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TRADUÇÃO DE

SUSANA SOUSA E SI LVA

lisboa
ti n ta­‑ da­‑ ch i n a
MMX IV
Para duas pessoas que sabem quem são,
embora não possam ser identificadas pelo nome.
Muito obrigada a ambas, por tudo.

© 2014, Lara Pawson


e Edições tinta­‑da­‑china, Lda.
Rua Francisco Ferrer, 6A
1500­‑461 Lisboa
Tels.: 21 726 90 28/29/30
E­‑mail: info@tintadachina.pt
www.tintadachina.pt

Título original: In the Name of the People


© 2014, Lara Pawson
Publicado por acordo com David Godwin Associates, Londres

Título: Em Nome do Povo:


O massacre que Angola silenciou
Autora: Lara Pawson
Tradução: Susana Sousa e Silva
Revisão: Tinta­‑da­‑china
Capa: Alice Marwick (adaptação: Tinta-da-china)
Composição: Tinta­‑da­‑china

1.ª edição: Maio de 2014


isbn 978­‑ 989­‑ 671­‑212-9
Depósito Legal n.º 374 468/14
ÍNDICE

Glossário  9
Principais Figuras Políticas 11
Introdução 17

PRIMEIR A PA R T E

O encontro com Maria  27


À sombra da DISA  41
Os sabotadores, os parasitas
  e os especuladores  55
Quando as coisas normais não
  correm normalmente  71
O fascismo acabara,
  começara o socialismo  83
Como nos filmes  99
O irmão  109
O som das microfichas  129
Não queiram conhecer os
  vossos heróis 137
Mandados para Cuba  145
O cerco aperta­‑se 157
SEGUNDA PA R T E

Tantas libelinhas  181


Salva por um poeta  199 GLOSSÁRIO
Uma visita ao Sambizanga  211
O Pequeno Livro Vermelho 227
Quilómetro 14  241
Paradoxos da Guerra Fria  251 Assimilado – Designação utilizada no DISA – Direcção de Informação e
A propósito de aparências  267 período colonial português para Segurança de Angola.
identificar os angolanos negros FAPLA – Forças Armadas Populares
O campo da morte  273
ou mestiços que possuíam os de Libertação de Angola, o braço
Metamorfoses do inimigo  295 requisitos mínimos para obter armado do MPLA.
Na praia  321 a cidadania portuguesa, como FNLA – Frente Nacional de Liber‑
Como se formam as saber ler e escrever em língua tação de Angola, um dos três
portuguesa, ter um trabalho remu‑ movimentos de libertação que
  nossas cabeças  327
nerado e uma cama onde dormir, combateram o poder colonial
e professar a fé cristã. Os assimila‑ português com o apoio da CIA e
dos representavam menos de um do presidente do Zaire, Mobutu
T ERCEIR A PA R T E por cento da população total. Sese Seko. A sua principal base de
Bairro – Termo frequentemente utili‑ apoio estava sediada no norte de
zado para designar as zonas mais Angola.
Pontas  soltas 345 pobres. Golpista – Apoiante de Nito Alves,
A ligação a Cuba  359 Bisneiro – Vocábulo em calão referente também designado por nitista e
Epílogo  375 a homem de negócios. fraccionista.
Bufo – Espião, informador, ou indiví‑ Kizomba – Género musical popular e
duo que trabalha para a DISA, a estilo de dança a par.
polícia secreta. Kudibanguela – «Defender­‑nos­‑emos.»
Agradecimentos  383 Camarada – Palavra habitualmente Programa radiofónico proibido
Bibliografia  387 utilizada para designar um mem‑ pelo governo por, alegadamente,
Índice remissivo  391 bro ou apoiante do MPLA. difundir propaganda fraccionista.
Candongueiro – Pequeno autocarro Mbundus – Angolanos oriundos das
privado. Estes veículos são usados regiões norte­‑centro e litoral de
pela maioria dos angolanos como Angola, que falavam kimbundu.
meio de transporte diário inter­‑ e Muitos deles tornaram­‑se os pri‑
intraurbano. meiros apoiantes do MPLA.

