquês. –
Mas não gosto de ver as irmãs Tribble atormentadas e gozadas por
uma criança mimada. A menina não tem nem aparência, nem
charme, nem inteligência. Tente obedecer-lhes e manter a boca
fechada e talvez assim algum pobre tolo se case consigo por causa
do dote, porque a menina não tem nada mais a oferecer a um
homem que não seja dinheiro.
Felicity ficou muda de choque e raiva.
– Eu vou mostrar-lhe – rosnou ela, entre dentes. – Não perde por
esperar! Vou conseguir pôr um homem louco de paixão por mim.
O marquês recostou-se na cadeira e soltou uma sonora
gargalhada. Por fim, disse:
– Só gostava que pudesse ver-se, aí sentada exibindo esse
colarinho equídeo e essas horríveis suíças a prometer levar um
homem à loucura da paixão.
Ele estava tão divertido que nem percebeu que Felicity tinha
começado a chorar. As lágrimas salgadas escorriam-lhe pelas
suíças, mas ela tomou um grande gole de café e conseguiu
controlar-se.
Agora odiava o marquês mais do que as irmãs Tribble, mais do
que ninguém, no mundo inteiro. Quando saíram, o marquês chamou
uma tipoia e deu ao condutor o endereço de Holles Street.
Depois inclinou a cabeça para trás e pensou em Miss Betty
Andrews. Ela nunca sonharia em se disfarçar de homem. Era suave,
curvilínea e bonita, e ele gostava da maneira confiante como ela
pousava timidamente a mão gordinha no seu braço e lhe sorria. Ela
nunca lhe daria um dia de transtorno ou angústia. Ele sabia que ela
estaria em Londres durante a temporada social, mas, naquele exato
momento, decidiu pedi-la em casamento antes de ela sair do
Sussex.

Lady Felicity estava na cama, e o marquês tinha acabado de contar


às irmãs Tribble as aventuras dela durante uma ceia tardia. Effy
suspirou de choque e aflição, mas Amy permaneceu em silêncio.
Secretamente, Amy achava que Felicity fora incrivelmente corajosa
ao passar por aquela experiência de ser armada e forçada a cumprir
serviço policial especial. Amy pensou também que devia ser
maravilhoso usar suíças e passear livremente pelas ruas.
– Pois então, minhas senhoras – disse o marquês –, mudando
para assuntos mais agradáveis: o que quero saber é se vão dançar
no meu casamento.
A esperança cintilou nos olhos de Amy.
– Ah, maroto – disse ela –, a atormentar-nos com a sua
indignação contra a pobre Felicity. Claro que dançaremos no seu
casamento. Ela é jovem e obstinada, mas eu sempre soube que
havendo alguém inteligente o bastante para ver a menina de ouro
que ela é, essa pessoa seria o senhor.
– Temo que Lord Ravenswood não se refira a Felicity – explicou
Effy em voz baixa.
– Não, claro que não – reiterou o marquês. – Eu pretendo casar-
me com Miss Betty Andrews.
– Nunca ouvi falar dela – disse Amy em tom indiferente.
– Toda a Londres ficará a conhecê-la quando ela tomar a cidade
de assalto nesta próxima temporada – disse o marquês. – É uma
jovem formosa de cabelo loiro e divinal.
– As loiras não estão na moda – contestou Amy, inclinando-se
para a frente com ar sério, alheia ao facto de o cotovelo esquerdo
estar pousado no prato da manteiga. – Com loiras, nunca se sabe.
Quase nunca são naturais. Veja o caso da Sally Jersey.
– Tudo em Miss Andrews é natural – asseverou o marquês com
um sorriso retrospetivo.
Pronto – disse Amy mais tarde a Effy. – Estou capaz de torcer o
pescoço de Felicity. Como vamos puni-la?
Effy suspirou.
– Acho que, desta vez, Amy, vamos tentar a bondade e ver se ela
ganha vergonha e começa a portar-se bem. A verdade é que ela
teve uma experiência bastante terrível. Talvez lhe tenha servido de
lição.

Nos dias que se seguiram, Felicity realmente parecia uma pessoa


mudada. O choque fora terrível e ela andava calma e cautelosa,
como alguém a recuperar-se de um acidente.
Charlotte, a criada, tinha sido enviada para a casa de campo do
marquês, não como uma despromoção, mas para a manter longe da
influência perniciosa de Felicity. Os outros criados, até mesmo a
criada pessoal de Felicity, Wanstead, mantinham-na debaixo de olho
e recusavam-se a deixar-se atrair para qualquer conversa. Então,
Felicity sossegou e aprendeu a dançar as novas danças, a quadrilha
e a valsa, até à perfeição, a tocar piano com competência e a pintar
aguarelas que gradualmente se começavam a parecer com as
paisagens que deveriam representar. Os tutores declararam-se
satisfeitos, especialmente o professor de música, que se recusava a
aceitar o facto de Felicity já saber tocar bem piano e reivindicava
para si o crédito pelo talento da jovem. O professor de dança
afirmou que ela tinha adquirido uma certa graça e já não avançava
em algazarra nas danças escocesas e tradicionais como uma maria-
rapaz.
Por sua vez, as irmãs Tribble debatiam-se com a dificuldade de
ensinar a Felicity a cortesia e as boas maneiras sociais temperadas
com amabilidade. Amy era muitas vezes deselegante e desbocada;
Effy, tontinha; mas ambas tinham horror a magoar as pessoas por
uma palavra precipitada ou um gesto desastrado. Foi Effy que
decidiu que Felicity devia aprender corretamente a arte de
namoriscar. Effy desempenhava o papel de professora e Amy,
vestida com calças e casaco verde-garrafa, fazia o papel do homem.
Felicity foi ensinada a baixar timidamente o olhar ao receber um
bonito elogio, a como bater com o leque ao receber um elogio
atrevido e a tremer e mostrar um ar aflito caso o cavalheiro viesse a
ultrapassar os limites nas suas atenções. Mr. Haddon, chegando
certa vez durante uma destas sessões, ofereceu-se gentilmente
para fazer o papel do cortejador; mas, por alguma razão que Felicity
não conseguiu entender, Effy foi ficando perturbada e Amy, mal-
humorada e carrancuda. Por fim, Effy disse a Mr. Haddon que não
era decente um cavalheiro a sério tomar parte naquelas encenações
de aprendizagem e Amy retomou o seu papel.
No entanto, as irmãs Tribble ainda só levavam Felicity em saídas
mais tranquilas, como palestras e concertos. Não queriam que
Felicity fosse desviada por algum homem inadequado antes de a
temporada começar. Algumas semanas antes do baile de abertura
da temporada no Almack’s Assembly Rooms, em King Street, Lord
Bremmer apareceu de visita.
As irmãs não viram nenhuma razão para lhe recusar a entrada.
Ele era rico, solteiro e com título nobiliárquico. Felicity não podia
arranjar melhor. Mr. Haddon partilhara com as irmãs a opinião de
que elas tinham voado muito alto ao ambicionar que alguém tão
perfeito como Ravenswood olhasse sequer para Felicity.
Por sua vez, Felicity estava contente por ver Lord Bremmer. Eram
da mesma idade e ela sentia-se lisonjeada ao ver o amor e a
devoção nos olhos dele. Felicity ainda sentia os insultos de
Ravenswood a queimar-lhe o peito como ácido.
Já não ficava acordada à noite a engendrar planos de vingança
para trucidar as irmãs Tribble. Mas no dia seguinte ao
reaparecimento de Lord Bremmer, os jornais matutinos publicavam
o anúncio do noivado do marquês de Ravenswood com Miss Betty
Andrews. As irmãs Tribble não tinham visto qualquer razão para
avisar Felicity do compromisso que se avizinhava.
Felicity odiou o marquês mais do que nunca. Ele iria desfilar com
aquela idiota horrível e pegadiça, Betty Andrews, à frente dela. Ia rir-
se e troçar dela. A única maneira de poder pagar-lhe na mesma
moeda era magoar as irmãs Tribble.
Ela ainda era jovem o suficiente para considerar qualquer pessoa
com idade superior a vinte e cinco anos como sendo praticamente
desprovida de sentimentos. Na opinião de Felicity, as irmãs Tribble
estavam numa situação confortável. Não precisavam dela e logo
encontrariam outra para a substituir.
Nesse dia, Lord Bremmer tinha autorização para a levar num
passeio de carruagem. Felicity começou novamente a traçar um
plano.
Tinha muito pouco tempo para forçar que a breve convivência
entre ambos adquirisse uma base mais íntima, mas, assim que
saíram, o próprio Lord Bremmer deu-lhe a oportunidade perfeita.
– Deve perguntar-se, Lady Felicity, por que razão eu não a segui
até Londres – disse ele, ao conduzir o faetonte na direção dos
portões de Hyde Park.
– Sim, é verdade – respondeu Felicity, oferecendo-lhe um sorriso
enternecedor.
– Bem, o estranho facto é que os meus pais tinham mais ou
menos arranjado um casamento para mim. – explicou ele. – Eu tive
de me livrar desse problema, compreende?
– Oh, sim – sussurrou Felicity, lutando com a própria consciência.
Esperava desesperadamente que a prometida de Lord Bremmer
não tivesse ficado muito magoada com a rejeição dele.
– Mas o que me intriga – continuou Lord Bremmer – é que se
Ravenswood a quer, porque não a pediu em casamento?
Felicity estava preparada para responder a essa pergunta.
– Eu rejeitei os avanços dele – disse ela com a voz trémula. –
Mas ele prometeu vingar-se.
– Com a breca! Como?
– Ele jurou jamais deixar que eu me case com outro e, para isso,
convenceu as irmãs Tribble a afastar qualquer pretendente que
possa querer-me como esposa.
– Mas elas receberam-me muito bem.
Felicity deu um suspiro melancólico.
– Eu ouvi-as a rir-se sobre isso depois – explicou ela. – Miss Amy
disse: «Bremmer é jovem de mais para ser perigoso.»
A expressão de Lord Bremmer obscureceu-se de fúria.
– Mas, a partir de amanhã, não vou poder voltar a vê-lo – concluiu
Felicity, com um quebranto na voz. – Porque Ravenswood vem para
a cidade.
– Caramba! – exclamou Lord Bremmer. – Essa perseguição cruel
está para além de todos os limites do razoável. A minha vontade é
fugir consigo.
Ele refreou os cavalos e olhou para ela. Os olhos de Felicity
brilhavam de veneração pelo seu herói.
– Oh, muito obrigada – agradeceu ela.
– Hã... o quê? – inquiriu Lord Bremmer, olhando-a atónito.
– Muito obrigada por me salvar – disse Felicity. – É o meu herói!
– Com a breca, o que... isto é... uf...
– Tudo pode ser muito simples, até. Vai haver uma apresentação
de teatro de revista no Hyde Park, às onze da manhã. Leva-me lá e
depois podemos mudar para a sua berlinda e viajar para Gretna.
– Mas...
– Como é corajoso e inteligente.
Felicity continuou a elogiá-lo, a sorrir e a dizer-lhe como ele era
maravilhoso até o rapaz ficar tão desnorteado que de bom grado a
levaria para a Gronelândia naquele momento se ela lho pedisse.
– Vou colocar alguma roupa num embrulho de papel e dizer que é
para deixar na igreja de St. George, para os pobres – sugeriu
Felicity –, pois eu nunca conseguiria sair de casa com um baú.
– Não, isso é verdade – concordou Lord Bremmer, deixando-se
convencer.
Mais tarde nesse dia, Felicity estava no quarto a descansar
quando Amy entrou.
– Ravenswood vem cá esta noite – disse ela, de repente – com
Miss Andrews e a mãe dela. Vista algo especialmente bonito para o
jantar.
– Lord Ravenswood vai ficar cá hospedado novamente? –
perguntou Felicity.
– Sim.
– Porquê? Ele tem uma casa na cidade.
– Hum... a casa está a ser redecorada. Meu Deus, estou tão
cansada – queixou-se Amy. – Estava na esperança de ter uma noite
tranquila. Desconfio que não vou gostar da companhia dessa tal
Miss Andrews. Parece-me ser exatamente o tipo de mulher que me
faz sentir desconfortável.
– Lord Ravenswood é muito vosso amigo, não é? – perguntou
Felicity.
– O quê? Oh, sim. Ele adora-nos, a mim e à Effy. Bom, como
dizia, seja boazinha e use um dos vestidos novos que a
mademoiselle fez para si.
– Está bem, Miss Amy – respondeu Felicity docilmente.
Amy olhou-a, desconfiada.
– Eu deveria ficar feliz por a ver a portar-se tão bem ultimamente,
mas esse seu bom comportamento põe-me nervosa. Não está a
tramar alguma, pois não?
– Não – respondeu Felicity com um olhar límpido. – Tornei-me
absolutamente respeitável e o altamente respeitável Lord Bremmer
vai levar-me a um teatro de revista no Hyde Park amanhã.
O rosto de Amy iluminou-se.
– Ele é um homem muito amável e é de uma boa família. Bom, o
melhor é ir arranjar-me e tentar transformar-me numa estampa de
moda. Graças a Deus, Mr. Haddon também vai cá estar.
Sentada na sala de estar, antes do jantar, Amy começou a mostrar
sinais de impaciência. O que estaria a atrasar Felicity? Effy
conversava com Mr. Haddon, o marquês estava de pé junto à lareira
a conversar com Miss Andrews, o que deixou Amy com a tarefa de
conversar com Mrs. Andrews. Amy não pôde deixar de pensar se o
marquês já teria considerado a hipótese de a sua amada poder vir a
tornar-se daí a uns anos parecida com a mãe. Mrs. Andrews tinha
sido uma grande beleza na juventude, mas as contrariedades
deixaram-lhe rugas profundas nos lados da boca e um uso
excessivo de pó branco havia-lhe corroído a pele. Ela tinha uma voz
arrastada, aguda e afetada.
Amy estava prestes a tocar a campainha para pedir a um criado
que fosse chamar Felicity, quando a porta se abriu e a jovem entrou.
Os olhos de Amy toldaram-se de orgulho.
A costureira francesa já tinha ultrapassado todas as expectativas
de Amy. O vestido que Felicity usava era simples, de musselina com
um discreto padrão floral. Mas era um dos melhores exemplos da
arte de Yvette. O decote fora habilmente cortado para que Felicity
pudesse expor o máximo de colo sedutor e ainda manter o ar de
donzela. A profusão de folhos na bainha flutuava ao andar, assim
como o tecido fino do vestido, enfatizando a alusão a umas pernas
bem torneadas e à jovem ondulação de nádegas firmes. O cabelo
estava penteado num dos mais recentes estilos romanos e alisado
com brilhantina.
Miss Andrews olhou para Felicity e, logo de seguida, o olhar
subiu, acutilante, para o marquês. Ele fitava Felicity com uma
expressão pensativa e velada.
Effy fez as apresentações.
– Vejam só! – exclamou Miss Andrews, agitando o leque. – Nem
por um minuto eu sou capaz de a imaginar com suíças ruivas, Lady
Felicity.
Felicity abriu um meio sorriso. As irmãs Tribble lançaram olhares
de reprovação ao marquês, que enrubesceu ligeiramente. Ele havia
contado a Miss Andrews as suas aventuras com Felicity, mas nem
por um instante lhe passara pela cabeça que ela as fosse repetir a
alguém ou confessar em público o seu conhecimento do assunto.
Mas o pior estava por vir, porque logo se tornou óbvio que Betty
Andrews tinha contado à mãe tudo sobre Felicity. Tal como a filha,
Mrs. Andrews ficou irritada com a aparência de Felicity. Uma coisa
era o marquês viver sob o mesmo teto que uma jovem ruidosa de ar
masculino que ela esperara encontrar em Lady Felicity; outra muito
diferente era o marquês partilhar a casa com uma jovem graciosa e
perigosamente sedutora.
– Sim, confesso que fiquei terrivelmente chocada ao saber da sua
escapada – disse Mrs. Andrews em tom arrastado. – No meu tempo,
uma donzela seria severamente castigada por tal comportamento.
O marquês esperou que Felicity dissesse algo insolente ou rude
para não se sentir tão mal com o desplante da futura sogra, mas ela
limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas e foi sentar-se ao
lado de Mr. Haddon.
O resto do serão foi um pesadelo para o marquês. Tornou-se
muito claro que a sua noiva estava com ciúmes de Lady Felicity e
quanto mais ciumenta se tornava, mais encantadora Felicity se
mostrava. Depois do jantar, Felicity entreteve o pequeno grupo
tocando piano. Mr. Haddon aplaudiu com entusiasmo e, em seguida,
pediu para ver as últimas aguarelas de Felicity, dizendo a Mrs.
Andrews, cheio de orgulho, que Felicity possuía um toque
profissional.
O marquês observava Felicity com um olhar pensativo,
perguntando-se se ela se tinha tornado bela, encantadora e
talentosa só para o irritar.
Quando, finalmente, Mrs. Andrews se levantou e disse que estava
na hora de se irem embora, os remanescentes suspiraram de alívio.
Amy regressou à sala de estar depois de acompanhar as Andrews
à saída.
Felicity estava a guardar as pautas de música e Amy deu-lhe uma
palmadinha nas costas, dizendo:
– Bravo, Felicity! Há muito que não via uma preciosidade tão
encantadora.
Felicity sorriu e corou, mas algo cintilou nas profundezas dos seus
olhos.
Amy pensou com inquietação que aquela breve centelha era de
culpa e ficou a cismar porquê.
Existe uma maré nos assuntos de mulheres

Que, apanhada pela enxurrada, leva... sabe Deus onde

LORD BYRON, DON JUAN

Ao descer as escadas, na manhã seguinte, o marquês de


Ravenswood parou. Felicity estava de saída, para ir assistir ao
teatro de revista no Hyde Park com Lord Bremmer. Amy e Effy
estavam a despedir-se. O marquês percebeu que Felicity levava um
embrulho enorme.
– O que diabo está nesse pacote? – perguntou ele, elevando a
voz.
O pequeno grupo virou-se para o encarar. Amy e Effy sorriam,
Lord Bremmer exibia um ar carrancudo e Felicity um olhar
desafiador.
– Lady Felicity vai doar algumas das suas roupas antigas à igreja
de St. George – explicou Effy.
– Mas estão de saída para ir assistir à revista! – disse o marquês,
terminando de descer as escadas. – Eu vou passar por St. George
esta manhã. Permitam-me que entregue a encomenda.
– Isso não será necessário – contrariou Felicity. O rosto de Lord
Bremmer tinha adquirido uma cor pardacenta. – Vamos –
acrescentou Felicity, impaciente.
De olhos semicerrados, o marquês ficou a observá-los colidir com
a porta na pressa de escapar.
– Porque está tão zangado? – perguntou Amy, curiosa. –
Bremmer é extremamente adequado, embora eu confesse que teria
escolhido um homem um pouco mais velho para Felicity.
– Eu acho que ela está a preparar alguma – disse o marquês e
virou-se para o mordomo que rondava por ali. – Vá buscar aquela
mulher... a costureira francesa.
– Para que quer falar com a Yvette? – quis saber Amy. – Miss
Andrews deseja os serviços dela? Pois olhe que não pode tê-los,
entende? A Yvette é descoberta minha. E ela está ocupada agora, a
fazer roupas para mim e para a Effy.
– Já vão ver – foi a única explicação do marquês.
Yvette apareceu atrás do mordomo. Era uma jovem francesa dos
seus vinte anos, de olhos negros e pele pálida, cabelo castanho
bem arranjado e figura esguia.
– Venha comigo, Yvette – pediu o marquês.
– Vamos ver o que tem ele na ideia? – perguntou Effy, ao ver o
marquês subir as escadas a passos largos, com a costureira a
correr atrás dele.
– Não – respondeu Amy. – Com cavalheiros nunca se sabe. Têm
os humores mais estranhos. Provavelmente vai convencê-la a fazer
o vestido de casamento de Miss Andrews, ou algo assim, e não quer
ofender-nos.
O marquês abriu caminho até ao quarto de Felicity. Parecia que
uma bomba tinha explodido ali dentro. Yvette soltou uma
exclamação de susto. Havia roupa espalhada por toda a parte,
depois de ter sido tirada às pressas de gavetas e armários.
– Vamos lá ver, Yvette – disse o marquês. – Certamente já
conhece bem o conteúdo do guarda-roupa de Lady Felicity. Diga-me
que roupas estão em falta.
A jovem rapidamente se pôs a examinar o quarto.
– Falta aquela nova peliça de seda dourada debruada a penugem
de cisne – disse de si para si, enquanto esquadrinhava o espaço – e
o vestido de musselina cor-de-rosa com cinco folhos e o vestido de
passeio verde com alamares e...
– Já chega! Segundo percebo, não eram roupas velhas.
– Oh, não, meu senhor. Eram as minhas melhores criações e
Lady Felicity parecia gostar delas.
– É tudo, pode ir – disse o marquês.
Apressou-se a descer até à sala de estar e confrontou as irmãs.
– É minha opinião fundamentada que Lady Felicity fugiu com
Bremmer – anunciou ele. – As roupas que levava no embrulho eram
as suas melhores peças.
Effy soltou um grito débil, mas Amy disse em tom firme:
– Porque tomaria ela tal atitude?
– Por vingança – concluiu o marquês. – Para nos desgraçar a
todos. É inútil tentar encontrá-los entre o público da revista. Tenho a
certeza de que não vão estar lá. Provavelmente já seguem na
estrada para norte. Não se preocupem. Vou dar uma boa lição a
Bremmer e trazê-la de volta. Ela pode casar-se com Bremmer se
quiser, mas na igreja, como mandam os bons costumes. Que diabo!
Eu ia dar um passeio de carruagem com Miss Andrews. Enviem um
lacaio a casa dela com as minhas desculpas.
Depois de ele sair, as irmãs sentaram-se, com ar aflito.
– Poderá ele ter-se enganado? – sugeriu Effy por fim. – Lady
Felicity deve saber o que a atitude dela significa. Não só Lady
Baronsheath ficará furiosa, como nunca mais ninguém na sociedade
irá querer os nossos serviços. Oh, Amy! Lá vamos nós voltar aos
tempos de quartos gélidos e estufado de restos de borrego.
– Espero que ela parta o pescoço – rosnou Amy, feroz. – De todas
as serigaitas cruéis e rancorosas... Oh, porque tivemos nós de
anunciar que cuidávamos de jovens difíceis. Eu não gostei de Miss
Andrews, mas agora ela parece-me extraordinariamente virtuosa e
respeitável em comparação com a Felicity.

