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7ª edição / 3ª reimpressão - 2008

© Copyright Éditions
Gallimard, 1969

Traduzido de:
L'Archéologie du Savoir

Capa: Mello & Mayer Editoração


eletrônica: Textos & Formas

CIP-Brasil Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
FS6a Foucault, Michel, 1926-1984
7.ed. A arqueologia do sabei/Michel Foucault; tradução de Luiz Felipe Baeta Neves,
-7ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
(Campo Teórico)
Tradução de: L'archéologie du Savoir
ISBN 978-85-218-0344-7

1. Teoria do conhecimento. I. Titulo. II. Série.

03-2742
CDD 121
CDU 165

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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário

Capa – Orelha - Contracapa

I - INTRODUÇÃO .............................................................................. 1

II - AS REGULARIDADES DISCURSIVAS ..................................... 21


1. As Unidades do Discurso ...................................................... 23
2. As Formações Discursivas .................................................... 35
3. A Formação dos Objetos ....................................................... 45
4. A Formação das Modalidades Enunciativas .......................... 56
5. A Formação dos Conceitos.................................................... 62
6. A Formação das Estratégias .................................................. 71
7. Observações e Consequências ............................................... 79

III - O ENUNCIADO E O ARQUIVO ............................................... 87


1. Definir o Enunciado .............................................................. 89
2. A Função Enunciativa ........................................................... 99
3. A Descrição dos Enunciados ................................................. 120
4. Raridade, Exterioridade, Acúmulo ........................................ 134
5. O A Priori Histórico e o Arquivo.......................................... 143

IV - A DESCRIÇÃO ARQUEOLÓGICA .......................................... 151


1. Arqueologia e História das Idéias.......................................... 153
2. O Original e o Regular .......................................................... 159
3. As Contradições .................................................................... 168
4. Os Fatos Comparativos ......................................................... 177
5. A Mudança e as Transformações .......................................... 187
6. Ciência e Saber ...................................................................... 199

V - CONCLUSÃO .............................................................................. 221


5

O A PRIORI HISTÓRICO E O ARQUIVO

A positividade de um discurso - como o da história natural, da


economia política, ou da medicina clínica - caracteriza-lhe a
unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos
livros e dos textos. Essa unidade, certamente, não permite decidir
quem dizia a verdade, quem raciocinava rigorosamente, quem se
adaptava melhor a seus próprios postulados: Lineu ou Buffon,
Quesnay ou Turgot, Broussais ou Bichat; ela não permite,
tampouco, dizer qual das obras estava mais próxima de uma meta
inicial ou última, qual delas formularia mais radicalmente o projeto
geral de uma ciência. No entanto, permite o aparecimento da
medida segundo a qual Buffon e Lineu (ou Turgot e Quesnay,
Broussais e Bichat) falavam da "mesma coisa", colocando-se no
"mesmo nível" ou a "mesma distância", desenvolvendo "o mesmo
campo conceitual", opondo-se sobre "o mesmo campo de batalha";
e ela faz aparecer, em compensação, a razão pela qual não se pode
dizer que Darwin fala da mesma coisa que Diderot, que Laennec dá
continuidade a Van Swieten, ou que Jevons se segue aos
fisiocratas. Ela define um espaço limitado de comunicação: espaço
relativamente restrito, já que está longe de ter a amplidão de uma
ciência tomada em todo o seu devir histórico, desde sua mais
longínqua origem até seu ponto atual de realização; mas um espaço
mais extenso, entretanto, que o jogo
144 Michel Foucault

das influências que pôde ser exercido de um autor a outro, ou que o


domínio das polêmicas explícitas. As diferentes obras, os livros
dispersos, toda a massa de textos que pertencem a uma mesma
formação discursiva - e tantos autores que se conhecem e se
ignoram, se criticam, se invalidam uns aos outros, se plagiam, se
reencontram sem saber e entrecruzam obstinadamente seus
discursos singulares em uma trama que não dominam, cujo todo
não percebem e cuja amplitude medem mais - todas essas figuras e
individualidades diversas não comunicam apenas pelo
encadeamento lógico das proposições que eles apresentam, nem
pela recorrência dos temas, nem pela pertinácia de uma
significação transmitida, esquecida, redescoberta; comunicam pela
forma de positividade de seus discursos. Ou, mais exatamente, essa
forma de positividade (e as condições de exercício da função
enunciativa) define um campo em que, eventualmente, podem ser
desenvolvidos identidades formais, continuidades temáticas,
translações de conceitos, jogos polêmicos. Assim, a positividade
desempenha o papel do que se poderia chamar um a priori
histórico.
Justapostas, as duas palavras provocam um efeito um pouco
gritante; quero designar um a priori que não seria condição de
validade para juízos, mas condição de realidade para enunciados.
Não se trata de reencontrar o que poderia tornar legítima uma
assertiva, mas isolar as condições de emergência dos enunciados, a
lei de sua coexistência com outros, a forma específica de seu modo
de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e
desaparecem. A priori, não de verdades que poderiam nunca ser
ditas, nem realmente apresentadas à experiência, mas de uma
história determinada, já que é a das coisas efetivamente ditas. A
razão para se usar esse termo um pouco impróprio é que esse a
priori deve dar conta dos enunciados em sua dispersão, em todas
as falhas abertas por sua não-coerência, em sua superposição e
substituição recíproca, em sua simultaneidade que não pode ser
unificada e em sua sucessão que não é dedutível; em suma, tem de
dar conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou
uma verdade, mas uma história, e uma história específica que não
o reconduz às leis de um devir estranho. Deve mostrar, por
exemplo, que a história da gramática não é a projeção, no campo
da linguagem e de seus
A Arqueologia do Saber 145