[9]
PRINCIPAIS FIGUR AS POLÍ T ICAS

MPLA – Movimento Popular de PADEPA – Partido de Apoio Demo‑ Nito Alves – Ministro da Adminis‑ Agostinho Neto – Presidente de Angola
Libertação de Angola e partido do crático e Progresso de Angola, tração Interna até Outubro de desde a independência até à sua
poder desde a independência, em pequeno partido político criado na 1976, foi expulso do MPLA a 21 morte, em 1979.
1975. Inicialmente, um movimento década de 1990. de Maio de 1977, acusado de «frac‑ Onambwe – Henrique de Carvalho
nacionalista e socialista apoiado PIDE – Polícia Internacional e cionismo». Liderou a revolta, ou Santos, vice­‑director da DISA, a
pela União Soviética, pela Alema‑ de Defesa do Estado. tentativa de golpe de Estado, de 27 polícia política.
nha de Leste e por Cuba, é hoje SADF – South African Defence Force de Maio de 1977, tendo sido execu‑ Sita Valles – Marxista portuguesa
uma ditadura capitalista, liderada (Força de Defesa Sul­‑Africana), o tado no final desse ano. que começou a trabalhar para o
pelo presidente José Eduardo dos exército da África do Sul até 1994. Iko Carreira – Henrique Teles Car‑ MPLA na época da independência.
Santos, sustentada pela exploração UNITA – União Nacional para a reira, ministro da Defesa durante a Amante de Zé Van Dúnem, de
de petróleo e diamantes. Independência Total de Angola, presidência de Agostinho Neto. quem teve um filho. Foi acusada
Musseque – Bairro de lata. um dos três movimentos de liber‑ Ludy Kissassunda – Director da DISA, de «fraccionismo» e executada em
Netista – Membro do MPLA, apoiante tação que combateram o poder a polícia política. 1977.
do presidente Agostinho Neto. colonial português. Contava com Lúcio Lara – Fundador do MPLA e José ou «Zé» Van Dúnem – Comissário
Nitista – Membro do MPLA, apoiante o apoio da CIA e do regime de seu secretário­‑geral na época da político das FAPLA, o braço
de Nito Alves. minoria branca da África do Sul e independência. Braço­‑direito de armado do MPLA, até Outubro
OCA – Organização Comunista de foi dirigido por Jonas Savimbi até à Agostinho Neto. de 1976. Foi expulso do MPLA
Angola. sua morte, em 2002. Saydi Mingas – Ministro das Finanças, a 21 de Maio de 1977, acusado de
Ovimbundus – Angolanos oriundos da assassinado no Sambizanga, a 27 de «fraccionismo», e executado no
região do Planalto Central, que Maio de 1977. mesmo ano.
falam umbundu e foram a primeira Monstro Imortal – Alcunha por que
grande base de apoio da UNITA. era conhecido Jacob João Cae‑
tano, alto dirigente das FAPLA
e homem de confiança de Nito
Alves.

[10] [11]
londres

lisboa

luanda

A partir de Wikimedia Commons,


imagem de Angola no globo
Lembrem­‑se de que esta não é a vossa história. É a nossa.
Graça Francisco, uma amiga angolana

As verdadeiras vidas não terminam. Os verdadeiros livros não têm fim.


J.M.G. Le Clézio, Le livre des fuites
IN T RODUÇÃO

Nota sobre o texto: devido ao clima político que se vive em Angola, No ano 2000, numa manhã quente e húmida de Fevereiro, eu aguar‑
a identidade de algumas das pessoas mencionadas neste livro foi dava na baixa de Luanda defronte do edifício rosa­‑pálido da igreja
alterada. Certos pormenores referentes a determinados indivíduos carmelita, construído no século xvii. A poucos metros dali, na Rua
foram omitidos ou ligeiramente modificados, para sua protecção. de Portugal, o trânsito da capital angolana serpenteava por entre
sarjetas partidas. No interior de um todo­‑o­‑terreno, um bisneiro
obeso falava para dois telemóveis, enquanto um funcionário de uma
organização de ajuda humanitária seguia, com ar decepcionado, num
Land Rover branco com a antena puxada para trás a lembrar o chifre
de um gigantesco antílope. Os candongueiros, pequenos autocarros
azuis e brancos, avançavam apinhados de gente, dispersando os mais
recentes êxitos de kizomba, enquanto os motoristas abriam nesgas
de caminho por entre o trânsito congestionado. No cruzamento,
um polícia empoleirado num plinto enferrujado, tentava equilibrar­
‑se enquanto gesticulava com movimentos bizarros dos cotovelos.
As luvas brancas e compridas que lhe cobriam as mãos reluziam
como espelhos e os seus dedos arrancavam formas esquivas ao calor
denso. No meio de tudo isto, um cão de testículos enormes cirandava
por entre os pneus e as toneladas de metal num vaivém sem fim, esca‑
pando à morte como que por milagre.
Pouco antes das dez horas, um grupo de homens começou a
juntar­‑se na praça orlada por sebes bem cuidadas. Eram apoian‑
tes do PADEPA, um jovem e aguerrido partido político, defensor
da democracia e do progresso, mas muito pouco conhecido fora
da cidade de Luanda. Depois de todos chegarem, os elementos do