Tudo corria pelo melhor com o casal em fuga. Era mais um belo dia
de primavera. Grandes flocos de nuvens navegavam lá em cima no
céu enquanto eles viajavam no conforto da berlinda coberta de Lord
Bremmer. Lord Bremmer não se arrependia. Sempre que olhava
para Felicity, ela brindava-o com um sorriso suave e caloroso. Ele
sentia-se com três metros de altura. Tinha a certeza de que a fúria
dos seus pais seria de curta duração quando soubessem que ele
tinha tido o bom senso de fugir com uma herdeira da nobreza.
Confiante de que demoraria ainda algum tempo até que alguém
viesse atrás deles, uma vez que a revista tinha a previsão de durar
mais de duas horas, ele decidiu fazer uma pausa na viagem numa
estalagem em Barnet. Estavam os dois sentados amigavelmente a
tomar café e a comer bolo, quando Felicity pediu licença e se
levantou.
– Onde vai? – perguntou Lord Bremmer.
– À sentina – respondeu Felicity com toda a calma e
descontração.
Lord Bremmer corou de vergonha, achando muito pouco feminino
de Felicity ser tão explícita. Deveria ter dito que ia retirar-se para
arranjar o vestido ou algo parecido.
Quando Felicity se afastou, ele pegou num exemplar já antigo do
The Morning Post e pôs-se preguiçosamente a ler os anúncios da
primeira página.
O anúncio das irmãs Tribble pareceu saltar da página. Felicity
tinha-lhe confessado que a mãe insensata tinha respondido a um
anúncio do The Morning Post. Mas, por certo, não podia ser
aquele... «Se tem uma Filha Desobediente, Rebelde ou
Indisciplinada...»
Pousou o jornal e abanou a cabeça como se para ganhar clareza
de pensamento. Não podia ser aquele o anúncio. Deve ter sido
outro.
Bebeu um gole do café que arrefecia e esperou e esperou. Por
fim, temendo que algo pudesse ter acontecido a Felicity, mandou
uma criada à privada no jardim da estalagem para ver se ela ainda
lá estava. Mas antes que a criada regressasse, Felicity irrompeu na
sala de café com os olhos a brilhar de entusiasmo.
– Estamos cheios de sorte! – exclamou ela. – Apalavrei um par de
cavalos de caça para nós.
– Com a breca! Cavalos de caça? Para quê?
– Para caçar, homem. A caçada. Eles já partiram.
– Não acredito que queira participar numa caçada a meio de uma
fuga.
Felicity bateu o pé com teimosia.
– Ninguém virá atrás de nós durante horas. Está um dia
esplêndido e o rasto é forte. Dê-me esse embrulho. Tenho de mudar
de roupa.
Ela agarrou no embrulho de papel pardo e saiu apressada.
Com a boca apertada numa linha firme de desaprovação, Lord
Bremmer saiu para o pátio da estalagem para cancelar a ordem dos
cavalos de caça. Mas o proprietário das terras tinha ficado tão
impressionado com a personalidade forte de Felicity que teimou em
não fazer nada até ter a permissão da senhora.
Felicity apareceu vestida com o traje masculino que a criada de
quarto lhe tinha comprado, excetuando o sobretudo e as suíças.
Lord Bremmer fechou os olhos à visão da sua amada de calças,
botas de cano alto e casaco acolchoado. Ela parecia uma imitação
de dândi amaneirado, caído em desgraça.
– Não adormeça – troçou Felicity. – Vamos lá, Bremmer, senão
perdemo-los.
Quando Lord Bremmer abriu os olhos, foi para ver Felicity saltar
para a sela.
– Eu... espere lá – chamou ele em desespero. – Com a breca,
Lady Felicity. Com a breca!
Com um sorriso de satisfação estampado no rosto, o proprietário
das terras aproximava-se dele com um cavalo de caça. – É melhor
montar, vossa senhoria – disse ele – ou vai perder a sua senhora.

O marquês, certo de que o casal não iria interromper a viagem até


ao cair da noite, passou por Barnet e seguiu sempre. Dos campos à
sua direita ouvia o chamado de uma corneta de caça. Voltou a
atenção para a estrada mesmo a tempo. Uma parte da estrada tinha
cedido, talvez rachada pelas geadas de inverno, abrindo um grande
buraco. Puxando as rédeas da montaria com ímpeto, conseguiu
contorná-lo pela margem estreita de relva. Relanceou para trás. Se
não estivesse com tanta pressa para apanhar Felicity, teria
arranjado um pau com um lenço amarrado e tê-lo-ia espetado no
buraco como aviso a quem ali passasse.
Parou finalmente numa grande estalagem para mudar de cavalos
e inquirir sobre o casal. Mas tinha sido um dia tranquilo, segundo
eles, quase sem tráfego na estrada. O marquês ficou intrigado.
Começou a questionar se teria cometido um erro, se, afinal de
contas, o casal tinha ido assistir à revista.
Hesitou antes de seguir viagem. Sentou-se, as rédeas soltas nas
mãos. Deliberadamente, afastou da mente a imagem de Felicity da
noite anterior, a imagem de uma Felicity sedutora, talentosa e
educada, que não o largava desde então. Em vez disso concentrou-
se na Felicity egoísta e mimada. E então lembrou-se do som
daquela corneta de caça.
Ela não seria capaz... ou seria? A meio de uma fuga? Duvidava
que Felicity estivesse naquele estado de espírito de pura felicidade
em que o mundo parece ter perdido a batalha com o amor. Era uma
aposta. Mas uma aposta que ele decidiu fazer. Virou as montadas
para trás e tomou o caminho de regresso a Barnet.
A noite caía com pressa e ele tentou identificar os pontos de
referência de ambos os lados da estrada. Agora desejava ter
assinalado aquele buraco. Mas tinha reparado que, na direção que
tomara anteriormente, havia um estranho salgueiro retorcido mesmo
à frente na estrada.
Assim que virou numa curva, viu o salgueiro, delineado contra o
céu roxo esverdeado e então viu uma carruagem tombada no
buraco. A figura de um homem inclinado a cortar os tirantes
enquanto outro acalmava os cavalos que se empinavam. O homem
mais magro e mais baixo levou os cavalos para a beira da estrada,
afastando-os do buraco.
O marquês freou os cavalos, amarrou-os a uma cerca e
aproximou-se. O homem mais magro disse de repente ao mais forte
com uma voz muito feminina:
– Não me venha com sermões, Bremmer.
– É tudo culpa sua – soou a voz angustiada de Lord Bremmer. –
Tinha de tomar as rédeas e conduzir como uma louca a rasar o
buraco! Bolas!
– Eu sei conduzir a grande velocidade – uivou Felicity ferozmente
–, mas nem o próprio John Lade2 teria escapado desse buraco no
meio desta escuridão.
O marquês precipitou-se na direção de Felicity e agarrou-a por
trás pela cintura num aperto forte. Ela gritou e contorceu-se, lutando
para se libertar até que ele lhe deu uma pancada na nuca e lhe
disse para ficar quieta.
– Agora, Bremmer – comandou o marquês –, vão entrar os dois
para a minha carruagem e acompanhar-me à estalagem mais
próxima até eu descobrir como podemos manter esta vossa
escapadela em segredo.
Levou Felicity presa pelos braços atrás das costas para o seu
faetonte, gritando por cima do ombro para Lord Bremmer:
– Deixe os malditos cavalos em paz. Já mandamos um moço de
estrebaria vir tratar deles.
Felicity parou de lutar e sentou-se, amuada, ao lado do marquês.
Lord Bremmer subiu e sentou-se ao lado dela.
– Ravenswood – começou ele em tom elevado –, devo explicar...
– Nem uma palavra até chegarmos a Barnet – cortou o marquês,
fazendo a sua parelha de cavalos contornar o buraco e a carruagem
caída.
Na estalagem, pediu uma sala privada e, em seguida, fez o casal
culpado subir as escadas à sua frente.
Depois de ser trazido vinho, o marquês dispensou os criados da
estalagem antes de iniciar a preleção num tom monocórdico:
– Muito bem, Bremmer, uma vez que poderia ter casado com ela
na igreja, assumo que a fuga deve ter sido ideia dela.
Lord Bremmer assumiu uma posição corajosa, embora, de
coração apertado, já desconfiasse que tudo o que Felicity lhe
contara era um monte de mentiras.
Sem olhar para Felicity, respondeu:
– Ela disse-me que vossa senhoria a queria para si.
O marquês lançou um olhar desdenhoso a Felicity, ainda vestida
com roupas de homem.
– Deve estar louco – revidou. – O meu noivado com Miss
Andrews acaba de ser anunciado.
– Lady Felicity disse que isso aconteceu pelo facto de ela ter
rejeitado os seus avanços – explicou Lord Bremmer, corando até à
raiz dos cabelos. Contrapôs um olhar suplicante à expressão dura
do marquês. – Bem, foi o que ela disse e disse também que,
embora fosse casar com Miss Andrews, tinha jurado que nenhum
outro homem poderia tê-la e dado instruções às irmãs para recusar
qualquer proposta.
O marquês tomou um gole de vinho e recostou-se na cadeira. Os
seus olhos brilhavam à luz das velas.
– E ainda acredita nisso? – perguntou em voz baixa.
Lord Bremmer bateu na mesa.
– Não, com a breca! – exclamou. – Nem numa palavra.
– Então – continuou o marquês com uma voz enganadoramente
suave – talvez seja mais cauteloso no futuro e aceite o que a sua
mulher diz com um pé ligeiramente atrás.
– Mulher? – A boca de Lord Bremmer abriu-se de espanto.
– Sim, mulher. Vai casar-se com ela na igreja com a bênção dos
seus pais depois de pedir permissão formalmente tanto às irmãs
Tribble como a Lady Baronsheath para cortejar Lady Felicity. Que é
o que deveria ter feito logo à partida. Este triste episódio será
abafado. Estou a fazer-me entender?
– Eu não posso casar-me com ela! – exclamou Lord Bremmer. –
Tem de me salvar dela, Ravenswood.
Felicity, até então sentada e cabisbaixa, levantou a cabeça de
repente e olhou para Lord Bremmer com uma expressão chocada
no rosto.
– Não seja estúpido – replicou o marquês. – Estava tão
apaixonado pela criatura que fugiu com ela.
– Mas eu não sabia como ela era – afligiu-se Lord Bremmer. – Oh,
meu Deus, acredite em mim, Ravenswood, ela era tão cativante, tão
feminina e tão encantadora que eu...
– E então, infelizmente, uma caça à raposa atravessou-se no seu
caminho – completou o marquês.
– Pois, sim, e ela transformou-se num demónio – continuou Lord
Bremmer. – Cavalgámos sem parar e ela gritava e clamava e
praguejava... Bom, eu nunca ouvi aquele tipo de linguagem. Mas foi
uma boa caçada e estávamos quase a apanhar a raposa quando ela
desapareceu. Amaldiçoei-a, mas separei-me do grupo de caça para
a procurar. Foi então que a vi! Eu vi o que ela fez.
– O quê? – perguntou o marquês, fitando Felicity com curiosidade,
cujo rosto se tornara vermelho como fogo.
– Ela tinha um arenque vermelho pendurado numa corda. Deve
tê-lo roubado da cozinha da estalagem. Arrastou-o pelo chão e, em
seguida, atirou-o para um pequeno bosque. Os cães farejaram o
arenque e quando finalmente o grupo de caça chegou ao bosque,
ela pôs-se atrás deles, com um ar totalmente inocente. Meu Deus! A
cara do mestre quando os cães saíram do bosque a lutar pelo
arenque! Eu quase morri de vergonha.
– Eu nunca fui capaz de suportar a matança – disse Felicity numa
voz sufocada.
– Fico feliz por ver que tem alguns sentimentos femininos, por
mais idiotas que sejam – comentou o marquês. – Não sabe o dano
que as raposas podem causar, sendo a menina uma jovem nascida
no campo?
Felicity baixou a cabeça.
– Depois – prosseguiu Lord Bremmer na sua história –, ela bebeu
uma garrafa de vinho do Porto e quando retomámos a nossa
viagem, insistiu em tomar as rédeas. Eu tentei impedi-la, mas ela
troçou de mim e obrigou-me a deixá-la fazer o que queria com a
ameaça de descer da carruagem e voltar a pé para casa.
– Vai ter muito tempo para a educar depois de casar com ela –
disse o marquês.
– Eu não vou casar-me com ela – reiterou Lord Bremmer. – Oh,
os meus pobres pais! Oh, pobre Marian, a pensar que eu a amava,
e eu desprezei-a, e tudo por causa desta maria-rapaz. Ravenswood,
eu imploro-lhe, por favor, não me obrigue a casar. Eu faço qualquer
coisa. Estou tão envergonhado. Por favor, vossa senhoria. Oh,
tenha piedade de mim.
Lord Bremmer deixou escapar um soluço sufocado e cobriu o
rosto com o lenço.
Felicity estava agora tão branca quanto antes ficara vermelha.
Tinha jurado mostrar ao marquês que um homem podia ficar louco
de paixão por ela. Mas tudo o tinha para lhe apresentar era um
rapaz quebrantado e à beira das lágrimas só de pensar em tê-la
como mulher.
Sentiu um nó na garganta, mas recusava-se a chorar. O pior já
tinha passado.
Contudo, Felicity estava enganada.
– Venha falar comigo amanhã, Bremmer e discutiremos melhor o
assunto – disse o marquês. – Por agora, vamos deixá-lo aqui para
que possa tratar da reparação da sua carruagem. Felicity, termine o
vinho e venha comigo.
Felicity teria gostado de protestar, mas tinha a certeza de que se
dissesse alguma coisa, perderia o autocontrolo e explodiria em
lágrimas.
As lágrimas vieram, finalmente, no caminho para casa. Mas, por
causa da escuridão, o marquês não se apercebeu, continuando a
falar incessantemente.
– E nunca pensou, Lady Felicity – dizia ele, na sua voz áspera de
fúria –, no destino de todas aquelas amas e precetoras que segundo
se diz conseguiu demitir? Afastadas da casa de uma família nobre?
E o que dizer das irmãs Tribble? Mas é inútil, mais vale poupar o
meu latim. Se pelo menos as irmãs Tribble ou a sua mãe me
dessem ouvidos! Aconselhá-las-ia a enviarem-na para um convento
na Bélgica e deixarem-na lá até lhe enfiarem à força alguma
sensatez nessa cabeça.
Felicity conseguiu finalmente falar.
– Nós não somos católicos – disse ela –, por isso essa conversa
de conventos é um disparate.
– Discutir sobre qualquer tipo de modificação da sua parte é uma
perda de tempo – disse ele com ímpeto. – A menina é uma
vergonha para o seu sexo.
Para alívio de Felicity, ele finalmente calou-se. Mas o alívio durou
pouco, pois o silêncio que se seguiu deu-lhe tempo para refletir
sobre os acontecimentos do dia, para lembrar o horror e a repulsa
no rosto de Lord Bremmer. Certamente era tudo culpa de outra
pessoa. Mas Felicity não conseguia pensar em nenhuma desculpa e
a vergonha corroía-a. Só lhe restava rezar para conseguir retirar-se
depressa para o quarto e para o abençoado esquecimento do sono.
Enquanto seguiam pelas ruas de Londres na carruagem
descoberta do marquês, Felicity sentia-se dolorosamente consciente
da sua aparência. Tinha a certeza de que toda a gente que olhasse
para ela saberia que ela era uma donzela vestida como um homem.
Ao circular pelas ruas de Mayfair, aproximaram-se de uma casa
onde decorria uma grande festa. Neste tipo de reuniões, era
tradição ter todas as cortinas das janelas abertas para trás. No
momento em que passavam junto à mansão, o marquês abrandou
para permitir que uma carroça carregada de barris de cerveja
atravessasse a rua. Felicity lançou um olhar discreto à casa. Um
grupo de pessoas encontrava-se em pé nos degraus, à espera das
suas carruagens. Uma das pessoas do grupo era Miss Betty
Andrews. Ela olhou diretamente para Felicity e para o marquês e os
seus olhos arregalaram-se. Felicity virou a cabeça e, naquele
momento, o marquês, já com o caminho livre, sacudiu as rédeas e a
carruagem arrancou.
Miss Andrews usava um vestido de lantejoulas e uma espécie de
toucado cintilante. O marquês não a tinha visto. Felicity não pôde
deixar de comparar a sua própria aparência com a de Miss
Andrews. Achou que devia avisar o marquês que tinham sido vistos
e assegurar-lhe que, caso Miss Andrews perguntasse, ela estava
disposta a jurar a pés juntos que quem ia na carruagem era o seu
irmão fictício.
Chegaram a Holles Street. Não valia a pena ter esperança de que
as irmãs se tivessem ido deitar. As janelas estavam iluminadas e,
assim que Felicity desceu da carruagem, a porta abriu-se e Effy e
Amy surgiram na entrada.
As lágrimas toldaram os olhos de Felicity. Ela passou pelas irmãs
e precipitou-se escadas acima para o quarto.
– Deixem-na ir – disse o marquês a Amy, que estava prestes a
seguir Felicity. – Amanhã é outro dia e logo se tratará de resolver as
coisas.
As irmãs aguardaram ansiosamente na sala de estar, enquanto o
marquês foi tratar de guardar os cavalos na cavalariça.
– Achas que há alguma esperança para nós? – perguntou Effy. –
Ele trouxe-a de volta, mas e o escândalo?
– Temos de esperar para ver – respondeu Amy, torcendo uma
prega do vestido com as mãos grandes. – Devíamos estar loucas
para pensarmos que Ravenswood pudesse sequer ver a rapariga
com bons olhos.
A porta da sala de estar abriu-se e o marquês entrou. Parecia
exausto e zangado. As irmãs azafamaram-se em redor dele,
fazendo-o sentar-se numa poltrona junto à lareira e inundando-o de
ofertas de vinho e bolo.
– Então? – perguntou Amy por fim. – Ainda temos emprego?
– Sim, eu acho que sim – respondeu o marquês, reclinando a
cabeça no encosto da poltrona e semicerrando os olhos. – Se o que
aconteceu hoje não a curar, então nada o fará.
– Mas o escândalo! – exclamou Effy.
– Acho que não haverá qualquer escândalo – asseverou o
marquês. – Bremmer está aterrorizado com a perspetiva de ter de
se casar com ela. Ouçam, vou contar-vos tudo.
As irmãs ouviram com espanto crescente a história da fuga, da
caçada e do acidente, assim como dos soluços aflitos de Bremmer à
ideia de ser obrigado a casar com Felicity.
– Mas quanto ao que tereis de conversar com ela amanhã, isso
eu não sei – concluiu o marquês.
– Eu vou falar com ela – disse Effy, decidida. – Ela merecia levar
umas boas palmadas!
Amy agitou os grandes pés, inquieta. Felicity tinha-se portado
vergonhosamente, era verdade, mas Amy não podia deixar de a
admirar. Devia ser maravilhoso comportar-se realmente mal uma
vez na vida, que fosse.
– Miss Andrews esteve cá – acrescentou Effy – e fez umas
perguntas muito estranhas: onde estava o senhor, onde estava a
Felicity, quando é que esperávamos o vosso regresso e assim por
diante; e Mrs. Andrews foi ainda pior, dizendo que o senhor deveria
ter ido pessoalmente apresentar as suas desculpas. Queria saber
por que razão está a viver nesta casa. Mrs. Andrews queria saber
uma série de coisas.
O marquês franziu o sobrolho.
– Eu espero que Mrs. Andrews perceba que, depois que eu casar,
não vou tolerar uma sogra a meter-se na minha vida
constantemente. Meu Deus, estou tão cansado.
O marquês levantou-se. Effy observou-lhe os ombros largos, o
rosto bonito, os braços e pernas compridos e deixou escapar um
leve suspiro, batendo as pestanas sedutoras. Ele sorriu e beijou-lhe
a mão, fazendo-a soltar um risinho e corar, diante do olhar
carrancudo de Amy.
Depois de Effy se ter ido deitar, Amy ficou sentada ao toucador a
escovar o cabelo e a perguntar-se o que fazer com Felicity. Por fim,
atirou com a escova e, vestindo um penteador sobre a camisa de
noite, pegou numa vela, foi até à porta do quarto de Felicity e pôs-se
à escuta.
Estava prestes a dar meia-volta quando ouviu um soluço
estrangulado vindo do quarto. Decidida, abriu a porta e entrou.
Felicity estava deitada de bruços na cama, ainda vestida com a
roupa de homem.
Amy pousou a vela na mesa de cabeceira e puxou uma cadeira.
Pegou numa das mãos de Felicity e apertou-a com firmeza.
– Pronto, pronto – disse Amy, como se estivesse a tentar acalmar
um cavalo assustado. – Firme, menina.
Felicity levantou um rosto marcado e angustiado da almofada.
– O Bremmer implorou para não ter de se casar comigo – disse
ela.
– Bem, a menina pregou-lhe um grande susto – argumentou Amy.
– Os cavalheiros são muito românticos, sabe, e ficam muito
aborrecidos quando uma jovem insiste em participar de uma caçada
a meio de uma fuga. Aconteceu-me uma coisa parecida, certa vez.
Promete que não conta a ninguém?
Muda, Felicity balançou a cabeça em concordância, a surpresa
secando-lhe os olhos. Soltou a mão da de Amy e virou-se,
apoiando-se de costas.
– Foi há muito tempo – suspirou Amy. – Um certo senhor,
chamado Mr. Peterson, mostrou interesse em mim e pediu
permissão ao meu pai para me levar num passeio a Richmond.
Estava um lindo dia de sol e quanto mais nos afastávamos de
Londres, mais livre eu me sentia. Eu nunca tinha andando numa
carruagem a tanta velocidade, percebe, por isso implorei-lhe para
conduzir cada vez mais depressa, até parecer que voávamos.
Nunca antes me tinha sentido tão feliz ou tão livre. Era como se
estivesse embriagada. Comecei a cantar a plenos pulmões. Eu
estava tão feliz que nem me apercebi do que estava a cantar. Era
uma canção de caça muito grosseira. Eu tinha ouvido os moços a
cantá-la na estrebaria e achei-a muito divertida, além de ter
aprendido palavras novas para chocar a Effy. Resumindo a história,
o que aconteceu foi que o deixei profundamente desgostoso, e eu
sentia-me muito atraída por ele, sabe? Muito. Nunca chegámos a
Richmond. Ele simplesmente fez inversão de marcha e regressou a
Londres. Supliquei-lhe que me dissesse o que tinha acontecido,
embora eu soubesse muito bem o que fora. Ele não disse uma
palavra, limitou-se a levar-me para casa, ali me despejou e a vez
seguinte que me encontrou, fez de conta que não me conhecia.
Chorei como uma Madalena. Perceba uma coisa, Felicity, está tudo
muito bem quando são os cavalheiros a ir para a pândega ou a cair
de bêbados ou a quebrar todas as janelas de Bond Street com os
seus chicotes; mas para nós, tudo deve ser decoro. Contudo há
casamentos, sabe, onde o marido permite à mulher bastante
liberdade, mas, para garantir essa liberdade, primeiro temos de
jogar de acordo com as regras da sociedade e certificarmo-nos de
que o cavalheiro em questão se apaixona profundamente por nós.
Entende?
Felicity assentiu, e então disse:
– Porque não está a ralhar comigo?
– Por causa do que fez? – Amy encolheu os ombros. – Deus do
céu, não sei. Talvez seja porque todo o seu mau comportamento me
desperta uma certa solidariedade no coração. Mas a menina não me
pode tratar a mim e a Effy como inimigas. O que estariam os seus
pais a pensar, quando não a educaram mais cedo?
– O papá não queria uma menina – explicou Felicity. – Ele queria
um filho, e eu tentei ser o tipo de filho que ele desejava. Quanto
mais selvagem me tornava, mais ele me admirava, e eu achava que
o estava a compensar pelo facto de não ter um rapaz.
– Mas ser mulher pode ser muito divertido – disse Amy, embora,
ao mesmo tempo, se perguntasse que diversão poderia haver em
levar uma vida tão coartada. – Quando sinto que não consigo lidar
com alguma coisa, finjo que sou uma atriz a representar um papel. A
partir de agora, por exemplo, porque não finge que é uma mulher
encantadora e bela, capaz de levar os homens à loucura e pratica
as suas artimanhas com Ravenswood?
Felicity estremeceu.
– Ele foi ainda pior do que Bremmer – respondeu ela. – Eu odeio-
o.
– Mais uma razão para o provocar um pouco, penso eu –
argumentou Amy. – Oh, eu não gosto nada daquela Miss Andrews.
– Ela viu-me – disse Felicity com ar infeliz.
– Com mil demónios! Quando?
Felicity contou-lhe.
– Temos de advertir Ravenswood – disse Amy. – Mas por agora
vamos prepará-la para dormir. Onde está a Wanstead?
– Eu disse-lhe para se ir embora.
– Bom, eu tenho a certeza de que é perfeitamente capaz de se
deitar sozinha – afirmou Amy, levantando-se e dirigindo-se para a
porta. – Amanhã tente ser uma boa menina e eu vou tentar garantir
que tudo continua como se nada tivesse acontecido.
Sentindo-se reconfortada, Felicity, depois de Amy sair, lavou-se e
vestiu uma camisa de noite. Deitou-se e adormeceu quase de
imediato, mergulhando num pesadelo em que todas aquelas
precetoras e amas despedidas a rodeavam em círculo com pedras
nas mãos, prontas a apedrejá-la até à morte.