problemas, de uma história que seria, em geral, a da razão ou de


uma mentalidade; de uma história que, de algum modo, ela
compartilharia com a medicina, a mecânica ou a teologia; mas que
ela comporta um tipo de história - uma forma de dispersão no
tempo, um modo de sucessão, de estabilidade de reativação, uma
rapidez de desencadeamento ou de rotação - que lhe pertence
particularmente, mesmo se estiver em relação com outros tipos de
história. Além disso, o a priori não escapa à historicidade: não
constitui, acima dos acontecimentos, e em um universo inalterável,
uma estrutura intemporal; define-se como o conjunto das regras
que caracterizam uma prática discursiva: ora, essas regras não se
impõem do exterior aos elementos que elas correlacionam; estão
inseridas no que ligam; e se não se modificam com o menor dentre
eles, os modificam, e com eles se transformam em certos limiares
decisivos. O a priori das positividades não é somente o sistema de
uma dispersão temporal; ele próprio é um conjunto transformável.
Diante dos a priori formais cuja jurisdição se estende sem
contingência, ele é uma figura puramente empírica; mas, por outro
lado, já que permite compreender os discursos na lei de seu devir
efetivo, deve poder dar conta do fato de que tal discurso, em um
momento dado, possa acolher e utilizar ou, ao contrário, excluir,
esquecer ou desconhecer, esta ou aquela estrutura formal. Ele não
pode dar conta (através de algo como uma gênese psicológica ou
cultural) dos a priori formais; mas permite compreender como os a
priori formais podem ter na história pontos de junção, lugares de
inserção, de irrupção ou de emergência, domínios ou ocasiões de
utilização, e compreender como a história pode ser não uma
contingência absolutamente extrínseca, não uma necessidade da
forma que desenvolve sua própria dialética, mas uma regularidade
específica. Nada, pois, seria mais agradável, mas menos exato, que
conceber esse a priori histórico como um a priori formal e, além
do mais, dotado de uma história: grande figura imóvel e vazia que
surgiria, um dia, à superfície do tempo; que faria valer sobre o
pensamento dos homens uma tirania da qual ninguém poderia
escapar; que depois desapareceria, de repente, em um eclipse a que
nenhum acontecimento teria dado sinal prévio - transcendental
sincopado, jogo de formas que cintilam. O a priori formal e o a
priori histórico não são nem do
146 Michel Foucault

mesmo nível nem da mesma natureza: se se cruzam é porque


ocupam duas dimensões diferentes.
O domínio dos enunciados assim articulado segundo a priori
históricos, assim caracterizado por diferentes tipos de positividade
e escandido por formações discursivas distintas, não tem mais o
aspecto de planície monótona e indefinidamente prolongada que
eu lhe dava no início, quando falava de "superfície do discurso";
deixa igualmente de aparecer como o elemento inerte, liso e neutro
em que vêm aflorar, cada um segundo seu próprio movimento, ou
estimulados por algum dinamismo obscuro, temas, idéias,
conceitos, conhecimentos. Temos de tratar, agora, de um volume
complexo, em que se diferenciam regiões heterogêneas, e em que
se desenrolam, segundo regras específicas, práticas que não se
podem superpor. Ao invés de vermos alinharem-se, no grande
livro mítico da história, palavras que traduzem, em caracteres
visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, temos
na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os
enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu
domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua
possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas
de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que
proponho chamar de arquivo.
Não entendo por esse termo a soma de todos os textos que uma
cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio
passado, ou como testemunho de sua identidade mantida; não
entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade,
permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter
lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao
contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos
homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as
leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias,
que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das
performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do
espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido graças
a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o
nível discursivo; que em lugar de serem figuras adventícias e como
que inseridas, um pouco ao acaso, em processos mudos, nasçam
segundo regularidades específicas; em suma, que se há coisas ditas
- e somente estas -, não é preciso perguntar sua razão
A Arqueologia do Saber 147