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i nt rodu ção

grupo sentaram­‑se na relva aparada, com as calças bem engomadas, para se centrarem nas detenções das vésperas. Entre os manifes‑
as camisas aprumadas e os sapatos engraxados, e iniciaram uma greve tantes, encontravam­‑se apoiantes do PADEPA e outros activistas,
de fome em protesto contra um aumento de 1500 por cento no preço como Francisco Filomeno Vieira Lopes, um atraente economista de
dos combustíveis. ar austero, conhecido pela sua liderança, inspirada em princípios,
Desde que eu chegara a Angola, em Outubro de 1998, o meu de outro pequeno partido político. Estava a entrevistá­‑lo quando
trabalho como correspondente da BBC centrara­‑se quase exclusi‑ a polícia chegou. Um indivíduo baixo que envergava um uniforme
vamente na triste guerra civil que devastava o país e deflagrara em azul apontou uma kalashnikov na nossa direcção e ordenou­‑me aos
1975, poucos meses antes da independência, acabando por se tornar gritos que lhe entregasse o gravador. Recusei­. Gritou ainda mais
um dos conflitos mais longos do continente. Após a partida das auto‑ alto. Respondi­‑lhe no mesmo tom e ele virou­‑se para Vieira Lopes,
ridades coloniais portuguesas, o poder passara para as mãos de um algemando­‑o e levando­‑o num gesto rápido e afastando­‑se em passo
único partido – o Movimento Popular para a Libertação de Angola marcial.
(MPLA) –, sendo raras as atitudes de desafio político, bem como os Decorridos alguns instantes, foi como se nada de extraordinário
protestos dessa natureza. Estava decidida a testemunhá­‑lo, por mais se tivesse passado. Estava de novo sozinha a escutar os sons que me
irrelevante que pudesse ser aos olhos do resto do mundo. Sabia que chegavam da Rua de Portugal, enquanto sentia o suor a escorrer por
seria difícil convencer os meus chefes, em Londres, a concederem baixo do sutiã e a abrir sulcos até ao estômago e me perguntava como
tempo de antena ao que, em quase todos os aspectos, mais não era pudera um pequeno gesto de dissidência desencadear uma resposta
do que uma insignificante manifestação. Apesar disso, não desisti, e tão excessiva.
dirigi o microfone para o círculo de homens em greve de fome. Minu‑ Nos dias seguintes, não conseguia deixar de pensar naquela
tos depois, o meu gravador começou a captar um som bem audível e curiosa sucessão de sinais de resistência, impressionada com a escas‑
familiar. Duas carrinhas cheias de polícias armados irromperam pelo sez de manifestantes e, mais ainda, com a ausência de outros jornalis‑
meio da praça, e homens empunhando grandes espingardas apearam­ tas. Apenas outro repórter viera assistir às manifestações, limitando
‑se e prenderam imediatamente 12 manifestantes. Seria esta rápida e a sua comparência ao primeiro dia. Quando perguntei aos meus cole‑
pronta resposta do aparelho de segurança que acabaria por vender a gas angolanos porque não tinham aparecido, obtive respostas muito
história, já que as detenções fazem sempre manchetes mais convin‑ diferentes. Uns alegaram que as manifestações eram diminutas e, por
centes do que meia hora de greve de fome. isso, não valia a pena perder tempo com elas, ou que ao PADEPA
Uns dias mais tarde, realizou­‑se uma nova manifestação junto apenas interessava organizar manobras publicitárias que não con‑
à sede do governo provincial de Luanda, do lado oposto à igreja. duziam a uma verdadeira mudança. Outros atribuíram a sua falta de
O  facto de ser menos concorrida do que a anterior não impediu a motivação aos próprios chefes de redacção, que não lhes pagavam o
polícia de chegar pouco depois e de proceder a mais detenções. salário há meses. Um ou dois reconheceram terem sido dissuadidos
No dia seguinte, decorreu outra manifestação, desta vez à pelo medo de serem presos. No entanto, foi um jornalista ligeira‑
porta da igreja. As atenções desviavam­‑se do aumento dos preços mente mais velho, um homem com pouco mais de 50 anos, junto de