2 Sir John Lade, 2.º baronete, foi um membro proeminente da sociedade britânica
durante o período da Regência notabilizando-se pela criação de cavalos de corrida,
sendo ele próprio um exímio cavaleiro. (N. da T.)
Senhoras de uma certa idade

Significa idade incerta.

LORD BYRON, DON JUAN

Amy informou Effy de que Felicity tinha sido longa e devidamente


repreendida e que deixasse o assunto em paz.
Effy, depois de ter andado às voltas na cama a maior parte da
noite, ensaiando o sermão terrível que ia dar a Felicity, sentiu-se
enganada e insistia em dizer que tinha a certeza de que Amy tinha
sido demasiado branda.
Mas o comportamento de Felicity logo a silenciou. Nem Amy teria
sonhado com o momento em que Felicity pedisse desculpa pela sua
conduta. Mas pediu, e numa voz tão baixa e trémula que o coração
de Effy se derreteu e ela deu à jovem um abraço impulsivo e disse-
lhe para esquecer tudo e que o melhor era recomeçar tudo do zero.
– Tenho notado que ainda não aprendeu a bela arte de receber
alguém para o chá – disse Effy num tom revigorante. – Sente-se ali,
Felicity, eu vou mostrar.
Enquanto Effy aguardava que trouxessem a mesinha de chá com
o bule, a chaleira e tudo o mais necessário e mostrava a Felicity
como aquecer a água, como deixar as folhas de chá em infusão
durante dez minutos antes de deitar a água a ferver e como segurar
a chávena e o pires, Amy ficou livre para concentrar a sua mente em
coisas mais interessantes, e uma das coisas mais interessantes
para esse dia era a visita de Mr. Haddon. Tinha muitas coisas
emocionantes para lhe contar e estava decidida a que, desta vez,
Effy não se antecipasse.
Às três horas daquela mesma tarde Mr. Haddon estava
confortavelmente sentado ao lado da bandeja de chá. Felicity
encontrava-se ao piano a tocar baixinho uma melodia um pouco
sombria; o marquês estava recostado numa poltrona, observando-a,
pensativo. Achou que devia alegrar-se com o comportamento
esmaecido e tranquilo que ela exibia, mas não conseguia deixar de
desejar irracionalmente que parte da antiga Felicity viesse à tona.
Perguntou-se o que estaria ela a tocar à medida que aquela
musiquinha triste se imiscuía lentamente no seu cérebro. Effy
conversava com Mr. Haddon, atirando-lhe olhares sedutores e
agitando o leque.
Ouviu-se um som de passos na escada.
– Deve ser Amy – disse Effy alegremente.
Mas em vez dela, Miss Andrews e a mãe entraram na sala.
O marquês pensou com deslealdade que, se estivesse a viver na
sua casa da cidade, as Andrews não poderiam tê-lo visitado da
mesma forma que podiam fazer com as irmãs Tribble, onde ele era
um simples hóspede. Felicity parou de tocar e levantou-se para
fazer uma reverência. Ela usava um vestido de musselina branca e
por cima um xaile de caxemira muito delicado em tons dourados e
vermelhos disposto por cima de um ombro e amarrado na cintura.
Os delicados xailes de caxemira eram muito cobiçados, e os belos
olhos de Miss Andrews estreitaram-se um pouco ao olhar para
Felicity.
– Por favor, continue a tocar, Lady Felicity – pediu Effy, depois de
os convidados estarem instalados e mais chávenas de chá e bolos
terem sido trazidos. Effy sentia orgulho da mestria de Felicity.
Grata, Felicity voltou para o piano.
– Onde esteve ontem, Ravenswood? – ouviu ela Mrs. Andrews
perguntar.
– Tive uns assuntos a resolver – respondeu o marquês.
– Nós vimo-lo ontem à noite – disse Betty Andrews num tom
bastante estridente. – Tínhamos acabado de sair da festa dos
George e estávamos nas escadas da entrada quando passou com
Lady Felicity e ela estava vestida com roupas de homem!
Felicity obrigou-se a continuar a tocar.
– Está a ser injusta com Lady Felicity – retorquiu o marquês. –
Porque artes estaria ela vestida com roupas masculinas? Eu estava
apenas a fazer o favor de trazer o réprobo do primo dela de volta
para a cidade. A semelhança familiar é impressionante, eu admito.
Betty Andrews sorriu e atirou à mãe um olhar reprovador que dizia
«Eu não lhe disse?».
– Por favor, perdoe-nos – pediu Betty. – Mas, como diz, a
semelhança é impressionante. Eu disse à mamã que era
provavelmente algum parente de Lady Felicity, mas ela insistiu em
ter outra opinião.
– Pois, isso é tudo muito bonito – interveio Mrs. Andrews de
rompante –, mas todos nós somos vítimas dos pasquins expostos
nas tipografias.
O marquês ficou tenso. Teria Bremmer falado? As tipografias
eram famosas por fazerem os artistas trabalhar a noite inteira, se
necessário, a fim de satirizar a última vítima o mais rapidamente
possível.
– O que dizem? – perguntou.
– Chamam a esta casa «o harém de Ravenswood» e dizem que o
senhor tem tendências turcas nos seus gostos, preferindo mulheres
mais velhas.
O marquês deu uma gargalhada, tanto de alívio como de
divertimento.
– Se isso é tudo o que eles têm a dizer, deixe que falem –
declarou ele.
– Mas tem de admitir que tudo parece muito estranho –
prosseguiu Mrs. Andrews, um tom agudo e queixoso a pairar-lhe na
voz. – O senhor tem uma excelente casa na cidade que...
– Que eu arrendei para a temporada – concluiu o marquês num
tom lacónico.
– Não continue, mamã – pediu Betty com urgência, vendo a
irritação aumentar no rosto do marquês. – Lord Ravenswood tem
toda a razão. Não há necessidade de fazer uma tempestade num
copo de água. Os autores dos pasquins logo vão encontrar outro
assunto com que se entreter. Vamos falar de outras coisas. Vemo-lo
no teatro amanhã?
– Infelizmente, não posso – respondeu o marquês. – Vou ao baile
de abertura do Almack’s.
Betty Andrews enrubesceu. Ela não tinha recebido os vales de
acesso ao famoso salão de festas e ainda sofria por ter sido
desprezada. As austeras patronas do evento poderiam ter cedido e
ela recebido os vales após o seu noivado com Ravenswood não
fosse Mrs. Andrews ter encontrado no parque a condessa Lieven,
uma das déspotas mais severas do salão de festas, e importunado a
senhora, que obviamente se regozijou em dar a Mrs. Andrews uma
magnífica descompostura.
– Admira-me que vá, Ravenswood – comentou Mrs. Andrews,
erguendo as sobrancelhas. – Porque vai? Como sabe, a minha
pobre Betty foi vergonhosamente ignorada.
– Prometi a vários amigos que estaria lá, só isso – respondeu o
marquês tentando acabar com o interrogatório e desejando
secretamente não ter cedido aos apelos das irmãs para acompanhar
Felicity e certificar-se de que a jovem era bem aceite e que o debute
na sua primeira temporada era um verdadeiro sucesso.
Betty sentia-se péssima. Desejava que Felicity parasse de tocar e
se virasse. Havia algo de exasperante naquela mestria com que
tocava e na elegância das costas voltadas para os presentes.
Então a porta abriu-se e Amy entrou. Mrs. Andrews abafou o riso.
Betty ficou a olhá-la de olhos arregalados. Effy lamuriou-se. Felicity
parou de tocar e virou-se.
Amy apresentava um ar grotesco.
Havia obrigado Yvette a fazer-lhe um vestido de musselina fina
com mangas em balão e folhos, um vestido mais adequado para
uma donzela adolescente do que para uma senhora de idade
incerta. O cabelo de Amy fora frisado, abrilhantado e ornamentado
com flores; os braços ossudos pendurados inutilmente ao lado do
corpo, as luvas curtas, revelando cotovelos que mais pareciam
raladores de noz-moscada.
– Mas o que é que tu fizeste?! – exclamou Effy, em estado de
choque.
Os grandes pés de Amy, calçados com chinelos de seda cor-de-
rosa que batiam penosamente na planta do pé ao cruzar a sala; ela
olhou para o espelho por cima da lareira, que tinha substituído o
retrato arruinado. A luz do sol inundava o aposento, mostrando a
Amy com toda a crueldade o próprio rosto cansado e marcado de
rugas emoldurado pelo penteado ridículo de cabelo frisado e flores.
O que parecera atraente no lusco-fusco da luz das velas do seu
quarto parecia agora grotesco à luz resplandecente do sol. Como
muitas mulheres da sua idade, Amy nunca se arranjava ou penteava
com as cortinas abertas para trás, considerando que a luz mais
suave das velas oferecia uma imagem mais lisonjeira de si mesma
para manter durante o dia. Um rubor feio manchava-lhe o rosto, e
ela virou-se e olhou para Mr. Haddon como um velho cachorro que
acabou de ser castigado.
– Está muito bonita, Miss Amy – elogiou Felicity em tom límpido –,
mas acho que está a faltar-lhe um certo toque. Ela desprendeu e
desamarrou o grande xaile de caxemira que lhe cobria o vestido e
foi ter com Amy. – Agora – continuou Felicity –, basta desprender
todas estas flores... assim... e colocar o xaile... assim... – Ela pôs o
xaile de cores vivas sobre os ombros de Amy como um manto e
prendeu-lho à cintura.
O xaile de cores gloriosas e bárbaras cobria a maior parte do
vestido de Amy. O padrão incandescente do xaile e da pesada franja
dourada conferiu-lhe de imediato dignidade e estilo. Foi uma jogada
de mestre.
Mr. Haddon levantou-se de um pulo.
– Eu trouxe comigo da Índia vários xailes finos, Miss Amy – disse
ele. – Vou mandar-lhos para que possa escolher aquele de que mais
gostar. Confesso que nunca vi uma senhora capaz de usar a moda
tão bem.
Desta vez, Amy corou de prazer. Sentou-se ao lado de Mr.
Haddon e começou a conversar.
O marquês foi ter com Betty e levou-a até à janela.
– Peço que me perdoe – disse ele –, mas realmente prometi às
irmãs Tribble ajudar no debute de Lady Felicity levando-a ao
Almack’s.
Betty mordeu o lábio.
– Mas isso vai parecer muito estranho – protestou ela.
– Eu não penso assim. Qualquer um pode ver que não tenho
qualquer tipo de interesse na rapariga.
Betty sorriu timidamente e ele deu-lhe um aperto consolador na
mão. Ela sentiu-se mais tranquila, contudo não gostara de ver a
centelha calorosa que surgira nos olhos do marquês quando Felicity
colocou o xaile sobre os ombros de Amy Tribble.
Betty desejou sentir-se mais à vontade com o noivo. O pai era um
fidalgo rural muito rico que tinha feito fortuna comprando uma
rentável plantação de açúcar nas Índias Ocidentais. A família dela
pertencia à pequena nobreza, não à aristocracia, e era muito
honrada e sóbria no seu modo de viver. Conquistar o marquês tinha
sido um grande triunfo, e esse triunfo tinha suplantado o amor ou a
paixão. Mas, pela primeira vez, Betty começou a perguntar-se como
seria a vida depois de se casarem. O marquês era herdeiro de um
ducado. O pai dele era o duque de Handshire. A ideia de ser
duquesa um dia parecera-lhe um conto de fadas. Mas agora Betty
punha-se muitas vezes a imaginar como seria ter de comandar o
complicado funcionamento de um paço ducal e de todo um exército
de criados. O pai sempre preferira criadas, camponesas rijas que
não eram nem um pouco intimidantes. Na província, Betty sentia-se
segura da sua posição social. Sabia ser a donzela mais bonita num
raio de muitos quilómetros e uma herdeira muito rica. Mas em
Londres as coisas eram diferentes; a riqueza da família garantia-lhe
a entrada na maioria dos lugares, mas não todos. Betty achou que o
mundo era muito injusto para que uma maria-rapaz como Felicity
pudesse ter direito a vales para o Almack’s e ela não.
– Lord Bremmer – anunciou o mordomo.
Betty notou o repentino olhar aflito no rosto de Felicity e a rápida
troca de olhares entre as irmãs e pensou que algo não estava bem.
– O que o traz aqui, Bremmer? – perguntou o marquês
bruscamente.
– Vossa senhoria pediu-me que viesse – respondeu Lord
Bremmer, enrubescendo.
– Tinha-me esquecido – justificou o marquês. – Havia um assunto
a discutir, não é assim? É melhor adiar para outra altura.
Em seguida, apresentou-lhe a noiva e Mrs. Andrews.
– Mas nós já nos conhecemos! – exclamou Betty.
– Nã... não me parece – gaguejou Lord Bremmer, olhando com
perplexidade para o belo rosto que o encarava. – Seria impossível
de esquecer.
– Tínhamos ambos dez anos na época. – Betty riu-se. – Os meus
pais estavam hospedados em casa de uns familiares perto da sua
casa e o papá decidiu fazer uma visita e conhecer a vossa casa e
jardins. Eu afastei-me e subi a uma macieira, mas fiquei presa e
gritei por socorro e foi o senhor que me salvou.
– Valha-me Deus! Pois fui! – exclamou Lord Bremmer, lembrando-
se daquele dia ensolarado e da menina rechonchuda que chorava
tristemente num ramo da macieira.
Sentaram-se ao lado um do outro e começaram a conversar como
velhos amigos.
O marquês foi até o piano. As mãos de Felicity hesitaram nas
teclas.
– O que está a tocar? – perguntou.
– É uma composição minha.
– Impressionante!
– Mas não estou a conseguir avançar.
– É encantadora tal como está. Claro, poderia sinfonizá-la,
acrescentando um monte de acordes e floreios na mão esquerda.
Veja, assim. – Ele sentou-se ao lado dela no comprido banco do
piano. – Toque a melodia e eu adiciono o drama.
Felicity começou a tocar e ele acompanhou com acordes e
cadências elaborados. Felicity desatou a rir. – Devíamos dar um
espetáculo no Argyle Rooms – disse ela. – Veja, agora podemos
cruzar as mãos em grande estilo.
O marquês riu-se também e inclinou-se sobre ela, o braço
roçando-lhe o seio, a anca encostada à dela no banco do piano. Os
dedos dele de repente tropeçaram nas teclas.
– Não posso tocar mais – disse ele.
Levantou-se e afastou-se.
Subitamente, Felicity sentiu frio. Ficou ali sentada uns momentos
com os dedos a descansar nas teclas. Em seguida, ergueu as mãos
e começou a tocar um andamento de Bach com grande verve e
estilo.
O duque e a duquesa de Handshire estavam sentados a discutir o
futuro casamento do filho e a concordar que era a primeira vez que
ele lhes causava preocupação. O marquês tinha herdado as
propriedades e a fortuna de uma tia, o que o tornara independente
dos pais. Ambos tinham lamentado a perda de controlo sobre o filho,
mas ficado agradavelmente surpreendidos quando viram que ele
continuara a levar uma vida bastante tranquila, respeitável e
esforçada. Eles nunca iam à cidade, preferindo que o mundo
chegasse até eles.
Então chegou a carta do marquês a anunciar-lhes o noivado e
agora uma carta do velho Lord Chumley, informando-os de que
Ravenswood partilhava a residência com um casal de solteironas,
habitando sob o mesmo teto que a selvagem e bela Lady Felicity,
que toda a gente considerava ser muito estranha.
O duque e a duquesa também achavam tudo muito estranho.
– Essa tal menina Andrews não é do nosso nível – disse a
duquesa, finalmente. – Uma noiva da mesma posição social nunca
teria permitido que um tal estado de coisas se perpetuasse. Ele não
pode casar-se com essa rapariga.
– Mas não temos qualquer poder sobre o Charles – argumentou o
duque, sendo Charles o nome próprio de Ravenswood.
– Se ele visse a menina Andrews neste ambiente, logo perceberia
estar prestes a casar-se abaixo da sua condição – continuou a
duquesa. – Há tanto tempo que ele não nos visita que se esqueceu
de como é este lugar. Esquece-se da responsabilidade do que vai
herdar um dia. Vamos convidá-los a todos para virem cá: essas
duas solteironas, as irmãs Tribble, Miss Andrews e Lady Felicity.
Quando ele as vir a todas no contexto da casa da família, num
instante muda de ideias.
Nessa noite, Amy e Effy deveriam levar Felicity a um concerto no
Argyle Rooms. Mas Felicity foi atacada por uma fortíssima dor de
cabeça. Desde manhã que lhe ameaçava ao de leve a zona das
têmporas, mas quando as Andrews saíram, a dor explodiu com toda
a força. Alarmada, Amy teria decidido ficar em casa, mas Felicity
disse em voz fraca que tudo o que queria era deitar-se e ficar
sozinha. Effy estava ansiosa para ir ouvir o mais recente soprano e
Mr. Haddon também ia, por isso Amy foi facilmente persuadida a
deixar Felicity aos cuidados da criada pessoal. Assim que as irmãs
saíram, Felicity dispensou Wanstead, dizendo que se pudesse ser
deixada completamente sozinha e sem qualquer ruído à volta, tinha
a certeza de que a dor de cabeça desapareceria.
Assim que ficou sozinha, foi exatamente o que aconteceu. A dor
de cabeça desapareceu milagrosamente, deixando Felicity bem
acordada e estranhamente inquieta. Os eventos do dia anterior
pareciam-lhe agora um sonho mau e a Felicity que fugira com Lord
Bremmer, uma pessoa completamente diferente. Pensou no
marquês de Ravenswood e tentou sentir algum do ódio que lhe
dedicara no dia anterior, mas tudo o que sobrara era curiosidade
sobre aquele homem, capaz de ser bruto num minuto e no seguinte
tão inesperadamente amável.
Levantou-se e vestiu-se, desejando agora ter ido ao concerto.
Saiu do quarto com todo o vagar, tentando decidir se descia até à
sala de estar e passava o resto do serão a praticar piano. Hesitou
no corredor, prestando atenção ao silêncio da casa. Uma candeia
num suporte ao fundo do corredor tremeluzia na porta fechada do
quarto do marquês. Que tipo de homem era ele, perguntou-se. Seria
interessante ir dar uma espreitadela ao quarto e coscuvilhar um
bocadinho. Não haveria mal nenhum nisso. Pelo silêncio da casa,
concluiu que os criados já se haviam recolhido aos seus aposentos.
As irmãs Tribble não esperavam que os criados ficassem sentados à
espera delas, nem mesmo Baxter, a criada carrancuda.
O marquês de Ravenswood estava deitado na banheira em frente
à lareira do quarto, a ler um livro. Não ergueu o olhar quando a porta
se abriu suavemente, assumindo que o criado tinha voltado, embora
o marquês lhe tivesse dito para não vir até que o chamasse.
Felicity não viu o marquês. Não esperava que ele estivesse lá, por
isso nem sequer olhou na direção da lareira, indo até ao toucador e
examinando os objetos ali dispostos. Havia escovas com cabo em
prata e uma caixa de joias aberta, expondo anéis, alfinetes, sinetes
e correntes para o relógio. Havia também um relógio de ouro, boiões
de brilhantina e uma pilha de cartas.
O marquês levantou os olhos do livro e viu Felicity pegar na carta
do topo e começar a lê-la.
Levantou-se, saiu do banho e foi até onde ela estava, exatamente
no momento em que ela deu meia-volta, o choque estampando-se-
lhe no rosto ao ver o marquês nu e a pingar água.
Ela deixou escapar um gritinho quando ele a agarrou pelo braço.
– Que diabo pensa que está a fazer? A espionar-me? A ler as
minhas cartas? – rosnou ele, sacudindo-a.
– Eu pensei que era o quarto de Miss Amy – mentiu Felicity.
– Não pensou coisa nenhuma!
– O senhor está nu – disse Felicity, fechando os olhos.
– Pois estou. Sabe o que lhe pode acontecer se se puser a
deambular pelos quartos de cavalheiros?
Felicity estava farta de se sentir culpada.
– Não – respondeu ela, irritada, abrindo os olhos e fitando-o com
ar desafiador.
– Isto – disse ele, puxando-a para si.
Felicity estava chocada de mais para gritar ou protestar. Aquele
corpo quente, nu e molhado estava firmemente pressionado contra
o dela. Ela podia sentir a água atravessar-lhe a fina musselina do
vestido. Era uma jovem alta, mas ele era mais alto ainda. Os olhos
dele brilharam de malícia à luz das velas. Um lenho caiu na lareira
fazendo subir as chamas e o corpo molhado dele refulgir rubro à luz
das chamas dançantes.
– Por favor, deixe-me ir – pediu Felicity com dignidade.
Mas a sua boca tremia, aquela boca considerada demasiado
generosa para a moda vigente, mas que prometia mais paixão do
que qualquer botão de rosa coquete.
Ele baixou a cabeça e beijou-a, a boca firme e refrescante na
dela. O choque manteve-a passiva nos seus braços. Os lábios dele
incendiaram-se e, de repente, Felicity e o marquês fundiram-se no
calor e na humidade dos corpos. Com esforço heroico, o marquês
emergiu de um mar escaldante de paixão para descobrir que estava
vergonhosamente excitado e que, se a soltasse, ela o veria naquele
estado, correndo o risco de a deixar completamente desorientada.
Claro, ela podia senti-lo, mas, nesse caso, ele só podia esperar que
ela fosse demasiado inocente para saber o que era. Sentindo-a
tremer e agitar-se nos seus braços, ele lançou um olhar urgente por
cima do ombro, vendo uma toalha felpuda pendurada num cabide
perto do fogo. Mantendo o abraço, valsou com ela até lá, soltou-a,
girou nos calcanhares, pegou na toalha e atou-a à cintura.
– Saia daqui! – bramiu.
E Felicity correu dali para fora.
Ela trancou-se no quarto e foi sentar-se perto do fogo, abraçando
o corpo trémulo e ardente. Precisou de bastante tempo para
conseguir acalmar-se.
Mas quando conseguiu, um pequeno sorriso começou a curvar-
lhe os lábios.
Porque o marquês de Ravenswood mostrara um comportamento
tão chocante como o dela. Isso serviu-lhe de consolo durante algum
tempo, até se lembrar da sensação dos lábios dele e da sensação
do corpo rígido contra o dela.
Levantou-se e foi ver-se ao espelho, observando o cabelo
desgrenhado e os lábios estranhamente inchados.
– Galdéria! – disse Lady Felicity, insultando ferozmente o próprio
reflexo. – És uma completa galdéria!