imediata às coisas que aí se encontram ditas ou aos homens que as


disseram, mas ao sistema da discursividade, às possibilidades e às
impossibilidades enunciativas que ele conduz. O arquivo é, de
início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares.
Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas
não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se
inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não
desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se
agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras
segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo
regularidades específicas; ele é o que faz com que não recuem no
mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte
como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito
longe, quando outras contemporâneas já estão extremamente
pálidas. O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga
imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as
memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que, na própria
raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define,
desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. O arquivo não é,
tampouco, o que recolhe a poeira dos enunciados que novamente
se tornaram inertes e permite o milagre eventual de sua
ressurreição; é o que define o modo de atualidade do
enunciado-coisa; é o sistema de seu funcionamento. Longe de ser o
que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio confuso de um
discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no
meio do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua
existência múltipla e os especifica em sua duração própria.
Entre a língua que define o sistema de construção das frases
possíveis e o corpus que recolhe passivamente as palavras
pronunciadas, o arquivo define um nível particular: o de uma
prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como
tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao
tratamento e à manipulação. Não tem o peso da tradição; não
constitui a biblioteca sem tempo nem lugar de todas as bibliotecas,
mas não é, tampouco, o esquecimento acolhedor que abre a
qualquer palavra nova o campo de exercício de sua liberdade; entre
a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma
prática que permite aos enunciados
148 Michel Foucault

subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o


sistema geral da formação e da transformação dos enunciados.
É evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo
de uma sociedade, de uma cultura ou de uma civilização; nem
mesmo, sem dúvida, o arquivo de toda uma época. Por outro lado,
não nos é possível descrever nosso próprio arquivo, já que é no
interior de suas regras que falamos, já que é ele que dá ao que
podemos dizer - e a ele próprio, objeto de nosso discurso - seus
modos de aparecimento, suas formas de existência e de
coexistência, seu sistema de acúmulo, de historicidade e de
desaparecimento. O arquivo não é descritível em sua totalidade; e é
incontornável em sua atualidade. Dá-se por fragmentos, regiões e
níveis, melhor, sem dúvida, e com mais clareza na medida em que
o tempo dele nos separa: em termos extremos, não fosse a raridade
dos documentos, seria necessário o maior recuo cronológico para
analisá-lo. Entretanto, como poderia essa descrição do arquivo
justificar-se, elucidar o que o torna possível, demarcar o lugar de
onde ele próprio fala, controlar seus deveres e seus direitos, testar e
elaborar seus conceitos pelo menos no estágio da pesquisa em que
ele só pode definir suas possibilidades no momento de seu
exercício - se se obstinava em descrever somente os horizontes
mais longínquos? Não será preciso nos reaproximarmos o máximo
possível dessa positividade a que ele próprio obedece, e do sistema
de arquivo que nos permite falar, hoje, do arquivo em geral? Não
será necessário esclarecer, apenas obliquamente, o campo
enunciativo de que ele mesmo faz parte? A análise do arquivo
comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima
de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo
que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua
alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita. A descrição do
arquivo desenvolve suas possibilidades (e o controle de suas
possibilidades) a partir dos discursos que começam a deixar
justamente de ser os nossos; seu limiar de existência é instaurado
pelo corte que nos separa do que não podemos mais dizer e do que
fica fora de nossa prática discursiva; começa com o exterior da
nossa própria linguagem; seu lugar é o afastamento de nossas
próprias práticas discursivas. Nesse sentido, vale para nosso
diagnóstico. Não porque nos
A Arqueologia do Saber 149

permitiria levantar o quadro de nossos traços distintivos e esboçar,


antecipadamente, o perfil que teremos no futuro, mas porque nos
desprende de nossas continuidades; dissipa essa identidade
temporal em que gostamos de nos olhar para conjurar as rupturas
da história; rompe o fio das teleologias transcendentais e aí onde o
pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou sua
subjetividade faz com que o outro e o externo se manifestem com
evidência. O diagnóstico assim entendido não estabelece a
autenticação de nossa identidade pelo jogo das distinções. Ele
estabelece que somos diferença, que nossa razão é a diferença dos
discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu a
diferença das máscaras. Que a diferença, longe de ser origem
esquecida e recoberta, é a dispersão que somos e que fazemos.
A revelação, jamais acabada, jamais integralmente alcançada do
arquivo, forma o horizonte geral a que pertencem a descrição das
formações discursivas, a análise das positividades, a demarcação
do campo enunciativo. O direito das palavras - que não coincide
com o dos filólogos - autoriza, pois, a dar a todas essas pesquisas o
título de arqueologia. Esse termo não incita à busca de nenhum
começo; não associa a análise a nenhuma exploração ou sondagem
geológica. Ele designa o tema geral de uma descrição que interroga
o já dito no nível de sua existência; da função enunciativa que nele
se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral
de arquivo de que faz parte. A arqueologia descreve os discursos
como práticas especificadas no elemento do arquivo.

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