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quem muitas vezes me aconselhei, que me disse algo extraordinário. ditatorial do partido, com que me confrontara enquanto jornalista,
Segundo ele, eu acabara de testemunhar a cultura do medo que se ganhara forma muito mais tarde, já sob a influência do sucessor de
vivia em Angola. Agostinho Neto, o engenheiro petrolífero formado e treinado na
– A última vez em que houve um protesto digno desse nome neste União Soviética José Eduardo dos Santos, que se mantém na presi‑
país, eles não se limitaram a prender toda a gente. Mataram muitos dos dência do país até hoje. Talvez influenciada pelas minhas convicções
manifestantes e prolongaram a matança por várias semanas. políticas, julgava que a ética do MPLA só se desmoronara na década
– Quando foi isso? – perguntei­‑lhe. de 1990, após a queda do Muro de Berlim. Nessa época, o partido
– Em 1977 – respondeu. – Milhares de pessoas foram mortas e, abandonara o marxismo­‑leninismo e abraçara a economia de mer‑
desde então, todos vivem com muito medo. cado, que, rapidamente, se transformara em capitalismo nepotista,
enriquecendo um número reduzido de famílias. A minha consterna‑
ção aumentou quando fiquei a saber que Cuba, o grande aliado do
Foi a primeira vez que ouvi falar no 27 de Maio de 1977 e fiquei estu‑ MPLA, que, no período da independência, defendera Angola de
pefacta. O meu amigo jornalista contou­‑me que nesse dia uma fac‑ uma invasão sul­‑africana, fora responsável por um grande número
ção do MPLA, o partido dirigente, se revoltara contra a liderança das mortes ocorridas em 1977. Mais surpreendente ainda é o facto de
do partido. Havia quem dissesse ter­‑se tratado de uma tentativa de todo o episódio do 27 de Maio ter conduzido a uma cisão entre Cuba
golpe de Estado, mas ele continuava a pensar que fora tão­‑só uma e a União Soviética.
manifestação travada por uma reacção excessiva e brutal. Ele próprio Se tudo isto era verdade, porque permanecera tão bem escon‑
permanecera detido durante vários anos sem ir a julgamento e, no dido durante tanto tempo? Num país cuja população suportara 500
entanto, à semelhança da maioria dos que foram presos e mortos, anos de expansão colonialista portuguesa, frequentemente sanguiná‑
nunca deixara de apoiar o MPLA. ria e que incluíra os horrores do tráfico negreiro transatlântico, cinco
A história contrastava vivamente com a forma como eu via o par‑ décadas de uma ditadura fascista e perto de três de guerra civil, como
tido dirigente, sobretudo na sua configuração anterior, sob a direcção é que um episódio traumático relativamente breve ocorrido nos pri‑
de Agostinho Neto, o chamado pai da nação. Considerava­‑o um movi‑ meiros anos do pós­‑independência continuava a estar na génese de
mento socialista que personificava o heroísmo da libertação africana. um medo tão profundo? Por outras palavras, como é que uma querela
Ao contrário dos seus rivais de direita, apoiados pela CIA, a Frente intrapartidária conseguira sobrepor­‑se a «um interminável processo de
Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional brutalização», de acordo com a descrição de colonialismo feita pelo
para a Independência Total de Angola (UNITA), que se aliaram ao teórico político Achille Mbembe?1
regime de minoria branca da África do Sul, o MPLA combatera em Não tivessem sido a guerra civil que opunha o MPLA ao seu
defesa da liberdade e das aspirações de todo o povo angolano, inde‑ principal rival, a UNITA, e o tempo de que precisava para me manter
pendentemente das suas origens étnicas, do seu local de nascimento
1 Achille Mbembe, On the Postcolony, Berkeley, CA e Londres, University of California
e da sua cor de pele. Sempre pensara que o espírito ganancioso e Press, 2001, p. 14 (itálico no original).