– Já reparaste que existe uma certa atmosfera estranha nesta


casa? – perguntou Amy, andando, impaciente, de um lado para o
outro.
– Não – respondeu Effy, irritada. – Tens uma imaginação muito
fértil, Amy.
As irmãs estavam na sala de estar à espera que Felicity descesse
para irem para o Almack’s. Effy estava furiosa com a aparência de
Amy. A irmã finalmente rendera-se aos desejos de Yvette e usava
uma das criações da costureira francesa. Era um vestido de brocado
verde e dourado, habilmente enfeitado com uma franja dourada que
dava a Amy a impressão de ter realmente um busto que não tinha e
ancas, que também não tinha. Na cabeça usava um turbante de
tafetá dourado ornamentado com um alfinete de topázio. Ficava com
um ar muito imponente e Effy sentiu uma pontada de ciúmes. Effy
usava um vestido de seda fina, cor-de-rosa, tendo insistido para que
Yvette confecionasse o vestido segundo o design dela, Effy. Tinha
umas manguinhas em balão, das quais os braços de Effy saíam
como hastes pálidas. Na cabeça trazia uma peruca cor de avelã que
a fazia parecer muito mais velha do que a sua habitual nuvem de
cabelos prateados.
Amy serviu-se de um copo de vinho do Porto, que bebeu de um
só gole.
– Digo-te uma coisa, Effy – insistiu ela –, algo aconteceu ontem à
noite enquanto estávamos para o concerto. Esta tarde, quando
íamos a sair com a Felicity para dar um passeio de carruagem,
cruzámo-nos com Ravenswood que a olhou com extremo
desconforto e a Felicity corou até à raiz dos cabelos, mas o corpo
dela pareceu ficar todo suave e dócil. Não estou a gostar nada da
história. Ela ainda não está domada, nem de perto nem de longe, e
se Ravenswood se atravessa nos nossos planos e lhe põe as mãos
em cima, nunca lhe perdoarei.
– Lord Ravenswood nunca sonharia em fazer uma coisa dessas –
afligiu-se Effy.
– O cavalheiro mais respeitável do mundo faz qualquer coisa
assim que lhe são despertadas as paixões – disse Amy. – Olha o
caso do Byron e de Lady Caroline Lamb.
– Lord Ravenswood não é um poeta. Os poetas não são de fiar –
revidou Effy com afetação. – Chiu! A Felicity está a chegar.
Mas foi o Marquês de Ravenswood que entrou na sala. Estava
muito elegante de casaca preta e calças de seda também pretas. O
plastrão fora dobrado num desenho intrincado e uma grande safira
brilhava entre as dobras de neve. O cabelo loiro brilhava como
guinéus recém-cunhados. Enquanto ele caminhava até à lareira,
Amy observou-lhe a ondulação dos músculos rijos das coxas,
revelados pelas calças apertadas, e soltou um leve suspiro.
– Onde está a rapariga? – perguntou o marquês. – Quero
despachar esta noite o mais depressa possível. Nunca devia ter
prometido ir. Miss Andrews ficou bastante aborrecida por a ter
abandonado.
– Mas foi muito gentil da sua parte – elogiou Effy –, porque se
dançar com a Felicity, irá torná-la o centro das atenções.
– Duvido que eu tenha o poder de um Brummell – disse ele com
um sorriso relutante. – Mas onde está essa criança cansativa?
Effy lançou um olhar triunfante a Amy. Nenhum homem
interessado numa mulher se referiria a ela como uma criança
cansativa.
A porta abriu-se e Felicity entrou.
Effy notou o olhar velado e absorto no rosto do marquês e
imediatamente sentiu o desânimo no coração. Decidiu ter uma
conversinha com Mademoiselle Yvette. Havia limites para o talento
com a agulha. Felicity usava um vestido de seda rosa pálido com
uma sobreveste de tecido cor-de-rosa bordado a ouro. O corpete
tinha sido habilmente cortado para revelar o profundo V entre os
seios perfeitamente arredondados de Felicity. Fora desenhado ao
novo estilo curto, deixando revelar vislumbres tentadores de
tornozelo. A grande massa de cabelo negro tinha sido penteada em
estilo romano e ornamentada com rosinhas de seda. Ela até andava
de maneira diferente. Os movimentos quase desajeitados e
abruptos que exibira quando chegara a Londres tinham sido
evidentemente domados por um professor de etiqueta e um
professor de dança, mas o corpo dela adquirira uma nova
elasticidade, uma nova sensibilidade. Preocupada, Effy começou a
desconfiar se Amy teria razão.
Mas quando chegaram ao Almack’s, as preocupações de ambas
as irmãs esfumaram-se. Felicity comportou-se muito bem e foi
rodeada por um grupo de cortejadores, e sem qualquer ajuda do
marquês. Os cavalheiros não pareciam achar a sua beleza fora de
moda.
O marquês observava o sucesso dela com um olhar cínico,
desconfiando que o comportamento encantador de Felicity era
apenas fachada. Teria ficado muito surpreendido se soubesse da
profunda gratidão que Felicity sentia pelos cavalheiros que a
elogiavam. Ela achou que eles eram os homens mais amáveis do
mundo e não o que havia sido levada a acreditar sobre os peraltas
londrinos. O marquês tinha decidido dançar uma valsa com ela e
depois despedir-se e escapar para o clube.
– Estás a ver? – chiou Effy por trás do leque. – O único interesse
de Ravenswood na Felicity é a vontade de nos agradar.
– Talvez tenhas razão – concordou Amy. – Afinal de contas, eu
não percebo quase nada de homens. E tu também não –
acrescentou ela, venenosa.
Effy começou a soluçar e Amy, arrependida, logo lhe pediu
desculpa, por isso não viram o marquês de Ravenswood conduzir
Felicity para a pista de dança.
A dança era a valsa, que finalmente tinha sido autorizada no
Almack’s. Ele pousou o braço na cintura dela e, de repente, o salão
desapareceu e ele viu-se novamente no seu quarto, molhado e nu
com Felicity nos braços.
Percebeu que ela o fitava com ar perplexo e que ele a tinha
puxado contra si. Murmurou uma desculpa e afastou-se os trinta
centímetros regulamentares.
– Diga alguma coisa – zangou-se Felicity – e pare de me olhar
com toda essa arrogância como se eu fosse uma peça de carne
estragada. A razão para esta dança, vossa senhoria, é assegurar o
meu sucesso na sociedade.
Ele sorriu, os olhos postos nos dela, e ela prendeu a respiração.
– Não precisa da minha ajuda – disse ele em tom suave. – Já é
um sucesso.
– Espero que ninguém descubra sobre a minha fuga – comentou
Felicity em voz baixa. – Não estou acostumada a ser um sucesso
com os cavalheiros e devo confessar que aprecio a novidade.
– Bremmer não vai falar – asseverou ele. – Porque o faria? Se ele
deixar escapar alguma coisa, terá de casar consigo.
Uma sombra obscureceu o rosto dela.
– Não fique triste – corrigiu ele rapidamente. – Ele é apenas um
rapazola. Jovem de mais para si.
Por alguma razão aquela observação provocou em Felicity uma
gloriosa felicidade, fazendo-a flutuar pelo salão nos braços dele.
– Não, não existe nada de preocupante ali – disse Amy, depois de
ter acalmado Effy. – Ravenswood parece ter engraçado com ela,
mas vê-a apenas como uma menina.
Naquela noite, no seu quarto, o marquês de Ravenswood não
conseguia dormir. Estava demasiado consciente de que ele e
Felicity se encontravam sob o mesmo teto. Pôs-se a pensar se ela
teria gostado da noite e quase se convenceu de que não haveria
problema nenhum em ir ao quarto dela perguntar-lhe. Não tinha sido
capaz de abandonar o baile para ir para o clube depois de dançar
com ela, decidindo ficar perto da entrada a observá-la e insistindo
consigo mesmo que era apenas para ver como ela se comportava.
Repreendeu-se mentalmente. Nunca abraçara Miss Andrews de
forma tão íntima e apaixonada como abraçara Felicity. Esse era o
problema. Iria tentar afastar Betty daquele dragão que era a mãe
dela para conseguir amá-la um pouco. Dessa forma, Felicity tornar-
se-ia novamente uma coisinha cansativa, ao invés da sedutora que
o mantinha acordado.
Se eu voltar a falar-lhe antes que passem seis meses

(marque o dia!),
Pode chamar-me pateta enquanto eu este mundo habitar!

Pensará o senhor que não tenho mais que fazer senão


perdoar?