[20] [21]
i nt rodu ção

actualizada sobre o conflito, teria começado imediatamente a inves‑ Estas novas informações pareciam­‑me extremamente desafian‑
tigar este poderosíssimo tabu. Todavia, direi apenas que a luta diária tes. Os acontecimentos do 27 de Maio eram análogos aos massacres
para descobrir a verdade sobre o conflito exigia um esforço tremendo. ordenados por Robert Mugabe em Matabeleland, no Zimbabué,
Poucos dias antes do Natal de 2000, sentindo um desconforto cres‑ no início da década de 1980, e ao assassínio de milhares de pessoas
cente em relação ao meu trabalho como correspondente estrangeira, durante a ditadura do general Augusto Pinochet, no Chile. Estes,
deixei Angola e regressei a Londres para exercer funções específicas na porém, eram casos muito conhecidos. Porque é que o 27 permane‑
secção de assuntos africanos do BBC World Service. Após o regresso, cia um segredo tão bem guardado? Não consegui deixar de pensar no
tentei esquecer o país e, em certos momentos, julguei ser bem­‑sucedida assunto e decidi consultar a minha colecção de livros sobre Angola à
nesse intento. No entanto, conhecia angolanos que viviam em Londres procura de referências a Nito Alves. Encontrei frases soltas, e, num
e, como era natural, falávamos uns com os outros. caso apenas, alguns breves parágrafos sobre os «sanguinários aconte‑
Uma tarde, num dos nossos encontros num pub, veio à discussão cimentos de Maio», que «finalmente permitiram ao presidente Neto
o tema do 27 de Maio de 1977. A minha amiga Carla contou­‑me que eliminar os seus rivais e assegurar a supremacia incontestada no seio
dois dos seus irmãos haviam desaparecido no período a seguir ao que do MPLA» 1. Uma jornalista britânica, autora de um livro intitulado
ela designava apenas por «Vinte e Sete». Um era apoiante da facção Morte da Dignidade, que começa em 1974 e termina no final da década
do MPLA que governava o país, o outro estava do lado dos revol‑ de 1990, não inclui uma única referência à insurreição, apesar de a sua
tosos. Desesperada, a mãe procurara os dois filhos em toda a parte, narrativa recorrer quase na íntegra a vozes do MPLA, na sua maio‑
mas, à medida que as semanas passavam sem que chegassem notícias ria pertencentes à elite. A  autora em questão, Victoria Brittain, é a
do seu paradeiro, começara a perder a esperança. E a ficar cega. Um antiga editora­‑adjunta de política estrangeira do jornal The Guardian,
dia, soube que o corpo de um dos filhos fora encontrado no Uíge, no uma mulher que lutou arduamente para que as notícias sobre África
noroeste de Angola. Deslocou­‑se até lá e, depois de ver o corpo do tivessem destaque nos principais meios de comunicação social e cujo
filho, começou a recuperar a visão. exemplo foi um estímulo para a minha ambição pessoal de escrever a
O Rui, outro amigo meu, falou­‑me do tio, que era motorista de verdade. Há muito que admirava a coragem e o empenho dela na causa
um ministro morto por um grupo de manifestantes, no 27 de Maio. socialista, mas as minhas novas descobertas sobre Angola pareciam
Mais tarde, seria acusado pelas autoridades de ser um «contra­ contrariar tudo o que eu sabia. Até Basil Davidson, um respeitado
‑revolucionário, um nitista», e também seria morto. Quando lhe jornalista e historiador britânico – cuja obra inspirara muita gente,
perguntei o que era um «nitista», Rui explicou­‑me que o líder da inclusive eu, a tentar compreender o continente a partir de uma pers‑
revolta era um tal Nito Alves, que fora ministro até Outubro de pectiva africana e não europeia –, parecia fechar os olhos às inúmeras
1976, altura em que se incompatibilizara com a direcção do partido. mortes ocorridas na sequência do 27 de Maio. O seu envolvimento nos
Segundo o Rui, na sequência do 27 de Maio, pelo menos 30 mil pes‑
1 Tony Hodges, Angola from Afro­‑Stalinism to Petro­‑Diamond Capitalism, Bloomington,
soas tinham sido acusadas de serem nitistas e mortas por ordem do
IN, Indiana University Press, Oxford, James Currey, em associação com o Fridtjof Nansen
presidente Neto. Institute, 2001, p. 46.

[22] [23]
movimentos de libertação nacional africanos era tão profundo que, no
final, parece apenas ter escutado as vozes dos seus dirigentes e igno‑
rado os apelos das bases. Pelo menos, foi o que senti quando acabei de
ler o seu artigo sobre o MPLA, publicado em 1977 numa edição da Race
& Class, uma das mais influentes revistas sobre racismo e imperialismo
em língua inglesa e um refúgio para académicos radicais onde eu pró‑
pria há muito desejava ser admitida.
Passados quase seis anos sobre a data em que soube da sua exis‑
tência, decidi tentar revelar a verdade por escrever sobre o 27 de
Maio. Eis o que consegui descobrir.

[24]
FOI COMPOSTO EM CARACTERES HOEFLER TEXT
E ENGRAVES GOTHIC, E IMPRESSO PELA
GUIDE, ARTES GRÁFICAS, SOBRE PAPEL CORAL BOOK
DE 80 GRAMAS, EM ABRIL DE 2014.

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