DELIA VERY ANGRY


(ANÓNIMO)

Chegaram depois de o sol se pôr, por isso a magnificência da


Ramillies House, a casa do duque e da duquesa de Handshire, que
deveria provocar o primeiro calafrio de terror na alma de Miss Betty
Andrews foi perdido.
De qualquer maneira, ela estava demasiado cansada da viagem e
demasiado aborrecida com a presença das irmãs Tribble e de Lady
Felicity para prestar atenção ao ambiente que a rodeava. Mrs.
Andrews não tinha sido convidada pelos pais do marquês. Lord
Ravenswood tinha sido firme ao afirmar que as irmãs Tribble eram
acompanhantes suficientes e que os pais dele se tinham esquecido
de incluir Mrs. Andrews no convite.
As irmãs Tribble estavam angustiadas por razões diferentes: Amy
por achar que era uma perda de tempo valioso que Felicity poderia
aproveitar para atrair pretendentes adequados; Effy, porque odiava
o campo com furor e era atormentada por uma suspeita miudinha de
que Amy, apesar dos protestos veementes em contrário, havia
orquestrado a coisa toda com o intuito de a retirar, Effy, da
companhia de Mr. Haddon. Effy estava convencida de que o novo-
rico tinha desenvolvido uma afeição por ela e que Amy estava com
ciúmes.
As lamparinas à volta do pátio, na escadaria e no pórtico do
grande paço ducal tinham sido acesas. Nos degraus encontrava-se
todo o pessoal de estrebaria e no interior, no grande átrio, perfilava-
se toda a equipa de criados internos. Depois de serem conduzidos
aos respetivos quartos, os visitantes foram informados para se
reunirem no átrio daí a meia hora, onde seriam conduzidos para o
jantar. O marquês foi procurar os pais para lhes dizer que o grupo
tinha comido durante a viagem e que preferia recolher-se mais cedo,
mas o duque e a duquesa mandaram dizer ao filho que não estavam
disponíveis e que o veriam ao jantar.
Quando já estavam todos reunidos no átrio, o mordomo liderou o
caminho através de uma espécie de guarda de honra de criados de
libré, saindo do átrio e atravessando o Salão da Janela Saliente, o
Grande Gabinete e depois uma sequência de salões públicos até à
sala de jantar. A orquestra, que tocava no átrio quando eles
chegaram, encontrava-se agora na sala de jantar. O duque e a
duquesa, como era seu hábito excêntrico, já lá estavam, um em
cada extremidade da longa mesa posta com a baixela de ouro.
Quando os convidados se sentaram, descobriram que estavam tão
distantes uns dos outros que teriam de gritar.
Felicity ficou surpreendida com a aparência dos pais do marquês.
Esperava que eles fossem altos e imponentes como o filho. Mas o
duque era anafado e de ar zangado e a duquesa era igualmente
baixinha, embora magra e de olhos gélidos. Ela tinha um olhar firme
e inquietante, que fixou em cada convidado, individualmente.
A única pessoa que pareceu iluminar-se foi Betty Andrews. Já
redesenhava mentalmente a sala de jantar, encurtando a mesa e
substituindo o azul índigo das cadeiras por petit point. Betty estava
segura na sua assunção de que, quando se tornasse senhora
daquilo tudo, o duque estaria morto e de que, se a duquesa não
fosse suficientemente inteligente para o seguir para a sepultura,
seria recambiada para a casa da viúva. Betty não se sentiu
intimidada por Ramillies House. Sentia-se intimidada, sim, pelo seu
noivo. Ele tinha-lhe sussurrado ao ouvido no átrio que desejava falar
com ela em particular mais tarde. Betty percebera claramente pelo
brilho nos seus olhos que ele esperava alguma espécie de contacto
físico, mas era de opinião que ele poderia pelo menos ter esperado
até depois do casamento, quando se esperava que as mulheres em
estado de felicidade fossem capazes de suportar «esse tipo de
coisa», como Betty descrevia mentalmente o lado mais afetivo de
uma relação.
Apanhou-se a desejar que estivesse ali presente algum jovem
cavalheiro com quem pudesse conversar e namoriscar. Encontrara
Lord Bremmer no teatro uma noite e informara-o do plano de visita a
Ramillies House e ele apertara-lhe a mão e declarara intensamente
o quanto desejava poder ir com ela; Betty considerava tal atitude por
parte de um cavalheiro o expoente máximo do decoro. Mas o
marquês nunca dizia coisas assim românticas. Talvez por ser tão
velho, pensou ela, sentindo-se viperina. Ainda assim, valia a pena
aguentar. Quando se tornasse duquesa, começaria a transformar
aquele celeiro num lugar confortável. Ocupada com estes
pensamentos, Betty foi passando a hora do jantar sem se preocupar
em conversar com ninguém.
Felicity, por outro lado, tentou. Gritou educadamente para a
duquesa e depois para o duque. Eles não gritaram em resposta.
Tinham vozes baixas e colocadas, como atores treinados. Felicity
pôs-se a imaginar se, quando crianças, teriam sido ensinados a
projetar as vozes para que pudessem conversar amigavelmente
com alguém na outra ponta da monstruosa mesa de jantar.
Por fim, a duquesa levantou-se para conduzir as senhoras para a
sala de estar. A orquestra guardou os instrumentos e seguiu-as,
voltando a reunir-se à porta da sala de estar. Um enorme fogo rugia
na lareira de mármore e o aposento estava quente. As paredes
estavam forradas com tecido cor de pêssego e o tapete era da
mesma cor. As cortinas eram de rica seda púrpura, misturada com
tafetá cor de pêssego e com acabamentos de franjas, cordões e
borlas de seda dourada. A mobília estava coberta de cetim púrpura,
tecido de maneira a parecer um bordado. A duquesa chamou Betty
para que se sentasse junto dela no sofá e lançou um olhar frio às
irmãs Tribble e a Felicity, como se a avisá-las para se manterem
afastadas.
– Diga-me, Miss Andrews – começou a duquesa –, como prepara
a água de rosas?
Betty pestanejou de surpresa. Ela pertencia à nova geração,
deixando que os criados fizessem tudo e nunca se aproximara da
despensa.
– Eu não sei, vossa graça – respondeu ela, abafando um bocejo e
relanceando para o relógio.
– Mas sabe como preparar tónicos e remédios?
– Não, vossa graça. A mamã tem uma excelente despenseira.
– Isso não serve – disse a duquesa severamente. – Terá de
aprender. É o primeiro dever de todas as senhoras. Eu mesma vou
ensiná-la. – Levantou uma mão imperiosa e um lacaio aproximou-se
com vários cartapácios, que pousou numa mesinha à frente delas.
A duquesa abriu o primeiro livro da pilha e retirou um papel.
– Quero que observe estas regras, Miss Andrews.
Betty olhou com desalento para uma lista de regras e começou a
ler.
«A criadagem deve almoçar à uma hora da tarde antes de ser
servida a refeição na sala de estar, tanto os criados de cima como
os de baixo, e o pequeno-almoço e o jantar às nove. Não há
almoços quentes,
«O mordomo ou o camareiro-mor deve assegurar-se de que a ala
dos criados e a casa de banho são limpas e trancadas todas as
noites antes das onze horas.
«A baixela deve ser lavada pela despenseira, tarefa a ser
efetuada na despensa, motivo pelo qual o submordomo terá de ir
buscá-la.»
Betty continuou a ler a longa lista, que terminava com: «Caso haja
alguma objeção a estas regras, tais pessoas podem retirar-se.»
– Agora – disse a duquesa –, gostaria que estudasse primeiro
este livro sobre o governo da casa e depois diga-me que tipo de
economias domésticas poderia sugerir.
A pobre Betty sentia-se como se tivesse regressado à escola.
Inclinou a cabeça sobre o livro e rezou para que o marquês e o
duque não se demorassem muito tempo com o vinho.
– E a menina, Lady Felicity – chamou a duquesa. – Venha cá,
pegue neste outro livro e veja que género de economias pode
sugerir.
Felicity mostrou um ar divertido.
– Eu não ousaria, vossa graça – respondeu ela. – Tenho a certeza
de que fez tudo o que é necessário. Estamos todos cansados da
viagem e certamente não espera que qualquer um de nós seja
capaz de desfrutar a matemática doméstica a esta hora.
– Muito bem – disse a duquesa, parecendo surpreendida.
Os livros foram retirados e, nesse momento, o marquês e o duque
entraram na sala.
Betty começava agora a sentir-se tão deslocada como a duquesa
certamente esperava que ela se sentisse. Invejou Felicity pela
facilidade com que dispensou a análise das contas domésticas, mas
sabia que nunca teria conseguido dizer uma coisa daquelas. Se pelo
menos Ravenswood lhe segurasse a mão ou olhasse para ela com
olhos adoradores. Mas ele estava para ali a discursar acerca de
campos e fosfatos.
As irmãs Tribble conversavam em voz baixa entre si. Amy estava
a desafiar Effy a ser a primeira a levantar-se e a sugerir que deviam
ir para a cama, e Effy devolvia o desafio a Amy. Foi então que Amy
reparou numa aranha que subia por um porta-retratos e apostou que
o bicho chegaria ao topo em cinquenta segundos. Effy disse um
minuto, e as duas irmãs acordaram em que a que perdesse deveria
sugerir à duquesa que se recolhessem aos aposentos.
Amy tirou um relógio enorme da bolsinha e começou a contar em
voz baixa. A aranha parou a escalada e hesitou.
– Anda lá, sua estúpida – rugiu Amy, de repente.
Os outros calaram-se. Amy ficou vermelha como um tomate.
– Disse alguma coisa? – inquiriu a duquesa friamente.
– É muito tarde, vossa graça – interveio Felicity. – Temo que Miss
Amy tenha adormecido e estivesse a ter um pesadelo.
– Então vão para a cama... todas vós – disse a duquesa,
arrogante. – Tu não, Charles – acrescentou ela, detendo o filho.
O marquês abriu a porta da sala de estar às senhoras e quando
Betty passou, meteu-lhe discretamente um bilhete na mão.
Assim que Betty chegou ao quarto, desdobrou o bilhete e leu-o
com desânimo. Dizia: «Encontre-me no terraço em frente ao Salão
Grego daqui a uma hora. R.»
Betty sentiu-se cansada e infeliz. Era um abuso da parte dele
esperar que ela se mantivesse acordada. Estava exausta. As
lágrimas encheram-lhe os olhos. Queria a mãe. Felicity saberia
como lidar com a situação. Sem dúvida que ela responderia com
outro bilhete a dizer: «Fui dormir. Não seja tonto» ou algo assim
franco.
Então deixa a Felicity lidar com isso, pensou Betty
maliciosamente. Estavam todos aglomerados à entrada da porta
quando ele lhe meteu o bilhete na mão. Deixá-lo pensar que o tinha
entregado a Felicity por engano. Todo o ciúme que Betty sentia de
Felicity desapareceu. Na viagem, o marquês mal tinha dirigido a
palavra à rapariga e era óbvio que ele não só não tinha interesse
nela, como não gostava dela ativamente.
Betty sabia que Felicity ficara no quarto ao lado do dela. A criada
pessoal entrou para a ajudar a preparar-se para dormir e, assim que
a mulher terminou os seus deveres e se retirou, Betty correu para o
corredor e enfiou o bilhete por baixo da porta de Felicity. Ela
provavelmente estaria a dormir. O bilhete ali ficaria até de manhã.
Ela, Betty, diria ao marquês na manhã seguinte, quando ele
perguntasse onde ela tinha estado, que não havia recebido bilhete
algum.
Felicity não estava a dormir. Estava sentada a ler, quando o
bilhete apareceu de repente. Leu-o e as suas sobrancelhas
ergueram-se de espanto. Depois pensou que Ravenswood talvez
tivesse medo de que ela fosse contar a Betty a cena no quarto dele
e queria tranquilizar-se. Bom, podia atormentá-lo um pouco para se
vingar do tratamento rude que ele lhe dispensara na viagem. Estava
ansiosa para ter uma oportunidade de lhe dizer o quanto o
detestava e agora tinha.
O marquês tivera dificuldade em escapar dos pais e estava
cansado de defender Betty. «Sem carácter e sem berço», haviam
eles reclamado. Ao apressar-se na direção do Salão Grego, tirou o
relógio e viu as horas à luz de uma candeia. Já tinha passado para
lá de uma hora. Rezava para que ela tivesse esperado por ele.
A lua cheia brilhava através das longas janelas do Salão Grego,
iluminando as colunas jónicas e o chão de mármore de Siena. Abriu
a portada e saiu para o terraço. A noite estava muito calma e
silenciosa. Lá em baixo, os relvados estendiam-se suaves para além
da frente do terraço até um lençol de água decorativo. No ar
espalhava-se um aroma a lilases misturado com o cheiro dos
pinheiros junto ao lago.
Ele esperou e esperou. Questionou o que diabo teria feito a jovem
atrasar-se. Queria provar a si mesmo que a paixão ardente que
sentira por Felicity era apenas o resultado de um longo período de
celibato. Betty Andrews era bonita e delicada, tudo o que um
homem poderia desejar.
Uma massa de nuvens escuras cobriu a lua, mergulhando o
terraço nas trevas. Ele ouviu um movimento suave atrás dele e girou
nos calcanhares.
Felicity andara perdida à procura do Salão Grego, até que
finalmente se deparara com um moço das candeias que lhe indicara
o caminho. Ela tinha um leve cachecol dourado sobre o cabelo. O
marquês viu o brilho fraco de ouro e tomou-o como sendo o cabelo
loiro de Betty.
Felicity abriu a boca para falar quando ele a abraçou pela cintura,
mas ele segurou-a pelo queixo, erguendo-lhe o rosto, e afundou os
lábios nos dela. A mente do marquês registou vagamente que ela
devia estar empoleirada em alguma coisa, porque Betty Andrews
era de estatura baixa, mas a paixão nublou-lhe a razão e os
sentidos. Felicity, chocada e atordoada, ouviu as palavras
carinhosas murmuradas entre os beijos abrasadores e pensou com
uma pontada de puro êxtase que ele a amava. Então, retribuiu o
beijo com grande entusiasmo e energia, adicionando combustível ao
fogo já intenso. O aumento das intimidades pareceu-lhe tão certo
que Felicity se deixou levar, acomodando o corpo latejante às mãos
perscrutadoras dele.
Ele acabava de ser recompensado com a visão de um seio
branco delicioso, depois de o ter libertado das amarras do decote do
vestido, e preparava-se para inclinar a cabeça para o beijar, quando
Felicity suspirou: – Oh, Charles!
Aquela voz era clara e distinta. A voz suave de Betty era marcada
por um leve ceceio.
A mão, em vez de acariciar o seio, voltou a ocultá-lo na segurança
do decote e ele levantou a cabeça. Naquele momento a lua libertou-
se das nuvens. Não era Betty Andrews empoleirada em alguma
peça de alvenaria, mas Lady Felicity Vane, os olhos grandes como
lagoas escuras ao luar.
– Deus do céu! – exclamou o marquês. – Eu pensei que fosse
Miss Andrews.
O estalo que Felicity lhe deu quase o atirou num voo para fora da
varanda. Ele cambaleou e recuperou o equilíbrio, mas ela já tinha
desaparecido.
Ao fugir, Felicity perdeu-se na grande casa, até que, cansada de
procurar pelo quarto e a sentir-se doente de vergonha e exausta de
emoção, se enrolou num sofá de um dos salões e adormeceu. O
marquês foi direto ao quarto dela, mas não a encontrou. Contudo,
viu o bilhete para Betty aberto no toucador de Felicity.
Mas ele tinha a certeza de que o pusera na mão de Betty. Não
podia ir dormir até Felicity ser encontrada. Tinha-se comportado
vergonhosamente. Onde estaria ela agora? Queria pedir ajuda às
irmãs Tribble, mas temia escandalizá-las. Desceu as escadas e saiu
para os terrenos das traseiras, procurando incansavelmente, ficando
cada vez mais nervoso à medida que o céu começou a clarear. Por
fim, voltou para casa e começou a procurar em todas as grandes
salas, que começavam a deixar entrar o brilho avermelhado do sol
nascente.
Encontrou-a no Salão Amarelo, na ala oeste. Estava toda
enrolada num sofá, a dormir.
Ele sentou-se na beira do sofá e sacudiu-lhe o ombro.
– Felicity!
Ela despertou imediatamente e olhou para ele, os olhos
arregalados de medo e indignação.
– Sinto muito. Lamento imenso – disse ele. – Aquele bilhete era
destinado a Miss Andrews. Minha querida Lady Felicity, eu nunca
teria sonhado em... Como é que o bilhete foi parar às suas mãos?
– Alguém o meteu por baixo da minha porta – explicou Felicity.
– Mas eu coloquei-o na mão de Miss Andrews quando ela estava
a sair da sala de estar!
– Talvez ela soubesse que surpresa lhe estava reservada – disse
Felicity.
– O que deve estar a pensar de mim – lamentou-se ele,
enterrando a cabeça nas mãos.
Felicity observou-lhe a cabeça baixa com grande irritação. No
terraço, por um momento vertiginoso, pensou que ele a amava.
Devia estar louca. Por que motivo iria querer que aquele homem
pomposo e arrogante a amasse?
– Oh, vá-se embora – disse ela bruscamente. – Será que ninguém
consegue dormir nesta casa?
– Mas, Lady Felicity...
Felicity levantou-se e fitou-o. A expressão dela era arrogante e ele
não pôde deixar de pensar que os papéis se tinham invertido.
– Se acha que vou contar a Miss Andrews sobre o seu
comportamento, está muito enganado – declarou Felicity. – Agora
leve-me para o meu quarto.
Ele levantou-se imediatamente e ofereceu-lhe o braço, que ela
ignorou. Ele tentou novamente.
– O meu comportamento foi terrível, Lady Felicity – disse ele em
voz baixa. – Tem de me perdoar.
– Vamos fazer de conta que não aconteceu nada – anunciou
Felicity. – Quanto tempo vai durar esta visita? Vossa senhoria
afastou-me da minha temporada.
– Apenas uma semana.
– Uma semana! – repetiu Felicity num tom oco. – Vou marcar os
dias na parede do meu quarto como fazem os prisioneiros. Não
consigo entender o que terá passado pela cabeça dos seus pais
para insistirem que eu e as irmãs Tribble viéssemos também.
– Eles acham muito estranho o facto de eu residir com as irmãs
Tribble quando tenho uma casa na cidade ou a hipótese de usar a
deles.
– E como explicou isso?
– Ainda não tive oportunidade.
– E o que vai dizer quando tiver oportunidade?
– Como raio hei de eu saber? Tive pena das irmãs Tribble e
percebi que iam ter uma tarefa difícil em mãos consigo, por isso...
A voz sumiu-se.
– Vai de mal a pior – troçou Felicity.
Tinham chegado à porta do quarto. Ela entrou e fechou-lhe a
porta na cara.

A duquesa não era apologista das pessoas que se deixavam ficar


na cama de manhã, a tomar o pequeno-almoço no quarto, por isso
foi um grupo irritadiço e sonolento que se reuniu à volta da mesa na
sala de pequeno-almoço às nove horas da manhã seguinte.
Effy não parava de lançar olhares ansiosos a Felicity. A jovem
estava muito pálida e tinha olheiras. Esperava que Felicity não
ficasse doente. E se ela tivesse apanhado alguma doença terrível e
começasse a definhar e ela e Amy fossem culpadas por isso? O
caixão seguia no carro fúnebre puxado por quatro cavalos negros.
Os gatos-pingados num pranto triste. Lady Baronsheath
enlouquecida de dor. «É tudo culpa sua, Effy Tribble», bramia ela. E
assim até à sepultura. A terra matraqueava sobre o caixão e o vento
murmurava nos velhos olmos do adro da igreja.
– Oh, não, assim é de mais! – exclamou Effy, explodindo em
lágrimas.
– O que a aflige, mulher? – perguntou a duquesa com maus
modos.
– Pobre Felicity – soluçou Effy. – Morreu tão jovem.
Amy percebeu que a irmã tinha caído nas garras de uma das suas
fantasias e deu-lhe um pontapé por debaixo da mesa. Effy deu um
grito e tentou levantar-se, mas no movimento, o cotovelo esbarrou
no bule, projetando e espalhando todo o conteúdo sobre a alva
toalha.
– Minha palerma! – uivou Amy. – Olha o que fizeste. Oh, não
chores, Effy – acrescentou em tom mais suave. – É só um bule
estúpido. Foi feito para ser derrubado. Para o inferno com estas
malditas coisas ultramodernas. Que o diabo as carregue.
– A senhora está a precisar de lavar a boca com sabão – rugiu a
duquesa com ar aterrador.
– Peço desculpa – disse Amy.
Viu Effy às apalpadelas cegas, à procura de algo com que
pudesse enxugar os olhos lacrimejantes e, discretamente, colocou-
lhe um canto da toalha de mesa nas mãos trémulas. Effy agarrou-a
com gratidão e levou-a aos olhos, virando chávenas e pratos ao
fazê-lo. Os lacaios corriam de um lado para o outro, a amparar
copos e pires e a limpar o chá vertido. Felicity desatou a rir e o
marquês acompanhou-a. Betty Andrews olhava de um para o outro
sem perceber o que podiam eles achar de tão engraçado naquela
cena terrivelmente constrangedora.
Quando a situação voltou ao normal, Effy disse em voz trémula:
– Está com um ar tão pálido e cansado, Lady Felicity, que eu tive
medo por si.
– É claro que estou cansada – respondeu Felicity, servindo-se de
café, enquanto o mordomo fazia mais chá. – Aparentemente não
estamos autorizados a descansar neste palácio.
– Não tem resistência, esse é o seu problema – disse o duque.
– Eu tenho resistência de sobra – retorquiu Felicity, de repente
decidida a não se importar se os pais do marquês gostavam dela ou
não –, mas não sou feita de ferro.
O duque assumiu uma cor perigosamente purpúrea.
– Felicity! – ralhou Amy. – Peça desculpas imediatamente.
– Eu só disse a verdade – respondeu Felicity com toda a calma. –
Não é o meu comportamento que é estranho. Afinal, o que pode ser
mais estranho do que assediar os convidados com alfarrábios de
economia doméstica durante metade da noite e depois arrancá-los
da cama a esta hora da manhã?
– Eu só tenho uma coisa a dizer-lhe, menina insolente – disse a
duquesa, incisiva –, que é... o que foi, Giles?
O mordomo tossiu em jeito de desculpa.
– Lord Bremmer chegou, vossa graça.
– Bremmer? Eu não o convidei.
– Lord Bremmer diz que a sua carruagem se partiu mesmo à
nossa porta.
– Então leve esse pateta para o gabinete e ofereça-lhe chá, e
depois mande lá ir o ferreiro reparar-lhe a carruagem.
Amy reparou que os olhos de Betty, que tinham começado a
brilhar, agora exibiam um ar dececionado. Ela não queria que o
marquês se casasse com Betty. Talvez aquela pudesse ser uma
maneira de afastar a afeição de Betty do marquês. Já tinha notado a
forma como o jovem lorde se pendurara em Betty no teatro e na
forma como ele tinha evitado Felicity.
– Eu conheço o Bremmer – disse ela casualmente. – Porque não
convidá-lo a juntar-se a nós, vossa graça?
– Pois, muito bem – assentiu a duquesa. – Eu conheci-o há uns
dois anos e pareceu-me um jovem muito agradável e bem
comportado, não como alguns dos jovens rudes de hoje em dia. –
Dito isto, lançou um olhar de desprezo a Felicity, que retribuiu com
um sorriso doce, servindo-se de mais torradas.
Lord Bremmer foi anunciado. Os olhos dele voaram para Betty,
que corou e baixou os olhos para as mãos.
– Lamento muito, vossa graça – disse ele ao duque. – A minha
carruagem simplesmente desfez-se.
Ele pensou em todo o trabalho que tivera para a partir com as
próprias mãos, na esperança de que a sabotagem não fosse
demasiado óbvia.
Lord Bremmer ficou ali de pé, impotente, a tentar decidir onde se
sentar. Felicity fitava-o de uma forma que ele não gostou e o
marquês lançava-lhe um olhar de advertência. Um criado adiantou-
se com uma cadeira e Betty afastou a sua para o lado para que Lord
Bremmer pudesse acomodar-se.
Amy começou a falar em voz alta sobre o último poema de Walter
Scott, dizendo que não gostava e que ouvira dizer que a Escócia era
um lugar cheio de selvagens. O duque, que tinha uma propriedade
na Escócia, protestou com veemência. O marquês contou que, certa
vez, tinha decido rivalizar com Boswell e o Dr. Johnson e tinha
viajado até às Hébridas. Amy e Felicity começaram logo a fazer-lhe
perguntas sobre as suas viagens e Lord Bremmer ficou a conversar
com Betty em voz baixa, voltando a provocar-lhe aquele brilho nos
olhos e cor nas faces.
Mas tanto a cor como o brilho fugiram quando o pequeno-almoço
terminou e o marquês disse:
– Venha dar um passeio comigo nos jardins, Miss Andrews.
Amy olhou intencionalmente para Felicity, mas a jovem mostrava
uma expressão despreocupada.
Betty trotou em silêncio ao lado do marquês, desejando que não
andasse com passadas tão largas. Ele levou-a através do laranjal,
onde as laranjeiras se encontravam em grandes vasos alinhados
junto a uma sebe de louro, fazendo-a depois entrar numa estufa ao
fundo. Estava repleta de plantas raras em canteiros circulares. Dois
recantos pintados para parecer mármore continham sofás
confortáveis, onde os visitantes se podiam reclinar no calor da
estufa e observar as plantas.
Quando o marquês levou a submissa Betty para um destes sofás,
ela lembrou-se subitamente de uma visita ao dentista. A mãe tinha-a
levado no ano anterior para lhe ser retirado um dente de trás.
Lembrou-se da sensação de aperto no estômago e da sua tentativa
de fingir que estava num sítio completamente diferente até o
calvário terminar.
Ela sentou-se no sofá; ele sentou-se ao lado dela e pegou-lhe na
mão. Ele tinha um ar muito elegante, tentou ela convencer-se.
– Desde o anúncio do nosso noivado que não estamos sozinhos –
começou o marquês.
– Não – sussurrou Betty.
– O que aconteceu ontem à noite? Como é que o bilhete dirigido a
si foi parar às mãos de Felicity?
– Eu perdi-o – mentiu Betty. – Um dos criados deve tê-lo
apanhado e enfiado debaixo da porta de Felicity.
– Isso parece-me altamente improvável – argumentou ele. –
Todos os criados dos meus pais sabem quem é a minha noiva.
– Talvez pensassem que era o meu quarto – propôs Betty
desesperadamente.
– Tem certeza de que não foi a Betty a colocá-lo lá? – inquiriu o
marquês.
– Não – respondeu Betty com toda a fúria repentina do verdadeiro
culpado. – Foi por isso que me trouxe aqui? Para me dar um
sermão?
Ele sorriu-lhe de repente.
– Não, minha querida. Trouxe-a aqui para a beijar, como anseio
fazer desde o dia em que a conheci.
Ele desceu a boca na direção da dela. Betty comprimiu os lábios e
fechou os olhos.
Ele tentou com todas as forças invocar dentro dele um pouco da
paixão que sentira quando segurara Felicity nos braços, mas não
sentiu nada. Esforçou-se mais, empurrando a cabeça dela para trás
num beijo selvático e abraçando-a num aperto esmagador, quase
como se tentasse arrancar-lhe alguma paixão.
Quando ele finalmente levantou a cabeça, ela disse em voz
trémula (mais ou menos a mesma voz que tinha usado no dentista):
– Acabou? Posso ir agora?
– Sim – respondeu o marquês friamente. – Peço desculpa se a
assustei.
– Foi muito bruto e magoou-me – disse Betty, à beira das
lágrimas.
– Venha – disse ele em voz suave –, eu acompanho-a a casa. É
bonita de mais para ficar tão angustiada.
O rosto de Betty iluminou-se imediatamente, e ela deu-lhe uma
pancadinha no braço com o leque.
– É um grande bruto – brincou ela – e tem de prometer à sua
Betty nunca, nunca mais se comportar de maneira tão cruel.
– Eu prometo – disse ele. – Talvez não sejamos adequados um
para o outro.
– Oh, agora está a ser terrivelmente cruel – queixou-se Betty,
explodindo em lágrimas. – Não quer que eu seja uma duquesa.
– Não se trata disso – respondeu ele em tom seco –, uma vez que
ser duquesa significaria a morte do meu pai. Enxugue os olhos.
Lord Bremmer, espreitando através da sebe de louro, observou o
retorno do casal. Ouviu os soluços engasgados de Betty e pensou
que Ravenswood era o maior brutamontes do mundo... quase tão
bruto como Lady Felicity Vane!
«Não, não; a minha virgindade,

se algum dia a perder» diz Rose, «morrerei em seguida»;

Logo Dick exclama: «Mas Rose, atrás dos olmos,

na noite passada, não estava a tua saúde entre a parede e a


espada?»

MATTHEW PRIOR, A TRUE MAID

Apesar da insistência da mãe de que o bom tempo não iria durar, o


marquês insistiu nos preparativos para um passeio no lago. A
duquesa protestou, explicando que a articulação do seu dedo
grande do pé esquerdo nunca se enganava e que ele pulsava a um
ritmo tal que só podia significar uma tempestade.
Mas como que para provar que o dedo grande do pé estava
errado, o sol continuou a brilhar e o céu manteve a sua tonalidade
azul clara. O grupo de convivas que partiu para o lago exibia um ar
irritado e infeliz. Betty sentia-se levemente reconfortada pelos
elogios de Lord Bremmer, mas secretamente sentia que a mãe
nunca a perdoaria se desperdiçasse a oportunidade de se tornar
duquesa. Amy e Effy sentiam toda a força da idade e sofriam com a
falta de descanso. Tinham ficado muito tempo acordadas a discutir
sobre o marquês e Felicity pela noite dentro. Amy estava
convencida de existir uma certa atração entre eles e Effy estava
convencida de que eles se detestavam cordialmente e que deviam
deixar Ravenswood casar-se com Betty Andrews, sem qualquer
interferência da parte delas. Amy tinha uma dor lancinante ao fundo
das costas e Effy já sentia o início de uma terrível dor de cabeça.
Quando finalmente se fora deitar, amarrara a faixa do queixo com
muita força, o que lhe deixara uma marca vermelha no pescoço.
Lord Bremmer tinha a certeza de que amava Miss Andrews como
nenhuma mulher jamais fora amada. Também ele estava cansado
da longa viagem e do esforço exigido na destruição da carruagem.
O marquês estava firmemente determinado em pensar que a vida
tinha de seguir em frente, contudo sentia que a vida seguiria melhor
se Lady Felicity Vane tivesse a delicadeza de lhe desaparecer da
vista. A costureira francesa devia ser fulminada por conceber
vestidos tão sedutores e tão perto da indecência. Felicity tentava
convencer-se de que odiava Ravenswood com todas as suas forças
e que era por isso que o seu corpo se comportava de forma tão
peculiar quando ele se aproximava dela.
O grupo entrou nos barcos de fundo chato ancorados entre os
nenúfares. Effy tremia como varas verdes. Por vontade dela, tinha
ficado em casa. Não se importava com os jardins formais, mas
aquele lago rodeado por vegetação rasteira e estranhas árvores
artisticamente selvagens era demasiado parecido com a agreste
paisagem rural. Um gamo desceu para beber na margem do lago e
Effy considerou-o uma criatura assustadora e repugnante que
deveria estar num jardim zoológico.
O marquês tinha a intenção de se sentar ao lado de Betty, mas foi
o último a entrar num dos barcos. Betty já se encontrava sentada
com Effy e Lord Bremmer, o que deixou ao marquês a única opção
de ir para o outro barco que albergava Amy e Felicity.
Os criados entraram para um barco a remos de ar robusto com
cestas contendo champanhe, carnes frias e saladas e remaram à
frente em direção a uma ilha no meio do lago, onde o grupo de
convivas iria saborear uma refeição al fresco.
Effy pensou que o barco a remos tinha um ar muito mais funcional
e desejou-se nele, em vez de na embarcação frágil onde se
encontrava.
A dor nas têmporas foi piorando. Um lacaio pegou numa longa
vara e o barco começou a deslizar sobre a água. Ela julgou ver a
mão de Lord Bremmer pressionar a de Miss Andrews e achou que
devia admoestá-lo, mas outra onda de dor atingiu-lhe a cabeça e ela
soltou um gemido.
– Oh, meu Deus! – exclamou Amy do outro barco. – A Effy está a
ter um dos seus ataques.
Levantou-se e o barco balançou perigosamente. O marquês
ordenou aos lacaios nos barcos que regressassem a terra, pedindo
em seguida: – Sente-se, Miss Amy.
– Mas eu não posso ir! – exclamou Amy. – Não sabe como a Effy
fica quando tem um destes ataques.
Saltou para terra assim que o barco encostou à margem e gritou
ao lacaio no barco de Effy para que a trouxesse de volta.
– Pare de franzir o sobrolho e amuar, Ravenswood – disse Felicity
de repente. – Miss Effy está doente e não pode ir. Sugiro que
voltemos todos para casa.
– E eu sugiro irmos sem Miss Amy e Miss Effy – revidou o
marquês.
Amy estava a ajudar a irmã a sair do barco, levando-a de imediato
para longe da água. Effy parecia realmente doente. Felicity fez
menção de se levantar para sair do barco também, mas o marquês
gritou para o lacaio:
– Vamos embora, homem. Não temos o dia todo.
O barco partiu novamente com um puxão e Felicity caiu no
assento.
– Bem, vossa senhoria – disse ela em tom ácido. – Parece-me
que fui raptada. É esta a sua ideia de um passeio prazenteiro?
– Está um lindo dia e a água está um deleite – disse ele.
– Mas o senhor está de mau humor e determinado a estragar o
prazer de toda a gente – comentou Felicity.
– Eu não estou de mau humor – replicou ele, furioso, virando a
cabeça e proporcionando a Lady Felicity uma boa visão do seu belo
perfil.
– Então não amue – resmungou a incorrigível Felicity.
– Ama-o de verdade? – perguntava nesse momento Lord
Bremmer a Betty num sussurro.
Betty corou e baixou a cabeça.
– Eu... eu julgo que sim – respondeu ela baixinho –, mas ele
assusta-me.
– Eu nunca a assustaria – disse Lord Bremmer, tirando o chapéu
para poder lançar para trás os caracóis no que esperava ser um
gesto digno de Byron. Lançou-lhe um olhar ardente. – Eu iria
estimá-la muito. É tão delicada e bonita que temo que possa
quebrar.
Betty suspirou. Se ao menos Ravenswood lhe dissesse palavras
assim tão lindas. Olhou de viés para o outro barco. Ele exibia um ar
tremendamente carrancudo e Lady Felicity estava recostada nas
almofadas, com uma mão a arrastar pela água. O vestido de
musselina dela era bordado com pequenas centáureas azuis. Betty
sentiu uma pontada de inveja. Tinha de convencer a mamã a roubar
a costureira das irmãs Tribble. Na cabeça, Felicity usava um
daqueles novos chapéus transparentes, um círculo de escumilha
decorado com papoilas e centáureas e longas fitas de cetim azuis
que lhe caíam pelas costas.
Chegaram à ilha. Era uma faixa de terreno bastante extensa com
uma pequena praia de areia artificial, atrás da qual se estendia um
relvado verdejante em forma de crescente de lua cuidadosamente
arranjado e cercado por árvores.
Os lacaios tinham colocado o manjar do piquenique numa grande
toalha branca estendida no relvado. O grupo sentou-se para comer
e beber champanhe, mantido fresco com gelo trazido da geleira. O
marquês deu-lhes uma longa palestra sobre como o gelo era
cortado em blocos no inverno e depois empilhado no fundo da
geleira cavada no chão. Felicity achou que ele parecia uma nuvem
negra, o que não a surpreendia, pois a verdade é que ela estava
sentada num dos lados da toalha com Lord Ravenswood enquanto
Betty e Lord Bremmer se encontravam sentados no lado oposto. A
própria Betty sentara-se ao lado de Lord Bremmer e parecia não
perceber que devia estar sentada ao lado do seu noivo.
Lord Bremmer e Betty beberam uma grande quantidade de
champanhe enquanto conversavam sobre as várias pessoas que
conheciam. O marquês não parou de beber, em silêncio,
ocasionalmente dirigindo um olhar ensimesmado à noiva, mas não
fez nada para acabar com a conversa com Lord Bremmer.
Pensava na dececionante cena de amor com Betty, começando a
perguntar-se se a frieza e o medo da jovem teriam sido causados
por Felicity. Será que ela lhe contara sobre o lamentável incidente
no terraço? Talvez a sua própria ausência de reação tivesse sido
provocada pela frieza de Betty. Decidiu perguntar a Felicity e,
quando a refeição terminou, dispensou os lacaios. Betty anunciou
que gostaria de fazer uma caminhada até ao fundo da ilha, onde
havia um templo com colunas brancas, um disparate ornamental
mandado construir por um dos ancestrais Handshire. Lord Bremmer
avidamente se ofereceu para a acompanhar, mas, caindo em si,
corou e olhou culposamente para o marquês. Mas este limitou-se a
assentir com a cabeça num gesto absorto, por isso Lord Bremmer
levou Betty, deixando o marquês sozinho com Felicity.
– Parece-me que Lord Bremmer está apaixonado por Miss
Andrews – disse Felicity, retirando o alfinete do chapéu e pousando-
o na relva ao seu lado. – Não devia deixá-los a sós.
– Eu já lá vou ter com eles – respondeu o marquês, abraçando os
joelhos, de olhos fixos na relva. – Queria falar consigo em particular.
– Deus do céu! Porquê?
– Contou a Miss Andrews sobre o lamentável episódio da noite
passada?
– No terraço? Claro que não. Isso seria cruel.
O marquês fez um movimento como se quisesse levantar-se.
– Porque pergunta? – exigiu saber Felicity.
A alegria que sentira no coração quando ele dissera que queria
falar com ela em particular deu lugar a uma terrível deceção e
depois à fúria, por a única razão de ele querer ficar sozinho com ela
ser a de se certificar de que o seu comportamento monstruoso não
tinha chegado aos ouvidos delicados da noiva, que devia ser
acarinhada e protegida, ao contrário do que merecia uma jovem tão
tumultuosa como ela. Não havia maneira de agradar a toda a gente.
O pai queria que ela fosse um rapaz e, por isso, ela tinha-se
esforçado ao máximo para ser tão arrapazada quanto possível.
Agora a mãe queria que ela usasse os seus encantos para atrair um
homem a pedi-la em casamento, mas ela não podia obedecer aos
desejos da mãe porque estava presa no campo com aquele
orangotango impiedoso.
– Notei nela uma certa frieza na forma de me tratar – disse ele.
– Ora, ora – troçou Felicity. – Provavelmente atacou-a tal como
me atacou na noite passada.
– O quê?!
– Eu disse que provavelmente a atacou tal como fez comigo na
noite passada.
– Eu não a ataquei. Eu beijei-a, erroneamente convencido de que
era Miss Andrews.
– Atacou-me, sim! Atacou-me! – escarneceu Felicity. – O senhor e
as suas grandes mãos quentes e gordurosas e... asquerosas!
– Como se atreve, sua devassa!
– Na verdade – prosseguiu Felicity num tom irritantemente
descontraído –, se quer mesmo levar Miss Andrews ao altar, então
eu sugiro que não tente submetê-la às intimidades do quarto de
cama antes do tempo. Que nojo!
Ele inclinou-se em direção a ela com ar ameaçador.
– Porquê tão cobarde e revoltada, Miss Empertigada? Pelo que
me lembro, respondeu de bom grado às minhas carícias.
– Eu estava apenas a fazer-lhe a vontade. O senhor é
completamente louco.
Ouviu-se o estrondo de um trovão a roncar do ocidente, mas o
marquês não lhe prestou atenção.
– A menina é uma criança mimada – acusou o marquês,
erguendo cada vez mais a voz à medida que o ribombar dos trovões
aumentava também.
– E o senhor é um idiota – replicou Felicity. – Eu posso imaginar o
que aconteceu. Ficou horrorizado por uma rapariga como eu
conseguir despertar-lhe paixão. É o tipo de sujeito que pensa que as
mulheres são todas iguais. Por isso beijou-a e nada aconteceu e
agora está a descarregar toda a sua frustração e rancor em mim.
– Oh, eu pedi desculpas pelo meu comportamento – justificou-se
ele. – Admito que me deixei levar, mas eu estava muito cansado e
acho que o vinho do jantar me subiu à cabeça.
– Talvez tenha razão – concordou Felicity numa voz subitamente
calma. – Estou certa de que muitos homens seriam capazes de
despertar a mesma reação em mim. Tenho de começar a
experimentar já, assim que voltar para Londres.
Ele rolou até junto dela, agarrando-a pelos braços e forçando-a a
deitar-se na relva.
– Ouça bem o que lhe vou dizer – rosnou ele entre dentes. – Já
causou sofrimento e angústia que chegue às irmãs Tribble. Vai
comportar-se como deve ser!
– Está a magoar-me!
– E vou magoá-la muito mais se persistir nessas atitudes
selvagens.
O tremendo estalo de um relâmpago rasgou o céu. Felicity olhou
por cima do ombro dele para as nuvens roxas em ebulição que
apareceram de repente sobre as suas cabeças.
Ela contorceu-se num esforço para se libertar.
– Largue-me! Vamos ficar molhados até aos ossos.
O rosto dela estava corado e o cabelo caía-lhe sobre o rosto.
A raiva morreu nos olhos do marquês e ele fitou-a com o
despontar da surpresa.
Ela fixou os olhos nos dele e depois desceu até aos lábios firmes.
Sentia o corpo quente e pesado.
Os relâmpagos não paravam de riscar o céu e a chuva começou a
tamborilar sobre eles.
Ele sentiu os seios dela pressionados contra o peito e o cheiro do
perfume levemente floral que ela usava.
Gritos cada vez mais próximos anunciaram o retorno de Betty e
Lord Bremmer. O marquês largou Felicity e disse calmamente:
– É melhor irmos para os barcos.
Ele ajudou-a a levantar-se e ambos se viraram para ver a cena:
uma Betty Andrews completamente encharcada que vinha em
direção a eles ajudada por Lord Bremmer.
Um ribombante trovão abalou os céus e Betty tropeçou, atirando-
se para os braços do marquês.
– Estou muito assustada – queixou-se ela.
– Venha comigo – disse ele, colocando-lhe um braço à volta da
cintura. Gritou por cima do ombro: – Os criados já regressaram,
Bremmer. Espero que saiba conduzir o barco.
Lord Bremmer e Felicity entreolharam-se, a chuva a cair-lhes
pelas faces como lágrimas.
Em seguida, dirigiram-se para um dos barcos, enquanto o
marquês ajudava Betty a entrar para o outro.
Assim que Lord Bremmer empurrou o barco com a longa vara,
Felicity pegou numa pá e começou a tirar a água da chuva do barco.
Com empurrões desajeitados e inexperientes, Lord Bremmer
impulsionou-os para o meio do lago. A queda de um outro longo raio
enervou-o. Ele deu um impulso demasiado forte à vara, que ficou
presa na lama do fundo do lago. O barco e Felicity seguiram
viagem, deixando Lord Bremmer pendurando na vara como um
macaco.
– Socorro! – gritou ele. – Eu não sei nadar!
Foi então que a vara e Lord Bremmer caíram à água.
Perto dali, os gritos de Betty soavam como um eco.
– Socorro! Eu não sei nadar.
O marquês tinha dito a Betty para escoar a água da chuva que
caía no barco e concentrou-se no manejo do barco com a vara, por
isso não reparou que Betty não fez qualquer esforço para obedecer
às suas instruções, considerando que aquele era um trabalho para
os lacaios. O barco tinha enchido rapidamente, começando a
afundar-se lentamente.
Lord Bremmer ofegava e gritava. Felicity saltou do barco e
mergulhou, nadando até ele. Foi então que ouviu o grito do
marquês:
– Pode levantar-se, Bremmer. Tem pé.
Felicity levantou-se. A água chegava-lhe ao pescoço. Agarrou no
lorde que se agitava violentamente para não se afundar e gritou-lhe
que ficasse quieto. Lord Bremmer com movimentos desajeitados e
cambaleantes lá conseguiu pôr-se em pé.
– Quanta tempestade num copo de água – riu-se Felicity, mas
logo em seguida o riso esmoreceu-lhe nos lábios. Através da cortina
de chuva, viu o marquês abrir caminho até à margem com Betty nos
braços. Era uma cena comovente.
Felicity sentiu-se gelada e deprimida. Nadou até à margem e, de
repente, sentiu-se agarrada e retirada da água. O marquês pousou-
a no chão, com os olhos brilhantes de riso.
– Já viu uma situação tão ridícula, Felicity? – disse ele. – Ambos a
uivar como loucos nuns poucos centímetros de água.
Betty Andrews tremia como varas verdes, observando-os com os
olhos cheios de ódio. Todo o antigo ciúme que sentira de Felicity
havia retornado. Lord Bremmer tinha sido doce e carinhoso e ela até
o deixara roubar um beijo, mas Betty estava determinada a ser
duquesa e não ia deixar que Felicity se metesse no seu caminho.
Soltou um leve queixume e deixou-se cair artisticamente na relva
num desmaio fingido. Ouviu o som de pés a correr e sentiu-se ser
levantada por braços fortes. Fingiu recuperar a consciência e abriu
os olhos. O rosto de Lord Bremmer pairava acima dela.
– Fique sossegada, minha joia preciosa – disse ele. – Eu
mantenho-a a salvo.
Betty virou a cabeça naquele braço protetor e olhou para trás. O
marquês e Felicity vinham a andar lado a lado, ambos a rir-se como
perdidos.
A mera indiferença e crueldade da cena fez Betty sentir-se
realmente doente.
Felicity acusara o marquês de ter um coração insensível e o
marquês salientara que o desmaio fingido de Betty fora a melhor
representação que vira fora do palco. Ambos acharam muito
engraçado que quando Betty fingisse recuperar se visse nos braços
de Bremmer e não nos do marquês, embora nenhum deles
sonhasse sequer em confessar ao outro um pensamento tão cruel.
As irmãs Tribble estavam lado a lado à janela da sala de estar do
rés do chão a observar o regresso do grupo.
– Ela apanhou-o! – exultou Amy, querendo com isto dizer que
Felicity tinha apanhado Ravenswood.
O casal encharcado ainda se ria perdidamente, ambos
subjugados àquele ataque insano de riso que só os amantes ou as
crianças conhecem.
– Não, não apanhou – contrariou Effy baixinho. – Miss Andrews é
muito ambiciosa e quer ser duquesa um dia. Ela não vai libertar
Ravenswood do noivado.
– Temos de fazer alguma coisa – disse Amy. – Onde está a
duquesa?
– Porquê? Devo dizer que sua graça provou ser muito amável, e
aquele tónico que me deu para a dor de cabeça funcionou quase
imediatamente.
– Pensei numa coisa – foi tudo o que Amy deixou escapar e
afastou-se no seu masculino passo largo.
Para salientar a sua condição frágil, Betty teria ficado muito feliz
em passar o resto do dia deitada no quarto, com as cortinas
corridas. A criada abriu a porta e entrou sem fazer barulho. Antes de
fechar a porta atrás de si, Betty ouviu o tilintar fraco de um piano.
– Quem está a tocar? – perguntou, sonolenta.
– Lady Felicity – informou a criada. – Sua senhoria está a entreter
os cavalheiros.
Um rubor violento subiu às faces de Betty e ela começou a lutar
para sair da cama.
– Ai está? – murmurou ela. – Ajuda-me a vestir num instante.
A ideia de Betty de se vestir num instante significava que a criada
só tinha uma hora para a vestir, apertar as fitas, arranjar o cabelo e
aplicar o rouge nos lábios e faces. Depois seguia-se a agonia de
escolher o leque perfeito, de arranjar um xaile de Norfolk que ficasse
com o caimento também perfeito e depois a cor certa de luvas tinha
de ser encontrada. Todo o processo era tão desgastante que Betty
às vezes se perguntava se as classes mais baixas se davam conta
da enorme quantidade de trabalho suportada por uma senhora da
sociedade.
Estava prestes a sair do quarto quando Amy entrou. Betty olhou-a
com desagrado. Alguns dos alfinetes de osso no cabelo de Amy
estavam soltos e uma madeixa de um cinza metálico caía-lhe sobre
o rosto. Ela usava um dos seus velhos e andrajosos vestidos
rodados, apesar de a costureira lhe ter feito vários novos que lhe
assentavam muito bem. Amy detestava a cintura situada mesmo
abaixo do busto e preferia tê-la onde devia estar. A linha estreita dos
vestidos novos não lhe permitia a mesma liberdade de movimentos
que os antigos.
– Vim ver como está – resmungou Amy, sentando-se numa
cadeira e esticando os pés para a frente, passando a examiná-los
como se nunca os tivesse visto antes.
– Estou muito melhor – respondeu Betty de maneira hirta. – Ia
agora mesmo descer.
– É cá um raio de um imbróglio tentar encontrar o caminho neste
celeiro – comentou Amy. – Admiro a sua coragem. Deve ser terrível
ser uma duquesa e ter de governar isto tudo. Claro, isso pode não
acontecer durante muito tempo. O duque é vivaço. Muito vivaço.
– Ele deve estar quase nos sessenta – disse Betty com
impaciência.
– Que importa isso? O pai dele tinha noventa quando morreu.
Ainda assim, Ravenswood tem uma grande casa só sua. Ele diz
sempre que não quer realmente ser duque. Está meio decidido a
entregar a sucessão ao irmão mais novo, Harry, aquele que está na
guerra.
– Ele nunca faria isso.
– Oh, é uma possibilidade – asseverou Amy. – Ele parece não
prestar muita atenção aos pais, mas o facto é que os adora. Ainda
há pouco a duquesa lhe estava a dizer que não a achava capaz de
gerir Ramillies House, e eu pude ver que isso o deixou preocupado.
Mas ele disse-lhe, disse-lhe assim: «Não se preocupe, mamã. Estou
certo de que o Harry vai encontrar a duquesa certa para si.»
– Nunca ouvi falar de tal disparate! – exclamou Betty, chocada.
– Acontece – disse Amy laconicamente. – Veja o marquês de
Drent. Ele recusou o ducado no século passado.
– Eu sei disso – assentiu Betty, impaciente. – Mas Drent estava
louco.
– Exatamente – concordou Amy alegremente.
– Está a querer dizer...? Eu não acredito em si. Não há casos de
loucura na família de Ravenswood.
– Ainda não conheceu a tia dele, Matilda – adiantou Amy, que
realmente gostava de mentir assim que lhe apanhava o jeito. –
Pensa que é a rainha Elizabeth. Mas se está determinada a casar
com ele e a vir a ser duquesa um dia, é melhor começar a
convencer a duquesa atual de que é adequada para a posição.
Peça-lhe conselhos. Convença-a a mostrar-lhe a casa. Ravenswood
vai adorar.
– Se me dá licença, agora eu gostaria de descer – desculpou-se
Betty, muito hirta.
Amy ficou a vê-la sair e depois levantou-se.
– Espero que ela morda o isco – murmurou para si mesma. –
Agora vamos lá encontrar a Effy e maquinar uma maneira de a pôr a
pensar que Ravenswood é louco.

– Estou apaixonada por ele e quero-o para mim! Pronto! – disse


Lady Felicity Vane ao seu reflexo no espelho. Soltou um grande
suspiro de alívio. Por fim, admitira-o. Mas não havia esperança.
Betty estava a agradar muito à diminuta duquesa e era vê-la a correr
obedientemente atrás dela da adega ao sótão, a examinar linhos, a
fazer perguntas aos criados sobre as respetivas funções e a
trabalhar na despensa. Ravenswood tornara-se frio, distante e
formal e Lord Bremmer tornava-se cada vez mais byroniano. Melhor
dizendo, byroniano na opinião dele, mas mal-humorado e
carrancudo na de todos os outros. A carruagem já fora consertada e
não havia nenhuma razão para ele ficar, mas ainda assim ele ficara.
Felicity gostaria de saber o que pensava o marquês acerca disso.
Amy também não era ajuda. Felicity tinha-a encontrado a
resmungar para si mesma algo parecido com «Ela está a agradar à
duquesa e eu achava que não seria possível e ele não parece nem
um pouco louco».
Felicity virou-se quando Wanstead entrou no quarto.
– Pode fazer-me um arranjo bonito no cabelo, Wanstead? –
perguntou ela. – Vai haver uma espécie de baile depois do jantar. A
duquesa quer uma demonstração da quadrilha.
– Como disse, minha senhora?
Felicity percebeu que tinha falado num tom normal. Wanstead era
ligeiramente surda e podia tornar-se muito surda quando não queria
ouvir. Felicity repetiu o que acabara de dizer em voz alta.
– É claro que sim – respondeu Wanstead. – Sente-se ao toucador,
minha senhora, e irei fazer o meu melhor.
Felicity sorriu.
– Eu não sei o que lhe deu, Wanstead. Agora faz-me sempre uns
penteados tão bonitos. Quase me esqueço das vezes que parecia
estar a tentar arrancar-me os cabelos da cabeça.
– Talvez seja por causa da sua mudança, minha senhora – disse
Wanstead. – Agora diz «por favor» e «obrigada» e assim é um
prazer trabalhar para si.
– Tenho sido assim tão monstruosa? – perguntou Felicity com
desalento.
– Sim, minha senhora – respondeu Wanstead. – Agora fique
quieta e deixe-me trabalhar.

– Toda a minha manipulação não serviu para nada – concluiu


Amy. – Sua graça acabou de me informar que Betty Andrews é um
tesouro.
– Devias ter-me consultado – repreendeu Effy severamente. – És
demasiado impetuosa, Amy.
– Bem, normalmente sou mais direta do que tu – disse Amy com
veemência. – Vou sempre ao cerne da questão.
– Então vai ao cerne da questão – concordou Effy com um toque
intencional. – Vai e diz a Ravenswood que ele está apaixonado por
Felicity e que queres que ele se comporte como um louco para se
libertar do noivado.
Amy ficou a olhar para a irmã de boca aberta. Então desatou a rir.
– Valha-me Deus, tu tens razão, Effy – cacarejou ela e saiu a
galope da sala, batendo a porta atrás de si.
Depois de algumas perguntas diligentes aos criados, Amy
descobriu que o marquês tinha saído a cavalo. Ela estava tão
impaciente para o encontrar que foi direta às cavalariças e exigiu
que lhe selassem um cavalo. O responsável pelo espaço apressou-
se a cumprir a ordem, dizendo que tinha de encontrar uma sela de
senhora, mas Amy gritou-lhe que conseguia cavalgar com uma sela
comum. Em breve saía a galope numa montaria enorme, os seus
grandes pés presos nos estribos e as saias levantadas, revelando
as meias escarlates.
O marquês tinha ido a cavalo até à herdade e acabara de
completar a visita quando viu Amy a galopar a toda a velocidade na
sua direção. Teve um mau pressentimento súbito. Devia ter
acontecido alguma coisa a Felicity para fazer Amy Tribble galopar a
toda a brida daquela maneira. Assim que Amy se aproximou dele,
refreou o cavalo e saltou da sela.
– Vossa senhoria – disse ela sem fôlego. – Tem de parecer louco
o mais rapidamente possível.
– Porquê? O que aconteceu?
– Tem de dar um desgosto a Miss Andrews o mais depressa
possível – insistiu Amy.
– O que raio está para aí a dizer?
– Tem de romper o noivado com Miss Andrews, ou melhor, forçá-
la a rompê-lo.
– Está a fazer-me sentir incrivelmente estúpido – disse o marquês
com paciência –, mas eu ainda não consegui perceber o que está a
querer dizer.
Amy suspirou e disse com cautela:
– Ravenswood, o senhor está loucamente apaixonado pela
Felicity. Não quer casar-se com Miss Andrews. Mas ela é ambiciosa
e não vai libertá-lo, a menos que o senhor faça alguma coisa. Eu
disse-lhe que havia casos de loucura na sua família, mas acho que
ela não acreditou em mim.
– Começo a pensar que há casos de loucura na sua família, Miss
Tribble. Eu não amo Lady Felicity.
– Um monte de balelas, é o que é. Eu não sou cega.
O marquês pôs os olhos no chão. Ficou em silêncio por um longo
tempo. Depois disse em tom vagaroso:
– Não se preocupe, Miss Amy, eu sou bem capaz de tratar dos
meus assuntos.
– Mas...
– Não, a senhora não deve interferir. Nem mais uma palavra.
Venha, eu acompanho-a no regresso a casa. Já só temos meia hora
para nos vestirmos para o jantar.
A duquesa de Handshire não era totalmente insensível. Orgulhava-
se da sua mesa e pôs-se a pensar no que teria acontecido ao
apetite de todos. Um silêncio taciturno reinava e os convidados
debicavam a comida, com exceção de Amy, que alegremente
comeu tudo o que tinha no prato.
Betty apresentava-se tão bonita como sempre, embora houvesse
pequenas sombras sob os olhos. Felicity tinha um ar distraído e
bebeu de mais, e pela primeira vez Effy não teve coragem de a
repreender. Lord Bremmer enviava olhares ardentes na direção de
Betty e durante toda a refeição insistiu em pedir-lhe que o
acompanhasse no vinho.
Já todos reunidos na sala de estar, mantiveram-se de pé em
conversa amena. O marquês levou Betty para um canto e começou
a falar com ela intensamente. Amy alegrou-se ao ver a crescente
expressão de horror no rosto de Betty e ficou curiosa de saber o que
estaria ele a dizer-lhe.
A duquesa ordenou uma demonstração da quadrilha. Effy sentou-
se. Nenhum deles dançava muito bem e a demonstração chegou a
um fim abrupto quando Lord Bremmer tentou um entrechat e torceu
o tornozelo.
Felicity achou a noite interminável. Partiriam no dia seguinte.
Ravenswood mal falara com ela e, quando a olhava, a sua
expressão era velada. Não havia esperança. Sentia a cabeça
pesada. Ia fazer as pazes com a mãe e desculpar-se pelo anterior
comportamento selvagem casando-se discreta e adequadamente. A
ideia era tão deprimente que sentiu as lágrimas picarem-lhe os
olhos.
O grupo de convivas partiu pesaroso no dia seguinte, iniciando o
longo caminho de volta. Apenas Effy se alegrou visivelmente ao ver
ruas e lojas começarem a aparecer de ambos os lados. Felicity
desejava que o marquês mudasse de casa. Estava certa de que não
iria suportar estar sob o mesmo teto que ele e ser obrigada a
aguentar as visitas de Betty e da mãe por causa dos preparativos
para o casamento.
Nessa noite Felicity dormiu pesadamente, só acordando ao fim da
manhã. Enquanto descia com relutância as escadas ouviu uma voz
quezilenta e queixosa elevar-se na sala de estar.
Mrs. Andrews.
Felicity achou-se incapaz de suportar. Retirou-se para o quarto,
mergulhou na cama, completamente vestida, e tapou a cabeça com
as cobertas.
Lá em baixo na sala de estar, as irmãs Tribble mudas de espanto
e o marquês de Ravenswood ouviam a preleção de Mrs. Andrews.
– Eu não podia acreditar nos meus ouvidos – dizia a senhora. – A
minha pobre e querida filha está muito, muito abalada. Toda aquela
beleza divinal a ser perseguida assim. A duquesa a fazer dela
escrava de manhã à noite no governo da casa como se o meu
cordeirinho fosse uma copeira. A fazer mistelas desagradáveis e
malcheirosas na despensa! E o senhor! – Mrs. Andrews virou-se
para o marquês. – O senhor é um monstro!
– Eu? – disse o marquês, lançando-lhe um olhar cristalino.
– Sim, o senhor. Disse à Betty que queria vinte filhos em rápida
sucessão e que ela nunca mais viria à cidade porque o senhor
pretendia passar o resto dos seus dias no campo. Disse-lhe que
queria uma esposa dócil e obediente e que não tolerava senhoras
que gastam dinheiro em vestidos. Disse-lhe que três vestidos por
ano era o suficiente – exaltou-se Mrs. Andrews, elevando a voz ao
ponto da gritaria. – Pois bem, deixe-me que lhe diga: eu devia ter-
lhe tirado logo a pinta, Ravenswood, quando decidiu viver com estes
dois sustos. A Betty disse-me que há casos de loucura na sua
família. Então, ouça isto! Eu mesma fui pessoalmente aos jornais
esta manhã e coloquei um anúncio de cancelamento do noivado. O
que tem a dizer sobre isto?
– Obrigado – agradeceu o marquês com uma vénia. – Claro, o
meu coração está partido.
– Aldrabão! – protestou Mrs. Andrews. – O senhor não tem
coração. Lord Bremmer, sim, tem coração. A Betty contou-me que
se não fosse por ele, o senhor tê-la-ia deixado desmaiada no meio
de uma tempestade arriscando-se a morrer de pneumonia. Pois
passem bem, e espero nunca mais pôr os olhos em nenhum de vós!
Partiu numa enxurrada de seda roxa e perfume intenso.
– Ai a minha estrelinha! – exclamou Effy. – Já começava a pensar
que nada iria funcionar.
– Minha querida Miss Amy, minha querida Miss Effy – começou o
marquês. – Posso pedir a vossa permissão para...?
– Vá, despache-se – respondeu Amy, rindo como uma criança. –
Ela está no quarto.
Felicity ouviu a porta abrir-se, mas manteve os olhos bem
fechados. Pensou que era provavelmente uma das irmãs, a vir
buscá-la para descer até à sala de estar, e não queria ser
incomodada.
Alguém se sentou na cama. Felicity fingiu um leve ressonar.
– Felicity – disse uma voz grave e profunda.
Ela abriu os olhos e virou-se, fitando o rosto do marquês de
Ravenswood.
– O que quer? – exigiu ela saber, entre lágrimas. – Veio para me
atormentar?
– Eu vim pedir-lhe para casar comigo. Ninguém me quer. A mãe
de Miss Andrews cancelou o noivado.
– Porque quer casar comigo? – reivindicou Felicity.
– Eu amo-a.
– Oh, Charles – suspirou Felicity, colocando os braços à volta do
pescoço dele. – Quando é que soube que me amava?
– Quando Miss Amy Tribble me disse.
– Isso não é nada romântico.
– Mas isto é? – disse ele em voz baixa, aproximando o rosto do
dela – E isto... e isto...?
– Oh, Charles. Beije-me outra vez.
– Sai dessa porta imediatamente, Amy Tribble – ralhou Effy. – Não
devias pôr-te à escuta.
– Eu sou acompanhante, não sou? – protestou Amy, encostando
a orelha aos painéis da porta do quarto de Felicity mais uma vez. –
Sou a melhor acompanhante do mundo. Que digo eu? Nós as duas
somos as melhores. – Virou-se para encarar Effy, com os olhos a
brilhar. – Com mil demónios! Nós conseguimos.
De dentro do quarto veio o ranger das molas da cama.
– Valha-me Deus! – exclamou Effy. – Temos de os impedir.
– Eu não acredito que Ravenswood se exceda – disse Amy
alegremente. – Vem, Effy. Isto merece champanhe.

– É melhor descermos e darmos às irmãs Tribble a boa notícia –


sugeriu o marquês, depois de relutantemente ter afastado os lábios
dos dela. – Temos de casar em breve, porque não está segura
comigo.
Tontos de paixão e felicidade, desceram.
– Eu acho que elas já sabem – disse o marquês, quando pararam
do lado de fora da sala de estar.
De dentro veio o barulho de Amy a rugir o refrão da opereta The
Gay Hussar, enquanto Effy martelava as teclas do piano com
entusiasmo.
– Mais um beijo – sussurrou o marquês, puxando Felicity de volta
para os seus braços.
Mas Felicity manteve-o à distância e perguntou:
– Disse à Betty algo que a assustou?
– Apenas que queria vinte filhos.
Felicity começou a rir.
– É uma ideia maravilhosa – disse ela. – Quando começamos?
Ele sacudiu-a e sorriu-lhe.
– Ainda é selvagem – disse ele. – Venha, beije-me e prometa-me
que nunca irá mudar.
O amor governa o exército, a corte, o bosque... porque o
amor

É o paraíso, e o paraíso é o amor.

LORD BYRON

Lady Baronsheath estava com uma visita, uma tal Mrs. Toddy, uma
viúva tranquila e alegre, que estava muito gratamente interessada
em saber todos os detalhes do futuro casamento de Lady Felicity.
Lady Baronsheath temera que o marido escrevesse da América a
proibir que o casamento se realizasse antes do seu regresso. Mas o
conde respondera a dizer que estava altamente satisfeito,
acrescentando friamente que tinha a certeza de que a mulher
poderia tratar da união do casal sem a sua ajuda.
A condessa deveria viajar para Londres na semana seguinte para
dar início aos preparativos para o casamento na igreja de St.
George, em Hanover Square. Estava feliz com a companhia
descontraída de Mrs. Toddy, pois temia constantemente receber
uma carta a informá-la de que Felicity tinha mudado de ideias. Não
podia acreditar que a sua filha viesse a ser tão respeitavelmente
casada, ainda que o noivado fosse terrivelmente curto: apenas três
meses.
– O que ainda não me contou – disse Mrs. Toddy, entre goles de
chá – é como conheceu as irmãs Tribble, nem como as escolheu
para educar Felicity. Acabou por ser uma decisão brilhante, mas
como poderia adivinhar? Eu conheço-as um pouco e Amy Tribble é
uma pessoa muito estranha.
Lady Baronsheath hesitou e depois disse:
– Eu conto-lhe, se me prometer que não conta a ninguém.
Mrs. Toddy pôs um ar adequadamente solene.
– Nem uma palavra sairá dos meus lábios.
A condessa foi buscar à gaveta a folha de jornal agora
amarelecida, alisou-a e entregou-a a Mrs. Toddy.
– Eu estava desesperada, sem saber o que fazer – explicou ela. –
Foi então que vi este anúncio e respondi. Na altura, eu não sabia
nada das irmãs Tribble.
Mrs. Toddy leu o anúncio devagar e com muita atenção.
– Que coisa incrível – suspirou ela, finalmente. – Não, claro que
não conto a ninguém. Toda a gente acredita que as irmãs Tribble
são amigas da sua família.
Mrs. Toddy deixou Greenboys House antes da partida de Lady
Baronsheath para Londres, garantindo à amiga que iria ao
casamento e dizendo-se honrada por ser incluída na lista de
convidados.
Ao regressar a Tunbridge Wells, Mrs. Toddy descobriu que o
segredo de Lady Baronsheath se avolumara dentro dela a ponto de
ser penoso. Era terrível possuir um pedaço de coscuvilhice tão
esplêndido e ter de o guardar dentro do peito.
Certa tarde, enquanto escolhia sedas numa loja, encontrou Lady
Fremley, uma das hóspedes da estância termal. Puseram-se à
conversa enquanto examinavam as sedas e Lady Fremley
confessou estar verde de inveja por Mrs. Toddy ter sido convidada
para o casamento do ano. Implorou a Mrs. Toddy que fosse com ela
beber um chá.
Lady Fremley gostava de misturar o seu chá da tarde com brandy,
e logo Mrs. Toddy soltou a língua, acabando por contar a Lady
Fremley a história do anúncio das irmãs Tribble, mas pedindo-lhe
que guardasse segredo.
Contudo, Lady Fremley não tinha a consciência escrupulosa de
Mrs. Toddy e, sentindo o segredo queimar dentro dela,
paulatinamente começou a aliviar a dor com toda a gente, até dar a
ideia que todas as classes superiores de Tunbridge Wells tinham
jurado guardar o segredo.
Foi assim que o boato se espalhou como ondas numa piscina, e a
pequena maré de coscuvilhice veio rumorejar às margens de
Londres antes do casamento de Felicity. Rapidamente se espalhou
entre a classe mais alta da sociedade, descendo, em seguida, para
a classe mais abaixo, que incluía Mr. Desmond Callaghan.
Esse peralta da sociedade ficou bastante indignado, pois todos
comentavam as irmãs Tribble com grande admiração. Gostaria de
ter sabido disso mais cedo para poder tentar estragar-lhes os planos
e arruinar-lhes o trabalho como acompanhantes. Ainda assim,
pensou de repente, poderia sempre haver uma próxima vez...
Amy e Effy tinham recebido um confortável bónus de três mil
libras de Lady Baronsheath. Effy estava profundamente satisfeita.
Tinham contratado a sua própria equipa de criados e até comprado
alguns quadros para as paredes, tendo Felicity finalmente
conhecimento da proveniência tanto dos quadros como dos criados.
Mas à medida que o dia do casamento se aproximava, Amy foi
ficando cada vez mais ansiosa. As oito mil libras que Lady
Baronsheath lhes entregara para a apresentação de Felicity à
sociedade já se tinham esfumado, e agora comiam do dinheiro do
bónus de três mil. Oito mil libras podiam parecer uma fortuna para a
maioria da população, mas era uma quantia apenas suficiente para
uma temporada social aristocrática, especialmente com os preços
inflacionários da Regência. Embora Felicity estivesse noiva, elas
ainda eram obrigadas a fazer de acompanhantes durante toda a
temporada social londrina. Havia um sem-número de visitas para
receber e todos os novos criados a quem pagar no início de cada
trimestre.
Por fim, Amy viu-se obrigada a estragar a alegria de Effy,
confessando-lhe as suas preocupações. Effy disse que tinha a
certeza de que Mr. Haddon estava prestes a pedi-la em casamento,
mas essa informação só serviu para deixar Amy de cabeça perdida,
acusando Effy de ser completamente inútil e viver de fantasias.
Mr. Haddon chegou.
– Mas não precisam de se preocupar – disse ele depois de Effy
ter sido acalmada e Amy ter explicado o problema, apesar de não
ter conseguido deixar de acrescentar com uma pontinha de veneno
que Effy vivia no sonho de alguém a pedir em casamento. Nesse
momento Effy lançara um olhar esperançoso a Mr. Haddon,
agitando sedutoramente o leque, mas ele parecia perdido em
pensamentos. Ela começou a fungar tristemente.
– Sim – disse ele, pensativo. – Não vejo porque devam
preocupar-se. Parece correr toda a Londres que Lady Baronsheath
respondeu a um anúncio vosso. Estou certo de que, desta vez, nem
vão precisar de fazer propaganda.
– Mas eu não quero passar por tudo aquilo de novo – lamentou
Effy. – As donzelas difíceis são tão cansativas.
– Que disparate! – disse Amy, muito entusiasmada. Lançou o seu
novo xaile sobre os ombros e rodou para cá e para lá admirando o
efeito. – Desta vez, teremos por onde escolher.

Em Tunbridge Wells, Mr. e Mrs. Burgess encontravam-se sentados


na sua sala de estar escura e excessivamente mobilada.
– É inútil discutir sobre essas tais Tribble – disse Mrs. Burgess ao
marido. – Não resultaria com Fiona. A minha sobrinha é demasiado
teimosa e impregnada de pecado.
– Pelo que me é dado saber – argumentou Mr. Burgess,
levantando-se e começando a andar para um lado e para o outro –,
não temos grande esperança. Ela é uma herdeira muito rica e seria
de pensar que algum homem a quisesse.
– E quiseram! – exclamou Mrs. Burgess. – Quatro, para ser mais
precisa. E o que aconteceu? Todos ficaram sozinhos com ela para
lhe fazerem a corte e todos saíram aos tropeções de casa sem a
pedir em casamento, e para nunca mais se ouvir falar deles. Mas
nem uma surra teve o efeito de arrancar mais alguma coisa a Fiona,
exceto a afirmação de que eles deviam ter mudado de ideias e que
ela não sabia porquê. A minha sobrinha é muito rica e a gestão do
dinheiro sai das nossas mãos no dia em que ela se casar. Eu digo-
lhe, Mr. Burgess, as pessoas vão começar a dizer que é tudo culpa
nossa e que estamos a impedi-la de se casar. Não temos feito o
nosso melhor? Não lhe temos lido a Bíblia diariamente? Não a
mantivemos a pão e água?
– Se ela fosse para essas tais Tribble – insistiu Mr. Burgess –,
pelo menos estaria fora da nossa alçada por mais de uma
temporada. Imagine que a aceitam mais ou menos em novembro
para começarem a educá-la; ficaríamos livres dela durante, pelo
menos, oito meses. Não é o nosso dinheiro que vai pagar por isso,
mas o de Fiona. E eu acho que a despesa se justifica. Tenho rezado
todas as noites por orientação e acredito piamente que foi Deus que
nos enviou notícias dessas tais Tribble.
Mrs. Burgess pensou nos oito meses sem Fiona.
– Muito bem – concordou. – Vamos viajar até Londres logo depois
do casamento e abordar o assunto com elas. Imagino que sejam
muito caras.
– Oh, sim – afirmou Mr. Burgess. – Lady Fremley disse a Mrs.
Jessop que Mrs. Toddy lhe falara de elas estarem a pedir, pelo
menos, dez mil libras, além de um bónus se a jovem fizer um bom
casamento. Perguntei a Mrs. Toddy, que insistiu com veemência
nunca ter dito uma palavra, e acrescentou que nunca poderia ter
falado de qualquer quantia em dinheiro porque Lady Baronsheath
não tinha mencionado valores.
– Considerando a quantidade de bens que a nossa sobrinha inútil
possui, dez mil libras é apenas uma gota no oceano – afirmou Mrs.
Burgess. – Está decidido. Fiona vai para as irmãs Tribble.

Felicity havia suportado o ensaio geral da cerimónia de casamento,


mas já começava a questionar se seria melhor fugir. O marquês
estava tão furioso como um urso, e quando se debruçara para a
beijar no ensaio, primeiro resmungou que todo aquele maldito
corrupio o estava a deixar louco e que estava profundamente farto
da coisa toda. Só depois os lábios dele desceram num beijo breve e
frio.
Miss Betty Andrews ficara noiva de Lord Bremmer e Felicity
refletiu com desalento que pelo menos eles pareciam um casal
apaixonado. Tinha-os visto no parque no outro dia, a fitarem-se com
adoração. Felicity regressara a casa, apenas para ser acareada pelo
marquês que, ofendido com um dos convidados dos Baronsheath,
sugerira friamente a Felicity que assumisse a responsabilidade de
parte das tarefas do casamento, em vez de andar a passear e
deixar tudo nas mãos dos outros.
Felicity ficara profundamente magoada e ferida, como apenas
uma jovem apaixonada consegue ficar ao ser alvo de um
comentário como aquele. Às vezes pensava que o puro deleite da
mãe naquele processo todo era a única coisa que a impedia de dar
ao marquês uma lição bem merecida pela explosão de fúria.
Todos aqueles anseios que ele lhe despertara no corpo ainda lá
estavam e nenhum deles, ao que parecia, iria ser amenizado pela
mais breve carícia. Ele lembrava-lhe os amigos de caça no seu baile
de debutantes que a tinham tratado como o homem que o seu pai
tanto quisera que ela fosse.
Outras jovens poderiam sonhar com a lua de mel e em ficar
finalmente a sós com o seu amado, e Felicity não era exceção, só
que ela queria ficar sozinha com o marquês para poder atirar-lhe
alguma coisa à cabeça e, em seguida, dizer-lhe exatamente o que
pensava dele.
O dia do casamento amanheceu molhado e sombrio, e Wanstead
andava por ali atarefada a resmungar que era um mau presságio.
Felicity atirou-lhe com uma escova de cabelo, que Wanstead
habilmente apanhou, passando então a enfurecer Felicity ainda
mais, ao pregar-lhe um sermão sobre como algumas donzelas
nunca modificavam o seu comportamento.
Amy estava demasiado enlevada pela roupa nova que usava para
reparar no sofrimento de Felicity. Era um vestido de lã verde de
corte masculino, ornamentado com um folho em renda dourada no
peito e um detalhe de renda dourada nos pulsos. Mr. Haddon
dissera-lhe que ela estava «muito bem» e oferecera-lhe um fino
xaile de caxemira, pedindo-lhe para não contar a Effy, porque os
outros xailes que trouxera tinham apanhado traça e estavam
irremediavelmente danificados. Por isso agora Amy e Mr. Haddon
partilhavam um segredo do qual Effy não fazia parte, e Amy guardou
muito satisfeita esse conhecimento para si mesma e disse a Effy
que ela mesma tinha comprado o xaile a Lady Rochester. Amy
pensou com despreocupação que tinha de avisar Lady Rochester da
mentira, mas com toda a azáfama dos preparativos do casamento,
esqueceu-se.
Felicity encontrava-se sentada na sala de estar, à espera da
carruagem que a levaria para a igreja. Mr. Haddon sussurrou a Effy
a sua opinião de que Lady Felicity parecia absolutamente furiosa
com alguma coisa, mas Effy estava demasiado intimidada com a
presença do irmão do conde, Lord Devere, para prestar muita
atenção ao que quer que fosse. Lord Devere era muito parecido
com o conde de Baronsheath: grande, exuberante e ruidoso.
Reparando no rosto contraído de Felicity a caminho da igreja,
Lord Devere assumiu que eram os nervos normais de noiva e
contou-lhe várias histórias alegres num esforço para a animar. Ele
tinha bebido muito e caminhava de forma muito instável ao conduzi-
la pela nave central.
Amy e Effy estavam sentadas muito encostadas uma à outra
durante a cerimónia, e quando o marquês disse «Aceito», Amy
abafou um soluço e apertou a mão enluvada de Effy. Em quantas
noites longas e penosas tinham ambas sonhado que um dia uma
delas estaria onde Felicity estava agora. Ambas desistiram de tentar
ser corajosas e choraram baba e ranho, até chegar ao ponto de os
lamentos de Amy ameaçarem abafar o ruído do órgão.
Quando saíram da igreja, Amy que estava prestes a subir para a
carruagem e seguir o feliz casal para o banquete de casamento, de
repente viu Desmond Callaghan em pé no meio da multidão que se
aglomerara no exterior. Ele lançou-lhe um olhar tão malévolo que
Amy estremeceu. Em seguida, consolou-se com o pensamento de
que pouco havia que um homem tão fraco pudesse fazer-lhes.
O banquete de casamento foi realizado na casa que os Handshire
possuíam na cidade, e que havia sido especialmente aberta para a
ocasião, uma vez que o duque e a duquesa preferiam passar o ano
no campo.
Houve discursos e brindes, danças e depois Felicity partiu com o
marquês para assumir a sua nova vida.
Ela beijou a mãe e abraçou Amy e Effy e subiu para a carruagem,
que estava fechada porque caía uma chuva miudinha constante. Ela
abriu a janela e atirou o bouquet; com um enorme salto Amy
agarrou-o e acenou, triunfante.
Felicity sorriu e retribuiu o aceno. Em seguida, afundou-se no
assento.
– Eu tenho uma coisa a dizer-lhe, vossa senhoria – disse ela,
virando-se e olhando para o marquês.
– Graças a Deus que tudo terminou – desabafou ele, tirando o
chapéu e atirando-o para o assento oposto. – O que tem a dizer,
meu amor? Já anda a fuzilar-me com os olhos há imenso tempo.
– Como se atreve a intimidar-me e tratar-me tão friamente? –
enfureceu-se Felicity. – Se acha que é assim que me vai tratar agora
que estamos casados, está muito enganado. Eu não tenho medo de
si, seu grande imbecil. – E com isto, puxou atrás o punho e desferiu-
lhe um soco forte no lado da face.
Ele agarrou-lhe as mãos e aprisionou-as nas dele.
– Eu não fui frio – explicou ele. – Meu Deus, todos estes
preparativos medievais seriam suficientes para levar um homem à
loucura.
– Miss Andrews está noiva e apaixonada e mostra-o para quem
queira ver – disse Felicity, lutando para libertar as mãos. – Lord
Bremmer derrete-se em sorrisos para ela e adora-a, e o Charles
parece que teima em mostrar a todos que não se importa nem um
pouco comigo.
– Eu quero-a na minha cama, sua tontinha. Eu amo-a tanto que
tive medo de lhe tocar e descobrir que não conseguia esperar pelo
nosso casamento. Oh, Felicity, eu sofro por si.
– Isso é verdade, Charles? – perguntou Felicity, subitamente
apaziguada.
– Beije-me, meu amor, e mostro-lhe o quanto.
Ele puxou-a e deu-lhe um abraço bem apertado, sentindo toda a
paixão familiar que ela lhe despertava com uma exaltação
inebriante. O vestido de noiva branco de Felicity era bordado com
pequeninas pérolas. Algumas começaram a retinir no chão da
carruagem sob a tensão de mãos inquisidoras e corpos arfantes.
Quando vieram a si, ambos coraram ao perceber que os degraus
da carruagem estavam descidos e que um lacaio de cara
imperturbável segurava a porta aberta.
O marquês desceu e, dispensando o lacaio, pegou em Felicity ao
colo e levou-a para dentro de casa.
Humphrey, o mordomo, estava ali de pé, com um ar mais
pomposo do que nunca. Ele conhecia bem todos os trâmites da
tradição. Embora Felicity já conhecesse todos os criados, Humphrey
achou ser de bom-tom que a nova marquesa voltasse a ser
apresentada a todos eles, por isso a equipa encontrava-se alinhada
no átrio de entrada.
O mordomo desenrolou um longo pedaço de pergaminho e
começou o seu discurso preparado. Mas só chegou ao fim da
primeira frase.
– Esplêndido, Humphrey – interrompeu o marquês, ainda
segurando Felicity nos braços. – É bom estar em casa. Mande servir
champanhe para todos e dê um guinéu a cada um.
Dito isto, dirigiu-se para as escadas.
– Vossa senhoria! – chamou Humphrey, indignado. – Eu não
tenho instruções. Gostariam de jantar?
– Não – respondeu o marquês, irritado. – Estamos cansados e
vamos para a cama.
Humphrey corou violentamente, mas, consciente da sua posição,
tentou novamente.
– Quando é que vossas senhorias desejam o pequeno-almoço?
– Na próxima semana – disse o marquês, subindo agilmente as
escadas com Felicity ao colo.
Foi direto para o quarto, fechou a porta atrás de si com um
pontapé e, em seguida, pousou-a delicadamente no chão. Inclinou-
lhe o queixo e fitou-a profundamente.
– Só nós – disse baixinho. – Só nós os dois. – Puxou-a
suavemente para si e beijou-a nos lábios. Então, sorriu e
acrescentou: – Nada das terríveis irmãs Tribble.
– Como pode chamar-lhes terríveis? – espantou-se Felicity. – É
graças à Amy e à Effy que estamos casados.
– Mas tem de admitir que elas conseguem ser bastante ferozes,
meu doce. Faremos um brinde a elas antes de irmos para a cama.
Felicity olhou para a grande cama de dossel com as cobertas
puxadas para trás.
– Agora que estamos aqui, Charles – murmurou ela contra o peito
dele –, as coisas parecem um pouco estranhas e assustadoras. Há
assuntos delicados que a escola de boas maneiras das irmãs
Tribble não... me ensinou.
– Eu estou igualmente nervoso – confessou ele. – Venha, vamos
fazer as nossas descobertas de amor juntos. Há algumas coisas,
querida Felicity, que não se pode esperar que duas velhas
solteironas saibam.
Na casa de Holles Street, as solteironas Tribble brindavam com
champanhe, rindo e evitando o olhar uma da outra, enquanto a
imaginação chocante e imprópria das duas irmãs acompanhava a
antiga protegida de ambas naquele último limiar.
– Será que alguma vez será a nossa vez, Amy? – suspirou Effy.
– Terá de ser – respondeu Amy, resoluta, agitando um braço
embriagado. – Há muitos homens lá fora, Effy. Montes e montes. No
próximo ano, vai ser a nossa vez, não te preocupes.
Effy desviou o rosto para esconder o brilho repentino de lágrimas
nos olhos. Isso era o que Amy sempre dizia, temporada após
temporada após temporada.
– Mr. Haddon – anunciou o mordomo.
Ambas as irmãs se levantaram de um salto. A felicidade e os
sonhos acabavam de ganhar nova vida. Enquanto houvesse um
homem por perto, havia esperança.
Table of Contents
Ficha Técnica
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10

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